Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28193/20.3T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PROPRIEDADE INTELECTUAL
AÇÃO DE ANULAÇÃO
DELIBERAÇÃO
ASSOCIAÇÃO
DIREITOS DE AUTOR
DIREITO SUBSTANTIVO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
EXCEÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (PROPRIEDADE INTELECTUAL)
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, outrossim, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.

II. O Tribunal da Propriedade Intelectual é o materialmente competente para conhecer de uma ação em que se pede a anulação de uma deliberação, tomada em reunião, pela Direção da Ré, sobre a distribuição de verbas no Departamento de Cópia Gráfica e Reprográfica (na vertente Autores), na medida em que o que é discutido extravasa a simples divergência no domínio procedimental entre duas associadas, não sendo possível ajuizar da legalidade da conduta da Direção da Ré, ignorando o fundamento substantivo do direito a que se arroga, ou seja, não é possível prescindir, como questão jurídica subjacente necessária para aferir da legalidade da anulação da deliberação, do seu fundamento substantivo, da concreta e indispensável análise do regime consignado na Lei da Cópia Privada e do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos a que os Estatutos e o Regulamento interno da Ré se encontram intimamente subordinados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO

  

1. Visapress - Gestão de Conteúdos dos Media demandou Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada pedindo a anulação da deliberação tomada pela Direção da Ré na reunião realizada no dia 3 de dezembro de 2020, no âmbito do Ponto 4 da respetiva ordem de trabalhos, no que toca à distribuição de verbas do Departamento de Cópia Gráfica e Reprográfica (na vertente autores), com fundamento na violação direta dos Estatutos da Ré (artºs. 8º n.º 4 e 13º n.º 2 c) do seu Regulamento Interno de Distribuição (art.º 6º, pontos 2 e 2.1) e respetivo Anexo C (art.º 5º n.º 1 c) e u), nos termos conjugados do disposto nos artºs. 177º e 287º do Código Civil, e artºs. 58º n.º 1 a) e 41º n.º 3 do Código Comercial (estes aplicáveis analogicamente).

Articulou, com utilidade, que é a entidade de gestão coletiva que representa os direitos de autor e direitos conexos dos editores dos principais jornais e revistas (publicações periódicas) do mercado nacional, e a Ré é uma pessoa coletiva de utilidade pública e sem fins lucrativos, constituída sob a forma de associação ao abrigo da Lei Cópia Privada e tem por objeto a cobrança, gestão e distribuição das quantias previstas no art.º 82 do CDADC (Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos), sendo constituída por todas as entidades de gestão coletiva que, em Portugal, representam os autores, artistas, intérpretes ou executantes, produtores de fonogramas, os produtores e os editores.

A Autora é associada da Ré, desde 2010, integrando o Departamento de Cópia Gráfica e Reprográfica e é membro da Direção da ré, desde novembro de 2015.

No dia 26 de junho de 2020 reuniu a Direção da Ré para deliberar entre outros assuntos, sobre o Ponto 1 (Ordem de Trabalhos)

- Análise e votação da proposta da Associada SPA sobre a distribuição de Autores no Departamento de Cópia Gráfica e Reprográfica.

Entrando na apreciação do Ponto 1 da ordem de Trabalhos, foi analisada a proposta apresentada pela associação SPA, remetida à Ré, em 22 de junho de 2020, nos seguintes termos:

“No transacto ano 2019, a SPA acordou com a Visapress as percentagens do valor cobrado pela Agecop na área do Departamento da Cópia Gráfica e Reprográfica que a cada uma delas seriam distribuídas. Aquando desse acordo ficou, igualmente, expresso que este entendimento teria efeitos apenas para as distribuições habituais da Agecop durante o ano de 2019 (Junho e Dezembro).

Foi um entendimento transitório e pontual.

Em face do exposto o acordo acima referido deixou de produzir qualquer efeito, pelo que não terá a sua aplicação no ano de 2020 e seguintes.

... Do parecer jurídico da Agecop resulta claro que a totalidade dos valores referentes à cópia gráfica e reprográfica cobrados pela Agecop deverão ser distribuídos integralmente à SPA.

É isso que a SPA reclama e solicita que a Direcção da Agecop possa decidir em conformidade. Naturalmente, dado que a cópia privada está sujeita ao regime da gestão colectiva obrigatória, qualquer titular de direitos da Visapress, ou de outras entidades, podem requerer à SPA o pagamento das compensações equitativas que lhe forem devidas, desde que cumpram os termos da lei”.

Apresentada a proposta à votação, esta mereceu os votos favoráveis da SPA, APEL, AudioGest e GDA e o voto contra da autora Visapress, tendo a Autora, após a votação, proferido uma declaração de voto. E por entender que as deliberações aprovadas pela Direção da Ré na reunião de 26 de junho de 2020, são inválidas, por violarem os Estatutos da Agecop, o Regulamento de Distribuição e anexo C - no respeitante à atribuição integral à SPA da totalidade dos valores cobrados pela Agecop referentes à cópia gráfica e reprográfica na componente “Autores” e à subsequente decisão quanto à sua implementação - instaurou, em 27 de julho de 2020, ação declarativa solicitando a anulação destas deliberações sociais da Direção da Ré (proc. 15850/20.3T8LSB).

Não obstante, a Ré, posteriormente, em 3 de dezembro de 2020, veio a aprovar nova deliberação, destacando-se o Ponto 4 da ordem de trabalhos - Distribuição de Dezembro de 2020 - nos seguintes termos:

“…No departamento da cópia gráfica e reprográfica, da verba global distribuível, 50% é atribuída aos organismos representativos dos autores (desta verba a SPA fica com a totalidade 100%), sendo que os restantes 50%, são atribuídos aos organismos representativos dos Editores (destes, 60% cabem à APEL e 40% à Visapress)”.

Submetida à votação, a proposta teve a favor os votos da SPA, APEL, AudioGest e GDA e o voto contra da Visapress, tendo esta última lavrado voto nos termos do anterior (26 de junho de 2020).

A deliberação de 3 de dezembro de 2020, da Direção da Ré, por referência à distribuição ordinária reportada à totalidade das quantias recebidas entre 1 de junho de 2020 e 30 de novembro de 2020, reproduziu a deliberação anterior tomada, em 26 de junho de 2020, operando uma distribuição em termos em tudo idênticos e sujeita aos mesmos critérios utilizados naquela anterior.

Ora, a Ré, no caso de divergência ente duas das suas associadas - SPA e a Autora Visapress (que reclamam em simultâneo a representatividade do mesmo titular de direito) - não implementou o procedimento previsto para a resolução destas situações de divergência nos respetivos Estatutos e no Regulamento de Distribuição e respetivo Anexo C, optando, antes, por atribuir a totalidade da compensação equitativa cobrada a uma das partes em divergência (no caso à SPA), tomando posição quanto à divergência latente entre associados, em detrimento da Autora, em clara violação dos Estatutos, Regulamento de Distribuição e o respectivo Anexo C, o que constitui um vício que invalida as deliberações em análise e deverá determinar a sua anulação.

Independentemente da sua opinião, impunha-se à Ré, perante o conflito entre as suas associadas desencadear o procedimento estatutário em conformidade.

2. Regularmente citada, apresentou a Ré contestação, excecionando a inadmissibilidade da impugnação e a incompetência absoluta do tribunal, outrossim, impugnando o alegado pela Autora.

No que à incompetência absoluta concerne sustentou que face à causa de pedir, necessariamente associada ao regime jurídico dos direitos de autor e direitos conexos, bem como ao regime jurídico da cópia privada, impõe-se um juízo quanto à qualidade da Autora para efeitos da aplicação do próprio regime jurídico da cópia privada, daí que o tribunal competente é o tribunal da Propriedade Intelectual, ex vi art.º 111 a) e k) da LOSJ.

3. Em sede de despacho saneador foi proferida decisão que julgou improcedente a exceção arguida, declarando competente o Tribunal Cível, e não já o Tribunal da Propriedade Intelectual, porquanto o litígio, tal como apresentado, reporta-se à invalidade de determinada deliberação, resultante de inobservância de determinado formalismo.

4. Inconformada com o predito conhecimento da excepção de incompetência material, a Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal a quo conhecido do seu objeto, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi consignado:

“Concluindo:

- O conhecimento do pedido de anulação de uma deliberação social com fundamento em não cumprimento de normas Estatutárias e regulamentos, em caso de divergência entre associados (falta de implementação de um procedimento), não cabe na competência do Tribunal da Propriedade Intelectual, mas sim dos tribunais comuns.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a decisão. Custas pela apelante.”

5. Novamente irresignada, a Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada insurgiu-se contra a decisão proferida em 2.ª Instância, interpondo revista, aduzindo as seguintes conclusões.

“I.   A Recorrente interpõe o presente Recurso de Revista por não se conformar com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que - julgando improcedente o Recurso de Apelação apresentado pela Recorrente - confirmou a decisão proferida em 1ª instância quanto à competência material do Juízo Central Cível ... para a apreciação dos presentes autos, mais condenando a aqui Recorrente em custas;

II.   Tudo nos termos que constam do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 03.11.2022 e da Acta de audiência prévia realizada via WEBEX em 28.06.2022 (esta última objecto de Recurso de Apelação por a Recorrente considerar que a mesma violava o disposto nos artigos 96º, alínea a), 99º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2 e 577º, alínea a), todos do CPC e ainda o disposto no artigo 111º, nº 1, alíneas a) e k) da LOSJ), que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais;

III.  De facto, mal esteve o Tribunal da Relação de Lisboa ao decidir como decidiu, violando o Acórdão recorrido as regras de competência em razão da matéria e, particularmente o disposto no artigo 111º, nº 1, alíneas a) e k) da já referida LOSJ, bem como o disposto nos artigos 96º, alínea a), 99º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2 e 577º, alínea a), todos do CPC, artigos esses que interpreta e aplica de forma errónea, uma vez que o tribunal competente para apreciar os presentes autos é o Tribunal da Propriedade Intelectual;

IV.  Não obstante o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa ter confirmado, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, a Decisão proferida pelo Tribunal de 1ªinstância (existindo assim a denominada dupla conforme), o presente Recurso é admissível, nos termos das disposições conjugadas nomeadamente dos artigos 629º, nº 2, alínea a) e 671º, nº 3, ambos do CPC, pois tem como fundamento a violação das regras de competência em razão da matéria;

V. Assim, dispondo o artigo 629º, nº 2, alínea a) do CPC que “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado”, dúvidas não restam que o caso em apreço se enquadra no disposto na primeira parte do artigo 671º, nº 3 do citado CPC que refere “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância (…)”;

VI.  Pelo que o presente Recurso de Revista deve ser admitido e julgado por esse Douto Tribunal;

VII. Devendo o Acórdão proferido ser revogado, porquanto - não obstante o decidido nas duas instâncias - o Tribunal competente para julgar os presentes autos é o Tribunal da Propriedade Intelectual;

VIII. Na verdade - e tal como a Recorrente já tinha defendido no Recurso de Apelação – da Petição Inicial resulta claro que a pretensa invalidade da deliberação em causa nestes autos advém, no entender da Recorrida, da alegada violação dos procedimentos estabelecidos pela Recorrente em concretização do regime jurídico da cópia privada (Lei da Cópia Privada), em articulação com as próprias regras do CDADC;

IX.  Ou seja, resulta inequivocamente também da violação da lei, expressamente alegada pela Recorrida ao longo da sua Petição Inicial, não em “(…) forma de citação, contextualização e enquadramento, sem que tenha sido invocada qualquer violação destes diplomas (…)” como se refere no Acórdão recorrido (porque isso o defendeu a Recorrida nas suas Contra-Alegações) mas sim, e inequivocamente, para fundamentar a pretensão por si deduzida;

X.   E não faz qualquer sentido que a Recorrida diga que quando, na Petição Inicial, refere a “violação da lei” se está a referir aos artigos 177º e 287º do CC e aos artigos 58º, nº 1, alínea a) e 411º do CSC, e não à Lei de Cópia Privada ou do CDADC.

Ora vejamos,

XI.  Apesar da Recorrida referir, no artigo 7º da Petição Inicial, que “(…) para a apreciação do mérito dos presentes autos não é necessário fazer quaisquer interpretações quanto ao teor do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDADC) ou quanto ao regime plasmado na Lei da Copia Privada (LCP)”;

XII. De referir no artigo 9º da Petição Inicial, que a “causa de pedir nestes autos reporta à violação dos estatutos e de um regulamento interno de uma associação por não ter sido implementado um determinado procedimento aí previsto”;

XIII. E de referir no artigo 10º daquele articulado que “o pedido reporta à anulação de deliberação tomada pela Direção da Ré”;

XIV. Para concluir no artigo 11º da Petição Inicial que “Não está, pois, em apreciação uma causa de pedir que verse, em si mesma, sobre uma questão de direito de autor, sobre o regime jurídico da cópia privada, ou mesmo sobre o cumprimento ou incumprimento, validade, eficácia e interpretação de contratos e atos jurídicos que tenham por objeto a constituição, transmissão, oneração, disposição, licenciamento e autorização de utilização de direitos de autor, direitos conexos e direitos de propriedade industrial”;

XV. A verdade é que é a própria Recorrida, que, para fundamentar a sua pretensão, invoca por diversas vezes - para além dos Estatutos e Regulamentos Internos da Recorrente, e ainda o seu Anexo C) - o CDADC bem como a Lei da Cópia Privada;

XVI. Isso mesmo é o que resulta, nomeadamente, dos artigos 45º,62º e 63ºda Petição Inicial, nos quais a Recorrida invoca expressamente a titularidade de direitos de autor sobre publicações periódicas por parte dos seus associados como elemento integrante da factualidade por si descrita naquele articulado e juridicamente relevante;

XVII. E ainda o que resulta dos artigos 70º e 71º, ponto II, 74º e 81º da referida Petição Inicial, nos quais a Recorrida invoca expressamente ter a Recorrente violado a lei, aí se referindo, como claramente resulta da simples leitura dos mesmos, à Lei da Cópia Privada, em articulação com as normas do CDADC, nomeadamente as referidas nos artigos 45º, 62º e 63º da Petição Inicial;

XVIII. E a Recorrida alega intencionalmente existir tal violação da lei porquanto sabe que todos procedimentos internos da Recorrente - nomeadamente os seus Estatutos, o seu Regulamento de Distribuição e o respectivo Anexo C- resultam do que está estabelecido na Lei da Cópia Privada, em articulação com as próprias regras do CDADC;

XIX. É, assim, inequívoco e cristalino que - para a Recorrida, e como a mesma expressamente alega ao longo da sua Petição Inicial - a pretensa invalidade da deliberação de 03.12.2020, resultará da alegada violação dos procedimentos estabelecidos pela Recorrente em concretização do regime jurídico da cópia privada, em articulação com as próprias regras do CDADC, ou seja, resultará naturalmente também da violação da lei;

XX. Assim - e como, aliás já se tinha defendido em sede de Apelação - o Tribunal de 1ª instância errou ao decidir que “(…) o litígio, tal como apresentado na petição inicial, refere-se à (in)validade de determinada deliberação, resultante da (in)observância de determinado formalismo”, e errou ao decidir que “As causas da competência do Tribunal da Propriedade Intelectual que cabem o invocado art. 111º da Lei 62/2013 são aquelas que se prendem com o próprio conteúdo, âmbito e atribuição do direito de autor e direitos conexos e esta matéria não está em discussão, na medida em que, quando é posta uma ação de impugnação, o Tribunal fiscaliza a legalidade da deliberação e não o mérito da mesma, no sentido de considerar que o decidido foio melhor (ou não) para os interesses dos cooperadores e de acordo com a lei substantiva subjacente”;

XXI. Bem como errou a Relação de Lisboa ao confirmar tal Decisão, errou ao referir, nomeadamente, que “In casu, a causa de pedir traduz-se no incumprimento dos Estatutos e Regulamentos da ré, pelo facto de não ter implementado um determinado procedimento, neles previsto, em caso de divergência entre associados.”, errou ao referir que “Daqui se extrai, que o que está em causa é uma questão formal, ou seja, a de saber se foi ou não violado o procedimento estatutário em caso de divergência dos associados”, e errou ao referir que “(…) a apreciação desta questão, face ao alegado na p.i. (onde não foi suscitada a apreciação de qualquer direito de autor ou de qualquer matéria atinente ao regime jurídico da cópia privada e na qual as referências/citações do CDAC e LP são feitas em forma de citação, contextualização e enquadramento, sem que tenha sido invocada qualquer violação destes diplomas, nem estes foram chamados à colação/utilizados para fundamentar a pretensão deduzida), não pressupõe qualquer análise prévia das normas do CDAC e/ou LP (apreciação de questão material ou substantiva), ao invés do defendido pela apelante.”;

XXII. E errou porque, repita-se, da leitura da Petição Inicial resulta inequívoco que o pedido de “(in)validade de determinada deliberação” aí formulado tem como causa de pedir a conduta da Recorrente descrita nos autos que, entende a Recorrida, consubstanciará uma “(...) violação direta dos Estatutos da Ré, do seu Regulamento Interno de Distribuição e respectivo anexo, bem como da lei (...)”, violação da lei que é por diversas vezes alegada pela Recorrida na Petição Inicial;

XXIII. E não corresponde à verdade o que defendeu a Recorrida em sede de Contra-Alegações de Recurso de Apelação, ou seja, que “A Autora em lado algum da sua petição inicial invoca uma qualquer violação do CDADC ou da LCP ou destes diplomas se socorre para sustentar a sua pretensão”, tal como não faz qualquer sentido a alegação de que “A mera referência a «violação da Lei» não remete necessariamente para a LCP, pois há muitas outras leis passíveis de violação e que (…) são expressamente mencionadas na petição inicial (como já se referiu, CC e CSC)”;

XXIV. Ora, e tal como a Recorrente teve oportunidade de defender em sede de Contestação, e também no Recurso de Apelação anteriormente apresentado, como vem sendo entendimento desse Supremo Tribunal de Justiça (cfr. nomeadamente Acórdão do STJ de 18.09.2018, proc. n.º 21852/15.4T8PRT.S1, disponível em www.dgsi.pt), “(…) a causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo impetrante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC. A densificação da causa de pedir requer uma substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, que, para além de oferecer garantia de base do contraditório, sirva de ulterior delimitação objetiva do caso julgado. Todavia, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.”;

XXV. E inegável é que, no caso dos presentes autos, com vista à fixação deste quadro normativo da factualidade naturalística descrita pela Recorrida, esta - repita-se – invoca expressamente, para além dos Estatutos e Regulamentos Internos da Recorrente, e do seu Anexo C, a lei, ou seja, o regime jurídico da cópia privada (constante da Lei da Cópia Privada) e o CDADC - alegando, desde logo, e inequivocamente, que é por via desse diploma legal que lhe advém a titularidade de direito de autor a que se arroga para usufruir da compensação equitativa prevista na Lei da Cópia Privada e destinada aos autores - pelo que aqui se reitera o que já se defendeu no Recurso de Apelação, ou seja, que a conduta imputada na Petição Inicial pela Recorrida à Recorrente - e que no artigo 81º daquele articulado a Recorrida qualifica de “ilegal e contrária aos Estatutos” – sempre terá de ter o correcto enquadramento normativo face, não só aos Estatutos da Recorrente, mas essencialmente face ao regime jurídico da cópia privada (Lei da Cópia Privada) e ao CDADC;

XXVI. De facto, e como resulta da factualidade descrita na referida Petição Inicial, é por a Recorrida fazer determinada interpretação da Lei da Cópia Privada e do CDADC - interpretação essa que não tem qualquer cabimento face ao disposto naqueles diplomas - que defende que a Recorrente, conhecedora da existência da divergência que aquela tem com a SPA (que é a entidade de gestão colectiva dos direitos dos autores), deveria ter implementado o procedimento previsto no Anexo C ao Regulamento de Distribuição, previamente a qualquer distribuição dos valores cobrados com referência ao DCGR, na vertente de autores;

XXVII. Contrariamente, a posição da Recorrente - na sua qualidade de entidade gestora, constituída por todas as entidades de gestão colectiva que em Portugal representam os autores, os artistas, intérpretes e executantes, os produtores de fonogramas, os produtores de videogramas e os editores, que tem por objecto a cobrança, gestão e posterior distribuição pelas suas Associadas das quantias previstas no artigo 82º do CDADC, nos termos da Lei da Cópia Privada - é a de que tal procedimento não é aplicável, desde logo face ao que expressamente dispõe a já citada Lei da Cópia Privada conjugada com o disposto no CDADC;

XXVIII. Tudo como, aliás, resulta das declarações de voto da AUDIOGEST e da GDA, ambas Associadas da Recorrente e membros da Direcção da mesma, proferidas na reunião da Direcção da Recorrente de 26.06.2020 (cfr. doc. 3 junto à Petição Inicial) e que na reunião aqui em causa foram pelas mesmas reiteradas e dadas “por integralmente reproduzidas” (cfr. doc. 5 junto à Petição Inicial);

XXIX. De facto e tal como, aliás, a Recorrente teve oportunidade de esclarecer (em sede de Contestação e de reiterar no Recurso de Apelação por si apresentado), no seu entender e da interpretação que faz da Lei da Cópia Privada, conjugada com o disposto no CDADC - e que é a única possível face ao expressamente disposto naqueles diplomas e especialmente na citada Lei da Cópia Privada - a Recorrida VISAPRESS, enquanto entidade de gestão colectiva dos direitos dos editores de publicações periódicas que é (como foi expressamente reconhecido nos artigos 17º, 21º e 45º da Petição Inicial), não tem direito à compensação equitativa atribuída aos autores (não integrando esta categoria de “autores”);

XXX. Por essa razão a Recorrente entendeu não existir qualquer divergência a sanar ou reclamação duplicada que justificasse o procedimento especial previsto no referido Anexo C, previamente à distribuição das quantias em causa que fez de acordo com o disposto no artigo 7º da Lei da Cópia Privada;

XXXI. Resulta, assim, evidente que a factualidade alegada pela própria Recorrida como fundamento do efeito prático-jurídico visado - ou seja, a causa de pedir - está inequívoca e necessariamente associada ao regime jurídico da cópia privada(Lei da Cópia Privada), bem como ao regime jurídico dos direitos de autor e direitos conexos (CDADC);

XXXII. Impondo necessariamente, e desde logo, um juízo quanto à qualidade da Recorrida para efeitos de aplicação do próprio regime jurídico da cópia privada, no que à distribuição da compensação equitativa (na vertente autores), prevista no artigo 3º da Lei da Cópia Privada, diz respeito, e que está em causa nos presentes autos;

XXXIII. É inegável que nestes autos estão em causa questões de interpretação da Lei da Cópia Privada e questões de direitos de autor e de direitos conexos, que integram a própria causa de pedir;

XXXIV. Assim, o Acórdão ora recorrido interpreta e aplica erradamente a Lei, não fazendo qualquer sentido que se decida que nos presentes autos não está em discussão qualquer matéria que caiba na competência do Tribunal da Propriedade Intelectual porque “(…) o que está em causa é uma questão formal, ou seja, a de saber se foi ou não violado o procedimento estatutário em caso de divergência dos associados”, e que “(…) a apreciação desta questão, face ao alegado na p.i. (onde não foi suscitada a apreciação de qualquer direito de autor ou de qualquer matéria atinente ao regime jurídico da cópia privada e na qual as referências/citações do CDAC e LP são feitas em forma de citação, contextualização e enquadramento, sem que tenha sido invocada qualquer violação destes diplomas, nem estes foram chamados à colação/utilizados para fundamentar a pretensão deduzida), não pressupõe qualquer análise prévia das normas do CDAC e/ou LP (apreciação de questão material ou substantiva), ao invés do defendido pela apelante.(…)”;

XXXV. E não faz qualquer sentido porque no caso em apreço é evidente que qualquer decisão acerca da apelidada “questão formal” estará sempre dependente de uma prévia decisão acerca da apelidada “questão material ou substantiva”;

XXXVI. Qualquer decisão acerca da alegada ilegalidade da deliberação, resultante da alegada inobservância, por parte da Recorrente, de um determinado formalismo, estará sempre dependente de uma necessária e prévia análise e consequente decisão acerca da lei substantiva subjacente (Lei da Cópia Privada e CDADC);

XXXVII. Para se poder aferir da obrigatoriedade, ou não, da Recorrente desencadear os procedimentos alegados na Petição Inicial, previamente à deliberação em causa nestes autos, o Tribunal terá sempre i) de analisar e apreciar a qualidade e o direito de autor a que a Recorrida se arroga enquanto “entidade de gestão colectiva de direitos de autor e conexos dos editores de publicações periódicas”, ii) se tal qualidade lhe confere, ao abrigo do disposto na Lei da Cópia Privada e no CDADC, o direito a reclamar o recebimento de qualquer compensação equitativa destinada aos organismos representativos dos autores, e iii) de apreciar se, caso existam, tais eventuais direitos foram violados, e em que termos;

XXXVIII.  A este propósito, importa sublinhar que não faz qualquer sentido que se afirme – como afirmou a Recorrida nas suas Contra-alegações de Recurso - que, ao não recorrer ao mecanismo previsto no Anexo C ao Regulamento de Distribuição, a Recorrente terá entendido “que lhe competia decidir um diferendo sobre uma questão” que não era da sua competência;

XXXIX. Desde logo porque, como a Recorrida sabe, é pressuposto essencial da aplicação da regulamentação interna aprovada pela Recorrente - ao abrigo da Lei da Cópia Privada - que haja duas ou mais associadas a representar os titulares da mesma categoria de direitos nos termos da Lei da Cópia Privada e do nº 1 do artigo 6º do Regulamento de Distribuição, o que não aconteceu no caso em apreço;

XL. De facto, a Recorrida sempre, e só, se apresentou perante a Recorrente como “entidade de gestão colectiva de direitos de autor e conexos dos editores de publicações periódicas” (sendo nessa qualidade que é associada da Recorrente);

XLI. E em momento algum, se arrogou ou reivindicou, perante a Recorrente, a representação de jornalistas e/ou pessoas que escrevem em tais publicações periódicas;

XLII. Esses sim titulares de direitos de autor sobre as obras que integram as publicações periódicas, nos termos e para efeitos do disposto na Lei da Cópia Privada e, como tal, os únicos com direito a receber a compensação equitativa aí prevista para os autores;

XLIII. É a Lei da Cópia Privada, conjugada com o disposto no CDADC, que assim o determina, pelo que foi esta única possível interpretação da Lei da Cópia Privada, mais concretamente dos conceitos de “autor” e “editor” utilizados no artigo 7º deste diploma, que levou a Recorrente a concluir não haver, na situação descrita, duas associadas a representar a mesma categoria de titulares de direitos, pois a SPA representa autores (tal como este conceito é construído para efeitos da Lei da Cópia Privada) e a Recorrida VISAPRESS representa editores (tal como este conceito é construído para efeitos da referida Lei da Cópia Privada);

XLIV. Sendo, como é, inegável que para se aferir e decidir se a deliberação em causa nos presentes autos é anulável, por ser inválida e ilegal, como alega a Recorrida na sua Petição Inicial, terá necessariamente de se aferir se a mesma violou o regime jurídico da cópia privada (Lei da Cópia Privada) e, por inerência, também o disposto no CDADC, mal esteve, pois, o Tribunal da Relação de Lisboa ao decidir como decidiu, que a competência para a matéria em discussão nestes autos não é do Tribunal da Propriedade Intelectual, mas sim dos tribunais comuns (no caso, do Juízo Central Cível ...) confirmando aquela que já tinha sido a decisão de 1ª instância;

XLV. E mal esteve também o Acórdão do Tribunal da Relação ao referir, como fundamentação da sua decisão, os 3 Acórdãos citados e parcialmente transcritos pela Recorrida nas sua Contra-Alegações de Recurso, pois os mesmos em nada relevam para o que aqui se discute nem têm alguma relação com a matéria em causa nos presentes autos, ou com a factualidade descrita pela Recorrida nos presentes autos;

XLVI. Assim, face a tudo o que já supra se expôs e concluiu e ao que expressamente decorre das alíneas a) e k) do nº 1 do artigo 111º da LOSJ (“1 - Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a: a) Ações em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos; (…) k) Ações em que a causa de pedir verse sobre o regime jurídico da cópia privada; (…) 2 - A competência a que se refere o número anterior abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.”), a matéria em causa nos presentes autos é da exclusiva competência do Tribunal da Propriedade Intelectual, por ser o competente para conhecer das questões relativas a acções em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos e/ou sobre o regime jurídico da cópia privada, como é o caso dos autos;

XLVII. Mal esteve, pois, o Tribunal da Relação de Lisboa ao decidir confirmar a Decisão proferida em 1ª instância que, declarando improcedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, invocada pela Recorrente na sua Contestação, considerou o Juízo Central Cível ... competente em razão da matéria, para a apreciação do mérito dos presentes autos;

XLVIII. Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação de Lisboa fez uma errónea interpretação e aplicação da lei;

XLIX. Violando o Acórdão recorrido as regras de competência em razão da matéria e, em particular, o disposto no artigo 111º, nº 1, alíneas a) e k) da já referida LOSJ, bem como o disposto nos artigos 96º, alínea a), 99º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2 e 577º, alínea a), todos do CPC, artigos esses que interpreta e aplica de forma errónea, porquanto o tribunal competente para apreciar os presentes autos é o Tribunal da Propriedade Intelectual;

L. Assim, deve julgar-se procedente, por provado o presente Recurso de Revista, e o Acórdão recorrido ser revogado, e em consequência decidir-se pela incompetência do Tribunal Cível (Juízo Central Cível ...), em razão da matéria, para conhecer e decidir da causa por, para o efeito, e de acordo com o disposto no artigo 111º, nº 1, alíneas a) e k) da LOSJ, ser competente o Tribunal da Propriedade Intelectual, absolvendo-se a Recorrente da instância, tudo em conformidade com o disposto nos artigos 96º, alínea a), 99º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2 e 577º, alínea a) do CPC, e com todas as devidas e legais consequências;

LI.  Finalmente se diga que a Recorrente também não se conforma com o segmento do Acórdão recorrido que a condenou nas custas do processo, porquanto se deverá atender ao facto da Recorrente ser uma pessoa colectiva de utilidade pública, sem fins lucrativos, constituída sob a forma de associação em cumprimento do disposto na Lei da Cópia Privada, que tem por objecto a cobrança, gestão e distribuição das quantias previstas no artigo 82º do CDADC, nos termos da referida Lei da Cópia Privada, que, nos presentes autos, actua exclusivamente no âmbito das especiais atribuições que lhe foram conferidas por lei pelo que, atento o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 4º, do RCP, está isenta de custas processuais.

Nestes termos e nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, Deverá ser dado provimento ao presente Recurso, devendo, em consequência, o Acórdão recorrido ser revogado com todas as consequências legais,

Assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA.”

6. Foram apresentadas contra-alegações.

7. Foram dispensados os vistos.

8. Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. As questões a resolver, recortadas das alegações apresentadas pela Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada, consistem em saber se:

(1) Há fundamento para alterar a decisão recorrida que julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, importando que se declare o Tribunal da Propriedade Intelectual competente para ajuizar dos termos da causa, em detrimento do Tribunal Cível (Juízo Central Cível ...), absolvendo-se a Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada da instância, outrossim, importa isentar a Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada das custas em que foi condenada?


II. 2. Da Matéria de Facto


A matéria de facto apurada é a que consta do relatório antecedente.

II. 3. Do Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

II. 3.1. Há fundamento para alterar a decisão recorrida que julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, importando que se declare o Tribunal da Propriedade Intelectual competente para ajuizar dos termos da causa, em detrimento do Tribunal Cível (Juízo Central Cível ...), absolvendo-se a Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada da instância, outrossim, importa isentar a Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada das custas em que foi condenada? (1)

(i) Delimitado o objeto do recurso, passemos às questões vertidas nas conclusões das doutas alegações da Recorrente/Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada, e, nesta medida, importará começar por ponderar se, considerados os factos jurídicos apresentados em Juízo e a pretensão arrogada, a subsunção jurídica, deverá ser diversa da sustentada pelo Tribunal a quo, isto é, a questão que se coloca a este Tribunal de recurso é a de saber se o Tribunal Cível (Juízo Central Cível ...), onde a ação foi proposta, é materialmente competente para conhecer do objeto da ação, em detrimento do Tribunal da Propriedade Intelectual.

Vejamos.

Doutrina e Jurisprudência aceitam, pacificamente, que a competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, sendo que para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, impõe-se atentar à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.

Neste particular, sustenta Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, in, Manual de Processo Civil, 1987, página 197, o requisito da competência resulta de necessidade de se repartir o poder jurisdicional pelos vários tribunais segundo critérios diversos, destacando-se, no plano interno, o critério da especialização.

O art.º 211º da Constituição da República Portuguesa, estabelece que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (nº. 1) e que “na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matéria determinadas” (nº. 2).

Reconhecidos estes princípios programáticos, o legislador ordinário, no art.º 64º do Código de Processo Civil e no art.º 40º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), estabelece que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Por seu turno, o direito adjetivo civil, no art.º 65º do Código de Processo Civil, textua que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada, o que, de resto, é sublinhado no já citado art.º 40º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) ao estatuir, no seu n.º 2 que: “A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada”.

Outrossim, determina o art.º 37º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território (nº. 1), sendo que a lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais (nº. 2), a par de que, estabelece também a aludida Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca, competindo aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais (artºs. 79º e 80º), ademais, podem existir tribunais judiciais de primeira instância com competência para mais do que uma comarca ou sobre áreas especialmente referidas na lei, designados por tribunais de competência territorial alargada, sendo estes tribunais de competência especializada que conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, nomeadamente, o tribunal da propriedade intelectual (art.º 83º nºs. 1, 2 e 3, alínea a)).

Distinguimos, assim, constituírem os tribunais de comarca a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada, enquanto os restantes tribunais, constituem exceção, nomeadamente, os tribunais de competência territorial alargada, que conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, nomeadamente, como é o caso do tribunal da propriedade intelectual, cuja competência é limitada às matérias enunciadas no art.º 111º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Atendendo ao quadro normativo enunciado e às consignadas e pacíficas breves noções teóricas que adiantamos, impor-se-á determinar qual o tribunal competente para conhecer do presente pleito, se o Tribunal Cível (Juízo Central Cível ...) se o Tribunal da Propriedade Intelectual, não deixando de sublinhar que a competência do tribunal deverá ser apreciada consoante os termos em que a ação é proposta, atendendo-se ao pedido e especialmente à causa de pedir, formulados pelo demandante.

Decorre do relatório que antecede, condizente à matéria de facto a considerar, ter a Autora/Visapress - Gestão de Conteúdos dos Media pedido a anulação da deliberação tomada pela Direção da Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada na reunião realizada no dia 3 de dezembro de 2020, no âmbito do Ponto 4 da respetiva ordem de trabalhos, no que toca à distribuição de verbas do Departamento de Cópia Gráfica e Reprográfica (na vertente autores), sustentando que é a entidade de gestão coletiva que representa os direitos de autor e direitos conexos dos editores dos principais jornais e revistas (publicações periódicas) do mercado nacional, sendo a Ré uma pessoa coletiva de utilidade pública e sem fins lucrativos, constituída sob a forma de associação, ao abrigo da Lei Cópia Privada, tendo por objeto a cobrança, gestão e distribuição das quantias previstas no art.º 82 do CDADC (Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos), sendo constituída por todas as entidades de gestão coletiva que, em Portugal, representam os autores, artistas, intérpretes ou executantes, produtores de fonogramas, os produtores e os editores.

Em 3 de dezembro de 2020 a Direção da Ré aprovou uma deliberação, destacando-se o Ponto 4 da ordem de trabalhos - Distribuição de Dezembro de 2020 - “... No departamento da cópia gráfica e reprográfica, da verba global distribuível, 50% é atribuída aos organismos representativos dos autores (desta verba a SPA fica com a totalidade 100%), sendo que os restantes 50%, são atribuídos aos organismos representativos dos Editores (destes, 60% cabem à APEL e 40% à Visapress)”.

Esta proposta teve a favor os votos da SPA, APEL, AudioGest e GDA e o voto contra da Visapress, com declaração de voto no sentido da respetiva invalidade por violar os Estatutos da Agecop, o Regulamento de Distribuição e anexo C - no respeitante à atribuição integral à SPA da totalidade dos valores cobrados pela Agecop referentes à cópia gráfica e reprográfica na componente “Autores” e à subsequente decisão quanto à sua implementação.

Numa primeira abordagem impõe-se desde já adiantar que o pedido de anulação da deliberação tomada pela Direção da Ré não se circunscreve apenas à violação dos seus Estatutos e do Regulamento Interno de Distribuição e respetivo Anexo C, nos termos conjugados, analogicamente, das disposições substantivas decorrentes do Código Civil e Código Comercial, pois, para o respetivo conhecimento, torna-se necessário, a apreciação material, quer quanto à divergência existente, quer quanto à substância do direito que é reclamado por duas associadas (tenha-se em atenção tratar-se e uma divergência entre duas associadas da Ré, relativamente ao mesmo direito), sendo que a Ré decidiu tal conflito sem ter desencadeado o mecanismo previsto no art.º 8º dos respetivos Estatutos.

Conquanto a Autora  procure isolar, em termos estritamente formais, o thema decidendum trazido a Juízo, concretamente a anulação da deliberação tomada pela Direção da Ré na reunião realizada no dia 3 de dezembro de 2020, no âmbito do Ponto 4 da respetiva ordem de trabalhos, no que toca à distribuição de verbas do Departamento de Cópia Gráfica e Reprográfica (na vertente autores), impõe-se integrar esta delimitada pretensão jurídica com a concreta estruturação que imprimiu à causa de pedir, entendida esta como o ato ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer, sublinhando-se que a pretensão jurídica deduzida atinente à aludida anulação da deliberação tomada pela Direção da Ré na reunião realizada no dia 3 de dezembro de 2020 avoca o regime jurídico dos direitos de autor e direitos conexos, bem como, e em especial, o regime jurídico da cópia privada, tornando-se incontornável a tomada em consideração das normas contidas nestes diplomas para se poder aferir da (i)licitude da atuação, em reunião de órgãos sociais, da Direcção Ré/AGECOP - Associação para a Gestão da Cópia Privada.

Na verdade, subjacente ao pedido de anulação da deliberação de 3 de dezembro de 2020 está a distribuição de verbas no Departamento de Cópia Gráfica e Reprográfica (na vertente Autores), que não se reconduz, por sua própria natureza, a uma mera divergência de natureza adjetiva.

A pretensa invalidade da deliberação em causa nestes autos advém da alegada violação dos procedimentos estabelecidos em concretização do regime jurídico da cópia privada (Lei da Cópia Privada), em articulação com as próprias regras do Código dos Diretos de Autor e Direitos Conexos, o que, de resto, decorre da petição inicial apresentada quando a demandante (artºs 45º, 62º e 63º da petição inicial) invoca expressamente a titularidade de direitos de autor sobre publicações periódicas, por parte dos seus associados, a que se arroga para usufruir da compensação equitativa prevista na Lei da Cópia Privada e destinada aos autores, como elemento integrante da factualidade por si descrita naquele articulado e juridicamente relevante, a par da invocação expressa (art.ºs 70º e 71º, ponto II, 74º e 81º da petição inicial), de que a Ré violou a Lei da Cópia Privada, em articulação com as normas do CDADC (artºs 45º, 62º e 63º da petição inicial).

Ou seja, a pretensa invalidade da deliberação de 3 de dezembro de 2020 resultará da alegada violação dos procedimentos estabelecidos pela Ré em concretização do regime jurídico da cópia privada, em articulação com as próprias regras do CDADC, importando, necessariamente, e desde logo, um juízo quanto à qualidade da demandante para efeitos de aplicação do próprio regime jurídico da cópia privada, no que à distribuição da compensação equitativa (na vertente autores) respeita, prevista no art.º 3º da Lei da Cópia Privada, e que está em causa nos presentes autos, donde, coloca-se em causa, inequivocamente, questões de interpretação da Lei da Cópia Privada e questões de Direitos de Autor e de Direitos Conexos.

Aliás, como bem sintetiza a Recorrente/Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada, “Para se poder aferir da obrigatoriedade, ou não, da Recorrente desencadear os procedimentos alegados na Petição Inicial, previamente à deliberação em causa nestes autos, o Tribunal terá sempre i) de analisar e apreciar a qualidade e o direito de autor a que a Recorrida se arroga enquanto “entidade de gestão colectiva de direitos de autor e conexos dos editores de publicações periódicas”, ii) se tal qualidade lhe confere, ao abrigo do disposto na Lei da Cópia Privada e no CDADC, o direito a reclamar o recebimento de qualquer compensação equitativa destinada aos organismos representativos dos autores, e iii) de apreciar se, caso existam, tais eventuais direitos foram violados, e em que termos.”

O que é discutido nos autos extravasa a simples divergência no domínio procedimental entre duas associadas, não sendo assim possível ajuizar da legalidade da conduta da Direção da Ré ignorando o fundamento substantivo do direito a que se arroga.

Não é possível prescindir, como questão jurídica subjacente necessária para aferir da legalidade da reclamada anulação da deliberação de 3 de dezembro de 2022, do seu fundamento substantivo, enquanto órgão estatutário, da concreta e indispensável análise do regime consignado na Lei da Cópia Privada e do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos.

Rematamos, assim, dizendo que a causa de pedir apresentada nos presentes autos integra necessariamente uma componente de índole normativa (relacionada - direta ou indiretamente - com a discussão sobre o direito - substantivo - ao recebimento das verbas a distribuir entre as associadas) que só pode ser ponderada e ajuizada tomando em consideração a aplicação das normas e princípios constantes daqueles enunciados diplomas, em especial a Lei da Cópia Privada, neste sentido, o recente Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 17 de janeiro de 2023, no âmbito do Processo n.º 15850/20.3T8LSB.L1.S1.

Tudo visto, e em razão da natureza específica das matérias em debate e das normas a que se encontram especialmente subordinadas, no caso ao Direito da Propriedade Intelectual, e de acordo com o art.º 111º n.º 1, alíneas a) e k) da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), reconhecemos que o Tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da causa é o Tribunal da Propriedade Intelectual e não o Tribunal Cível (Juízo Central Cível ...), conforme decidido pelas Instâncias, absolvendo-se a Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada da instância, tudo em conformidade com o disposto nos artºs. 96º, alínea a), 99º n.º 1, 576º nºs. 1 e 2 e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.

(ii) Uma última palavra sobre a questão da condenação da Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada em custas.

Considerando a natureza da Recorrente/Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada, enquanto pessoa coletiva privada sem fins lucrativos, que atua nesta ação no âmbito das suas atribuições estatutárias e para defender os interesses que lhe estão conferidos pelo respetivo estatuto, assiste-lhe também razão quando reclama o reconhecimento de que está isenta de custas processuais.

Na verdade, o art.º 4º n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais, concede-lhe, efetivamente, a isenção de custas de que a mesma diz beneficiar, encontrando-se a atividade processual prosseguida, integrada no âmbito das suas atribuições estatutárias, defendendo os interesses conferidos pelo respetivo estatuto.

Na procedência da argumentação esgrimida e trazida à discussão pela Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada nas suas alegações de recurso, e na decorrência do consignado enquadramento jurídico normativo, temos de concluir que o aresto em escrutínio merece censura, devendo ser revogado.


III. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar procedente o recurso interposto pela Recorrente/Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada, concedendo-se a revista, e, em consequência:

- Revoga-se o acórdão recorrido;

- julga-se incompetente, em razão da matéria, para tramitar e julgar a presente ação, o Tribunal Cível (Juízo Central Cível ...), por competente ser o Tribunal da Propriedade Intelectual;

- Absolve-se a Ré/Agecop - Associação Para a Gestão da Cópia Privada da instância.

- Custas, em todas as Instâncias, pela Autora/Visapress - Gestão de Conteúdos dos Media.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 11 de maio de 2023


Oliveira Abreu (Relator)

Nuno Pinto Oliveira

Ferreira Lopes