Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A760
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
IRS
Nº do Documento: SJ20070327007601
Data do Acordão: 03/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1) O principio da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, razão pela qual é inconstitucional a norma que, por sua natureza, obvie de forma intolerável ou arbitrária àquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos, a comunidade e o direito têm de respeitar.
2) O artigo 111º do CIRS, se não interpretado como abrangendo privilégio imobiliário geral do crédito sobre hipoteca, não viola o principio da confiança.
3) O crédito de IRS a que se refere o artigo 111º do CIRS reporta-se aos 3 anos imediatamente anteriores à penhora ou acto equivalente.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A “Caixa Geral de Depósitos, SA” intentou acção executiva, na 2ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra AA.
O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, reclamou créditos no valor total de 8.893,06 euros de IRS, sendo 187,84 de 1998, com juros vencidos, até 31 de Janeiro de 2004, de 67,62 e vincendos, desde 1 de Fevereiro de 2004, bem como de 6351,18 de 1995, com juros vencidos, de 2.286,42, até 31 de Janeiro de 2004 e vincendos desde 1 de Fevereiro de 2004.

A exequente impugnou os créditos alegando a inconstitucionalidade do artigo 111º do Código do IRS, que consagra o privilégio creditório, e o ter decorrido o prazo, com termo em 23 de Janeiro de 2004, para o accionar.

Os créditos reclamados foram graduados em primeiro lugar.

A exequente apelou, tendo a Relação de Lisboa negado provimento ao recurso.

Pede, agora, revista para concluir:

- O artigo 11º do CIRS viola o princípio da confiança previsto no artigo 2º da CRP, o que determina a sua inconstitucionalidade.

- O artigo 111º do CIRS permite ao Fisco exercer um direito de garantia, não registável, sobre bens que constituem a garantia de créditos de outros credores (comuns).

- Depois do credor comum e/ou até o Tribunal onde decorre a execução terem confiado que o bem penhorado é suficiente para o pagamento da quantia exequenda, não é razoável/fundado que este mesmo credor seja surpreendido com uma graduação de créditos que dá prevalência ao pagamento de créditos que beneficiam de privilégio mobiliário geral, quando, até à reclamação de créditos não era possível ao credor comum obter informação sobre a existência deste crédito, por forma a tomar a adequada/proporcional decisão relativamente à estratégia com vista ao ressarcimento do seu crédito.

- O artigo 111º do CIRS é uma norma arbitrária, irrazoável dado que fomenta uma cobrança não célere das receitas do Estado, o que necessariamente contende com os argumentos invocados por quem defende a constitucionalidade dessa norma, os quais justificam o postergar do principio da “par conditio creditorum” no direito à cobrança efectiva dos impostos, com vista à realização das múltiplas funções do Estado.

- Celeridade na actuação do Estado com vista à cobrança dos seus créditos que é promovida, por exemplo, no artigo 97º nº 1 alínea a) do CIRE, sob pena de ver afastados os seus privilégios creditórios.

- O artigo 111º do CIRS viola, ainda, o principio da igualdade das partes no processo ou “principio da igualdade de armas”, decorrente do principio da igualdade objecto de tutela constitucional (artigo 13º da CRP) e civil (artigo 3º A do CC), o que reforça a inconstitucionalidade de tal norma.

- De facto, a administração fiscal dispõe do processo executivo fiscal para promover a cobrança coerciva dos seus créditos, processo executivo este que é dirigido pela própria, podendo dispor de informações acerca da situação patrimonial do devedor que os credores comuns não podem aceder.

- O regulado no artigo 111º do CIRS permite/fomenta que o Estado não promova a execução fiscal dos seus créditos, adiando a cobrança dos mesmos por vários anos, acumulando juros, ficando a aguardar que os credores particulares promovam e suportem os custos com a averiguação e penhora de bens para, depois de efectivada a penhora, confortavelmente se limitarem a reclamar o seu crédito invocando tal privilégio creditório.

- Deste modo, o privilégio creditório mobiliário geral, previsto no artigo 111º do CIRS, traduz uma desigualdade de tratamento discriminatória relativamente aos credores particulares.

- O prazo de 3 anos, indicado no artigo 111º do CIRS, conta-se a partir da reclamação de créditos e não a contar da data da penhora.

- A confirmar tal interpretação, temos as diferentes redacções dos artigos 111º do CIRS, 736º e 744º do CC, 11º do DL nº 103/90 de 9 de Maio e 97º nº 1, alínea a) do CIRE, no que tange ao momento de constituição dos privilégios creditórios gerais.

- Assim, tendo a Fazenda Nacional apresentado a sua reclamação de créditos a 23/01/2004, apenas poderia ter reclamado os créditos fiscais relativos ao IRS dos anos de 2003, 2002 e 2001.

Contra alegou o Digno Magistrado do Ministério Público em defesa do julgado.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Principio da confiança.
2- Cômputo do prazo.
3- Conclusões.

1- Principio da confiança.

Em primeira linha, está em causa o artigo 111º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, a que a recorrente assaca inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança.
Estatui o preceito: “Para pagamento do IRS relativo aos 3 últimos anos, a Fazenda Nacional goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário geral sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente”.
O principio da protecção da confiança, basilar no Estado de Direito democrático, implica um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas jurídicas que lhe são criadas, não admitindo as afectações arbitrárias ou desproporcionalmente gravosas com as quais, o cidadão comum, minimamente avisado, não pode razoavelmente contar. (Nesta linha, e v.g, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 303/90, 625/98 e 160/00).

Há que não desvalorizar o planeamento da vida dos cidadãos, em termos de não lhe surgirem obstáculos, imprevistos e irrazoáveis, no seu dia a dia.
As expectativas legitimamente fundadas, tem ínsitas um mínimo de certeza e de segurança, para que a vida possa decorrer sem sobressaltos, com confiança no papel amortecedor de situações inesperadas que o Estado de Direito deve ter.
Há que proteger todos os valores com dignidade constitucional mas sempre evitando situações de desproporção.
O principio “per conditio creditorum” não pode ser erigido em regra absoluta, embora seja um dos pressupostos da igualdade de tratamento dos credores no seu confronto com o direito à solvabilidade do património dos devedores como garante do cumprimento da obrigação.
Certo, porém, que alguns desvios (ou recurso a “solução anómala na geometria dos conceitos” para utilizar a expressão do Prof. Almeida Costa --apud “Direito das Obrigações”, 900- quando estuda a figura do privilégio imobiliário geral) são justificados, quer numa perspectiva de garantia pretérita antes publicitada por registo (v.g. hipoteca) ou quando os créditos reclamados são indispensáveis á realização de fins constitucionalmente relevantes, como seja a distribuição equitativa dos rendimentos lograda através de impostos.
Se o artigo 111º do CIRS (antes artigo 104º do DL nº 442-A/88) foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral, tal aconteceu quando interpretado no sentido de o privilégio imobiliário geral nele conferido preferir à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil (cf. Acórdão TC nº 362/02 de 17 de Setembro de 2002).
Porém, “in casu”, o confronto não é com hipoteca, ou, sequer, com qualquer direito real de gozo, mas, e apenas, com penhora – resultante de crédito comum – sendo que, como escreveu o Cons. Tavares da Costa no voto de vencido apendiculado ao Acórdão TC nº 109/02, de 5 de Março de 2002 – depois recuperado no citado Acórdão nº 362/02 – o IRS “é um imposto sobre o rendimento e se é certo que o texto constitucional, ao permitir o carácter globalizante da tributação do rendimento, não definiu, de modo esgotante, o seu modelo, não menos exacto é que neste imposto visa-se alcançar a inclusão, na sua incidência, de todos os rendimentos de alguma forma advindos do trabalho.”
Ademais, e como atrás se acenou, considerando não se estar em confronto com uma hipoteca, no caso existe uma mera prioridade a beneficiar o crédito de IRS com também uma simples prioridade na execução do património debitório, em relação aos credores comuns, o que, aliás, é tradição no nosso direito, e por isso não surpreendente mas expectável, quanto aos créditos tributários – artigos 747º nº1 alínea a) e 748º nº1 alíneas a) e b), conjugadas com os artigos 750º e 751º todos do Código Civil.
Não há, por conseguinte, qualquer excesso ou intolerável desproporção, geradora de uma iníqua diferença de tratamento do credor comum ou violadora do princípio da confiança que estabiliza a vida dos indivíduos.
Destarte, improcede o primeiro segmento da alegação, valendo, no eventualmente omisso, os argumentos do Acórdão recorrido.

2- Cômputo do prazo.

Não se censura a decisão recorrida quanto à definição do “terminus a quo” do prazo a que se refere o artigo 111º do CIRS, já que inexiste caducidade da reclamação.
Como explica o Cons. Salvador da Costa, o crédito de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares reporta-se aos 3 anos imediatamente anteriores à penhora ou acto equivalente, e não à data da sua liquidação ou inscrição para cobrança. (apud “Concurso de Credores”, 3ª ed, 1709; cf. no mesmo sentido, o Dr. Miguel Lucas Pires, in “Dos privilégios Creditórios: Regime jurídico e sua Influencia no Concurso de Credores”, 122, que refere: “De forma idêntica se exprimem os artigos 111º do CIRS e 108º do CIRC, embora nestes dois casos o momento relevante para determinar o objecto dos privilégios (mobiliário e imobiliário) gerais seja o da penhora ou acto equivalente.”
E adita em nota (ob. cit., 122, nota 297) que “o momento relevante para determinar a operatividade dos privilégios gerais e a oponibilidade quanto a eles de outros direitos reais será o da penhora ou acto equivalente – não o da instauração do processo executivo – por só com a realização destes actos de identificarem os bens sobre os quais se fará valer aquela garantia, sendo preferível, por isso, a redacção dos artigos 111º do CIRS e 108º do CIRC.”
E continua (ob. cit., pag 312): “Melhor andou o legislador quando o que está em causa é saber se é constitucionalmente admissível que o privilégio imobiliário geral atribuído pela disposição em causa aos créditos da segurança social possa preferir, já não à hipoteca, mas à garantia conferida pela penhora ao credor comum respectivamente) que limitou o privilégio aos bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora para o pagamento do imposto relativo aos últimos 3 anos. Daí que estes últimos 3 anos são os imediatamente àquele em que foi efectuada a penhora ou acto equivalente.”; cf. ainda, o Acórdão do STA, de 14 de Maio de 1997 – 021589).

Adere-se, sem qualquer reserva, a este entendimento, o que implica o naufragar do último segmento da impugnação recursória.

3- Conclusões.

De concluir que:

a) O principio da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, razão pela qual é inconstitucional a norma que, por sua natureza, obvie de forma intolerável ou arbitrária àquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos, a comunidade e o direito têm de respeitar.
b) O artigo 111º do CIRS, se não interpretado como abrangendo privilégio imobiliário geral do crédito sobre hipoteca, não viola o principio da confiança.
c) O crédito de IRS a que se refere o artigo 111º do CIRS reporta-se aos 3 anos imediatamente anteriores à penhora ou acto equivalente.

Pelo exposto, acordam negar a revista.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Março de 2007

Sebastião Póvoas (relator)
Moreira Alves
Alves Velho