Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
505/17.4T8LMG.C1.S1.S1-A
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
ACÇÃO DE INTERDIÇÃO
NEGÓCIO GRATUITO
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Os pressupostos substanciais de admissibilidade deste recurso para uniformização de jurisprudência são os seguintes: 1) a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito; 2) a questão de direito apreciada revela-se decisiva para as soluções perfilhadas num e noutro acórdão, desconsiderando-se argumentos ou razões que não encerrem uma relevância determinante; 3) a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos; 4) as soluções em confronto, necessariamente divergentes, têm que ser encontradas no “domínio da mesma legislação”, de acordo com a terminologia legal, ou seja, exige-se que se verifique a “identidade de disposição legal, ainda que de diplomas diferentes, e, desde que, com a mudança de diploma, a disposição não tenha sofrido, com a sua integração no novo sistema, um alcance diferente, do que antes tinha”.

II – Não há identidade de questões de direito quando o acórdão fundamento decidiu anular um negócio gratuito, celebrado na pendência de uma ação de interdição, com base na noção de prejuízo causado ao interditando, e o acórdão recorrido decidiu que um negócio gratuito celebrado pelo inabilitando era válido, em homenagem à proteção da autonomia deste.  

III – A questão de direito tratada no acórdão fundamento – o conceito de prejuízo – não foi, assim, a ratio decidendi do acórdão recorrido. 

IV – A exigência de que o acórdão recorrido seja proferido no domínio da mesma legislação não significa que o diploma em que se insere a norma tenha de ser o mesmo.

V – Todavia, tendo sido o acórdão fundamento proferido em 1955 (Código Civil de 1987) e o acórdão recorrido em 2020 (Código Civil de 1966), épocas com conceções sociais tão distintas em relação ao direito das pessoas, deve entender-se que os acórdãos não foram proferidos no domínio da mesma legislação.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA. E BB., Autores no processo em que são Réus CC. e OUTROS, tendo sido notificados da decisão singular, que não admitiu o recurso para uniformização de jurisprudência, vêm, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 692.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC), apresentar a sua RECLAMAÇÃO para a Conferência, apresentando alegações que aqui se consideram integralmente reproduzidas e que terminam, peticionando que:

«Termos em que deve a presente RECLAMAÇÃO ser admitida e consequentemente ser proferida decisão que julgue verificados os pressupostos do recurso, incluindo a contradição invocada como seu fundamento, prosseguindo os seus ulteriores termos, com a prolação de ACÓRDÃO, no qual se uniformiza a jurisprudência».

2. Invocam os Recorrentes que o Acórdão Recorrido, proferido por este Supremo Tribunal, está em contradição com o Acórdão também proferido pelo Supremo, de 26 de julho de 1955, no âmbito do processo n.º 56.369.

Especificam que o Acórdão Recorrido concluiu o seguinte:

“a. Dispunha o artigo 149º do CC, na redação anterior à actual, que são igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da ação nos termos da lei de processo, contanto que a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito.

b. Essa norma e a do artigo 156º do mesmo diploma legal visam a proteção quer do interditando quer do inabilitando e a regra é de que os maiores gozam de plena capacidade de exercício de direitos (artigo 130º do CC).

c. Daí que, quando o artigo 149º do CC afirma que são anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz está a esclarecer que não basta o preenchimento formal dos atrás apontamos requisitos, mas é necessário que os negócios efetuados estejam abrangidos pela delimitação da incapacidade declarada. Isto é, que a respetiva celebração tenha ocorrido num período em que o seu autor ou um dos contraentes se encontrava incapacitado de querer e perceber o alcance desse acto.”

d. Devem as normas dos artigos 149º e 156º citados ser interpretadas no sentido de que, quer a interdição, quer a inabilitação visam obter uma decisão que fixe um quadro de incapacidade delimitado temporalmente e quanto ao âmbito dos actos abrangidos que fora desse quadro a regra continua a ser a da plena capacidade e, logo, da insubsistência da referida anulabilidade”.


Na perspetiva dos recorrentes, o Acórdão Recorrido contradiz o Acórdão proferido por este Supremo Tribunal no âmbito do processo 56.369 datado de 26 de julho de 1955, o qual em suma refere que:

 “A anulação de atos praticados pelo interdito depois da publicação do anúncio referido no artigo 945º do Código de Processo Civil não depende da prova de que na altura da prática desses actos existia ou era notória ou conhecida do outro estipulante a causa da interdição depende unicamente de se mostrar que causaram prejuízo ao mesmo interdito. evidente prejuízo para o interdito em fazer uma doação de todos os seus bens com reserva do usufruto, embora o usufruto reservado seja suficientepara ele levar vida desafogada”.


3. O conteúdo da decisão singular da Relatora foi o seguinte:

«O acórdão recorrido pronunciou-se pela validade de um negócio gratuito praticado, durante a pendência da ação e após a publicação do anúncio da sua proposição, por uma pessoa que veio a ser declarada inabilitada, com os seguintes fundamentos:

a. Dispunha o artigo 149º do CC, na redação anterior à actual, que são igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da ação nos termos da lei de processo, contanto que a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito.

b. Essa norma e a do artigo 156º do mesmo diploma legal visam a proteção quer do interditando quer do inabilitando e a regra é de que os maiores gozam de plena capacidade de exercício de direitos (artigo 130º do CC).

c. Daí que, quando o artigo 149º do CC afirma que são anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz está a esclarecer que não basta o preenchimento formal dos atrás apontamos requisitos, mas é necessário que os negócios efetuados estejam abrangidos pela delimitação da incapacidade declarada. Isto é, que a respetiva celebração tenha ocorrido num período em que o seu autor ou um dos contraentes se encontrava incapacitado de querer e perceber o alcance desse acto.

d. Devem as normas dos artigos 149º e 156º citados ser interpretadas no sentido de que, quer a interdição, quer a inabilitação visam obter uma decisão que fixe um quadro de incapacidade delimitado temporalmente e quanto ao âmbito dos actos abrangidos que fora desse quadro a regra continua a ser a da plena capacidade e, logo, da insubsistência da referida anulabilidade”.

O acórdão fundamento que anula um ato gratuito praticado por uma pessoa que veio a ser decretada interdita por sentença, afirma o seguinte:

“A anulação de atos praticados pelo interdito depois da publicação do anúncio referido no artigo 945º do Código de Processo Civil não depende da prova de que já na altura da prática desses actos existia ou era notória ou conhecida do outro estipulante a causa da interdição – depende unicamente de se mostrar que causaram prejuízo ao mesmo interdito. Há evidente prejuízo para o interdito em fazer uma doação de todos os seus bens com reserva do usufruto, embora o usufruto reservado seja suficiente para ele levar vida desafogada”.


Estabelece o art.º 688º do Código de Processo Civil como fundamento do Recurso para Uniformização de Jurisprudência:

“1 - As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”.

Este preceito indica que os pressupostos substanciais de admissibilidade deste recurso são os seguintes: 1) a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito; 2) a questão de direito apreciada revela-se decisiva para as soluções perfilhadas num e noutro acórdão, desconsiderando-se argumentos ou razões que não encerrem uma relevância determinante; 3) a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos; 4) as soluções em confronto, necessariamente divergentes, têm que ser encontradas no “domínio da mesma legislação”, de acordo com a terminologia legal, ou seja, exige-se que se verifique a “identidade de disposição legal, ainda que de diplomas diferentes, e, desde que, com a mudança de diploma, a disposição não tenha sofrido, com a sua integração no novo sistema, um alcance diferente, do que antes tinha” (Pinto Furtado, Recursos em Processo Civil (de acordo com o Código de Processo Civil de 2013), Quid Juris, p. 142).

Ora, no caso vertente, estes pressupostos não estão verificados: O Acórdão-fundamento foi proferido na vigência do Código Civil de 1867, época em que as incapacidades de exercício visavam sobretudo a tutela do património do incapaz e dos seus herdeiros. Já o Acórdão recorrido foi proferido com base no Código Civil de 1966, na redação do Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, num momento de transição para o novo regime jurídico do maior acompanhado, em que, por força de conceções sociais distintas, se valoriza uma interpretação atualista que reconhece à pessoa portadora de deficiência uma margem de autonomia mais ampla e de âmbito variável de acordo com as limitações em concreto sofridas, acompanhando a tendência do Direito Internacional (Convenção dos Direitos das Pessoas com deficiência, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30/07 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30/07), e do Direito da União Europeia.

Os pressupostos de facto e as questões de direito conhecidas pelo Acórdão fundamento e pelo Acórdão recorrido também não são idênticas.

No Acórdão fundamento de 1955, discute-se a prova da notoriedade da demência e do seu conhecimento pelos donatários, bem como o conceito de prejuízo. Neste aresto não se aborda a questão da capacidade jurídica do interditando no momento da prática dos atos gratuitos. Pelo contrário, a questão da capacidade do inabilitando no momento da prática do negócio de cessão gratuita ocupa o aspeto central da fundamentação do Acórdão recorrido, que interpreta a norma do artigo 149.º do Código Civil, para a qual remete o artigo 156.º, na redação de 1977, à luz da regra geral da capacidade jurídica das pessoas maiores de idade. Pois, no Acórdão recorrido, provou-se que existia capacidade para o ato translativo praticado após o anúncio da proposição da ação de inabilitação. Acresce que, no Acórdão fundamento, está em causa uma interdição, e no Acórdão recorrido está em causa o instituto da inabilitação, que se distingue da interdição, não só porque as suas causas são de menor gravidade do ponto de vista da deficiência ou limitação do indivíduo, como também se distinguem pelo facto de a interdição ser uma incapacidade geral, enquanto a inabilitação é uma incapacidade específica, que tem um âmbito variável, mais ou menos extenso, de acordo com o conteúdo da sentença (artigo 153.º, n.º 1, do Código Civil). Por outro lado, a interdição é suprida pela representação legal, enquanto a inabilitação é suprida pela assistência (artigo 153.º, n.º 1, do Código Civil) de um curador, que atua ao lado do inabilitado, mas não se substitui a ele, como sucede na representação legal. As valorações dos dois institutos são distintas, o que se reflete no artigo 156.º, que remete para o artigo 149.º, com as necessárias adaptações. Ou seja, mesmo que considerássemos que a norma aplicável nos dois casos, o do acórdão recorrido e o do acórdão fundamento, era a mesma pelo facto de ambas se referirem ao período que medeia entre a publicação da proposição da ação e a sentença que decreta a incapacidade, sempre a norma aplicada no acórdão recorrido estaria sujeita a uma diferente interpretação, quando aplicada ao inabilitando, pela circunstância de o legislador permitir a adaptação da norma às características específicas do instituto da inabilitação, que reconhecem ao inabilitado uma incapacidade flexível e variável de acordo com o conteúdo da sentença, o que tem por consequência uma maior amplitude de autonomia durante a pendência da ação. Pelo que, também por este motivo, não se verificam os requisitos do artigo 688.º do CPC, não se admitindo em consequência o recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência».

4. Os recorrentes discordam desta decisão, afirmando que a inadmissibilidade de um recurso de uniformização de jurisprudência não se pode basear apenas no facto de estarmos perante Códigos diferentes, entendendo que, neste caso concreto, não houve uma modificação legislativa relevante e que a tónica está na questão de direito a ser discutida em cada um dos Acórdãos.

Entendem, pois, que:

 «É forçoso concluir que, como exposto, a questão de direito é a mesma em ambos os Acórdãos -a existência de prejuízo parao interdito/inabilitado depois de anunciada a proposição da ação.

Sendo certo que a questão fundamental de direito em que assenta esta divergência assume um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, integra a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto».

5. No acórdão de 11-04-2019, proc. n.º 1256/07.3TBMCN.P1.S1-A, estabeleceram-se os seguintes critérios para decidir acerca da admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência:

«I. A admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência depende, além do mais, de se verificar uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento a respeito da questão ou questões de direito decisivas para cada um deles.

II. Para ilustrar essa divergência, não basta extratar do acórdão-fundamento algum segmento em aparente contradição com o acórdão recorrido, sendo necessário que as questões de direito decisivas tenham obtido resposta diversa em cada um deles, com influência direta no resultado.

(…)

V. A admissibilidade do recurso extraordinário deve ponderar ainda a amplitude dos poderes do Pleno das Secções Cíveis a respeito das questões apreciadas no acórdão recorrido, sendo de rejeitar se, relativamente a uma questão de direito que também se revelou decisiva para o resultado declarado no acórdão recorrido, não foi invocada qualquer contradição jurisprudencial, sendo manifestada apenas a discordância do recorrente quanto ao modo como a mesma foi solucionada».

Para aferir da existência de uma contradição entre os dois acórdãos é necessário que a questão de direito que os recorrentes entendem ter sido resolvida de forma oposta pelo acórdão recorrido e pelo acórdão fundamento, tenha sido a ratio decidendi de ambos os acórdãos, ou seja que tenha constituído o fundamento efetivo e decisivo para a solução do caso, e não apenas um mero obiter dictum, um simples argumento lateral ou secundário ou de mera retórica, mas que não se reveste de essencialidade para a decisão.

Ora, tendo a recorrente identificado, como questão de direito relevante para aferir da alegada contradição de acórdãos, o conceito de prejuízo causado ao inabilitando ou interditando, por um negócio gratuito celebrado por este durante a pendência da ação de interdição ou de inabilitação, importa averiguar se a definição deste conceito de prejuízo como fundamento para decidir acerca da anulabilidade ou validade da doação foi o fundamento essencial da decisão do acórdão recorrido.

6. Compulsado o acórdão recorrido, proferido por este Supremo Tribunal, em 4 de fevereiro de 2020, verifica-se que a ratio decidendi deste acórdão não foi o conceito de prejuízo, mas a regra geral da capacidade:

 «(…)

Ora o acto de “cessão gratuita” foi praticado quando já havia sido instaurada a acção de interdição e o facto notificado à II (doadora, interditanda), sendo certo que a inabilitação veio a ser decretada.

Os requisitos exigidos para se aplicarem as referidas disposições eram:

a) ser o negócio celebrado após anunciada a propositura da acção de interdição ou de inabilitação;

b) vir a ser decretada a interdição ou a inabilitação e

c) causar o acto prejuízo ao interdito ou inabilitado.

(…)

Os dois primeiros requisitos resultam da matéria fixada pelas instâncias.

Quanto ao requisito do prejuízo não houve pronúncia pela 1.ª instância em termos factuais e esta situação não se alterou com a alteração da matéria de facto pela Relação.

Porém, entendeu a Relação extrair da matéria de facto fixada a ilação de que houve prejuízo.

 (…)

Refere o acórdão recorrido que a doutrina vem entendendo que, relativamente a actos onerosos a questão de saber se há prejuízo para o interditando/inabilitando salda-se por apreciar se uma pessoa de normal diligência praticaria aquele acto naquelas circunstâncias, sendo que a apreciação sobre a (in)existência do prejuízo reporta-se ao momento da prática do acto, não se tomando em conta eventualidades ulteriores que tornariam vantajoso não o ter realizado.

Já quanto aos negócios gratuitos, como as doações, continua o acórdão a fazer apelo à doutrina, para sustentar “que estas devem sempre ser consideradas prejudiciais, mesmo que as circunstâncias da sua realização tornassem razoável a prática do acto por pessoa normal; é que a doação, seja qual for a sua justificação moral, importa sempre um empobrecimento imediato do doador, podendo, eventualmente por força de outras vicissitudes, causar-lhe grave dano – Cfr. – Mota Pinto, Teoria Geral, 1967, 135/136; C. Mendes, Teoria Geral, 1967, 1º, 171/173 e Carvalho Fernandes, Teoria Geral, 1983, 1º, 325; P. Lima e A. Varela, CC Anot. 1º, 97; M. Brito, CC Anot. 1º, 161.”

Com base nesse entendimento doutrinal e fazendo apelo aos seus poderes de apreciação da matéria de facto disse-se no acórdão recorrido:

Ab initio importa dizer que o facto de o ato de doação não se ter traduzido numa momentânea transferência de concretos bens para as donatárias, mas apenas se consubstanciando na cessão do direito por banda da II da sua posição de interessada na herança do seu defunto marido, não é o bastante para se concluir que tal não lhe acarretou prejuízo.

Naturalmente que a cessão de tal direito transferiu para a esfera jurídica das donatárias o acervo patrimonial e financeiro que o preenchia/consubstanciava.

O que é o qb, para se concluir, em tese e sem prejuízo da necessidade de posterior análise dos concretos contornos do caso, que tal lhe provocou ou poderia provocar prejuízo.

Ora vistos estes contornos, e mesmo que o ato fosse oneroso, os factos provados, versus o entendido pela julgadora, apontam para a existência de prejuízo»

(…)

E conclui desta forma que transcrevemos, sublinhando o que se nos afigura mais relevante:

“… como se viu, o prejuízo existe, ou, ao menos, tem de ser presumido; e, neste caso, competindo às interessadas donatárias, aqui rés CC e EE, ilidir tal presunção; ónus que não lograram efectivar.”

 (…)

Entendemos, porém, que não é essa a interpretação correcta dos citados normativos (artigos 149.º e 156.º)

Quer no regime do Código Civil vigente à data da celebração da cessão, quer na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, o legislador pretendeu proteger o incapaz ou inabilitado, estabelecendo um sistema para acautelar os seus interesses nos casos em que ocorra uma incapacidade ou uma inabilitação (utilizaremos estes termos, por serem os aplicáveis à data da celebração da cessão), sendo certo que fora do âmbito da respectiva incapacidade a regra é da capacidade plena dos maiores.

Com efeito, lê-se no Comentário ao Código Civil da Universidade Católica Portuguesa, a p. 328.º:

“A segunda questão prende-se com o âmbito de aplicação do artigo 149.º. Apesar do modo amplo como está redigida a hipótese da norma não parece que a mesma se deva aplicar a todos os actos do interdicendo. Na verdade, se o incapaz tem, excepcionalmente, capacidade pra praticar certos atos mesmo depois de decretada a interdição (nos termos do artigo 127.º, ex vi 139.º, por exemplo), e se a ratio do artigo 149.º é a proteção do interdicendo, porque este, entretanto, foi declarado interdito não se concebe que a medida desta proteção seja outra que não a do próprio instituto da interdição. Assim sendo, se a lei reconhece ao interdito capacidade para certos atos e, portanto, não os sujeita a anulação mesmo que tenham causado prejuízo ao incapaz, terá, por maioria de razão, de tratar da mesma forma os atos praticados no decurso da acção, quando o interdito ainda possuía plena capacidade de exercício de direitos. Deste modo, o artigo 149.º deve ser objecto de uma interpretação restritiva (ou redução teleológica, se considerarmos aqui não a intenção do legislador mas a finalidade da lei) por forma a não se aplicar aos atos que o incapaz pode praticar livremente mesmo depois de decretada definitivamente a interdição.”

Creio que a mera interpretação das normas dos artigos 149 e 156.º nos conduzem a uma solução que não a adoptada pela Relação, pese embora sua aparente bondade.

De facto, dispõe o artigo 9.º do CC

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Já vimos que as normas citadas visam a protecção quer do interditando quer do inabilitando e que a regra é de que os maiores gozam de plena capacidade de exercício de direitos (artigo 130.º do CC).

Por isso, quer a interdição quer a inabilitação visam obter uma decisão que fixe um quadro de incapacidade delimitado temporalmente e quanto ao âmbito dos actos abrangidos.

Fora desse quadro, a regra continua a ser a da capacidade.

Daí que, quando o artigo 149.º diz que são anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz está a esclarecer que não basta o preenchimento formal dos atrás apontados requisitos mas é necessário que os negócios efectuados estejam abrangidos pela delimitação da incapacidade declarada. Isto é, que a respectiva celebração tenha ocorrido num período em que o seu autor ou um dos contraentes se encontrava incapacitado de querer e perceber o alcance desse acto.

O que é igualmente válido para a inabilitação que, constituindo uma incapacidade de grau menor, deixa ao inabilitado áreas onde a sua capacidade de exercício é plena.

Portugal é subscritor da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinado por Portugal em 30.03.2007 e ratificado em 23.09.2009, em cujo artigo 3.º se enumeram os respectivos princípios, podendo, logo na alínea a), ver-se referido o do “respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e independência das pessoas” (sublinhado nosso);

Em 26 de Novembro de 2009 o Conselho Europeu aprovou a referida Convenção.

Entre 1998 e 2009 o Conselho da Europa formulou quatro recomendações relativas à dependência e sua protecção e aos adultos incapazes.

A partir de todos estes contributos e com apelo ao direito comparado foi elaborado o projecto de lei n.º 61/XIII que esteve na base da alteração do Código Civil introduzida pela Lei n.º 49/2018.

MENEZES CORDEIRO um dos autores da reforma, em artigo publicado na Revista de Direito Civil [Ano III (2018), 3, pp. 473 a 554) dá nota da alteração de um modelo de representação e essencialmente patrimonial para um modelo de acompanhamento, mais consentâneo com o respeito pela autonomia do visado, com a nova formulação da protecção do incapaz.

Nesta perspectiva, tomando na devida conta a preocupação do legislador que sempre foi no sentido da protecção do incapaz, a letra da lei e as influências decorrentes particularmente na subscrição por Portugal da Convenção da ONU a que temos a vir a fazer referência, temos por correcta a interpretação da lei que apenas considera relevante para efeitos de anulação dos negócios efectuados que os mesmos se insiram no âmbito temporal e do objecto relativamente aos quais tenha sido decretada a inabilitação ou a interdição.

O que implica dever entender-se que a cessão efectuada pela mãe da A, inserindo-se na sua plena capacidade de direitos à data da sua celebração, não é passível de anulação».

7. Da leitura destes excertos do acórdão recorrido resulta claramente que não foi numa determinada noção de prejuízo que o acórdão recorrido baseou a decisão da validade da doação. A ratio decidendi do acórdão recorrido foi a proteção da autonomia da pessoa que veio a ser declarada incapaz, em relação aos negócios que praticou durante um período em que tinha capacidade de entender e de querer o alcance do ato.

Assim, não se verifica qualquer contradição de acórdãos suscetível de fundamentar a admissão de um recurso de uniformização de jurisprudência, pois falta a identidade entre a questões de direito decididas em ambos os casos e a questão de direito decisiva do acórdão fundamento – o conceito de prejuízo – não foi a ratio decidendi do acórdão recorrido. 


Em conclusão:

I – Os pressupostos substanciais de admissibilidade deste recurso para uniformização de jurisprudência são os seguintes: 1) a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito; 2) a questão de direito apreciada revela-se decisiva para as soluções perfilhadas num e noutro acórdão, desconsiderando-se argumentos ou razões que não encerrem uma relevância determinante; 3) a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos; 4) as soluções em confronto, necessariamente divergentes, têm que ser encontradas no “domínio da mesma legislação”, de acordo com a terminologia legal, ou seja, exige-se que se verifique a “identidade de disposição legal, ainda que de diplomas diferentes, e, desde que, com a mudança de diploma, a disposição não tenha sofrido, com a sua integração no novo sistema, um alcance diferente, do que antes tinha”.

II – Não há identidade de questões de direito quando o acórdão fundamento decidiu anular um negócio gratuito, celebrado na pendência de uma ação de interdição, com base na noção de prejuízo causado ao interditando, e o acórdão recorrido decidiu que um negócio gratuito celebrado pelo inabilitando era válido, em homenagem à proteção da autonomia deste.  

III – A questão de direito tratada no acórdão fundamento – o conceito de prejuízo – não foi, assim, a ratio decidendi do acórdão recorrido. 

IV – A exigência de que o acórdão recorrido seja proferido no domínio da mesma legislação não significa que o diploma em que se insere a norma tenha de ser o mesmo.

V – Todavia, tendo sido o acórdão fundamento proferido em 1955 (Código Civil de 1987) e o acórdão recorrido em 2020 (Código Civil de 1966), épocas com conceções sociais tão distintas em relação ao direito das pessoas, deve entender-se que os acórdãos não foram proferidos no domínio da mesma legislação. 


III – Decisão


Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e confirmar nos seus exatos termos a decisão singular, que não admitiu o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.


Custas pelos reclamantes.


Supremo Tribunal de Justiça, 26 de janeiro de 2021


Maria Clara Sottomayor – Relatora

Alexandre Reis – 1.º Adjunto

Pedro de Lima Gonçalves – 2.º Adjunto


Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).


Maria Clara Sottomayor - Relatora