Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SANTOS BERNARDINO | ||
Descritores: | ÁGUAS PARTICULARES ÁGUAS PÚBLICAS CORRENTE NÃO NAVEGÁVEL CORRENTE NÃO FLUTUÁVEL SERVIDÃO ADMINISTRATIVA SERVIDÃO DE MARGEM | ||
Nº do Documento: | SJ2009060400082 | ||
Data do Acordão: | 06/04/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE | ||
Sumário : | 1. Como decorre do disposto no art. 5º, alínea h) da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, e no art. 1386º, n.º 1, alínea a) do Cód. Civil, a natureza não navegável nem flutuável de uma corrente de água não implica, necessariamente, a qualificação desta entre as águas ou recursos hídricos particulares. 2. Nos termos do n.º 2 do art. 12º da Lei 54/2005, são particulares, mas sujeitos a servidões administrativas, o leito e margem das águas públicas não navegáveis nem flutuáveis localizadas em prédios particulares. E essas servidões administrativas são as referidas no n.º 1 do art. 21º da mesma Lei, e, designadamente, a servidão de uso público designada por servidão de margem. 3. Por margem entende-se uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, tendo a margem das águas não navegáveis nem flutuáveis a largura de 10 metros, contados a partir da linha limite do leito. 4. A mudança do leito de um ribeiro – corrente não navegável nem flutuável integrada no domínio público fluvial – pertencente ao prédio dos réus e por estes operada, mesmo sob licença, para um local situado a dois metros dos prédios confinantes, pertencentes aos autores, implicando a sujeição destes prédios, ao longo de uma faixa longitudinal de terreno, com oito metros de largura, a uma servidão administrativa de margem, bem como às restrições e obrigações a que aludem os n.os 2 e 3 do art. 21º da Lei 54/2005, traduz violação do direito de propriedade dos autores. 5. A imposição da aludida servidão de margem, inerente a todas as parcelas privadas de leitos ou margens de águas públicas, resulta da própria lei: desta decorre a automática oneração do prédio marginal ou marginante com a servidão, sem necessidade de posterior acto legislativo ou da autoridade administrativa a impô-la. 6. A salvaguarda do direito de propriedade dos autores não exige a reposição do ribeiro no seu leito e trajecto anteriores, ficando protegido desde que o estabelecimento de um novo leito para o ribeiro respeite a distância necessária para evitar que a linha de margem ultrapasse a extrema dos prédios daqueles. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA e mulher BB intentaram, em 14.04.2005, no 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Famalicão, contra CC – MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, S.A. e DD – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, L.da, acção com processo ordinário, alegando, em síntese, que eles, autores e as sociedades demandadas são donos de prédios confinantes entre si, e terem, em Outubro de 2004, as rés aberto em redor do seu prédio uma vala, com cerca de 2 metros de profundidade por 2 metros de largura e 80 metros de comprimento, com a configuração de um canal, a qual circunda o conjunto dos prédios dos autores pelo lado nascente, a distância entre 1,82 e 1,90 metros, e para onde vão ser desviadas as águas de um ribeiro que, assim, irão passar a menos de 5 metros das janelas da casa de habitação dos demandantes; e que, ao procederem às escavações para a construção da dita vala, as rés atingiram os alicerces do muro de vedação da casa dos autores, que ruiu numa extensão de 20 metros, e deixaram a descoberto as raízes de 55 videiras, o que a estes causou prejuízos. Com estes fundamentos, pediram a condenação solidária das rés: a) a eliminarem a vala identificada com o trajecto DEF (traçado a azul no doc. n.º 12), impedindo que o ribeiro siga tal trajecto e colocando, de novo, o ribeiro a correr pelo seu leito e trajecto natural, o indicado com o trajecto ABC (traçado amarelo no mesmo doc.) em prazo não superior a 30 (trinta) dias, após o trânsito em julgado da sentença que o determine; As rés contestaram por impugnação, alegando, em síntese, que o canal se encontra bastante afastado da casa dos autores, não lesa qualquer direito destes e também nenhum prejuízo lhes foi causado com a construção do dito canal. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que – para além de ter julgado extinta a instância, por inutilidade superveniente, no que tange ao pedido da alínea b) – julgou a acção parcialmente procedente e condenou as rés a afastar a vala que construíram de modo que, na confrontação Nascente do prédio dos autores, fique a pelo menos 2 (dois) metros de distância desse prédio, em toda a sua extensão paralela, e a pagar solidariamente aos autores a quantia de € 150,00, a título de indemnização por danos patrimoniais que lhes causaram, absolvendo-as do mais pedido. Da sentença apelaram os autores, visando a matéria de facto e a decisão de direito (a ré CC também interpôs recurso subordinado, que veio a ser julgado deserto por falta de alegações). A Relação do Porto, no julgamento do recurso, atendeu, em parte, a impugnação da matéria de facto e, a final, julgou parcialmente procedente a apelação, condenando as rés recorridas “a concluir, no prazo de trinta dias, a reconstrução integral do muro do prédio dos autores em toda a extensão que ruiu, com a mesma qualidade e solidez que tinha antes de ruir, incluindo a reposição das terras que desabaram e o fecho da cratera a que alude o item 24) dos factos provados”, e confirmando em tudo o mais a sentença recorrida. Continuando inconformados, os autores trazem agora a este Supremo Tribunal recurso do acórdão da Relação, dele pedindo revista. E, no remate das suas alegações de recurso, formulam as seguintes conclusões: 1ª - A actuação das rés – que conseguem desonerar o seu prédio numa extensão de 100 metros e numa largura média de 7 metros (ou seja, numa área de 700 m2), para onerar o prédio dos autores que recebe, numa área de 700 m2 um encargo de sujeição a servidão administrativa, servidão para o exercício de pesca, sujeição a licenciamento e aprovação para obras em margem de águas públicas e sujeição a ter de permitir uso e fruição comum, nomeadamente para funções de recreio, estadia e abeberamento – é ilegal e injusta, é um atropelo à lei vigente; 2ª - Devem, por isso, ser condenadas a eliminar a vala identificada com o trajecto DEF traçado a azul (cfr. doc. n.º 12), impedindo que o ribeiro siga tal trajecto e colocando este, de novo, a correr pelo seu leito e trajecto natural, o indicado com o trajecto ABC (traçado a amarelo no mesmo doc.), em prazo não superior a 30 dias, após o trânsito em julgado do acórdão que o determine; 3ª - Ou, subsidiariamente, condenadas a afastar a vala da confrontação Nascente do prédio dos autores, pelo menos 2 metros em toda a sua extensão paralela (e ao correr) dessa confrontação Nascente do mesmo prédio; 4ª - E devem, cumulativamente ao pedido subsidiário, ser condenadas a tapar completa e hermeticamente a vala em causa em toda a sua extensão, na parte do seu prédio que confronta com o prédio dos recorrentes; 5ª - As rés devem ser condenadas a pagar-lhes o montante dos prejuízos causados, de montante superior a € 6.000,00 mas que melhor se apurará liquidando-se em execução de sentença, pois ainda hoje se mantêm o muro sem reconstrução integral, a ausência de terras, a cratera aberta, as raízes de 55 videiras descobertas; 6ª - O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 62º da Constituição, 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1º, 8º e 14º do Cód. das Expropriações, 1º, 3º e 5º do Dec-lei 468/71, de 5 de Novembro, 1º, 5º, 10º, 11º, 12º e 21º da Lei 58/2005, de 29 de Dezembro, 27º da Lei 7/2008, de 15 de Fevereiro e 1305º, 1308º, 1311º, 1344º e 1346º do CC. Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. 2. Os factos provados, tendo em conta as alterações introduzidas pela Relação na decisão da 1ª instância, são os seguintes: 1) Os autores são donos, senhores, legítimos possuidores e proprietários dos seguintes prédios: 3. O âmbito do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, sendo apenas as questões aí suscitadas (para além daquelas de que qualquer tribunal conhece oficiosamente) que devem ser objecto de conhecimento pelo tribunal ad quem. Como se alcança das conclusões dos aqui recorrentes, estes persistem no entendimento de que - devem as rés ser condenadas a eliminar a vala, no seu trajecto actual, e a recolocar o ribeiro no seu leito e trajecto anterior – ou, se assim se não entender, devem ser aquelas condenadas a afastar a vala, em 2 metros em toda a sua extensão ao longo da confrontação nascente do prédio dos recorrentes, e a tapá-la nesse percurso em que confronta com este prédio; - devem as rés ser condenadas no pagamento do valor dos prejuízos que aos recorrentes causaram e que estes indicam, que são de valor superior a € 6.000,00 e que melhor se apurarão em liquidação subsequente. São, pois, estas, as questões que se perfilam para conhecimento por este Supremo Tribunal. 3.1. Os recorrentes retomam, no recurso para este Supremo Tribunal, argumentação já analisada e rejeitada pela Relação, e nada de significativamente novo e relevante adiantam, no sentido de pôr em crise o decidido no acórdão ora em recurso. Tal não obsta, porém, a que se escrutinem, mais de perto, as suas razões e se reflicta sobre o seu mérito. Desde logo, e em apoio da pretensão de eliminação da vala e da recondução do ribeiro ao leito anterior, sustentam que a actuação das recorridas se volve em oneração, ilegal e injusta, do prédio deles, recorrentes, que fica sujeito, numa área de 700 m2, a uma servidão administrativa. A tal respeito cabe, antes de mais, salientar que o ribeiro referido nos autos vem considerado, no acórdão recorrido, como uma corrente de água não navegável nem flutuável, e, como tal, qualificado como corrente de águas particulares. Os recorrentes, porém, não parece estarem de acordo com esse entendimento. Conforme sustentam na sua alegação de recurso, “não será errado qualificar as águas do ribeiro em causa como recursos hídricos pertencentes ao domínio público hídrico a que, naturalmente (conforme o tempo e os direitos adquiridos), se aplicarão o decreto-lei 468/71 de 5/11 e as Leis 54/2005, de 15/11 e 58/2005, de 29/12. São águas públicas.” Ora, como mais adiante se verá, a qualificação do dito ribeiro – a sua inserção no domínio público fluvial (águas públicas) ou no domínio privado (águas ou recursos hídricos particulares) – assume crucial importância para a resposta à primeira questão colocada à apreciação deste Tribunal. Pois bem! A questão da eventual oneração dos prédios dos recorrentes com uma servidão administrativa foi, no acórdão recorrido, analisada à luz do quadro normativo definido pelo Dec-lei 468/71, de 5 de Novembro – diploma que continha o regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico, hoje revogado e substituído pelas Leis 54/2005, de 15 de Novembro, e 58/2005, de 29 de Dezembro – e também da normatividade expressa nesta Lei 54/2005. Reflectindo sobre o disposto nos n.os 2 do art. 5º, e 1 e 2 do art. 3º do primeiro daqueles diplomas, a Relação, afastando a interpretação que, segundo refere, é induzida «à primeira vista» pelo teor literal destes preceitos – no sentido de que eles criam e impõem, ope legis, aos donos dos prédios particulares que marginam os cursos de água não navegável nem flutuável, como é o caso do ribeiro aqui em causa, uma servidão administrativa inerente à margem, com a largura de dez metros, onerando a faixa de terreno contígua à linha que delimita o leito das águas – defende que essa servidão administrativa, denominada servidão de margem, prevista no art. 12º daquele Dec-lei, apenas existe em relação às correntes do domínio público, e não em relação às correntes de águas particulares, e adopta o entendimento de que as servidões administrativas referidas naquele primeiro normativo, «ou seja, sobre os leitos e as margens de correntes de águas particulares», eram apenas as que viessem a ser constituídas por acto legislativo, «não resultando ope legis daquela norma a sua imposição». Refere-se, ademais, no acórdão recorrido, ser este o entendimento da doutrina e da jurisprudência, citando-se, a propósito, acórdãos dos tribunais superiores e a posição de Marcello Caetano, e reafirmando-se que «não era, pois, seguro que, nos prédios rústicos privados atravessados por correntes de águas particulares, existisse a servidão de margem a que aludia o n.º 2 do art. 5º do Decreto-lei 468/71, sem que fosse declarada a sua prévia constituição em concreto, por acto legislativo ou por acto administrativo do órgão competente». Estes mencionados preceitos (e os demais inseridos nos capítulos I e II do Dec-lei 468/71) foram, porém, revogados pela Lei 54/2005, já citada, que provê sobre a titularidade dos recursos hídricos. E, no entender do acórdão recorrido, esta Lei nem sequer contém norma idêntica à do n.º 2 do art. 5º do diploma revogado, no segmento que sujeitava a servidão administrativa os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos particulares – que é aquele em que se fundam os recorrentes para sustentarem que o desvio do leito do ribeiro envolve a oneração, com a dita servidão, de uma faixa dos seus prédios, com cerca de 10 metros de largura, em toda a extensão confinante com a vala construída pelas recorridas. Às águas particulares – acrescenta o acórdão – reporta-se agora o art. 18º da nova Lei, cujo regime remete para a lei civil, sem referir a sua sujeição a qualquer servidão administrativa. As servidões administrativas constituídas por esta Lei são as previstas nos arts. 12º e 21º, normativos que se referem expressamente a águas públicas, sendo em relação a estas que se fala (art. 21º, n.º 1) em servidão de uso público, no interesse geral de acesso às águas e de passagem ao longo das águas da pesca, da navegação e da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis, e ainda da fiscalização e policiamento das águas pelas entidades competentes, que também era a finalidade atribuída à designada servidão de margem. Isto quer dizer, ao ver da Relação, que «ainda que se devesse entender que, no âmbito do Dec-lei 468/71, a margem do leito do ribeiro que atravessa o prédio das rés estava sujeita à servidão administrativa prevista no n.º 2 do art. 5º do referido decreto-lei, essa servidão desapareceu com a nova lei»; e daí a conclusão de que «o desvio do leito do ribeiro para a proximidade dos prédios dos autores não implica, só por si, a oneração desses seus prédios com a servidão administrativa designada de servidão de margem». Do que se deixa referido decorre que toda a linha argumentativa do acórdão sob censura assenta no pressuposto, já assinalado, de ser o ribeiro em causa uma corrente de águas particulares. Na verdade, se bem interpretamos o pensamento da Relação, ele vai no sentido de que, se se tratasse de uma corrente de águas públicas, embora não fosse criada, ope legis, isto é, por força do disposto no n.º 2 do art. 12º da Lei 54/2005, uma servidão administrativa sobre a margem, haveria a possibilidade de tal servidão vir a ser constituída, por intervenção dos órgãos da Administração Pública, através da regulamentação da lei ou da prática de acto administrativo. Efectivamente, o indicado art. 12º da Lei 54/2005 está subordinado à epígrafe Leitos e margens privados de águas públicas; e, de acordo com o seu n.º 2, «no caso de águas públicas não navegáveis e não flutuáveis localizadas em prédios particulares, o respectivo leito e margem são particulares, nos termos do artigo 1387º do Código Civil, sujeitos a servidões administrativas», sendo que (n.os 4 e 6 do art. 11º) a margem das águas não navegáveis nem flutuáveis tem a largura de 10 metros, contados a partir da linha limite do leito. A essas servidões administrativas, aludidas no n.º 2 do art. 12º, refere-se o art. 21º da mesma lei, que, no seu n.º 1 textua, como já ficou evidenciado, que «todas as parcelas privadas de leitos ou margens de águas públicas estão sujeitas às servidões estabelecidas por lei e nomeadamente a uma servidão de uso público, no interesse geral de acesso às águas (...), e ainda da fiscalização e policiamento das águas pelas entidades competentes». Mas, estando em causa uma corrente de águas particulares, o preceito legal a ter em conta é – diz a Relação – o do art. 18º da mesma Lei 54/2005, que, sob a epígrafe Águas patrimoniais e águas particulares, não faz menção de quaisquer servidões administrativas, como decorre do seu texto: 1 – Todos os recursos hídricos que não pertencerem ao domínio público podem ser objecto do comércio jurídico privado e são regulados pela lei civil, designando-se como águas ou recursos hídricos patrimoniais. 2 – Os recursos hídricos patrimoniais podem pertencer, de acordo com a lei civil, a entes públicos ou privados, designando-se neste último caso como águas ou recursos hídricos particulares. 3 – Constituem designadamente recursos hídricos particulares aqueles que, nos termos da lei civil, assim sejam caracterizados, salvo se, por força dos preceitos anteriores, deverem considerar-se integrados no domínio público. É, pois, seguro que a conclusão do acórdão recorrido – de que o desvio do leito do ribeiro para a proximidade dos prédios dos autores não implica, só por si, a oneração desses seus prédios com a servidão administrativa designada de servidão de margem – radica no pressuposto de que o dito ribeiro não se integra no domínio público hídrico. Não se indicam, porém, as razões em que se abona tal asserção, parecendo, embora, poder deduzir-se que ela se liga à natureza não navegável nem flutuável da corrente em causa. Contudo, se assim é, e se só por isso assim é, trata-se de uma conclusão ousada, pois que as correntes de água não navegáveis nem flutuáveis não são, necessariamente, águas ou recursos hídricos particulares. Basta atentar no art. 5º, al. h) da Lei 54/2005 para logo se concluir que pertencem ao domínio público fluvial os «cursos de água não navegáveis nem flutuáveis nascidos em prédios privados, logo que transponham abandonados os limites dos terrenos ou prédios onde nasceram ou para onde foram conduzidos pelo seu dono, se no final forem lançar-se no mar ou em outras águas públicas». Este preceito está, aliás, em sintonia com o art. 1386º, n.º 1, al. a) do Cód. Civil, que considera particulares «as águas que nascerem em prédio particular e as pluviais que nele caírem, enquanto não transpuserem, abandonadas, os limites do mesmo prédio ou daquele para onde o dono dele as tiver conduzido, e ainda as que, ultrapassando esses limites e correndo por prédios particulares, forem consumidas antes de se lançarem no mar ou em outra água pública». Quid juris, quanto ao ribeiro de que se cura neste processo? Ao contrário da Relação, entendemos que a apurada matéria de facto, embora escassa, aponta para a natureza de água pública do dito ribeiro. É, desde logo, seguro que este não se confina adentro dos limites do prédio das rés: basta atentar em que, no n.º 35) dos factos provados, se alude a que nas suas águas são lançadas «sobras das regas e tratamentos (...) que os lavradores com terrenos contíguos (...) nele despejam ou permitem que se infiltre (em alguns quilómetros de extensão a montante). Por outro lado, a licença de utilização de domínio hídrico, emitida pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte a favor da ré CC – e pelas rés junta aos autos – refere expressamente ser concedida para «construção de edifícios marginais e desvio do leito de linha de águas públicas (1)», qualificação que as partes – e designadamente as rés – jamais puseram em causa. Ademais, a CCDRN, entidade pública emitente da licença, deixou expresso que esta “é concedida a título precário, podendo ser anulada ou alteradas as suas condições quando se verifique o prejuízo de direitos de terceiros”, e que a mesma era “atribuída no pressuposto de que as margens são propriedade da titular ou esta obteve autorização dos respectivos proprietários” Conjugados estes factos, propendemos para concluir que estamos perante uma corrente de águas públicas. E, assim sendo, logra plena aplicação o disposto no já citado art. 12º n.º 2 da Lei 54/2005: a situação é a de águas públicas não navegáveis e não flutuáveis localizadas em prédios particulares, em que o respectivo leito e margem são particulares (art. 1387º/1.b) do CC), mas sujeitos a servidões administrativas – às servidões administrativas a que alude o art. 21º, n.º 1 da mesma Lei. Mais: os proprietários de parcelas privadas de leitos e margens de águas públicas ficam sujeitos às proibições e obrigações a que aludem os n.os 2 e 3 desse mesmo art. 21º. Daqui decorre que o desvio do leito do ribeiro, nos termos em que foi operado pelas demandadas, traduz uma manifesta violação do direito de propriedade dos autores, ora recorrentes. Com efeito, os conceitos de leito e margem têm os seus contornos definidos na Lei 54/2005 (arts. 10º e 11º, respectivamente) (2) . Por margem entende-se (art. 11º/1) “uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas”; e, como já se deixou referido, estabelecem os n.os 4 e 6 do mesmo preceito que a margem das águas não navegáveis nem flutuáveis tem a largura de 10 metros e conta-se a partir da linha do leito (ou, se esta linha atingir arribas alcantiladas, a partir da crista do alcantil). Daí que, situando-se o novo leito do ribeiro, na sua linha mais próxima da extrema dos prédios dos autores/recorrentes, a dois metros de distância desta, é patente que a margem do curso de água passa a abranger uma larga faixa, com cerca de oito metros de largura, pertencente ao aludido prédio, do mesmo passo que liberta, na mesma medida, dessa qualificação, o prédio das recorridas. Vale dizer que, por força da mudança do leito do ribeiro, essa faixa de terreno dos prédios dos autores – parcela privada de margem (privada) de corrente de águas públicas – fica sujeita, nos termos dos já mencionados arts. 12º, n.º 2 e 21º, n.o 1 da Lei 54/2005, às servidões administrativas estabelecidas por lei, e designadamente a uma servidão de uso público, a dita servidão de margem, para além das restrições e obrigações a que, por força dos n.os 2 e 3 do mesmo art. 21º, os respectivos proprietários também ficariam vinculados. E quanto à servidão de margem, os termos claros do n.º 1 do art. 21º inculcam que ela é inerente a todas as parcelas privadas de leitos ou margens de águas públicas, resultando a sua imposição da própria lei: desta resulta a automática oneração do prédio marginal com a aludida servidão, sem necessidade de posterior acto legislativo ou da autoridade administrativa a impô-la. Como também decorrem directamente dos n.os 2 e 3 do mesmo artigo, para os proprietários dessas parcelas, a proibição de aí levarem a cabo a execução de obras sem autorização da autoridade administrativa competente, e a obrigação de manter as mesmas parcelas em bom estado de conservação e de cumprir as obrigações legais no que respeita à execução de obras hidráulicas necessárias à gestão adequada das águas públicas em causa. Já em relação ao regime anterior (do Dec-lei 468/71), autores como FREITAS DO AMARAL/J. PEDRO FERNANDES opinavam, a propósito do n.º 1 do art. 12º: Mas indica-se expressamente a existência, em todos os casos, de uma «servidão de uso público no interesse geral do acesso às águas e da passagem ao longo das águas, da pesca, da navegação e da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis, e ainda da fiscalização e polícia das águas pelas autoridades competentes». E mais adiante: Este n.º 1 procura, assim, generalizar a servidão de uso público (e todas as que a lei venha estabelecer) a todas as parcelas de terreno dos leitos ou das margens que por excepcionalmente não pertencerem ao domínio público numa zona genericamente declarada por lei como dominial são objecto de propriedade privada Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra Editora, L.da, 1978, págs. 155/156.. Do mesmo modo, o Prof. MARCELLO CAETANO escreveu, acerca da servidão de margem: (...) as margens podem em concreto pertencer ao Estado ou aos particulares: na primeira hipótese, incluem-se no domínio público; na segunda, têm natureza privada e acham-se sujeitas a servidão administrativa. Em que consiste tal servidão? É o art. 12º do Decreto-Lei n.º 468/71 que no-lo diz, dele se concluindo ser complexo e muito rico o conteúdo da servidão. Assim, e em primeiro lugar, ela constitui uma «servidão de uso público», isto é, os proprietários particulares são obrigados a consentir o uso comum e geral destes seus terrenos por parte do público – (...). (...) Em segundo lugar, a servidão existe no interesse geral da fiscalização e polícia das águas pelas autoridades competentes – (...). (...) Cremos, pois, que haverá que reconhecer razão aos recorrentes quando reagem contra a colocação do leito do ribeiro no local para onde foi mudado pelas rés, implicando a sujeição dos prédios daqueles a uma servidão administrativa de margem, e o consequente constrangimento dos seus direitos de proprietários, definidos no art. 1305º do CC. Isto não significa, porém, e necessariamente, que haja de efectuar-se a reposição do ribeiro no seu leito e trajecto anteriores. A salvaguarda do direito de propriedade dos autores/recorrentes não impõe tal solução, ficando este direito protegido desde que o estabelecimento de um novo leito para o ribeiro respeite a distância necessária para evitar que a linha de margem ultrapasse a extrema dos prédios daqueles. Trata-se de solução que pode ser decretada no âmbito do presente recurso, dela não podendo dizer-se que afronta o disposto nos arts. 661º/1 e 668º/1.e), ambos do CPC, pois que não traduz nem representa uma modificação da qualidade do pedido principal formulado pelos recorrentes, mas antes uma condenação em quantidade inferior, um minus relativamente a esse pedido. 3.2. Como resulta evidente, a parcial procedência da questão, suscitada a título principal pelos autores/recorrentes, determina que fique prejudicado o conhecimento da questão subsidiária a que se reportam as conclusões 3ª e 4ª das suas alegações, tal como acima se deixaram transcritas (art. 660º/2 do CPC). Resta, assim, a questão que emerge do que vem referido na conclusão 5ª das mesmas alegações – a respeitante à indemnização que, pelos prejuízos alegadamente sofridos, e que terão sido causados pelas rés/recorridas, os autores/recorrentes delas reclamam. A este respeito há que atentar em que: i) na sentença da 1ª instância já as rés foram condenadas a pagar aos autores a quantia de € 150,00, a título de indemnização por danos patrimoniais que lhes causaram; e ii) o acórdão da Relação também condenou as demandadas a reconstruírem o muro do prédio dos autores, em toda a extensão que ruiu, incluindo a reposição das terras que desabaram e o fecho da cratera a que alude o n.º 24) dos factos provados. Assim, em sede de prejuízos, a generalidade dos invocados pelos autores/recorrentes já teve o adequado tratamento nas decisões das instâncias. Mas vejamos. Em matéria de ruídos, maus cheiros e humidades provocados pela maior proximidade do leito do ribeiro, a resposta deste Supremo Tribunal à questão principal suscitada no âmbito do presente recurso deixa sem suporte fáctico a existência de quaisquer danos relacionados com aquelas matérias – danos que não está provado tenham ocorrido até agora. Deve, ademais, salientar-se que são inteiramente pertinentes as considerações que, a tal respeito, produziu a Relação no ponto 7.3. do seu acórdão, com elas se concordando inteiramente, e para elas se remetendo, não se justificando, por supérflua, a adução de quaisquer razões adicionais. O dano traduzido na destruição do muro é reparável pela via da restauração natural, a que alude o art. 562º do CC – e a reparação desse dano, por essa via principal (a indemnização em dinheiro é subsidiária, como flui do disposto no art. 566º/1) já teve, como vimos, o diktat da Relação, assente, justo é dizê-lo, em argumentação de elevada qualidade e proficiência, e com o qual, aliás, os recorrentes estão de acordo. A mesma qualidade e proficiência vêm postas na análise dos demais prejuízos patrimoniais cuja indemnização é reclamada pelos autores/recorrentes – é dizer, i) os respeitantes a 55 videiras que ficaram com as raízes a descoberto, ii) ao custo da plantação de mais 100 videiras e respectivos enxertos que haverá necessidade de fazer para repor a produção, iii) à inerente privação da produção de uvas e vinho, iv) à necessidade de reimplantar quatro esteios abalados pelo desabamento do muro, e v) à reestruturação da ramada em mais de 20 metros de extensão. Também aqui, por isso mesmo, nada há a acrescentar às considerações expressas no acórdão recorrido, que, ademais, os recorrentes não contrariaram de modo consistente e sustentado. De essencial, retém-se que aquilo que os factos mostram «é que, de momento e em concreto, ainda nenhum dano ocorreu para os autores relacionado com as videiras que ficaram com algumas raízes a descoberto», «o que quer dizer que danos concretos e actuais, para além dos já contemplados na decisão da 1ª instância, ainda não existem. Todos os factos relativos a esta matéria alegada pelos autores são meramente hipotéticos e condicionados à eventualidade de virem a ocorrer». Ora, se é certo que, na fixação da indemnização, o tribunal pode atender aos danos futuros, menos certo não é que, para tanto, é necessário que esses danos sejam previsíveis (art. 564º/2 do CC). Os danos meramente hipotéticos e incertos, que, podendo vir a ocorrer, não se sabe se se concretizarão ou não – como acontece no caso em apreço – não estão abrangidos pela obrigação de indemnizar enquanto não ocorrerem. Não tem, pois, consistência, a pretensão dos recorrentes agora em análise: a almejada condenação das rés/recorridas a pagarem-lhes “montante superior a € 6.000,00, mas que melhor se apurará liquidando-se em execução de sentença” não tem o necessário suporte nos factos que, das instâncias, vêm dados como assentes. 4. Nos termos e pelas razões expostas, concede-se parcialmente a revista e, revogando-se, em parte, o acórdão recorrido, condenam-se as rés/recorridas a retirar, do local onde a implantaram, a vala para a qual mudaram o leito do ribeiro em causa, repondo este a correr pelo seu leito anterior, ou por outro, licenciado pela autoridade administrativa competente, desde que, neste caso, a linha mais próxima dos prédios dos autores, que limita o leito das águas, não fique, em toda a sua extensão, a menos de 10 (dez) metros da linha definidora da extrema destes prédios. No mais, mantém-se o decidido no acórdão recorrido. Custas, aqui e nas instâncias, por autores e rés, na proporção de metade para cada.
Santos Bernardino (Relator) Bettencourt de Faria Pereira da Silva (1) Os destaques são de nossa autoria. (2) Em termos idênticos aos que constavam dos arts. 2º e 3º do antecedente Dec-lei 468/71, de 5 de Novembro. |