Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
556/06.4TBRMR-B.L1.S1
Nº Convencional: 1. º SECÇÃO
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
ANULAÇÃO DO PROCESSADO
CASO JULGADO FORMAL
IGUALDADE DAS PARTES
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/01/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: INSOLVÊNCIA // DIREITO DE PROCESSO CIVIL - GRADUAÇÃO DE CREDITOS
Doutrina: - SALVADOR DA COSTA, O Concurso de Credores, 4ª edição, Actualizada e Aumentada, págs. 336 a 338.
Legislação Nacional: CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE) : - ARTIGO 130.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), NA REDACÇÃO ANTERIOR AO DL Nº 303/2007, DE 24 DE AGOSTO: - ARTIGOS 153.º, 205.º, N.º3, 265.º, Nº.3, 713.º, Nº 5, 722.º, Nº 2 E 726.º, E 729.º, Nº 2.
CÓDIGO DO TRABALHO (APROVADO PELA LEI Nº 99/2003, DE 27 DE AGOSTO): - ARTIGO 377.º, Nº 1, B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 20.º, Nº 4, E 204.º .
Sumário : I - Decidida definitivamente a correcção da qualificação dos créditos, nos termos do art. 130.º, n.º 3, do CIRE, não pode voltar a discutir-se a mesma questão, por efeito da força e autoridade do caso julgado formal.
II - Reconduzido o processo a certa fase anterior, por efeito de anulação parcial do seu processado, o exercício dos direitos processuais, em face de um novo acto do processo, é uma consequência normal da anulação e não acarreta qualquer violação do princípio da igualdade das partes, mesmo que os interessados, antes da anulação, não tenham feito uso de qualquer direito.
III - Estando o estabelecimento da insolvente, onde os trabalhadores exerciam a sua actividade, instalado em dois prédios identificados pela descrição predial, mais não era necessário alegar para se concluir nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 1 do art. 377.º do CT, aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27-08.
IV - A eficácia do caso julgado da decisão que declarou a insolvência não se estende aos factos considerados provados que serviram de fundamento à respectiva decisão final.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – Nos autos de insolvência, dos quais os presentes autos de reclamação de créditos são apenso, por sentença do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, de 18 de Outubro de 2006, foi declarada a insolvência de AA- M...-Metalúrgia de R... M..., Lda, matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Rio Maior, sob o n.º 00.../..., com sede na Estrada Nacional 114, L... da Q... da R..., R... M... .

Foi, então, fixado em trinta dias o prazo para a reclamação de créditos.
Findo este, o administrador juntou, nos termos do artigo 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a lista de créditos reclamados e reconhecidos, não se indicando créditos não reconhecidos.

Não foi tempestivamente apresentada qualquer reclamação.

Foram apreendidos bens imóveis e bens móveis.

Tendo o administrador da insolvência, na relação de créditos apresentada, considerado os créditos dos ex-trabalhadores como privilegiados, atribuindo-lhes apenas privilégio mobiliário geral (fls. 15), e não como garantidos à luz do disposto no artigo 47º, nº 4, do CIRE, e existindo bens imóveis apreendidos sobre os quais se encontravam registadas hipotecas, entendeu o Senhor Juiz, para efeito de proceder à graduação de créditos tendo em conta o preceituado na alínea b) do nº 1 do artigo 377º do Código do Trabalho, determinar, por despacho de fls. 54, que lhe fosse apresentada cópia das reclamações feitas pelos mesmos ex-trabalhadores, a fim de verificar se nelas fora alegado e demonstrado que exerciam a sua actividade em algum daqueles imóveis, apresentação essa que foi feita.

A fls. 56 e seguintes, foi proferida sentença, a qual, por um lado, homologou a lista de credores apresentada pelo administrador da insolvência, mas com ressalvas, determinadas por ter sido entendido que aquela lista enfermava de algumas imprecisões na qualificação de alguns créditos, sanáveis por se considerar o entendimento de erro referido no nº 3 do artigo 130º do CIRE, em sentido amplo, como compreendendo os erros de direito na qualificação dos créditos, e originadas essencialmente pela circunstância de alguns trabalhadores terem, e outros não, indicado o imóvel em que prestavam a sua actividade laboral, e que, desde logo, graduou os créditos na forma aí descrita.

Notificados de tal sentença, vieram diversos ex-trabalhadores requerer a sua rectificação, o que levou, tendo em conta o deferimento de alguns desses requerimentos, à reforma daquela.

Entretanto, já antes de tal reforma, interpuseram recurso da sentença as credoras reclamantes BB- M... – Materiais de Importação, Lda, e CC, tendo aquela ainda recorrido da reforma efectuada e vindo os ex-trabalhadores DD e EE recorrer igualmente da sentença.

Foi, então, no Tribunal da Relação de Lisboa, proferido o acórdão de fls. 786 e seguintes, onde se decidiu julgar procedentes as apelações dos credores reclamantes CC, DD e EE e improcedente o da credora BB-M..., alterando-se, em conformidade, a sentença recorrida.

De tal acórdão recorreu de revista a credora BB-M... para este STJ, tendo aqui sido proferido, em 25.11.2008, o acórdão de fls. 1118 a 1133, segundo o qual se decidiu “anular o processado posterior à indicação do aludido erro manifesto pelo Sr. Juiz da 1ª instância, com inclusão da decisão de homologação da lista de credores e da graduação de créditos, a fim de, remetendo-se directamente os autos à 1ª instância, ser elaborada nova lista de credores em atenção àquele erro, seguindo-se depois os termos prescritos no art.º 130º, nº 1, e seguintes, do CIRE”.

Voltando os autos à 1ª instância, foi ordenada a elaboração de nova lista de credores, nos termos do artigo 129º do CIRE, tendo em atenção o erro de qualificação dos créditos dos trabalhadores consignado no despacho de fls. 57 e seguintes.

O administrador da insolvência elaborou nova lista, nos termos da qual constam apenas créditos reconhecidos.

Nos termos do artigo 130º, nº 1, do CIRE, foram deduzidas impugnações à referida relação por FF, CC, GG, EE, DD, HH, II, JJ, LL e MM, todos trabalhadores da insolvente, impugnando a qualificação dos seus créditos na parte em que não lhes é reconhecido o privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos nos autos e nos quais prestavam a sua actividade laboral ao serviço da insolvente.

Também a credora BB-M... – Materiais de Importação, Lda., deduziu impugnação, questionando a qualificação, o valor e os créditos de NN, CC, FF, OO, GG, EE, DD, HH, II, JJ, LL, MM e PP.

Reponderam à impugnação deduzida por BB- M..., Lda, CC, FF, OO, GG, EE, DD, HH, II, JJ, LL e MM.

Foi realizada uma tentativa de conciliação, não sendo obtido qualquer acordo quanto ao reconhecimento dos créditos impugnados.

Procedeu-se ao saneamento dos autos, reconhecendo-se os créditos não impugnados, e fixou-se a base instrutória em relação aos demais.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 14 de Julho de 2009, sentença que, reconhecendo os créditos, procedeu à sua graduação nos seguintes termos:
1) Sobre o produto da venda do imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de Rio Maior sob o nº ... da freguesia de R... M...:
- Em primeiro lugar e até 10% do valor da venda, as dívidas da massa insolvente, caso existam (art. 172º, nºs 1 e 2, do CIRE);
- Em segundo lugar, os créditos laborais reclamados por CC, FF, OO, GG, EE, DD, HH, II, JJ, LL, MM (arts. 377º do Código do Trabalho e 751ºdo Código Civil);
- Em terceiro lugar, os créditos de IMI do referido imóvel do ano de 2005 (arts. 734º e 744º do Código Civil);
- Em quarto lugar, o crédito da Caixa Geral de Depósitos garantido por hipoteca sobre o referido prédio (arts. 686º do Código Civil e 47º, nº 4, alínea a), do CIRE);
- Em quinto lugar, o crédito da Segurança Social referente a contribuições e respectivos juros vencidos nos doze meses anteriores a 17-7-2006 (arts. 11º do DL 103/80, de 9 de Maio, e 97º, nº 1, alínea b), do CIRE);
- Em sexto lugar, o crédito do Estado referente a IRS vencido nos doze meses anteriores a 17-7-2006 (arts. 111º do CIRS e 97º, nº 1, al. a), do CIRE);
- Em sétimo lugar, os créditos comuns.

2) Sobre o produto da venda do imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de Rio Maior sob o nº ... da freguesia de R... M...:
- Em primeiro lugar e até 10% do valor da venda, as dívidas da massa insolvente, caso existam (art. 172º, nºs 1 e 2, do CIRE);
- Em segundo lugar, os créditos laborais reclamados por CC, FF, OO, GG, EE, DD, HH, II, JJ, LL, MM (arts. 377º do Código do Trabalho e 751º do Código Civil);
- Em terceiro lugar, os créditos de IMI do referido imóvel do ano de 2005 (arts. 734º e 744º do Código Civil);
- Em quarto lugar, o crédito da Caixa Geral de Depósitos garantido por hipoteca sobre o referido prédio (arts. 686º do Código Civil e 47º, nº 4, al. a), do CIRE);
- Em quinto lugar, o crédito de BB- M..., Lda, garantido por hipoteca sobre o referido prédio (arts. 686º do Código Civil e 47º, nº 4, al. a), do CIRE);
- Em sexto lugar, o crédito da Segurança Social referente a contribuições e respectivos juros vencidos nos doze meses anteriores a 17-7-2006 (arts. 11º do DL 103/80, de 9 de Maio, e 97º, n.º 1, al. b), do CIRE);
- Em sétimo lugar, o crédito do Estado referente a IRS vencido nos doze meses anteriores a 17-7-2006 (arts. 104º do CIRS e 97º, nº 1, al. a), do CIRE);
- Em oitavo lugar, os créditos comuns.

3) Sobre o produto da venda dos bens móveis:
- Em primeiro lugar, as dívidas da massa insolvente, caso existam, na devida proporção sobre cada um dos bens (art. 172º, nº 1, do CIRE);
- Em segundo lugar, os créditos laborais (art. 377º do Código de Trabalho);
- Em terceiro lugar, crédito do Estado referente a IRS e IVA vencidos nos doze meses anteriores a 17-7-2006 (arts. 111º do CIRS, 735º, nº 1, do Código Civil, e 97º, n.º 1, al. a), do CIRE);
- Em quarto lugar, o crédito da Segurança Social referente a contribuições e respectivos juros vencidos nos doze meses anteriores a 17-7-2006 (arts. 10º do DL 103/80, de 9 de Maio, e 97º, nº 1, al. b), do CIRE);
- Em quinto lugar, o crédito da requerente da insolvência até um quarto do seu montante e com o limite máximo de 500 UC (art. 98º, nº 1, do CIRE);
- Em oitavo lugar, os créditos comuns.

Após recurso da credora reclamante BB- M... – Materiais de Importação, Lda, nomeadamente, quanto à graduação dos créditos sobre o imóvel descrito sob o nº ..., na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior, foi, no Tribunal da Relação de Lisboa, proferido acórdão, a negar provimento ao recurso e a confirmar a sentença recorrida.

Ainda inconformada, veio aquela credora interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.

A recorrente apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões:
1ª – Na Relação de Créditos inicial apresentada pelo Administrador da Insolvência, nos termos do artigo 129º do CIRE, os ex-trabalhadores foram relacionados como detentores de um privilégio mobiliário geral, nos termos do disposto no artigo 377º da Lei 99/2003, de 27 de Agosto.
2ª – Não foram apresentadas quaisquer reclamações ou impugnações a essa Relação de Créditos, mormente à qualificação atribuída aos créditos dos ex-trabalhadores.
3ª – A eventual incorrecção da respectiva qualificação teria de ter sido impugnada pelos próprios interessados: os ex-trabalhadores.
4ª – O instituto da impugnação previsto nos artigos 130º a 140º do CIRE é de natureza dispositiva e configura ónus da parte.
5ª – Atenta esta natureza dispositiva, não tendo ocorrido impugnações, o juiz agora sob recurso deveria ter emitido sentença de verificação e graduação de créditos que deveria homologar o que constava da lista dos créditos reconhecidos, a não ser em caso de “erro manifesto”, ut o disposto no artigo 130º, nº 3, do CIRE.
6ª – Isto porque se formou caso julgado em função do comportamento das partes quanto aos montantes, natureza e qualificação dos créditos.
7ª – Em sentido lato existe erro quando ocorra não coincidência entre a representação e a realidade, sem que haja consciência disso.
8ª – No caso sub judice todos os ex-trabalhadores e os respectivos mandatários tiveram conhecimento da Relação de Créditos na Assembleia Geral e não podiam, por isso, alegar falta de consciência quanto a uma qualificação e definição de crédito a que tiveram acesso por escrito e que definia claramente o montante, os detentores e a respectiva qualificação.
9ª – O que os ex-trabalhadores não cumpriram foi o ónus de impugnação, que não se confunde, nem é de todo confundível, com a hipótese de erro.
10ª – O nº 3 do artigo 130º não pode ser interpretado no “sentido amplo” que lhe deu a sentença e acórdão recorridos, isto é, incluindo os erros de direito na qualificação dos créditos, porque tal interpretação desvirtua completamente o regime específico do ónus de impugnação previsto nos artigos 130º a 140º do CIRE.
11ª – Através de tal interpretação, o julgador fez-se substituir ao cumprimento de ónus das partes, quando nessa matéria teria de ser o terceiro imparcial e mediar por decisão judicial quaisquer conflitos entre os credores em sede de qualificação dos créditos através do julgamento a que faz referência o artigo 139º do CIRE.
12ª – Repita-se, no caso sub judice não foram apresentadas quaisquer impugnações que justificassem a intervenção do julgador e a alteração do que, em virtude da acção e omissão das partes, se havia consolidado no processo por trânsito em julgado da Relação de Créditos.
13ª – É inequívoco que a Relação de Créditos transita em julgado, tanto assim que, ressalvado o instituto da impugnação definido nos artigos 130º e seguintes do CIRE, só através do regime estatuído nos artigos 146º e seguintes do mesmo Código se poderá proceder à sua eventual alteração.
14ª – A eventual não coincidência entre a representação e a realidade a que faz referência o nº 3 do artigo 130º do CIRE deve aferir-se depois do período de impugnação e nunca relativa a factos que, a serem controvertidos, haveriam que seguir o rito próprio do instituto da impugnação definido nos artigos 130º a 140º do CIRE.
15ª – A ausência de impugnações forma caso julgado sobre essa matéria, que foi directamente violado pela sentença agora sindicada, face ao disposto no nº 3 do artigo 130º do CIRE.
16ª – A violação do caso julgado e do disposto nos artigos 671º e 672º do CPC resulta também de a sentença e o acórdão agora sindicados darem como provada para data de cessação da actividade da insolvente uma data completamente diferente da sentença dos autos principais (Dezembro de 2005 e 22 de Fevereiro de 2006, respectivamente).
17ª – Face à ausência de reclamações, o julgador teria de homologar a lista de credores e atender na graduação de créditos ao que constava da Relação de Créditos, mormente à qualificação não impugnada pelas partes.
18ª – Ao agir de forma diversa, o julgador violou expressamente o disposto nos artigos 130º, nº 1, e 130º, nº 3, do CIRE, bem como todo o instituto da impugnação previsto nos artigos 130º a 140º daquele Código, bem como o disposto no artigo 377º, nº 1, alínea b), do CT, que não é de natureza e aplicação imperativa, antes depende de concretos pressupostos de aplicação.
19ª – O princípio do inquisitório e o disposto no artigo 11º do CIRE não se aplicam à graduação de créditos e ao regime específico dos artigos 130º a 140º daquele Código, uma vez que rege nesta matéria o princípio do dispositivo, segundo o disposto nos artigos 17º do CIRE e 264º, nº 2, e 664º, ambos do CPC, que assim foram violados.
20ª – A decisão agora sindicada violou também o princípio da igualdade entre as partes, ínsito no artigo 3º-A do CPC, porque enxertou nos autos a possibilidade de os trabalhadores verem alterada a qualificação inicial que transitou sobre os seus créditos sem que estes tenham tempestivamente deduzido qualquer impugnação.
21ª – Ao agir da forma descrita, o julgador cometeu irregularidade processual, que consubstancia nulidade, que se argui nos termos do disposto nos artigos 201º e 205º, ambos do CPC, uma vez que influi decisivamente na decisão da causa.
22ª – Foi definido em sentença um privilégio imobiliário especial aos trabalhadores, que prevalece inclusive sobre a hipoteca, isto quando processualmente lhe havia sido definido outra qualificação sem qualquer reacção por parte dos interessados.
23ª – A douta sentença e o acórdão recorridos padecem de inconstitucionalidade nos termos expostos, por violação do disposto nos artigos 13º, 20º, nº 4, e 204º, todos da Constituição.
24ª – Nenhum dos trabalhadores alegou quaisquer factos concretos susceptíveis de demonstrar que prestavam a sua actividade naquele local, não bastando para o reconhecimento do privilégio imobiliário especial a mera alegação de que trabalhavam nos prédios inscritos sob os números ... e ... na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior.
25ª – Alegar que se presta trabalho nos prédios ... e ..., como se alegou, equivale a alegar que se trabalhava na sede da empresa, se tal alegação for desacompanhada – como foi no caso sub judice – de factos que consubstanciem, em concreto, esta alegação.
26ª – Nenhum facto concreto suporta a mera alegação de que estas pessoas prestavam o trabalho no referido prédio ..., pelo que, face ao disposto no artigo 516º do CPC, terão os ex-trabalhadores de ver a dúvida daí resultante ser decidida contra si, ou seja, no sentido de não beneficiarem do dito privilégio.
27ª – A douta sentença e o acórdão recorridos violaram desta forma o disposto nos artigos 342º, nº 1, do CC e 516º do CPC.
28ª – A decisão do Supremo, fundamentada, entre outros, na violação do princípio da igualdade entre as partes, não pode degenerar num processo que agrave essa desigualdade, ignorando tudo o quanto se disse nas conclusões antecedentes.
29ª – A questão do erro, ao contrário do referido pelo acórdão, não se encontra definitivamente esclarecida ou decidida nos presentes autos, já que tribunal nenhum se pronunciou, até à presente data, sobre as questões elencadas nas conclusões antecedentes e que a parte tem direito a ver decididas e respondidas.
30ª – Ao não responder, por um lado, e ao não fundamentar, por outro, tudo tal como referido em sede de alegações, o acórdão incorreu nas nulidades ínsitas nas alíneas b) e d) do artigo 668º (refere-se a recorrente ao seu nº 1, como é óbvio) do CPC, que também aqui expressamente se argúem.
31ª – Esta total ausência de resposta equivale a um non liquet, já que as trinta questões suscitadas em sede de recurso para a Relação transcendem em muito as respostas do douto acórdão.
32ª – A resposta jurídica às questões suscitadas interessa à aqui recorrente e tem manifesto interesse processual a interpretação jurídica das normas.
33ª – Mesmo que a conclusão fosse a que foi em sede de recurso, a recorrente manteria igual interesse na resposta às questões suscitadas, até porque suscita inconstitucionalidade e a violação de regras essenciais do sistema jurídico, como o sejam a da igualdade entre as partes.
34ª – Em virtude da total ausência de respostas, a recorrente foi forçada a recorrer para este Supremo Tribunal, já que não viu respondidas de forma alguma a generalidade das questões jurídicas que suscitou à Relação.

Pede, assim, que, revogando-se o acórdão recorrido, seja o mesmo substituído por outro que reconheça apenas aos ex-trabalhadores o privilégio mobiliário geral que não veio a ser objecto de impugnação, graduando o crédito da ora recorrente logo a seguir ao da Caixa Geral de Depósitos quanto ao prédio inscrito sob o nº ... na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar e decidir.

II – No acórdão recorrido, foram dados como provados, designadamente, os seguintes factos:

1. MM, DD, EE, LL, JJ, II, HH, FF, GG e OO exerceram a sua actividade profissional por conta da insolvente no estabelecimento desta sito na Q... da R..., EN nº 114, Rio Maior, nos prédios descritos na Conservatória de Registo Predial de Rio Maior, sob os nºs ... e ..., e até ao encerramento da insolvente.
2. CC desempenhou as suas funções sob a autoridade e direcção da insolvente, no estabelecimento desta sito na Q... da R..., EN n.º 114, Rio Maior, nos prédios descritos na Conservatória de Registo Predial de Rio Maior, sob os nºs ... e ... .
3. A insolvente manteve-se em actividade até 22 de Fevereiro de 2006, sendo então fechadas as portas do seu estabelecimento fabril na Q... da R... .
III – 1. A questão a dilucidar no presente recurso de revista prende-se com a graduação dos créditos sobre o produto da venda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior sob o nº ... da freguesia de Rio Maior.

Pretende a recorrente que se reconheça aos ex-trabalhadores da empresa declarada insolvente apenas o privilégio mobiliário geral, graduando-se o crédito da recorrente, quanto ao referido imóvel, logo a seguir ao da Caixa Geral de Depósitos.

Para se demonstrar a falta de razão da recorrente, escreveu-se no acórdão ora recorrido:
“Desde logo, interessa frisar que a Apelante consagra parte substancial das alegações a pronunciar-se sobre a violação do n.º 3 do art. 130.º do CIRE, decorrente da decisão que, ao abrigo dessa norma, determinou a correcção da qualificação dos créditos dos trabalhadores.
Sobre essa questão processual já houve pronúncia definitiva, designadamente no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tendo-se formado caso julgado formal, nos termos dos arts. 672.º e 677.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC).
Por efeito da força e autoridade do caso julgado que se formou, tornando a decisão obrigatória dentro do processo, não pode voltar a discutir-se a mesma questão, o que, necessariamente, prejudica também todas as questões subsequentes conexas, como seja a da nulidade processual e a da violação do princípio da igualdade entre as partes (art. 3.º-A, do CPC), que, no mesmo âmbito, foram alegadas.

A referida decisão do Supremo Tribunal de Justiça, anulando o processado a partir da indicação do erro manifesto na qualificação de créditos, para ser elaborada nova lista de credores em atenção àquele erro e seguir-se depois os termos prescritos no art. 130.º, n.º 1, e seguintes do CIRE, limita-se a repor o processo em certa fase e a permitir que os interessados exerçam os direitos processuais consagrados.
O exercício desses direitos, em face de um novo acto do processo, é, com efeito, uma consequência normal da anulação dos actos processuais e não acarreta qualquer violação do princípio da igualdade das partes, mesmo que os interessados, antes da anulação, não tenham feito uso de qualquer direito, nomeadamente do da impugnação dos créditos. O contrário é que poderia ser susceptível de originar uma violação a esse princípio.
De resto, e ao invés do alegado, o caso julgado forma-se sobre as decisões e, por outro lado, qualquer preclusão processual deixa de ter efeitos se, entretanto, for abrangida pela anulação de actos processuais.
Por isso, a equidade do processo, garantida constitucionalmente, não fica afectada, como também não fica qualquer outro princípio da mesma natureza, não se surpreendendo na interpretação das normas processuais aplicáveis qualquer tipo de inconstitucionalidade.

Em face da matéria de facto provada, também não pode ser validamente posta em causa, por sua vez, a conclusão de que os credores trabalhadores identificados prestaram a sua actividade no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior, sob o n.º ... .
Efectivamente, daqueles factos resulta que tais trabalhadores exerciam as suas funções no estabelecimento da insolvente, sito na Q... da R..., EN n.º 114, Rio Maior, nos prédios descritos na Conservatória de Registo Predial de Rio Maior, sob os n.º s ... e ... .
Estando o estabelecimento da insolvente, onde os trabalhadores exerciam a sua actividade, instalado nos dois prédios referidos, o que não se questiona, mais não era necessário alegar para se concluir nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 377.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, ainda aplicável ao caso dos autos.
Dada a natureza jurídica do estabelecimento e o efeito jurídico associado, não podiam tais prédios ser tidos senão como um só, não obstante o seu registo diferenciado.
Nestes termos, apresenta-se inteiramente correcto o reconhecimento do privilégio imobiliário especial feito na sentença recorrida.

Como já se aludiu, o caso julgado forma-se apenas sobre as decisões (finais), quer no âmbito da relação processual, quer da relação material controvertida.
A força do caso julgado não se estende aos respectivos fundamentos, ainda que, por vezes, possam ser utilizados para a fixação do sentido e alcance da decisão final, com vista à delimitação do caso julgado.
Por isso, como entende a doutrina, “os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final” (ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 716).
Neste contexto, a eficácia do caso julgado da decisão que declarou a insolvência não se estende aos factos considerados provados, que serviram de fundamento à respectiva decisão final.
Por isso, nada obstava que, em resultado da prova produzida no âmbito da reclamação de créditos, fosse dado como provado um facto diferente. Deste modo, a desconformidade alegada quanto à cessação da actividade da insolvente, que aqui se provou ter sido em 22 de Fevereiro de 2006, não tem quaisquer consequências, estando excluída qualquer ofensa ao caso julgado.
De qualquer modo, a alegação sempre seria irrelevante, porque podendo apenas influenciar o montante de certos créditos, a Apelante, no presente recurso, não impugnou o reconhecimento desses créditos, mas apenas a sua graduação, por entender que apenas gozam do privilégio mobiliário geral”.

2. Concorda-se inteiramente com o expendido no acórdão da Relação.
Aliás, compulsando as alegações e respectivas conclusões apresentadas pela recorrente, constata-se que a sua discordância incide essencialmente sobre o acórdão deste STJ de 25.11.2008.
Só que tal decisão transitou em julgado, pelo que a 1ª instância, perante a anulação do processado aí determinada, apenas tinha de lhe dar o devido cumprimento, fazendo observar a tramitação prevista nos artigos 129º e seguintes do CIRE.

Se o não fizesse, é que haveria violação do caso julgado.

Imputa a recorrente ao acórdão ora recorrido o vício da nulidade, nos termos do artigo 668º, nº 1, a) e b), do Código de Processo Civil (CPC).

Segundo o citado nº 1 do artigo 668º, é nula a sentença, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b)), e quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (alínea d), 1ª parte).

Tal regime é aqui aplicável por força dos artigos 716º e 732º do CPC.

Lendo o acórdão em causa, não conseguimos vislumbrar onde podem existir as apontadas nulidades.

Efectivamente, os factos estão aí devidamente especificados, bem como as razões de direito.

Por outro lado, não conseguimos descortinar que tenha havido qualquer omissão de pronúncia por parte do tribunal recorrido, em relação às questões que a aí apelante lhe colocou, sendo certo que não compreendemos como, de forma completamente despropositada, a recorrente alega que colocou trinta questões no seu recurso.

Não padece, pois, o acórdão de qualquer nulidade, designadamente das apontadas pela recorrente.

2. No fundo, o que a recorrente defende é a intangibilidade da lista elaborada pelo administrador da insolvência e, consequentemente, a fixação da matéria de facto, face à falta de impugnação por parte de alguns dos credores (ex-trabalhadores).

O nº 3 do artigo 130º do CIRE ressalva a verificação de erro manifesto como sendo o único caso de controlo judicial da lista elaborada pelo administrador da insolvência.
A questão tem sido debatida.

Propendemos a aceitar o defendido por SALVADOR DA COSTA, no sentido de que, se o juiz, pela análise da lista, “suspeitar de que o administrador da insolvência incorreu em erro manifesto de facto e ou de direito no plano dos direitos de crédito ou das respectivas garantias, deve diligenciar no sentido da pertinente correcção” (O Concurso de Credores, 4ª edição, Actualizada e Aumentada, págs. 336 a 338).

Percebe-se o entendimento da recorrente: se, porventura, a lista inicial fizesse caso julgado, os créditos dos trabalhadores não poderiam ser considerados verificados, por falta de impugnação, em relação ao prédio nº ... .

Contudo, o que é certo é que o STJ determinou a anulação do processado, com vista à elaboração, por parte do administrador da insolvência, de nova lista.

Foi em virtude de tal decisão – que, necessariamente, cumpre respeitar – que os trabalhadores se aprestaram a fazer valer os seus direitos, relativamente aos seus créditos laborais, o que, anteriormente, não haviam feito.

Só que, como bem diz o acórdão ora impugnado, a decisão do Supremo transitou em julgado, razão pela qual terá de ser respeitada.

Assim, também não foi cometida nenhuma irregularidade de natureza processual que possa consubstanciar nulidade, como defende a recorrente, invocando o disposto nos artigos 201º e 205º do CPC, sendo certo que, a existir, estaria há muito a mesma sanada (cfr. o nº 1 do citado artigo 205º e nº 1 do artigo 153º do mesmo diploma).

3. No tocante à alegada violação dos artigos 342º, nº 1, do Código Civil e 516º do CPC, esquece a recorrente que, apesar da falta de alegação, por parte dos trabalhadores, de factualidade a justificar o privilégio contido no artigo 377º, nº 1, b), do Código do Trabalho, as instâncias, por presunção, retiraram o facto de que os seus créditos são privilegiados em relação aos dois imóveis que constituíam as instalações da empresa insolvente e onde exerciam funções, onde se inclui o inscrito na respectiva Conservatória sob o nº ..., sem embargo também de se ter reconhecer ao tribunal os poderes oficiosos a que o alude o nº 3 do artigo 265º do CPC.
Não havendo críticas ao modo como a presunção foi extraída, ao STJ só cabe acatar o juízo probatório firmado (cfr. artigos 722º, nº 2, e 729º, nº 2, do CPC, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, ainda aqui aplicável).

4. Argumenta ainda a recorrente que o acórdão recorrido (como também a sentença proferida na 1ª instância) padece de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13º, 20º, nº 4, e 204º da Constituição da República Portuguesa.

Não lhe assiste a mínima razão.

O primeiro dos preceitos legais indicados reporta-se ao princípio da igualdade.

O nº 4 do artigo 20º refere que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.

Por sua vez, o artigo 204º prescreve que “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.

Perante o texto destes dispositivos legais, não vislumbramos onde se funda o juízo de inconstitucionalidade feito pela recorrente.

A partir do momento em que, neste STJ, foi proferido um acórdão a anular todo o processado, a fim de ser elaborada uma nova lista de credores, nos termos do artigo 129º do CIRE – e voltamos a dizer que a discordância da ora recorrente incide essencialmente sobre esta decisão, que transitou em julgado –, o tribunal da 1ª instância mais não podia fazer senão dar cumprimento ao decidido nesse acórdão, o que foi feito, dando-se estrita obediência ao estabelecido nos artigos 129º a 140º do CIRE.

Logo, não pode ser imputado ao acórdão recorrido (como também à sentença que o mesmo confirmou) nenhum juízo de inconstitucionalidade, designadamente o que lhe é atribuído pela aqui recorrente.

5. Infere-se, assim, do exposto que não colhem as conclusões da recorrente, tendentes ao provimento do recurso, pelo que se terá de manter o acórdão recorrido, para o qual se remete, nos termos dos artigos 713º, nº 5, e 726º do CPC.

IV – Do exposto – e como se faz no acórdão recorrido – podem ser retiradas as seguintes conclusões:
1ª – Decidida definitivamente a correcção da qualificação dos créditos, nos termos do nº 3 do artigo 130º do CIRE, não pode voltar a discutir-se a mesma questão, por efeito da força e autoridade do caso julgado formal.
2ª – Reconduzido o processo a certa fase anterior, por efeito de anulação parcial do seu processado, o exercício dos direitos processuais, em face de um novo acto do processo, é uma consequência normal da anulação e não acarreta qualquer violação do princípio da igualdade das partes, mesmo que os interessados, antes da anulação, não tenham feito uso de qualquer direito.
3ª – Estando o estabelecimento da insolvente, onde os trabalhadores exerciam a sua actividade, instalado em dois prédios identificados pela descrição predial, mais não era necessário alegar para se concluir nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 377º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto.
4ª – A eficácia do caso julgado da decisão que declarou a insolvência não se estende aos factos considerados provados, que serviram de fundamento à respectiva decisão final.

V – Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 1 de Junho de 2010