Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3804
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
DEPOIMENTO FALSO
ASSINATURA FALSA
CONDENAÇÃO
PROCESSO
CRIME
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
TUTELA EFECTIVA DO DIREITO
Nº do Documento: SJ200711220038046
Data do Acordão: 11/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I) – Se a Autora, no recurso extraordinário de revisão, pretende a revisão da sentença que julgou improcedente a oposição que moveu como executada, onde confessou ser sua a assinatura que consta na letra exequenda, no lugar destinado ao aceite, e ulteriormente, denuncia criminalmente terceiro, no caso seu filho – que depusera como testemunha na oposição confirmando a autoria daquela assinatura – mas no processo-crime confessa ter sido ele quem a falsificou, são irrelevantes, quer esse depoimento, quer a condenação-crime, como fundamentos da requerida revisão, por a ora Autora ter tido conhecimento da falsidade do depoimento na pendência da oposição, sendo aí, que sob pena de preclusão, deveria ter suscitado as referidas falsidades, não podendo invocá-las agora, mais a mais a coberto da sentença-crime.

II) Face à concreta situação espelhada nos autos, com contraditórias versões da testemunha que confessou no processo-crime a falsificação, em evidente contradição com o que antes fora o seu depoimento no processo cível, não tinha o tribunal, em homenagem ao princípios da celeridade e da adequação, que fazer tramitar o processo de revisão – art. 775º, nº2, parte final, do Código de Processo Civil – com vista à produção de diligências probatórias, relacionadas com as falsidade aludidas, por se anteverem inúteis tais diligências.

III) – Por tal não foi violado o princípio da tutela efectiva do direito que constitui afloramento do princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, intentou, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 5.1.2006, Recurso de Revisão de Sentença, por apenso aos autos de Embargos de Executado n°420-A/2001 [processo que foi mandado baixar ao Tribunal de 1ª Instância -1ª Vara Mista da Comarca de Guimarães por onde tramitou] que deduziu contra:

BB-Central Distribuidora de Produtos Alimentares, S.A.

Pedindo que se revogue o Acórdão proferido naqueles autos, que confirmou a sentença da 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães que julgou os embargos improcedentes.

Alega, para tanto que no Acórdão da Relação de Guimarães, que confirmou a sentença daquela 1ª Vara, foi decidido que não havia motivos para, com base nos depoimentos das testemunhas, alterar a factualidade dada como provada na 1ª Instância, uma vez que a valoração dos depoimentos dada pelo Tribunal “a quo” se afigura correcta.

Em meados de Novembro de 2005 a recorrente teve conhecimento que a testemunha daqueles autos de embargos, CC, seu filho, foi condenado, por sentença transitada em julgado, do 2° Juízo Criminal de Guimarães, pela prática, como autor material, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelos artes. 255°, a) e 256°, nºs. 1 e 3, do Código Penal.

Como factos provados, na referida sentença, consta que “... o arguido preencheu pelo seu próprio punho a letra de câmbio cuja cópia consta de fls. 12, dela fazendo figurar…o nome de AA como sacado e aceitante e cuja assinatura imitou e manuscreveu no lugar destinado ao aceite...”.

Alega, assim, que o depoimento da testemunha, nos autos de embargos de executado, CC, está inquinado de falsidade.

A recorrida “BB-Central Distribuidora de Produtos Alimentares, S.A.”, respondeu dizendo que o recurso é extemporâneo; mais alegando que na petição de embargos, a recorrente diz que “ apôs na letra de câmbio em apreço a respectiva assinatura” e que “o fez no local destinado ao aceite”, o que não foi impugnado pela ora recorrida.
Alegou, ainda, que as declarações da testemunha CC, em ambos os processos, são do mesmo conteúdo e alcance.

A recorrente respondeu.

Por decisão de 9.11.06 foi julgado improcedente o recurso de revisão.


Inconformada a requerente interpôs para o Tribunal da Relação de Guimarães recurso de apelação, que, por Acórdão de 17.5.2007, veio a ser julgado improcedente.


De novo inconformada, a Requerente interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça e, nas alegações apresentadas, formulou as seguintes conclusões;

A) - Nos termos do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 684° do Código de Processo Civil, restringe desde logo a ora recorrente o objecto inicial do recurso de revista sub judice à citada decisão com exclusão da questão suscitada pela recorrida de uso manifestamente reprovável de meio processual.

B) - Entende a recorrente que, compulsados os autos, resulta que é facto notório, e já assente, que a mesma apenas e tão somente teve conhecimento em data posterior a 7 de Novembro de 2005 de que a assinatura que pensava ser sua havia sido falsificada por terceiro, bem como que o conhecimento por parte daquela de tal falsificação é posterior à apresentação da petição inicial de embargos de executada no ano de 2001.

C) - Pelo que, atenta tal factualidade, entende a recorrente estarem verificados os pressupostos para que o princípio da irretractatibilidade da confissão não tenha o carácter de intocável que o tribunal recorrido lhe pretende conferir.

D) - É manifesto e notório o erro em que a recorrente se encontrava quando da confissão da autoria da assinatura da letra de câmbio dada à execução inserta na petição de embargos, o que constitui uma das causas de excepção do princípio da irretractatibilidade da confissão, sendo até causa de nulidade da mesma, pelo que deveria o tribunal recorrido ter conhecido oficiosamente tal vício.

E) - Ao decidir do modo que decidiu, o tribunal recorrido, salvo o devido respeito, interpretou erradamente e/ou violou, o conjugadamente disposto nas alíneas b) e c) do art. 771° do Código de Processo Civil.

F) - Contrariamente ao que da douta decisão recorrida consta, a recorrente no recurso de revisão apresentado nunca invocou que a sentença criminal junta, integrasse a definição de documento, e, consequentemente, a previsão da alínea c) do art. 771° do Código de Processo Civil.

G) - Com efeito, se atentarmos na alegação da recorrente, resulta que a mesma sustentou a falsidade do depoimento da testemunha CC – alínea b) do art. 771º do Código de Processo Civil, com base em tal sentença, requerendo ainda a produção suplementar de prova.

H) - Assim, ao decidir do modo que decidiu, o tribunal recorrido, salvo o devido respeito, interpretou erradamente e/ou violou, o conjugadamente disposto nas alíneas b) e c) do art. 771° do Código de Processo Civil.

I) - No que à questão de saber se o fundamento vertido naquela douta decisão, e que poderemos apelidar de “testemunha versus arguido”, é válido e/ou suficiente para a rejeição do recurso de revisão oportuna e atempadamente interposto, não pode a recorrente conformar-se com o entendimento do tribunal recorrido.

J) - Atendendo a que o arguido foi condenado em sede criminal pela falsificação do título dado à execução, por haver aposto no mesmo a assinatura da recorrente, que imitou – cuja sentença em si mesma não foi posta em crise pelo tribunal recorrido, entende a apelante que não colhe a interpretação exarada nas decisões em crise.

K) - Tal interpretação faz tábua rasa do que, como fundamento do recurso de revisão, preceitua a alínea b) do art. 771° do Código de Processo Civil – atenta a qual “a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão nos seguintes casos: b) quando se verifique a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos, que possam em qualquer dos casos ter determinado a decisão a rever.”.

L) - Ora, no caso em apreço, entende a recorrente que inequívoco se torna da análise da sentença criminal que serve de base ao recurso de revisão oportunamente apresentado:

- a falsidade da letra de câmbio que constitui o título executivo nos autos principais e que cuja veracidade da assinatura ali atribuída à recorrente fundamentou a prolação da douta sentença de embargos de executada;
- a falsidade do depoimento de uma das testemunhas ouvidas em sede de julgamento aos embargos de executada, e que fundamentou de igual modo a prolação da mencionada sentença.

M) - E tudo para concluir que, se dúvidas pairaram sobre o tribunal recorrido acerca da tramitação processual no âmbito da sentença criminal que fundamentava a pretendida revisão, seja porque o ali arguido beneficiava da faculdade de, ao não prestar juramento, faltar à verdade, seja porque entendeu aquele tribunal dentro dos poderes que a lei lhe confere – v.g, entre outros, o art. 340º, n°1, do Código de Processo Penal, não realizar qualquer prova pericial à letra e assinatura apostas no título em questão, jamais poderia o mesmo decidir in limine o indeferimento do recurso de revisão, como efectivamente veio a suceder.

N) - Com efeito, os vícios invocados na petição inicial de recurso de revisão não se verificavam em relação ao órgão judicativo, mas em relação aos meios de prova – o próprio título dado à execução que é falso por haver sido falsificado, e o depoimento da testemunha que procedeu àquela falsificação.

O) - Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido interpretou erradamente e/ou violou o disposto na alínea b) do art. 771° do Código de Processo Civil, bem como toda a ratio do instituto do recurso extraordinário de revisão.

P) - Por outro lado, e relativamente questão de saber se estava o tribunal recorrido obrigado, ou não, a ordenar a produção de prova suplementar, mormente aquela que se encontra indicada na petição inicial de recurso de revisão tendo em vista a boa e justa decisão da questão em apreço, sempre se dirá que a mesma entronca com a que se acabou de analisar.

Q) - Desde logo se poderá concluir que, na eventualidade de ser cumprida a própria tramitação processual do presente recurso de revisão, sempre poderia ser ouvida a testemunha CC, a qual, como tal (e não como arguido) teria obrigatoriamente de prestar juramento e esclarecer da falsidade do título dado à execução e/ou da falsidade do depoimento anteriormente prestado – com todos os efeitos daí decorrentes.

R) – Bem como de igual modo poderia (e seguramente seria, até porque o conhecimento da falsidade do título é, para a recorrente recente) requerida a prova pericial à letra e assinatura que se, atribuídas à apelante, se encontram apostas no título dado á execução.

S) - De resto, e na senda de tal formalismo processual, cuidou a recorrente de, por mera cautela de patrocínio (e pese embora por antecipação ao tempo e locais próprios), requerer ao tribunal recorrido a produção da prova testemunhal (e sempre prejuízo de qualquer outra) que, em seu modesto entender, deveria ser produzida, o que não mereceu qualquer pronúncia por parte daquele, pelo que entende assim a recorrente que violado se mostra o formalismo processual resultante do invocado fundamento do presente recurso de revisão – os termos do processo sumário.

T) - Bem como entende a recorrente que, ao não se pronunciar o tribunal recorrido sobre a produção da prova testemunhal requerida, e, consequentemente, ao não ordenar a respectiva produção (bem como quaisquer outras que ao caso se afigurassem necessária), está-se não só a cercear o respectivo direito processual de produzir a respectiva prova sobre os pontos de facto controvertidos, mas de igual modo a violar o poder dever do tribunal em determinar a obtenção de prova necessária à descoberta da verdade material e cabal esclarecimento da questão suscitada.

U) - De tal modo, deveria o tribunal a quo ter ordenado a produção da prova requerida nos termos do conjugadamente disposto nos arts. 775°, n°2, 787° e 508° a 512°-A, todos do citado diploma legal, o que, a não ter sucedido, acarretou a violação e/ou errada interpretação dos citados preceitos.

V) - Acresce ainda que, ao não se pronunciar o tribunal recorrido sobre a produção de prova testemunhal requerida na petição inicial de recurso de revisão, verificada se mostra a nulidade prevista na alínea d) do nº1 do art. 668º do Código de Processo Civil que expressamente se invoca;

X) - O direito as partes a verem produzida prova sobre as questões suscitadas, ou, em alternativa, a verem apreciadas e fundamentadas as decisões que sobre a mesma recaia, faz parte do núcleo essencial das garantias processuais exigidas pelos princípios jurídico-constitucionais atinentes ao direito a tutela efectiva – a que alude o n°1 do art. 20° da Constituição da República Portuguesa, que o despacho recorrido violou.

Pelo exposto, e sempre salvo o devido respeito, deve revogar-se o Douto Acórdão recorrido proferido pelo Tribunal “a quo” o qual deverá ser substituída por outra decisão que, julgue procedente o recurso de revisão oportunamente apresentado, ou, em alternativa, ordene que o mesmo prossiga os termos do processo declarativo sumário com a subsequente produção de prova, seguindo-se os ulteriores termos processuais.

A recorrida contra-alegou, batendo-se pela confirmação do Julgado.


Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou a seguinte matéria de facto:

I) - A sentença da 1ª Vara Mista, proferida a 20.6.03 no processo de Embargos deduzidos pela apelante à execução movida pela apelada, com base numa letra, foi proferida tendo por suporte a análise dos documentos aí juntos e o depoimento de várias testemunhas e de entre estas CC. [tal decisão como decorre da sua leitura julgou os embargos improcedentes].

II) – Tal decisão foi confirmada por acórdão desta Relação de 12.5.04, que transitou em julgado, junto aos autos, cujos dizeres se dão por reproduzidos.

III) – Refere-se em tal processo na fundamentação da matéria de facto (cfr. fls. 98 verso), que aquele CC:

“Declarou que a sociedade Bom Vinho era constituída por si e pela sua mulher.
A letra dada á execução foi, por si preenchida que a entregou à embargada.
Tal letra adveio à sua posse porque a encontrou em casa de sua mãe, a embargante, já assinada por esta no lugar do aceite e apoderou-se da mesma.
Esclareceu que tal letra estava em casa da mãe apenas com a assinatura desta no lugar do aceite...” […] “... apoderou-se dela e foi trocá-la pelos cheques”.

IV) – Na petição de embargos a apelante invocou designadamente o seguinte:

“...6. Acresce que, e no que à ora Embargante concerne, a mesma, em data que não se recorda, apenas e tão-somente apôs na letra de câmbio em apreço a respectiva assinatura.
7. O que fez no local destinado ao aceite.
8. E a pedido expresso de seu filho CC.
9. O qual apresentou assim à ora Embargante tal título cambiário em branco.
10. Desconhecendo, por conseguinte e em absoluto, a ora Embargante qual o fim concreto a que a mesma se destinava”.

V) - A apelante participou criminalmente contra CC a 17.3.04, conforme fls. 205 ss.

VI) – No processo comum singular n°422/04.8TAGMR, do 2° Juízo Criminal em que é ofendida AA e outro e arguido CC foi dado como provado que:

No dia 20 de Março de 2001, o arguido preencheu pelo seu próprio punho a letra de câmbio...dela fazendo figurar o dia 21.6.2001 como data de vencimento, o montante de 3.990.196$00 em algarismos e por extenso como sendo valor por ela titulada, o nome de AA como sacado e aceitante e cuja assinatura imitou e manuscreveu no lugar destinado ao aceite, o número de contribuinte desta última – 147384893, bem como o número da conta do Banco Montepio Geral, agência de Vizela, onde aquela deveria ser descontada e paga”.
O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos por que veio publicamente acusado, demonstrando em audiência arrependimento e vontade de aderir a um comportamento consentâneo com as imposições sociais”.

VII) – Na fundamentação de tal decisão consta:

“A convicção do Tribunal filiou-se desde logo nas declarações do próprio arguido, o qual confirmou na íntegra e sem reservas, duma forma totalmente convincente, de forma livre e fora de qualquer coacção, os factos por que vinha publicamente acusado”.

VIII) – Em tal processo não foi realizado exame nos autógrafos colhidos à apelante e a CC – fls. 95.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso importa saber:

- se a decisão deveria ter considerado procedente o recurso de revisão, por estar comprovada a existência de falsificação da letra de câmbio que foi dada à execução, face à confissão proferida em processo-crime movido ao falsificador, que assim prestou falsas declarações como testemunha no processo de embargos;

- se a decisão deveria ter ordenado a realização de diligências instrutórias para averiguação dos fundamentos da revisão, omissão essa, alegadamente, geradora de nulidade da decisão recorrida e violadora do princípio constitucional de acesso ao direito.

Vejamos:

À ora recorrente foi movida acção executiva por ter aceite uma letra de câmbio do saque da ora recorrida.

Nos embargos que deduziu à execução, a executada alegou ter aposto a sua assinatura no título, no local destinado ao aceite, a pedido do seu filho CC o qual apresentou o título à embargada “em branco” – cfr. arts. 7º a 9º da petição de embargos – certidão de fls. 222 a 224.

Os Embargos foram julgados improcedentes, sentença que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães – cfr. decisão de 12.5.2004, de fls. 315 a 328.

Nesse recurso foi reapreciada a matéria de facto tendo improcedido também a pretensão da recorrente.

Na fundamentação da recusa de alteração da matéria de facto no Acórdão recorrido pode ler-se, acerca do depoimento que nesse processo prestou o referido CC:

A testemunha CC afirmou que…a letra dada à execução foi por si preenchida e entregue à embargada.
Tal letra adveio à sua posse porque a encontrou em casa de sua mãe, a embargante, já assinada por esta no lugar do aceite e apoderou-se da mesma.
Esclareceu que tal letra estava em casa da mãe apenas com a assinatura desta no lugar do aceite, para que o pai também a assinasse, para resolver assuntos dos seus pais.”. (sublinhámos).

Desde logo, resulta que a versão da embargante e do seu filho, enquanto testemunha, foram coincidentes – o aceite foi dado pela embargante.

Não obstante, a embargante apresentou, depois, queixa-crime por crime de falsificação de documento – art. 265º, nº1, al. a) e 3 do Código Penal, tendo o arguido sido condenado, em 24.10.2005, pela prática de tal crime por sentença de fls. 61 a 68.

Como consta da motivação o arguido “confirmou na íntegra e sem reservas…os factos por que vinha publicamente acusado”.

Provou-se, além do mais, que – “No dia 20 de Março de 2001, o arguido preencheu pelo seu próprio punho a letra de câmbio cuja cópia consta de fls. 12, dela fazendo figurar o dia 21.06.2001 como data de vencimento, o montante de 3.990.196$00 em algarismos e por extenso como sendo o valor por ela titulada, o nome de AA como sacado e aceitante e cuja assinatura imitou e manuscreveu no lugar destinado ao aceite, o número de contribuinte desta última…”.

Não consta que tenha havido recurso de tal decisão.

Reportando-se a esta sentença, a requerente alegou no art. 18º da petição inicial:

“Ora, atento o teor da aludida douta sentença criminal, entende a ora recorrente verificar-se a previsão da citada alínea b) do art. 771º, ou seja, a existência de falsidade de documento – o próprio título dado à execução –, bem como a existência de falsidade de depoimento – do Arguido condenado pela prática do crime de falsificação de documento, na qualidade de Testemunha dos embargos”.

Prosaicamente, e em linguagem chã, poder-se-ia dizer que João Vaz foi sacrificado em denúncia-crime pela própria mãe, faltou à Verdade ou, como testemunha no processo de embargos, ou, como arguido no processo-crime, aqui “imolado” pela fulgurante confissão do crime de falsificação.

Na decisão de 1ª Instância entrou-se numa interessante mas irrelevante abordagem do depoimento em processo cível, onde a testemunha que prestando juramento está obrigada a dizer a verdade, sob pena de incorrer em crime de falsas declarações – art. 559º, nº1, do Código de Processo Civil, e o processo-crime, onde o arguido não tem esse dever de responder com verdade “aos factos da culpa” – art. 343º, nº1, do CPP – parecendo colher-se a ideia que a Verdade estaria lá, no depoimento do processo cível, já que no crime e, passe a hiperbólica consideração, se pode mentir à vontade…compensaria mais mentir em processo-crime nesta perversa óptica…

Assim a acção foi julgada improcedente.

Se atentarmos nos fundamentos da revisão, a embargante não invocou como fundamento a sua confissão que assinara a letra no lugar destinado ao aceite – poderia fazê-lo como fundamento da revisão, art. 771º d) do Código de Processo Civil. Constitui fundamento do recurso de revisão a anulabilidade ou a nulidade da confissão em que a decisão se funda.

Tendo a executada/embargante afirmado nos embargos que assinou no local destinado ao aceite, assim se vinculando cambiariamente, poderia ter alegado erro ou outro vício de vontade, sustentando a invalidade de tal declaração contrária aos seus interesses (hoc sensu confissão).

A embargante veio alegar a falsidade do documento e do depoimento daquela testemunha, acentuando que a revisão não radica na existência da superveniente sentença-crime.

Com o devido respeito trata-se de um sofisma.

Se não fora a sentença-crime dar como provado que o arguido tinha cometido o crime de falsificação que, ademais sem peias e com evidente convicção confessou, como poderia a ora recorrente afirmar que a decisão revidenda se baseou em documento falsificado e num depoimento falso?

A Relação considerou improcedente o recurso, além do mais, por ter considerado que a recorrente ao ter apresentado denúncia-crime por falsificação não poderia deixar de saber do facto quando deduziu os embargos (em 21.12.2001 – ut. fls. 222.).

Mais considerou que a sentença-crime não constitui documento – al. c) do art. 771º do Código de Processo Civil e, logo, não é fundamento para o recurso de revisão.

Não merece censura o assim sentenciado, sendo, como dissemos, intransponível o facto de ser a decisão crime e o seu conteúdo e as suas consequências o real fundamento do recurso de revisão.

O recurso de revisão coloca em causa o princípio da intangibilidade do caso julgado a que estão ligadas inquestionáveis razões de certeza e segurança do direito com a inerente repercussão na paz social (1)

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“O recurso extraordinário de revisão é um expediente processual que faculta a quem tenha ficado vencido num processo anteriormente terminado, a sua reabertura, mediante a invocação de certas causas taxativamente indicadas na lei” – Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª ed, pág. 333.

Mais adiante o mesmo autor, citando Alberto dos Reis:

“Bem consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza.
Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora.
Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio.
A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio”.

Os fundamentos do recurso de revisão são os taxativamente previstos no art. 771º do Código de Processo Civil.

A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão nos seguintes casos:

“a) Quando se mostre, por sentença criminal passada em julgado, que foi proferida por prevaricação, concussão, peita, suborno ou corrupção do juiz ou de algum dos juízes que na decisão intervieram;

b) Quando se verifique a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos, que possam em qualquer dos casos ter determinado a decisão a rever. A falsidade de documento ou acto judicial não é, todavia, fundamento de revisão se a matéria tiver sido discutida no processo em que foi proferida a decisão a rever;

c) Quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;

d) Quando se verifique a nulidade ou a anulabilidade da confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundasse;

e) Quando, tendo corrido a acção e a execução à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que faltou a sua citação ou é nula a citação feita;

f) Quando seja contrária a outra que constitua caso julgado para as partes, formado anteriormente”. (2)

Como antes dissemos, pese embora a argumentação da recorrente, em rigor, a sua pretensão assenta na sentença-crime porque, ela mesmo comprova juridicamente a existência de crime de falsificação da letra dada à execução, e cuja eficácia como título executivo foi posta em causa pela dedução de embargos de executado, onde apesar de tudo não negou a autoria da assinatura no lugar destinado ao aceite, e evidencia, ainda, a falsidade do depoimento da testemunha CC.

No Acórdão deste Supremo Tribunal de 17.1.2006 – Proc. 05A3701 – in www.dgsi.pt – de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Azevedo Ramos – pode ler-se:

“Para servir de fundamento à revisão “é necessário que o documento, além do carácter da superveniência, faça prova de um facto inconciliável com a decisão a rever, isto é, que só por ele se verifique ter esta assentado numa errada averiguação de facto relevante para o julgamento de direito “ (Rodrigues Bastos, Notas ao Código do Processo Civil, Vol. III, 3ª ed., pág. 319).
Alberto dos Reis (Código do Processo Civil Anotado, Vol. VI, pág. 357) também ensina.
“O magistrado para julgar se o documento é decisivo, deverá pô-lo em relação com o mérito da causa, deverá proceder ao exame do mérito e indagar qual teria sido o êxito da causa se o documento houvesse sido apresentado.
Feito este exame, ou o magistrado se convence de que se o documento estivesse no processo, a sentença teria sido diversa e, neste caso, deve admitir a revogação; ou se convence de que, não obstante a produção do documento, a sentença seria a mesma, porque assenta sobre outras bases e está apoiada em razões independentes do documento – e neste caso deve repelir a revogação”.

Mas, mesmo que assim não se pudesse considerar, o facto de ter sido a ora recorrente a apresentar denúncia-crime contra o seu filho, pelo crime de falsificação, e não tendo alegado, que só soubera de tal falsificação, posteriormente, à dedução dos embargos, é da maior relevância.

Deveria ter suscitado a questão da falsidade nos embargos, não o podendo fazer no recurso de revisão.

Como se pode ler, in “Código de Processo Civil Anotado” – Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, vol.3º, pág. 197:

“Se a parte teve conhecimento da falsidade durante o processo, devia ter suscitado a questão perante o tribunal, sob pena de preclusão, não sendo possível retomar a questão no recurso extraordinário de revisão” – Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado” cit., VI, 346-347; Amâncio Ferreira, “Manual” págs. 340-341.

Sustenta a recorrente que o processo deveria, na fase rescindente ter seguido, após a resposta da requerida, os termos do processo sumário para averiguação da matéria atinente às alegadas falsidades – art. 775º, nº2, do Código de Processo Civil.

Esta norma foi introduzida pelo DL.38/2003, de 8 de Março, que, retomando o regime processual do Código de Processo Civil de 1939, dispensou a exigência de prévia acção judicial autónoma destinada a verificar a falsidade de um meio de prova, ou acto judicial; tal prova pode ser feita no recurso extraordinário de revisão.

A prova da falsidade de depoimentos testemunhais pode, agora, ser feita na fase rescindente do recurso extraordinário de revisão.

No caso em apreço, a recorrente afirma que na fase de instrução sempre poderia a testemunha CC esclarecer acerca da falsidade do título e do seu depoimento.

Com o devido respeito, o princípio da economia processual não é compaginável com tal pretensão.

Numa perspectiva estritamente formal poder-se-ia abrir essa fase processual mas, tendo a testemunha confessado em processo-crime que falsificou o documento e, “ipso facto”, que faltou à verdade quando depôs como testemunha no processo de embargos, não se antevê qual a utilidade da realização de diligências em fase instrutória, como o exame pericial à letra e assinatura; pois se, depois daquilo que foi a actuação da ora recorrente (confessando o facto que agora pretende negar) e da testemunha, negando o que antes afirmou, ao ponto de ser condenada por crime de falsificação, fácil é antever que nenhum contributo probatório seria dado ao esclarecimento dos factos atinentes às falsidades, fundamento da revisão da sentença.

Deste modo, concluímos que, sendo inútil a prática de actos instrutórios, nenhuma nulidade foi cometida ao não se ordenar a tramitação prevista no citado normativo, não resultando violado o art. 668º, nº1, d) do Código de Processo Civil, nem, tão pouco, o art. 20º, nº1, da Constituição da República, na vertente da tutela efectiva.

O citado normativo estatui no seu nº1 – “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.

Na “Constituição da República Portuguesa Anotada” – Gomes Canotilho e Vital Moreira, págs. 416/417 escrevem:

“A imposição constitucional da tutela jurisdicional efectiva impende, em primeiro lugar, sobre o legislador, que a deve tomar em consideração na organização dos tribunais e no recorte dos instrumentos processuais, sendo-lhe vedado: (1) a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais; (2) a criação de “situações de indefesa” originadas por conflitos de competência negativos entre vários tribunais.
O princípio da tutela judicial efectiva encontra outras refracções no texto constitucional…”.

Mais adiante citam, como exemplo de tutela efectiva, “o direito à decisão judicial em sede de processo civil com prevalência da decisão de fundo sobre a mera decisão de forma e com a adopção do princípio da adequação formal – (cfr. Código de Processo Civil, art. 265°,nº2)”.

Face às especificidades da causa, e ao modo como litígio se recorta, afigura-se-nos que, atento os princípios da economia processual e de adequação formal, nenhum direito ou garantia da recorrente foi afectado pelo facto de não terem sido acolhidas as diligências por si requeridas, possíveis de realização na inerente tramitação do processo (art. 775º, nº2, do Código de Processo Civil), não tendo sido violado o direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20°, n.º1, da Lei Fundamental.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Custas pela recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Novembro de 2007

Fonseca Ramos (Relator)

Rui Maurício
Cardoso de Albuquerque

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(1) Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, nova edição revista e actualizada pelo Dr. Herculano Esteves, Coimbra, 1976, págs. 305/306, alude a “razão de certeza ou segurança jurídica” nos seguintes termos:
“Sem o caso julgado material estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa – fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas. Seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse constantemente que defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais com a possibilidade de nalgum dos novos processos eles lhe serem negados pela respectiva sentença. Não se trata propriamente de a lei ter como verdadeiro o juízo – a operação intelectual – que a sentença pressupõe. O caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade, por força da qual, como diziam os antigos, a sentença faça do branco preto e do quadrado redondo (“facit de albo nigrum,... aequat quadrata rotundis...”) ou transforme o falso em verdadeiro (falsumque mutat in vero).
Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculante infrangível ao acto de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica, e portanto os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei (Chiovenda). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável.
Vê-se, portanto, que a finalidade do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objectivo ou a actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes. É também a segurança – a paz social (Schönke).”

(2) ”. (Redacção dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março) – [em itálico o preceito indicado pela recorrente com relevância para apreciação do caso].