Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1929/19.8T8PRTJM.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
REGIME APLICÁVEL
TERCEIRO
CREDOR
COMISSÃO DE CREDORES
FACTO ILÍCITO
CULPA
CRÉDITO
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. A norma do art.º 167.º do CIRE é primeiramente uma norma dirigida ao administrador da insolvência e a sua violação pode determinar a sua responsabilidade civil ou até a sua destituição com justa causa, mas não se exclui que daqui decorra também um sentido de protecção de terceiros, uma vez que a IC não desconhecia, sem culpa, a existência da comissão de credores do concreto processo de insolvência a que se reporta a conta, devendo proceder à abertura e movimentação da conta de acordo com os elementos que lhe foram transmitidos e entregues, onde figurava a indicação de existir comissão de credores.

II. Ao permitir que a conta fosse aberta e movimentada apenas com a assinatura do AI, a IC incorre em responsabilidade civil perante o credor – terceiro – que deixou de poder satisfazer o seu crédito sobre a massa insolvente, com fundos depositados na IC, e que foram dela extraídos sem a assinatura de um membro da comissão de credores.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

I. Através da presente ação de condenação, a Autora pretende a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 19.161,55, acrescido dos juros vencidos às sucessivas taxas comerciais, bem como nos restantes que se vieram a vencer até efetivo e integral pagamento.

II. Está em causa a condenação do réu Banco Comercial Português, SA, a indemnizar a autora Ascendum, SA, no contexto da responsabilidade civil ou por sub-rogação desta, porquanto terá consentido a movimentação de uma conta aberta em nome da massa insolvente só pelo AI e em benefício deste quando, por existir comissão de credores no respectivo processo, a movimentação dependia também da intervenção de um dos credores o que prejudicou a autora que, por isso, não viu ressarcido o crédito que oportunamente reclamou nesse processo.

III. A final proferiu-se a seguinte decisão:

(…) Ante o exposto, julga-se a presente ação improcedente, por não provada, absolvendo-se o Réu Banco Comercial Português, S.A., do pedido contra ele formulado pela Autora Ascendum, S.A..

Custas a cargo da Autora, porque vencida – cfr. artigo 527º do Código de Processo Civil.

Relativamente à Chamada Massa Insolvente de AA, esta sentença absolutória tem o valor reconhecido pelo nº 4 do artigo 323º do Código de Processo Civil.”

4. A autora apelou da sobredita decisão.

5. Contra-alegou o Banco réu argumentando, em suma, no sentido do não provimento do recurso.

6. O Tribunal da Relação decidiu: “Nestes termos, dá-se provimento ao recurso e, em consequência, condena-se o réu Banco Comercial Português, SA, a pagar à autora Ascendum, SA, a peticionada quantia de € 19.161,55 acrescida dos juros vencidos no montante de € 12.553,67 e dos vincendos até efectivo pagamento.”

7. Desse acórdão veio apresentado recurso de revista pela Ré, no qual formula as seguintes conclusões (transcrição):

1ª) Restrito a matéria de direito, a questão que se traz à alta consideração deste Supremo Tribunal pode enunciar-se do seguinte modo:

Tendo um administrador de insolvência, em nome da Massa, aberto num banco uma conta de depósito à ordem cujo titular com poderes para a movimentação ficou a ser apenas ele próprio por a conta ter sido por ele aberta em regime singular, quid iuris, se o administrador deu sozinho e a débito ordem de transferência de valores para conta diversa sem que a ordem de transferência se mostrasse também assinada ou autorizada por um membro da Comissão de Credores?

A instituição bancária ter-se-á, a coberto de violação do disposto no nº 2 do artº 167º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa (CIRE), constituído em responsabilidade civil extra contratual perante o credor da massa insolvente que, por virtude do débito efectuado, ficou impossibilitado de ser pago de crédito seu que estava reconhecido ou, ao contrário, inexiste responsabilidade do banco por a norma do nº 2 do artº 167º do CIRE relevar apenas no quadro das relações internas entre o administrador e a massa insolvente, sendo vedado tomá-la como norma destinada à protecção de interesses alheios para efeito do disposto no artº 483º do Código Civil?

2ª) Conhecendo desta questão, o Acórdão recorrido considerou que a norma do nº 2 do artº 167º do CIRE participa da natureza de norma destinada à protecção de interesses alheios para efeito de poder levar à responsabilidade civil extracontratual a coberto do disposto no artº 483º do Código Civil; Ora,

3ª) A norma do nº 2 do artº 167º do CIRE inscreve-se no âmbito do regime de protecção dos interesses da massa falida relativamente a quem seja, dela, seu administrador, faltando-lhe, todavia, qualquer suporte hermenêutico que leve a pensar que o legislador, sem de todo o dizer, lhe quis conferir um tão lato campo de aplicação como aquele que lhe foi conferido pelo acórdão recorrido; De facto,

4ª) Vê-se da economia dos artigos que compõem o Título VI do CIRE, sob a epígrafe “Administração e Liquidação da Massa Insolvente”, que todas as normas do seu Capítulo III, tendo por objecto a fase da Liquidação, dispõem internamente sobre o modo de a concretizar, desde as deliberações da assembleia de credores de apreciação do relatório até ao prazo para se realizar a liquidação ou a dispensar;

5ª) Integrado sistematicamente na disciplina interna da fase de liquidação em processo de insolvência e não constando do nº 2 do artº 167º a menor referência, nem explícita, nem implícita, no sentido de que as obrigações que impõe sobre o administrador têm também a vocação de vincular terceiros, estranhos ao processo de insolvência e exteriores a ele, apodíptico é concluir que o fim da norma começa e acaba no âmbito das relações internas dos que, no processo de insolvência e dentro dele, têm a cargo as tarefas a que respeita o Título VI do CIRE e, dentro deste, o Capítulo III em que se insere aquele nº 2 do artº 167º;

6ª) Não só a ausência de argumento sistemático leva a excluir o entendimento de que o nº 2 do artº 167º do CIRE estende o seu campo de aplicação fora do processo de insolvência, impondo obrigações a terceiros estranhos à liquidação, como nada nele sugere ter sido essa a calada intenção do legislador já que a norma encontra explicação bastante no domínio das relações internas como meio de prevenir o risco de pagamentos indevidos por vontade ilegítima do administrador;

7ª) E nada autoriza, fora de vontade legislativa claramente expressa, que se estenda, no silêncio da lei, o seu campo de aplicação a casos nele não previstos, nem na sua letra, nem no seu espírito;

8ª) A norma do nº2 do artº 167º do CIRE não pode, pois, em correcta hermenêutica, ser interpretada no sentido de ser havida como norma de protecção de interesses alheios para efeito do disposto no artº 483º do Código Civil;

9ª) O Aviso de Banco de Portugal nº 11/2005 e as normas que o integram impondo, embora, aos bancos proceder com elevado grau de cuidado no desempenho do seu escopo social, não consente que se afirme que o Recorrente inobservou as obrigações dele decorrentes para, a partir desta inexistente inobservância, se chegar no caso dos autos à sua condenação;

10ª) É que, nesta lide, do que se trata e trata apenas, é de uma conta bancária que foi aberta pelo administrador de insolvência como “conta singular” e da qual, por isso, só ele ficou titular, sendo que se, fazendo-o, violou as obrigações que sobre ele recaiam na qualidade de administrador, esta violação não se comunica ao Banco, tanto mais que a circunstância de ser singular a conta não o impedia de obter o consentimento de um membro da Comissão de Credores, tal como o teria de fazer se a conta fosse também titulada pelo referido membro desta Comissão;

11ª) Decidindo como decidiu, o acórdão recorrido, além de ter violado o disposto no Aviso nº 5/2005 do Banco de Portugal, violou, por indevida aplicação, o disposto nos artºs 167º, nº 2 do CIRE e o artº 483º do Código Civil;

12ª) Impõe-se, pois, a sua revogação e substituição por acórdão que absolva o Recorrente do pedido.

8. Foram apresentadas contra-alegações onde se conclui (transcrição):

1.ª Da materialidade provada resulta que, no vertente caso, porque o Banco Comercial Português, S.A. (ora Recorrente), não podendo ignorar, que, por existir Comissão de Credores, o Administrador de Insolvência não tinha poderes para, por si só, sem a intervenção da comissão de credores, proceder à abertura de conta da massa insolvente e à sua movimentação a débito, sem que nos respetivos atos participassem a comissão de credores ou um seu representante, tendo permitido que tal acontecesse, agiu de forma livre, consciente, e voluntária, sem o cuidado a que está legalmente obrigada e que é capaz de exercer, permitindo, com a sua omissão, a causação de dano à Recorrida.

2.ª Perante tal, cumpre atentar que, ao contrário do que acontecia no Código de Seabra (em que era essencial à existência de responsabilidade civil a violação de um direito subjetivo do lesado), no art.º 483.º do Código Civil, o domínio da ilicitude é desdobrado entre o grupo dos atos que viola os direitos de outrem e o dos atos que infringem disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, sem conferirem um direito subjetivo ao respetivo titular.

3.ª Nesta última modalidade, a invocação do referido fundamento de responsabilidade (“atos que infringem disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, sem conferirem um direito subjetivo ao respetivo titular”) depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos próprios: a) que à lesão dos interesses dos particulares corresponda a ofensa de uma norma legal, entendendo-se esta expressão em termos amplos (pode ser, por ex., um mero regulamento de polícia); b) que se trate de interesses alheios legítimos ou juridicamente protegidos por essa norma e não de simples interesses reflexos ou por ela apenas reflexamente protegidos, enquanto tutela de interesses gerais indiscriminados; c) que a lesão se efetive no próprio bem jurídico ou interesse privado que a lei tutela.

4.ª O art.º 167.º, n.º 2 do CIRE – que estabelece que “[q]uando exista comissão de credores, a movimentação do depósito efectuado, seja qual for a sua modalidade, só pode ser feita mediante assinatura conjunta do administrador da insolvência e de, pelo menos, um dos membros da comissão” – configura disposição legal, que obriga o Banco Recorrente, destinada a proteger interesses alheios, sem conferir um direito subjetivo ao respetivo titular, em virtude do que releva para efeitos do disposto no aludido art.º 483.º do Código Civil, uma vez que, em tal norma, se verificam todos os requisitos acima sumariados, a saber:

a) A conduta lesiva do Recorrente – que permitiu a movimentação da conta da massa insolvente sem a assinatura de um membro da comissão de credores (que sabia existir) – corresponde a uma clara violação da norma estabelecida na aludida disposição (nomeadamente na parte em que se estabelece «[q]uando exista comissão de credores, a movimentação do depósito efectuado, seja qual for a sua modalidade, só pode ser feita mediante assinatura conjunta do administrador da insolvência e de, pelo menos, um dos membros da comissão»);

b) A norma constante do n.º 2 do art.º 167.º do CIRE não tem outro fim que não seja o da salvaguarda dos interesses dos credores (como é o caso da Recorrida), nomeadamente perante utilizações indevidas dos fundos alcançados no processo de insolvência;

c) O dano–que se reporta, no caso concreto, à irrecuperabilidade do crédito da Recorrida (que, não fora a conduta do Réu, ora Recorrente, não se teria verificado) – enquadra-se no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.

5.ª Note-se que, ao contrário do que alega o Recorrente, a obrigatoriedade perante terceiros do regime em análise (enquanto disposição legal delimitadora dos poderes do Administrador de Insolvência e das condições de movimentação da conta bancária da massa insolvente), resulta do teor literal da aludida norma – pois, na verdade, caso assim não fosse, a menção à “assinatura conjunta do administrador da insolvência e de, pelo menos, um dos membros da comissão”, que no n.º 2 do art.º 167.º do CIRE se prevê, não teria qualquer valor externo e, por conseguinte, mais não significaria do que a necessidade de validação interna ou consentimento, no contexto interno do processo de insolvência, daquele ato (movimentação de conta bancária a débito) do Administrador de Insolvência.

6.ª Tivesse sido esse o fito legislativo, o que apenas por mero esforço argumentativo se considera, bastaria que no artigo 161.º do CIRE – que estabelece as situações (“prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência”) em que a atuação do Administrador de Insolvência requer (apenas) prévio consentimento da comissão de credores ou da assembleia de credores –, se consignasse, num número autónomo, que nas situações em que existe comissão de credores, a movimentação da conta bancária a débito dependeria de prévio consentimento de um membro da comissão de credores, o que – como se revela a esta luz cristalino – não acontece.

7.ª Não se trata, por conseguinte, naquele artigo 167.º, n.º 2 do CIRE, de simples consentimento à prática de um ato pelo Administrador de Insolvência, mas de, através de uma evidente obrigação ex lege, restringir, através do estabelecimento legal de condicionalismo à movimentação a débito de conta bancária da massa insolvente, as possibilidades de ação (singela) do Administrador de Insolvência.

8.ª E é evidente que esse condicionalismo legal vincula, de forma necessária, as instituições bancárias, que, na sua atividade, não podem deixar de fazer cumprir aquele preceito – como, aliás, em situação equivalente, foi entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 18.12.2007, relatado pelo Venerando Juiz Conselheiro Paulo Sá, no âmbito da Revista n.º 3430/07 - 1.ª Secção e, além disso, é expressamente sustentado por CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA [quando afirmam, a páginas 613 da obra acima citada, que se compreende «a exigência, seja para garantir a segurança dos pagamentos, seja para permitir, sem problemas, o levantamento junto da instituição de crédito que, naturalmente, só o permitirá quando o saque respeite as condições de movimentação da conta»].

Sem prescindir,

9.ª Mesmo que assim não se entendesse, certo é que, por força do disposto nos art.ºs 74.º e 75.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro e no art.º 5.º e 8.º do aviso n.º 11/2005 do Banco de Portugal – determinado no uso das competências que lhe são conferidas pelo art.º 17.º da sua Lei Orgânica (Lei n.º Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro) –, sempre incumbiria ao banco Recorrente, impedir a realização da movimentação da referida conta da massa insolvente a débito sem que o Administrador de Insolvência procedesse, previamente, à completa e comprovada identificação de cada um dos titulares das contas, dos seus representantes e das demais pessoas com poderes de movimentação, nomeadamente a identificação de um membro da comissão de credores (em conformidade com o regime legal que habilita e regulamenta a representação da massa insolvente, ou seja, o CIRE e, nomeadamente, o seu artigo 167.º, n.º 2), pelo que, verificada a violação das disposições das normas acima sindicadas, não pode deixar de também se equacionar, em virtude de tal e conforme equacionado pela Recorrida Ascendum, S.A., em sede de articulados, a existência de responsabilidade delitual do banco Recorrente, verificados que estão os demais pressupostos da obrigação de indemnizar (mormente a existência de nexo de causalidade e culpa).

Subsidiariamente,

10.ª Estabelecendo o artigo 638.º, n.º 1 do CPC, que «[n]o caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação», esclarecem JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES (12 ) que, «se, ao invés, tal fundamento [subsidiário], invocado pela parte em 1.ª instância, não tiver chegado a ser apreciado (designadamente, por ser subsidiário e proceder o fundamento principal, ou por proceder um dos fundamentos em alternativa), o tribunal de recurso não deixará de o conhecer, sem necessidade de requerimento de ampliação, se julgar improcedente o pedido tido como procedente pelo tribunal recorrido: esse fundamento constitui já objecto do recurso».

11.ª Nessa medida, cumpre recordar que, em sede de articulados, a ora Recorrida alegou, a título subsidiário, que sempre lhe assistiria o direito de receber o valor peticionado nos autos, em virtude de exercício de sub-rogação nos direitos que, em qualquer caso, assistiriam à massa insolvente, a sentença proferida em primeira instância (sobre a qual versou o Douto Acórdão Recorrido) limitou-se a aduzir que «[t]ambém inexiste qualquer fundamento para imputar à Chamada qualquer responsabilidade no sucedido. E, nessa conformidade, não assiste à Autora qualquer razão para obrigar a Chamada a suportar qualquer indemnização».

12.ª Ora, a Recorrida Ascendum, S.A. impugnou, de forma expressa e a título subsidiário, no recurso de Apelação que interpôs da aludida sentença, tal decisão, tendo sustentado (nos termos melhor concatenados nas conclusões 19.ª a 24.ª da sua motivação de recurso) que sempre lhe assistiria, por conta de tal direito de sub-rogação, demandar diretamente o Banco demandado, desde que, na presente ação, procedesse, como procedeu, ao chamamento daquela entidade (massa insolvente).

13.ª Em face de tal, não tendo o Acórdão recorrido, por ter oferecido procedência ao fundamento principal, chegado a conhecer de tal fundamento subsidiário, a Recorrida Ascendum, S.A. consigna, de forma expressa, pretender que, em caso de improcedência do fundamento principal (que mereceu acolhimento em sede de Acórdão recorrido), se proceda à apreciação, enquanto objeto do presente recurso, do fundamento subsidiário formulado em sede de primeira instância (14.ª Concretizando tal intenção, cumpre aduzir que, mesmo que não se entenda nos termos acima mencionados e se conceba, como refere a demandada, que o direito exercido coubesse, em singelo, à massa insolvente, a verdade é que, ainda assim, sempre poderia a Recorrida demandar diretamente o banco Recorrente, desde que, na presente ação, procedesse, como procedeu, ao chamamento daquela entidade.

15.ª Na verdade, o contrato de depósito bancário é um contrato real que alcança perfeição através da entrega material de dinheiro (artigos 1185.º, 1205.º e 1206.º do Código Civil), de que resulta, no essencial, a obrigação para o depositário de guardar a quantia depositada e de a restituir (outro tanto em género e qualidade) quando for pedida, pelo que a utilização pelo banco dos montantes depositados, legalmente permitida e constitutiva da própria noção do depósito bancário, deve pautar-se pelas normas de utilização dos depósitos e pelas respetivas normas estatutárias ou usos bancários a que alude o art.º 407º do Código Comercial, não podendo o banco, sem expressa anuência do depositante, dar-lhe outro fim diferente daqueles.

16.ª Neste particular, tendo em conta o sufrágio deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 16 de setembro de 2014 (Acórdão relatado pelo Venerando Senhor Juiz Conselheiro Paulo Sá, no processo n.º 333/09.0TVLSB.L2.S1, acessível em www.dgsi.pt) incumbia ao banco alegar e provar que o evento danoso se deu por causa imputável ao depositante (ou seja, a massa insolvente) e, nessa medida, alegar e demonstrar que o Administrador de Insolvência se encontrava legitimado a retirar valores da massa insolvente em benefício próprio (ou seja, para conta pelo mesmo mantida na mesma instituição bancária).

17.ª Tal ónus, para além de decorrer do vertido naquele artigo 796.º, n.º 1 do Código Civil e, ainda, do estabelecido no art.º 799.º do mesmo diploma (uma vez que, tratando-se, neste particular, de responsabilidade contratual, se presume a existência de culpa do banco Recorrente).

18.ª E, por assim ser, lançando mais uma vez mão do sufrágio do citado acórdão do STJ de 16 de setembro de 2014, «[a] defesa e o respeito dos interesses do seu cliente [no caso, a massa insolvente e não o seu representante], a obrigação de acautelamento dos interesses deste, no quadro relacional a que acima fizemos alargada referência, impõem ao banco, dotado de meios humanos e técnicos de elevada competência e eficiência, que também neste domínio, aja com elevados padrões de diligência e cuidado, de modo a não fazer transferências da conta de depósitos do cliente sem estar seguro de que tais transferências são queridas e ordenadas por este» e, por assim ser,

19.ª Pelo exposto, «[o] que acontece é que há um depósito bancário, cujo respectivo valor, só pode ser movimentado, como dissemos, nos termos contratuais, nomeadamente, com autorização do depositante. O que ocorreu foi uma movimentação fora desses termos contratuais, estranha ao depositante que a não autorizou e que, portanto, não lhe é oponível, não sendo relevante no que à sorte do depósito respeita. Consequentemente, não cabe ver se o banco agiu com ou sem culpa. Perante o depositante mantém-se válido e inalterado o depósito, com a consequente obrigação do depositário de prestar. A posição do banco de não prestar compreende-se perante a sua alegação – cf. a contestação – de que as transferências em causa tinham sido autorizadas pelo autor. Mas, ficou provado o contrário, que o mesmo autor fora estranho às ordens de transferência. Deste modo, o banco é responsável, independentemente de culpa, pela movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário – cf. Acórdão deste STJ de 18.12.08 Cons. Santos Bernardino www.stj.pt 08B268. “Recai sobre o banco o ónus da prova de que a movimentação da conta ocorreu por motivo justificado, designadamente, porque tinha ordem ou autorização de transferência emanada do cliente, pelo que, não demonstrado este pressuposto, o banco responde perante o cliente.”», como afirmou o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 8 de março de 2012 [Acórdão relatado pelo Venerando Senhor Juiz Conselheiro Bettencourt de Faria no processo 500/08.4TBESP.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt].

20.ª Por conseguinte, nos termos aduzidos na petição inicial, a Recorrida tem um crédito sobre a insolvência que lhe reconhece o direito de, no que diz respeito a bens móveis, ser pago com preferência sobre os demais credores, além de que a depositante Massa Insolvente de AA não demandou o banco Recorrente, nem, em momento algum, solicitou a reposição dos valores indevidamente movimentados.

21.ª Pelo exposto, sendo cristalino que a única lesada com o desaparecimento dos valores da massa insolvente (melhor identificados na petição inicial) é a Recorrida (que não alcançará a recuperação do seu crédito de outro modo), sempre poderá esta, ao abrigo do disposto no art.º 606.º, n.º 1 do Código Civil (cumprindo que foi o disposto no art.º 608.º do mesmo diploma). substituindo-se à referia Massa Insolvente, sub-rogando-se nos direitos desta última sobre o banco Recorrente (nomeadamente o direito à reposição das quantias ilegitimamente movimentadas), exercer diretamente contra a demandada os direitos de conteúdo patrimonial que competem à massa insolvente e, nessa medida, existir deste último o pagamento do valor peticionado nos autos.do direito de subrogação da recorrida Ascendum, S.A. e dos direitos da massa insolvente).

9. O recurso foi admitido no tribunal recorrido com a prolação do seguinte despacho: “Admito o recurso o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e tem efeito devolutivo.”

10. Cumpre analisar e decidir

II. Fundamentação

De Facto

11. Factos provados – apurados nas instâncias (a negrito o aditado pelo TR, com numeração acrescentada por nós)

1. A Autora [anteriormente denominada Auto ..., Lda] é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio e aluguer de veículos automóveis ou de outro género, motorizados ou não e de acessórios e peças inerentes a tais veículos; no comércio e aluguer de equipamentos e máquinas para obras e construção; na prestação de serviços de assistência relativamente a veículos automóveis e a equipamentos e máquinas para obras e construção; na realização e detenção de investimentos em bens imóveis, incluindo a compra de imóveis, para detenção e gestão próprias ou para revenda, e a respetiva alienação; e na administração e arrendamento de bens imóveis próprios ou de terceiros.

2. No exercício do seu comércio, a Autora manteve relações comerciais com a sociedade G..., S.A.., no âmbito das quais se tornou dona e legítima portadora de uma letra de câmbio, no valor de € 161.572,74 (cento e sessenta e um mil, quinhentos e setenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos), emitida em 31MAR2003 e com vencimento em 5MAI2003.

3. A referida letra foi aceite pela referida sociedade G..., S.A.., tendo, para tanto, sido aposto o seu carimbo no local destinado ao aceite no rosto da mesma e os seus administradores aposto as suas assinaturas, transversalmente no mesmo local, tendo sido avalizada à aceitante pelos Srs. AA, BB e CC.

4. A Autora, no intuito de mais rapidamente obter fundos para o seu negócio, procedeu ao desconto da mencionada letra, em instituição bancária, recebendo a quantia constante do aludido título, deduzida do respectivo desconto.

5. Todavia, como na data do seu vencimento, a letra não foi paga ao banco descontador pela aceitante ou pelos seus avalistas, o banco procedeu ao seu débito na conta bancária da Autora, devolvendo-lhe os efeitos.

6. Em consequência, por se encontrar desapossada da quantia titulada pela letra, a Autora procedeu ao acionamento judicial do título em apreço no âmbito da ação executiva que correu os seus termos na 1ª Secção da Vara Mista de Coimbra, sob o nº 1515/03.4...

7. Ação executiva entretanto extinta em virtude da insolvência de todos os executados.

8. O Sr. AA foi declarado insolvente por sentença datada de 15DEZ2015, no âmbito do processo nº 173/05.6..., que atualmente corre termos no Juízo de Competência Genérica de ... (Comarca de Bragança).

9. No referido processo de insolvência, foi nomeado e desempenhou as funções de Administrador da Insolvência, por substituição do originalmente nomeado, o Sr. DD, desde 17MAR2010.

10. No âmbito do aludido processo, a Autora apresentou reclamação de créditos.

11. O crédito da Autora foi verificado e reconhecido por sentença datada de 14SET2007, tendo sido graduado em primeiro lugar, quanto aos bens móveis apreendidos, até ao montante de € 40.764,85 (quarenta mil, setecentos e sessenta e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos), em virtude de beneficiar do privilégio creditório previsto nos artigos 47º, nº 4 e 98º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

12. Entre os bens móveis apreendidos encontrava-se, nomeadamente, um saldo bancário numa conta de depósitos à ordem titulada pelo Insolvente AA e esposa, existente no Banco BPI, S.A., no valor de € 37.503,54 (trinta e sete mil, quinhentos e três euros e cinquenta e quatro cêntimos), cujo saldo foi transferido, por instruções do Administrador de Insolvência DD, para a conta de depósitos titulada pela massa insolvente do processo 173/05.6..., com o NIB ...................05.

13. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 28JAN2016, foi determinada a restituição à esposa do insolvente, EE, de metade do saldo daquela conta, ou seja, de € 18.751,77 (dezoito mil, setecentos e cinquenta e um euros e setenta e sete cêntimos).

14. O valor apreendido, disponível para entrega aos credores do Insolvente AA, ficou assim reduzido ao capital de € 18.571,25 (dezoito mil, quinhentos e setenta e um euros e vinte e cinco cêntimos) e aos eventuais juros remuneratórios que o depósito daquelas quantias tivesse dado lugar.

15. Valor esse que a Autora iria receber nos termos definidos pelo ponto 11) dos factos provados.

16. No referido processo de insolvência, foram ainda apreendidos um imóvel e um crédito resultante da expropriação parcial do imóvel apreendido, no valor de € 11.336,82 (onze mil, trezentos e trinta e seis euros e oitenta e dois cêntimos), ambos onerados com hipoteca a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ....

17. A Autora descobriu que a referida conta da massa insolvente (NIB ...................05) – que deveria então apresentar um saldo de, pelo menos, € 37.503,54, apenas dispunha do saldo de € 18.575,21 (dezoito mil, quinhentos e setenta e cinco euros e vinte e um cêntimos).

18. O valor em falta, identificado no ponto 13) dos factos provados, foi transferido, por indicação do Administrador da Insolvência DD, da conta da massa insolvente para a conta pessoal deste no Banco Comercial Português, S.A. com o número 47658268, nas seguintes datas:

i) em 31DEZ2010, foi efetuada uma transferência no valor de € 2.920 (dois mil, novecentos e vinte euros);

ii) em 31JAN2011, foi efetuada uma transferência no valor de € 2.000 (dois mil euros); e

iii) em 6FEV2012, foi efetuada uma transferência no valor de € 14.241,55 (catorze mil, duzentos e quarenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos).

19. As referidas operações foram efetuadas apenas pelo Sr. Administrador da Insolvência DD que, sozinho, ordenou e logrou a concretização das mesmas.

20. A referida conta da massa insolvente, com o IBAN já identificado nos pontos 12) e 17), foi aberta no balcão do Réu sito no ..., ..., em 9DEZ2010, pelo Sr. Administrador da Insolvência DD.

21. Esta conta foi aberta pelo Sr. Administrador da Insolvência DD, nesta qualidade, sem ter dado indicação ao Réu de outras pessoas com poderes de movimentação, porquanto na abertura de conta, o referido DD, não deu indicação de mais nenhuma pessoa cuja assinatura fosse necessária para o efeito da sua movimentação a débito.

22. Na conta de depósito à ordem em causa nos autos, existe depositada à ordem a quantia de € 4.364,84 (quatro mil, trezentos e sessenta e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos).

23. Além desta quantia, existia ainda em depósito à ordem na mesma conta, em 29SET2017, a quantia de € 22.648,26 (vinte e dois mil, seiscentos e quarenta e oito euros e vinte e seis cêntimos).

24. O Sr. Administrador da Insolvência deu ordem de débito sobre aquela conta, a título de pagamento de serviços, no montante de € 22.648,26 (vinte e dois mil, seiscentos e quarenta e oito euros e vinte e seis cêntimos), tendo sido este débito que fez descer o saldo da conta para os referidos € 4.364,84 (quatro mil, trezentos e sessenta e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos).

25. Aquando da abertura da sobredita conta o AI DD apresentou ao recorrido, com vista a demonstrar a sua nomeação no aludido processo, cópia do despacho judicial em que fora nomeado. (aditado pelo TR)

26. Na documentação então apresentada consta que: “defere-se a requerida alteração na composição da comissão de credores” “uma vez que os restantes membros da comissão de credores já tomaram posse”. (aditado pelo TR)

De Direito

12. Objecto do recurso

Sabendo que é pelas conclusões do recurso que se delimitam as questões a resolver em sede de revista (sem prejuízo das questões que possam ser de conhecimento oficioso), a questão a tratar é a seguinte: como deve ser interpretado o artº 167º, º 2 do CIRE.

13. No tribunal recorrido a concessão da apelação veio assim fundamentada:

Quanto à questão de direito sufraga-se o entendimento da recorrente no que contende com a existência da responsabilidade civil por parte da recorrida consubstanciada na violação de uma norma legal destinada à protecção de interesses alheios (art, 483º nº 1 do CC).

Neste contexto, a culpa presume-se (art. 799º nº 1 do CC).

De facto, a conta foi aberta em nome da massa insolvente, a recorrida tinha obrigação de se informar se existia ou não comissão de credores independentemente do AI a informar ou não directamente desse facto (cfr aviso do Banco de Portugal nº 11/2005 citado nas alegações de recurso), a recorrida tinha obrigação de conhecer o preceituado no art. 167º nº 2 do CIRE que se considera norma que lhe é aplicável porquanto consubstancia um normativo inerente a este tipo de contas e a recorrida também devia ter analisado a documentação que o AI lhe apresentou aquando da abertura da conta constatando a existência da comissão de credores e concluindo em conformidade com o disposto na sobredita norma do CIRE.

Neste contexto, conclui-se que a recorrida omitiu o dever de cuidado que lhe estava adstrito quer na abertura da conta (porquanto devia ter identificado todas as pessoas com poderes legais de movimentação cfr citada norma do CIRE) quer na sua movimentação posterior causando, por isso, dano à recorrente materializado no não ressarcimento do crédito que reclamou e viu graduado pela sobredita forma.

Procede, pelo exposto, a pretensão da recorrente em ser indemnizada pela recorrida nos moldes peticionados.”

A solução defendida no acórdão é oposta à que veio adoptada na sentença – com a seguinte fundamentação:

“É certo que de acordo com o nº 2 do artigo 167º do CIRE, relativo ao depósito bancário do produto da liquidação, quando exista comissão de credores, a sua movimentação “só pode ser feita mediante assinatura conjunta do administrador da insolvência e de, pelo menos, um dos membros da comissão”.

Mas, do nosso modo de ver e acompanhando-se aqui o entendimento do Réu, esta norma tem por campo de aplicação as relações internas ao nível da administração da massa insolvente e só estas.

Razão pela qual não estabelece, nem sequer por via reflexa ou indireta, qualquer obrigação sobre terceiros, designadamente a instituição bancária onde a massa tenha dinheiro do seu ativo depositado.

De igual modo, o regime previsto pelo artigo 483º do Código Civil também não serve de apoio à pretensão da Autora.

Cabe ainda notar que a posição largamente dominante na doutrina mais autorizada e na jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, afirma a responsabilidade dos bancos em casos de falsificação de cheques, falsificação de ordens de transferência, inexistência de ordens de transferência ou de execução errónea por parte do banco do ordenante da transferência – assim, além dos autores antes citados, CALVÃO DA SILVA, Direito Bancário, 2001, pp. 334 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7MAR2008, 23FEV2010 e 5ABR2016, do Tribunal da Relação do Porto de 7FEV2008 e de 14JUN2010 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18MAR2010 e 18OUT2011, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Nada disto sucedeu nos autos.

Adicionalmente e de forma suplementar, encontramos deveres (acessórios) de diligência e cuidado, previstos nos artigos 73º e 74º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31DEZ, nos termos dos quais “as instituições de crédito devem assegurar, em todas as atividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência” e “os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados”.

A necessidade de rever este diploma legal tem vindo a ser cada vez mais defendida, inclusivamente pelo próprio Banco de Portugal , em especial no que toca ao quadro normativo aplicável aos processos de contraordenação da competência do Banco de Portugal, que se carateriza por “um intrincado jogo de remissões sucessivas (do RGICSF para o Regime Geral das Contraordenações, deste para o Código de Processo Penal e, finalmente, deste ainda para o Código de Processo Civil) que muito frequentemente conduz a uma de duas situações claramente indesejáveis: ou a um quadro de incerteza acerca do regime (da solução normativa) aplicável a um concreto problema ou, o que poderá ser ainda pior, à necessidade de aplicar ao problema uma solução normativa manifestamente desajustada, porque pensada para uma situação essencialmente distinta”, concluindo o Banco de Portugal pela “necessidade de promover a criação, ex nuovo, de um regime geral do ilícito de mera ordenação social especificamente aplicável às infrações do setor financeiro (extensível, naturalmente e por identidade de razão, às contraordenações da competência da CMVM e da ASF) que, entre outras coisas, clarifique os poderes das autoridades administrativas e do Tribunal na condução do processo, clarifique os direitos de defesa aplicáveis ao processo de contraordenação, clarifique o regime das nulidades / irregularidades processuais e as suas consequências, etc. Em suma, é necessário avançar para a criação de um regime geral das infrações financeiras adaptado à específica natureza e gravidade das mesmas e que trate de forma muito mais abrangente os diferentes aspetos do regime do processo de contraordenação nesta área, minimizando, assim, a necessidade de recorrer subsidiariamente ao Regime Geral das Contraordenações ou ao Código de Processo Penal, com consequências negativas acima assinaladas (para arguidos, autoridades administrativas e autoridades judiciais e, em última instância, para a própria realização da justiça)”.

A título de exemplo e não obstante os acontecimentos recentes neste setor de atividade, este diploma só prevê uma situação punível com pena de prisão e que é a prevista no artigo 200º – atividade ilícita de receção de depósitos e outros fundos reembolsáveis .

No mais, este diploma só prevê a aplicação de coimas, enquadráveis no ilícito de mera ordenação social.

Seja como for, a nível dos deveres de diligência e cuidado, existe consenso generalizado no sentido da sua atualidade e suficiência.

E, voltando ao caso dos autos, também não se vislumbra qualquer violação dos aludidos deveres de cuidado, diligência e respeito consciencioso pelos interesses que estão confiados às instituições financeira em geral e ao Banco Réu em particular.

Também inexiste qualquer fundamento para imputar à Chamada qualquer responsabilidade no sucedido. E, nessa conformidade, não assiste à Autora qualquer razão para obrigar a Chamada a suportar qualquer indemnização.

Ante o exposto e sem necessidade de mais considerandos, nega-se procedência à presente ação.”

O recorrente pretende que este tribunal volte a inverter a decisão, aderindo aos argumentos apresentados na sentença.

Vejamos.

Diz o art.º 167.º do CIRE - Depósito do produto da liquidação

1 - À medida que a liquidação se for efetuando, é o seu produto depositado na conta bancária titulada pela massa insolvente, em conformidade com o disposto no n.º 6 do artigo 150.º
2 -
Quando exista comissão de credores, a movimentação do depósito efectuado, seja qual for a sua modalidade, só pode ser feita mediante assinatura conjunta do administrador da insolvência e de, pelo menos, um dos membros da comissão.
3 - Sempre que sejam previstos períodos relativamente longos de imobilização dos fundos depositados, devem ser feitas aplicações deles em modalidades sem grande risco e que recolham o parecer prévio favorável da comissão de credores, se existir, ou do maior credor.

A norma do art.º 167.º do CIRE não determina que a conta bancária tenha sempre que ser movimentada com a assinatura de um membro da comissão de credores, mas tão só que ela deve ser exigida se existir comissão de credores.

Uma vez que a existência de comissão de credores não é algo que ocorra em todos os processos de insolvência, a colocação do ónus de investigar se ela existia na instituição de crédito onde a conta é aberta afigura-se demasiado exigente e sem justificação plausível, em conformidade com inexistência de obrigação legal de a referida comissão existir sempre.

Considerando que a comissão de credores pode existir ou não, a abertura de conta bancária em que o administrador da insolvência não comunica à IC a sua existência não pode conduzir à responsabilização da IC pela movimentação da conta em conformidade com aquilo que lhe foi transmitido.

Nos factos provados veio apurado que “21. Esta conta foi aberta pelo Sr. Administrador da Insolvência DD, nesta qualidade, sem ter dado indicação ao Réu de outras pessoas com poderes de movimentação, porquanto na abertura de conta, o referido DD, não deu indicação de mais nenhuma pessoa cuja assinatura fosse necessária para o efeito da sua movimentação a débito.

Esse ponto veio assim justificado:

“Todavia, há um ponto fulcral: sucede que a conta bancária da massa insolvente, ao contrário do que entende a Autora, estava titulada apenas pelo Administrador da Insolvência. A ficha de abertura de conta, de folhas 43 a 44 verso, não deixa qualquer dúvida a esse respeito, tal como de resto, explicou em audiência a testemunha FF, que é funcionária bancária e trabalha para o Réu, o que justificou a prova do ponto 21) dos factos provados [“Esta conta foi aberta pelo Sr. Administrador da Insolvência DD, nesta qualidade, sem ter dado indicação ao Réu de outras pessoas com poderes de movimentação, porquanto na abertura de conta, o referido DD, não deu indicação de mais nenhuma pessoa cuja assinatura fosse necessária para o efeito da sua movimentação a débito”] e a resposta negativa à factualidade alegada pela Autora nos artigos 25º, 26º, 28º, 29º e 30º da petição inicial. “

Porém, na situação dos autos, tal como veio decidido pelo tribunal recorrido, estamos perante uma situação ligeiramente diferente, porquanto veio provado que:

25. Aquando da abertura da sobredita conta o AI DD apresentou ao recorrido, com vista a demonstrar a sua nomeação no aludido processo, cópia do despacho judicial em que fora nomeado.

26. Na documentação então apresentada consta que: “defere-se a requerida alteração na composição da comissão de credores” “uma vez que os restantes membros da comissão de credores já tomaram posse”.

Tendo a conta sido aberta com a indicação de que podia ser movimentada pelo Administrador da insolvência sem qualquer outra restrição, mas tendo sido entregue documentação na qual se informa o banco da legitimidade do administrador mas igualmente da existência da comissão de credores, estamos de acordo que a IC tinha o dever de só abrir a conta e permitir a sua movimentação de acordo com a restrição que é colocada no art.º 167.º do CIRE – impedindo que a mesma fosse movimentada sem a assinatura de um membro da comissão de credores.

Quer isto dizer que a norma do art.º 167.º do CIRE é, neste sentido, primeiramente uma norma dirigida ao administrador e a sua violação pode determinar a sua responsabilidade civil ou até a sua destituição com justa causa, mas não se exclui que daqui decorra também um sentido de protecção de terceiros, uma vez que a IC não desconhecia, sem culpa, a existência da comissão de credores do concreto processo de insolvência a que se reporta a conta.

Dito de outro modo, a norma do nº2 do artº 167º do CIRE não tem de ser interpretada necessariamente no sentido de ser havida como norma de protecção de interesses alheios para efeito do disposto no artº 483º do Código Civil, mas na situação concreta dos presentes autos, ela funciona como tal.

Na sequência do exposto importa ainda explicitar o que se deve entender por violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, violação que, nos termos do artigo 483.º do CC, sendo ilícita e praticada com dolo ou culpa, constitui o agente na obrigação de indemnizar os prejuízos dela resul­tantes.

Trata-se, portanto, da violação de um dever imposto por lei, a qual se destina a proteger interesses alheios.

Como refere Pessoa Jorge, na obra Ensaio sobre os pressupostos de responsabilidade civil, pág 298, “se a alteridade é nota essencial do direito e se, por conseguinte, a imposição de um dever jurídico visa sempre a protecção de interesses de outrem, parece que a fórmula usada no artigo 483 leva à conclusão de que a violação de qualquer disposição da lei acarreta necessariamente a obrigação de indemnizar as pessoas preju­dicadas com essa violação. Não é, todavia, assim. Se tivesse sido intenção do artigo 483 cominar responsabilidade civil para a violação de quaisquer normas jurídicas, tinha de se concluir que a expressão usada naquele preceito era pleonástica, uma vez que todas as normas, por definição, protegem interesses que são alheios em relação ao destinatário do dever. Ora, mandam as regras de interpretação que se presuma não ter o legislador usado expressões inúteis e haver consagrado as soluções mais acertadas (art. 9°, 3, do Cód. Civ.), pelo que nos parece que a intenção do ar­tigo 483°, ao acrescentar as palavras «destinada a proteger interesses alheios», foi restringir a menção feita a «qualquer disposição legal».

Quer isto dizer que se as disposições legais a que o artigo 483.° se refere não se destinam, portanto, a proteger os interesses gerais, isso significa que só visam tutelar os interesses de algumas pessoas, embora delimitadas em termos abs­tractos, ou seja, por categorias. Na verdade, se a tutela jurídica se reporta aos interesses de pessoas concretamente determinadas, estaríamos perante direitos subjectivos ­ainda que transitoriamente se ignore quem é o verdadeiro titular, como sucede nas hipóteses previstas nos arti­gos 2182.°, 2 e 3, e 2225.° do Código Civil

A disposição legal, cuja violação é contemplada no artigo 483.°, tem de se reportar, pois, à protecção dos interesses de uma categoria de pessoas: o círculo dos interessados deve ser definido em termos abstractos.

Mas, para dar a esta delimitação conteúdo real e não aparente, é necessário que a nota, com referência à qual se define a categoria, não seja adequável a qualquer cida­dão.

Os interesses legalmente tutelados que, não constituindo direitos subjectivos, podem dar lugar a responsabilidade civil, são interesses comuns a um círculo limitado de pessoas e é à protecção desses interesses que as normas em causa se destinam. Esta ideia de a norma se destinar a proteger os interesses permite afirmar que o artigo 483 não quis reportar-se a lesão de interesses que só reflexamente beneficiam da protecção legal.


Só quando o fim da lei é proteger directamente os interesses de certa categoria de cidadãos é que se integra a previsão do artigo 483:, nº1 pois que não pode afirmar-se que se destine a proteger os interesses de um círculo de pessoas a lei que foi criada para outras finalidades, embora indirecta, ou reflexamente, as vá beneficiar. Deste modo, só a lesão de interesses legítimos, e não de interesses reflexos, pode dar origem a responsabilidade civil.
Como refere Pessoa Jorge se não puder inferir-se da própria lei o fim principal que a motivou, deve presumir-se ter ela visado interesses gerais e não a tutela de categorias limitadas de cidadãos.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela o nº1 do normativo em causa prevê, ao lado, da violação de direitos, a violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, mas das quais não nasce nenhum direito subjectivo para os titulares dos interesses violados.

Esclarecem, ainda Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anot, I, 4ª ed., pp. 472 e 473: «(…) para determinar se a violação de certa norma origina a obrigação de indemnizar, “o decisivo não é o efeito, mas sim o conteúdo e o fim da disposição”. Não basta que esta seja proveitosa também para o indivíduo lesado com a violação: é necessário que vise proteger interesses particulares.».

Mas, como advertem os mesmos Mestres, «já não são abrangidas pelo art. 483° as normas que visam apenas proteger certos interesses gerais ou colectivos, embora da sua aplicação possam beneficiar, mediata ou reflexamente, determinados interesses particulares. Trata-se de normas que, “directamente, apenas protegem a colectividade como tal, especialmente o Estado, e que só beneficiam o indivíduo na medida em que cada um está interessado no bem da colectividade” (Enneccerus-Lehmann, Derecho de Obliganiones, § 235, I, 2, b)» - também citados em Ac. do STJ de 25/10/2018, relativo ao processo 2511/10.0TBPTM.E2.S1 – disponível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d57c6e12cd83e9418025833500428c75?OpenDocument

Para que se considere objectivamente preenchido o tipo legal e o seu autor incurso em ilícito na modalidade em análise, não basta a violação de uma «norma de protecção» no sentido do art.º 483.º. Torna-se ademais mister atender ao «concreto escopo de protecção da norma», implicando na especialidade a verificação de três requisitos fundamentais: que o lesado pertença ao seu domínio subjectivo de aplicação, incluindo-se no círculo de pessoas que a norma abstractamente visa proteger; que tenha sido em concreto ofendido o interesse tutelado mediante a lei de protecção; que se mostre concretizado o perigo a esconjurar mercê da mesma lei.

Então, a questão que nos é proposta é tão só a de saber se é possível inferir do regime do art.º 167.º do CIRE uma finalidade de protecção de um direito que se inscreve no património do recorrente, se o interesse tutelado foi ofendido e se o perigo que se pretendia evitar com a norma está concretizado.

A resposta é manifestamente positiva, pois aí se protege a categoria dos credores do insolvente, sem lhe atribuir um direito subjectivo, visando-se que a movimentação das contas, qualquer que seja a sua modalidade, não ignore a circunstância de a lei exigir a participação de membros da comissão de credores, quando exista, e tendo essa finalidade sido completamente “ignorada” pela IC.

Procede assim a argumentação da recorrida do ponto 9, ao dizer “Mesmo que assim não se entendesse, certo é que, por força do disposto nos art.ºs 74.º e 75.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro e no art.º 5.º e 8.º do aviso n.º 11/2005 do Banco de Portugal – determinado no uso das competências que lhe são conferidas pelo art.º 17.º da sua Lei Orgânica (Lei n.º Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro) –, sempre incumbiria ao banco Recorrente, impedir a realização da movimentação da referida conta da massa insolvente a débito sem que o Administrador de Insolvência procedesse, previamente, à completa e comprovada identificação de cada um dos titulares das contas, dos seus representantes e das demais pessoas com poderes de movimentação, nomeadamente a identificação de um membro da comissão de credores (em conformidade com o regime legal que habilita e regulamenta a representação da massa insolvente, ou seja, o CIRE e, nomeadamente, o seu artigo 167.º, n.º 2), pelo que, verificada a violação das disposições das normas acima sindicadas, não pode deixar de também se equacionar, em virtude de tal e conforme equacionado pela Recorrida Ascendum, S.A., em sede de articulados, a existência de responsabilidade delitual do banco Recorrente, verificados que estão os demais pressupostos da obrigação de indemnizar (mormente a existência de nexo de causalidade e culpa)”, quando nas circunstâncias do presente caso a conta foi aberta apenas em nome do administrador da insolvência, mas foram fornecidos à IC os elementos necessários para que esta pudesse confirmar os termos em que a referida conta podia e devia ser aberta e movimentada, e que passariam por exigir a intervenção do membro da comissão de credores – comissão essa que vinha identificada na sentença de insolvência nos seguintes moldes

Acolhe-se assim a argumentação do tribunal recorrido quando disse:

“Quanto à questão de direito sufraga-se o entendimento da recorrente no que contende com a existência da responsabilidade civil por parte da recorrida consubstanciada na violação de uma norma legal destinada à protecção de interesses alheios (art, 483º nº 1 do CC).

Neste contexto, a culpa presume-se (art. 799º nº 1 do CC).

De facto, a conta foi aberta em nome da massa insolvente, a recorrida tinha obrigação de se informar se existia ou não comissão de credores independentemente do AI a informar ou não directamente desse facto (cfr aviso do Banco de Portugal nº 11/2005 citado nas alegações de recurso), a recorrida tinha obrigação de conhecer o preceituado no art. 167º nº 2 do CIRE que se considera norma que lhe é aplicável porquanto consubstancia um normativo inerente a este tipo de contas e a recorrida também devia ter analisado a documentação que o AI lhe apresentou aquando da abertura da conta constatando a existência da comissão de credores e concluindo em conformidade com o disposto na sobredita norma do CIRE.

Neste contexto, conclui-se que a recorrida omitiu o dever de cuidado que lhe estava adstrito quer na abertura da conta (porquanto devia ter identificado todas as pessoas com poderes legais de movimentação cfr citada norma do CIRE) quer na sua movimentação posterior causando, por isso, dano à recorrente materializado no não ressarcimento do crédito que reclamou e viu graduado pela sobredita forma.”

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Relatora: Fátima Gomes

1º Adjunto: Conselheiro Nuno Pinto Oliveira

2º Adjunto: Conselheiro Nuno Ataíde das Neves