Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2504
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MAIA COSTA
Descritores: MAUS TRATOS
ELEMENTOS DE INFRACÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
IDENTIDADE DO ARGUIDO
Nº do Documento: SJ20081105
Data do Acordão: 11/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - A situação de “dependência, vulnerabilidade ou fragilidade” não constitui elemento típico do crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152.º, n.º 2, do CP, na redacção introduzida pela Lei 7/2000, de 27-05.
II - Com efeito, nos termos do referido artigo, basta a existência de uma relação conjugal ou equiparável para que os maus tratos físicos ou psíquicos sejam subsumíveis à sua previsão.
III - O bem jurídico protegido nesta incriminação, tendo em conta a sua inserção sistemática – Título I do CP (“Crimes contra as pessoas”) –, é a pessoa do cônjuge (ou equiparado), a sua integridade física, a sua saúde e a sua dignidade, enquanto pessoa humana, e não a instituição familiar.
IV - A dissimulação da identidade do agente não obsta à verificação do ilícito típico, nem sequer atenua a culpa, pelo contrário, constituirá até circunstância agravante. O que releva é que a acção seja praticada pelo agente contra o cônjuge (ou quem com ele viver em condições análogas às dos cônjuges), ainda que subreptícia ou encapotadamente.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO

AA Procurador da República, foi julgado no Tribunal da Relação de Lisboa e condenado como autor dos seguintes crimes:
- um crime de dano, do art. 212°, n° l do Código Penal (CP), na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 10 €;
- um crime de coacção contra órgãos constitucionais, do art. 333°, n° l do CP, na pena de 2 anos de prisão;
- um crime de maus tratos, do art. 152°, n° 2 do CP, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão.
Em cúmulo das penas de prisão, foi o arguido condenado na pena única de 3 anos e 10 meses de prisão, que foi suspensa pelo mesmo período.
Deste acórdão o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça (STJ), concluindo a sua motivação desta forma:

1. O Tribunal da Relação de Lisboa condenou o ora recorrente como autor material de um crime de dano p. e p. pelo art. 212º, nº 1, na pena de multa de 200 dias à razão diária de 10€; como autor material um crime de coacção contra órgãos constitucionais p. e p. pelo art. 333º, nº 1 do C.P. na pena de 2 anos de prisão; e como autor material de um crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152°, nº 2 do C.P. na pena de 2 anos e 9 meses, em virtude da alteração não substancial dos factos operada na audiência de discussão e julgamento de dia 27 de Fevereiro de 2008.
2. Operando o cúmulo jurídico foi o ora recorrente condenado na pena única de 3 anos e 10 meses suspensa por igual período ao abrigo no disposto no art. 50° do C.P.
3. Sucede, porém, que a prova produzida em audiência não permitia que se tivesse dado como provados determinados factos os quais inquinam de forma indelével a solução jurídica a que chegou o tribunal “a quo”:
4. O tribunal "a quo" nos termos do art, 412°, nº 3, alínea a) do CPP julgou incorrectamente provados os seguintes factos que se identificam a negro e em sublinhado segundo a numeração seguida no acórdão condenatório:
6. O relacionamento entre o Arguido e a Dra. BB foi reatado na noite do dia 5 para 6 de Março de 2006, data em que retomaram a vida em comum.
30. No dia 6 de Março de 2006, segunda-feira, às 10.57h, de uma cabine telefónica com o número ............, situada na R. Gomes Freire, o Arguido ligou para o Tribunal da Boa-Hora, através do número ...........
31. Esta chamada telefónica foi atendida por DD, telefonista no Tribunal da Boa-Hora, a quem o Arguido, que não se identificou, pediu para passar a chamada para a 5ª Vara, 3a Secção, utilizando a expressão: "ligue-me para a quinta terceira".
32. Feita a transferência da chamada, e sendo a mesma atendida por CC, funcionária judicial, o Arguido, sempre sem se identificar, utilizando um tom de voz muito alto e falando de forma muito rápida, disse: "Diga ao colectivo da 5ª Vara que está aí uma bomba na sala".
34. O Arguido agiu da forma descrita bem sabendo que impedia o normal funcionamento do julgamento que decorria na 5ª Vara, e de todos os outros julgamentos ou diligências que se estivessem a realizar naquele edifício, durante aquele lapso de tempo.
52. Ainda nesse dia, às 13.10h, duma cabine telefónica com o número ........., situada nos Armazéns do Chiado, o Arguido telefonou para o telefone fixo número ..............., instalado no Restaurante "Central da Baixa”, onde as senhoras Juízas, que constituíam o Colectivo da 5ª Vara, se encontravam a almoçar, dizendo, para o empregado do estabelecimento que atendeu a chamada, que se encontrava uma bomba no local.
69. O Arguido agiu como descrito de molde a criar à Dra. BB uma situação de perturbação e intranquilidade que facilitasse a reaproximação e o reatar da relação, o que conseguiu.
5. Esta factualidade considerada assente no acórdão não tem suporte na prova produzida em audiência que o tribunal "a quo" - na fundamentação daquela decisão - reputou determinante para a formação da sua convicção.
6. A prova produzida em audiência (ou a sua completa ausência) não permitia que o tribunal a quo desse como assente a factualidade supra exposta e que assume extrema relevância na decisão sub judice.
7. Acresce que, perante a prova produzida em audiência de julgamento, o tribunal a quo deveria ter dado como provados outros factos que se afiguram de importância fundamental para a boa solução e compreensão da causa e que foram alegados em sede de Contestação, mas que, ao invés, foram incorrectamente dados como não provados.
Tais factos são os seguintes, cujas passagens se identificam a sublinhado e negrito:
111. A causa da conduta do Arguido residia na dualidade de sentimentos relativamente à Dra. BB.
112. O Arguido soubesse que uma investigacão policial sumária e incipiente permitiria imediatamente detectar a origem dos telefonemas a partir do momento em que a visada, Dra. BB, participasse o que se estava a passar à entidade policial competente e mesmo após saber que a Polícia Judiciária se achava a investigar a situacão por solicitacão da Dra. BB.
114. No exercício das suas funcões na Polícia Judiciária competia-­lhe, entre outras coisas, despachar os pedidos de intercepcões telefónicas, acompanhando muitas vezes as mesmas, o que lhe deu um conhecimento muito especial de todos os mecanismos relacionados com as escutas telefónicas, nomeadamente o seu alcance e meios de deteccão e listagem retroactivos.
116. A Dra. BB era o objecto absoluto da paixão do Arguido, mas, simultaneamente, este via-a como a responsável pela ruína em que a sua vida se havia tornado.
118. No início de Março de 2006 o Arguido estava exausto, vivenciando um episódio psicótico, de intensidade e duração muito concentradas, no contexto de grande pressão e tensão emocional, o que lhe afectara as capacidades de avaliação e determinação.
119. No decurso daquele período de três semanas o Arguido viu-se mergulhado num quadro de dualidade, oscilando entre os actos afectivos e amorosos próprios de uma relacão que profundamente desejava e os actos de natureza oposta, agressivos e ameaçadores, visando estranhamente a pessoa amada, cujo desvalor bem conhecia e que não desejava mas que, ainda assim, se sentia impelido a concretizar e que não era capaz de controlar.
120. Deste modo, durante todo período a que respeitam os factos dos autos, o Arguido não definiu qualquer enredo ou estratégia pré­-determinada antes actuou sempre ao sabor dos impulsos que a cada momento se manifestaram e que não foi capaz de controlar.
123. A relacão que manteve com a Dra. BB foi causadora de estados de depressão grave do Arguido, que determinou que este tivesse sido acometido de estados de prostração, os quais determinaram o recurso deste a ajuda psiquiátrica.
8. Os elementos de prova que nos termos do artigo 412º, nº 3, alínea b) e nº 4 do C.P.P. permitem considerar os factos dados como assentes incorrectamente julgados bem como o aditamento de outros são os seguintes:
- Declarações do Arguido AA prestadas em audiência de julgamento nos dias 5-12-2007 e 12-03-2008, encontrando-se as mesmas gravadas na Cassete 1, Lado A e Lado B de rotações 1 a 603 e Cassete 1, Lado A rotações 1363 a 1930 respectivamente;
- Depoimento da testemunha Dra. EE, prestado em audiência de julgamento nos dias 5-12-2007, encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 1, Lado B de rotações 602 a 0 e Cassete 2, lado A, rotações 0 a 1349;
- Depoimento da testemunha Dra. BB, prestado em audiência de julgamento nos dias 5-12-2007 e 12-03-2008, encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 2, Lado A e Lado B de rotações 1411 a 677 e Cassete 1, lado A, rotações 100 a 1354, respectivamente;
- Depoimento da testemunha DD, prestado em audiência de julgamento no dia 19-12-2007 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 4, Lado A rotações 148 a 150;
- Depoimento da testemunha CC, prestado em audiência de julgamento no dia 19-12-2007 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 4, Lado A rotações 161 a 180;
- Depoimento da testemunha FF, prestado em audiência de julgamento no dia 07-01-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 5, Lado A rotações 2220 a Lado B rotações 1230;
- Depoimento da testemunha GG, prestado em audiência de julgamento no dia 07-01-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 6, Lado A rotações 1254 a 1765;
- Depoimento do perito HH, prestado em audiência de julgamento no dia 17-01-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 7, Lado A e B rotações 0 a 868;
- Depoimento da perita II, prestado em audiência de julgamento no dia 17-01-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 8, Lado A rotações 000 a 292;
- Ofício da Portugal Telecom junto em audiência de julgamento de 28 de Janeiro de 2008 - vide acta de julgamento - onde se dá a conhecer a existência de mais de 20 postos de telefones públicos entre a casa do recorrente e o Tribunal da Boa-Hora;
- Relato de diligência externa de fls. 250 dos autos;
- Relatórios periciais juntos aos autos a fls. 681 a 734;
9. No que concerne à alegada retoma da vida em comum do casal que o tribunal recorrido dá como provado no facto 6, supra impugnado, a verdade é que tal facto se encontra incorrectamente julgado por não corresponder à prova produzida em julgamento,
10. Pois, quer do depoimento da Dra. BB prestado em audiência de julgamento no dia 12-03-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 1, Lado A, rotações 100 a 1354, quer das declarações do recorrente, Dr. ....... prestadas em audiência de julgamento no dia 12-03-2008 encontrando-­se as mesmas gravadas na Cassete 1, Lado A rotações 1363 a 1930, se retira que o relacionamento de ambos existiu até 25 de Janeiro de 2006, data em que deixaram de fazer vida em comum - cfr. decorre também do ponto 5 dos factos dados como provados.
11. A tentativa de reatamento da relação na noite do dia 5 para 6 de Março de 2006 não foi conseguida, pois não foi materializada em actos concretos que permitam afirmar o retorno da vida em comum.
12. Com o fim da relação da Dra. BB com o Dr. AA 25 de Janeiro de 2006, este conforme explicou ao tribunal recorrido levou da casa daquela todos os seus pertences pessoais que lá se encontravam, tendo arrendado uma casa para si.
13. Porque ambos os intervenientes configuraram esta aproximação não como uma retoma da vida em comum (porque não havia qualquer vida em comum na verdadeira acepção da palavra, ou seja, a partilha de vida materializada no domicílio conjugal, na mútua assistência, na partilha de despesas, enfim, na completa comunhão de valores), mas sim como uma tentativa dessa retoma que precocemente se frustrou,
14. Deve o facto 6 ser considerado incorrectamente julgado ao abrigo do disposto no art. 412°, nºs 3 e 4 do C.P.P., e em consequência ser declarado NÃO PROVADO.
15. No que tange as alegadas ameaças de bomba, também os factos 30, 31, 32, 34, 52 dados como provados e supra impugnados devem ser considerados incorrectamente julgados por não corresponderem à prova produzida em julgamento.
16. Não existe nos autos qualquer prova da autoria do crime de coacção contra órgãos constitucionais p. e p. pelo art. 333°, nº 1 do C.P. - ameaça de bomba para o tribunal da Boa-Hora -, nem tão pouco qualquer ameaça de bomba perpetrada pelo recorrente para o restaurante onde as Sras. Juízas se encontravam a almoçar.
17. O tribunal recorrido que não pôde deixar de constatar a manifesta ausência de suporte probatório no que as estas imputações concerne, com especial relevância para a ameaça de bomba para o tribunal da Boa-Hora por desse facto se ter condenado injustamente o recorrente, ainda assim não se coibiu de atribuir a autoria dos telefonemas ao arguido.
18. Fê-lo com base em presunções judiciais, que embora admissíveis legalmente, neste caso não o são como melhor se explicou na motivação em sede de erro notório da apreciação da prova nos termos do art. 410º, nº 2 al. c) do C.P.P.
19. Face à prova testemunhal produzida em julgamento, bem como à contra­prova documental exibida pelo arguido, não só não resulta que tenha sido o recorrente a praticar os factos que lhe são imputados, designadamente os telefonemas de ameaças de bombas, como os indícios a retirar de tais elementos probatórios vão precisamente em sentido inverso, isto é, forneceram ao tribunal "a quo” elementos indubitáveis de que não pode ter sido o arguido a realizar tais telefonemas.
20. Pelo que devem os factos 30, 31, 32, 34, 52 ser considerados incorrectamente julgados ao abrigo do disposto no arts. 412º, nºs 3 e 4 do C.P.P. e em consequência serem os mesmos alterados por V. Exas. no sentido de NÃO PROVADOS.
21. O tribunal "a quo” entendeu mal e contra a prova produzida em audiência que a motivação da conduta do arguido se deveu ao facto de este pretender reatar da relação com a Dra. BB, tendo incorrectamente dado como provado o facto 69 supra impugnado e dado como não provados os factos 111 e 116 alegados pelo recorrente na contestação que oportunamente apresentou.
22. Por um lado ficou claro que foi sempre o recorrente a pôr termo à relação que teve com a Dra. BB, o que inviabiliza de certo modo que fosse ele que quisesse uma reaproximação, pois se aquela continuava a desejar a continuação da relação o recorrente nada precisava de fazer para reatá-la!
23. Aliás, é dito expressamente pela Dra. BB que era com grande sofrimento da parte dela que o recorrente a deixava, como ela desejava o reatar da relação.
24. Por outro lado, é a testemunha que à semelhança do alegado pelo arguido manifesta também a dualidade de sentimentos que vivenciou tendo admitido ao tribunal recorrido que possivelmente o arguido sentisse o mesmo, isto é, a dualidade de sentimentos a que se aludiu na Contestação e cujos factos devem ser aditados e DADOS COMO PROVADOS.
25. Termos em que tais factos devem ser considerados incorrectamente julgados ao abrigo do disposto no art. 412º, nºs 3 e 4 do C.P.P. e em consequência serem os mesmos alterados por V. Exas. no sentido de NÃO PROVADOS e do mesmo modo serem dados como PROVADOS os factos supra identificados aludidos na Contestação apresentada.
26. Finalmente, ainda em sede impugnação de matéria de facto, o tribunal recorrido que na matéria de facto dada como provada apenas cuidou de excluir a inimputabilidade do recorrente, não consignou a clara imputabilidade diminuída de que este padece e que só na fundamentação da decisão alude.
27. E, porque tem inegável interesse para a boa decisão da causa, sobretudo em sede de medida concreta da pena a aplicar ao recorrente deveria o tribunal "a quo” ter dado como provados os factos 112, 114, 118, 119, 120 e 123 alegados pelo recorrente na contestação apresentada.
28. Quer dos extensos depoimentos supra indicados - depoimento da testemunha Dra. BB prestado em audiência de julgamento no dia 5-12-2007, encontrando-se o mesmo gravado Cassete 1, lado A, rotações 100 a 1354; depoimento da testemunha FF prestado em audiência de julgamento no dia 07-01-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 5, Lado A rotações 2220 a Lado B rotações 1230; depoimento da testemunha GG prestado em audiência de julgamento no dia 07-01-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 6, Lado A rotações 1254 a 1765; depoimento do perito HH prestado em audiência de julgamento no dia 17­01-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 7, Lado A e B rotações 0 a 868; depoimento da perita II prestado em audiência de julgamento no dia 17­01-2008 encontrando-se o mesmo gravado na Cassete 8, Lado A rotações 000 a 292 – quer dos relatórios periciais juntos aos autos a fls. 681 e ss., parece decorrer que efectivamente o recorrente padecia à data dos factos duma imputabilidade diminuída face à não contenção racional de impulsos.
29. Termos em que tais factos devem ser considerados incorrectamente julgados ao abrigo do disposto no art. 412º nºs 3 e 4 do C.P.P. e em consequência serem os mesmos dados como PROVADOS.
30. Caso V. Exas. não concordem com a impugnação da matéria de facto sindicada nos termos do ponto anterior, entende o recorrente no que ao crime de ameaça contra órgãos constitucionais existe claro erro notório na apreciação da prova, na medida em que da fundamentação da decisão, com relevância para a pág. 16 da decisão recorrida, os indícios que aí constam não são suficientes para dar como provado os factos 30 a 34, decidindo o tribunal "a quo” no limite contra o arguido, isto é por violação do principio in dubio pro reo.
31. Nem se argumente com o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal, nem que o recorrente pretende sindicar a convicção do ilustre colectivo, pois embora a convicção seja pessoal é "em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros”.
32. Não podia o tribunal "a quo" ter condenado o recorrente unicamente socorrendo-se do facto do telefonema da ameaça de bomba ter sido realizado a partir de um posto público, alegando ainda o "contexto" dos restantes factos, que na verdade nada têm que ver com coacção exercida sobre órgãos constitucionais, ao invés traduziram-se sempre em intimidações pessoais e de pessoas do seu círculo social, e com o facto de só pessoas que trabalham nos tribunais utilizarem expressões do género "ligue-me para a quinta, terceira" (quando tal afirmação é utilizada diariamente por centenas de sujeitos processuais).
33. Ora, entende o recorrente que a decisão recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, por violação do princípio do in dubio pro reo, nos termos do art. 410°, nº 2, al. a) do C.P.P.
34. Face à impugnação da matéria de facto suscitada é forçoso concluir que não há qualquer prova que permitisse ao tribunal "a quo” a condenação do recorrente por este tipo de ilícito.
35. Efectivamente, não logrou o MºPº demonstrar a autoria do crime de coacção contra órgãos constitucionais, sendo que o tribunal recorrido imputou tal crime ao recorrente um pouco na lógica de que tudo quanto de desagradável se passou quer com a Dra. EE, quer com a Dra. BB, terá sido obra do arguido.
36. Não pode o recorrente conformar-se com tal juízo, pelo que dele recorre pugnando pela sua absolvição no que a este crime respeita.
37. Todavia, admitindo-se que o arguido foi o perpetrador de tal crime - o que não se concede mas por cautela de patrocínio se concebe - não cuidou o ilustre colectivo recorrido de retirar as devidas consequências jurídicas da fundamentação de facto que realizou, à luz do tipo subjectivo do ilícito.
38. Considerou o tribunal recorrido a págs. 16 da decisão que o escopo da conduta do arguido, isto é, a intenção do seu comportamento foi intimidar as colegas, no contexto dos anteriores telefonemas, ou seja, na vida daquelas, parece óbvio que a conduta do recorrente não preenche assim o tipo subjectivo do crime p. e p. pelo art. 333º, nº 1 do C.P.
39. É que para o preenchimento do tipo do ilícito descrito no art. 333º, nº 1 do C.P. exige-se um dolo específico, entenda-se dolo intencional ao impedimento do livre exercício de funções do órgão, in casu, o tribunal.
40. Mas mais, exige-se ainda que o dolo abranja a qualidade de membro do órgão, no caso juízas.
41. Ora, o comportamento do arguido anunciando a bomba não visou o tribunal enquanto órgão constitucional, nem visou as juízas do colectivo em cumprimento de funções, tendo visado antes a Dra. EE, a Dra. BB e a Dra.JJ individualmente consideradas como fazendo parte do seu círculo social.
42. Pelo que, ainda que se admitisse o que não se concede que existe suporte factual para o preenchimento do tipo objectivo do ilícito imputando a autoria do crime ao recorrente, sempre teria de se concluir que falta manifestamente o elemento subjectivo do tipo, por inexistência de dolo específico na conduta do recorrente, devendo este ser absolvido do crime de coacção contra órgãos constitucionais pelo qual vem condenado.
43. Em face da comunicação da alteração da qualificação jurídica operada pelo tribunal "a quo” na sessão de julgamento do dia 27 de Fevereiro de 2008, foi comunicado ao arguido que os factos pelos quais vinha acusado relativamente ao crime de ameaças p. e p. pelo art. 153°, nº 2 no que concerne à ofendida Dra. BB, consubstanciaria no entender do tribunal um crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152º do CP, na redacção anterior à Lei 59/2007 de 4-9 por esse regime se afigurar o mais favorável ao arguido.
44. E, em nosso entender tal subsunção jurídica afigura-se errada face ao tipo de ilícito descrito no art. 152° do C.P. anterior à nova redacção da lei operada pela alteração da lei penal de 15 de Setembro de 2007, quer pelo não preenchimento do elemento objectivo (não violação do bem jurídico protegido com a incriminação), quer pela interpretação histórica e sistemática do preceito em causa.
45. Na verdade, o cônjuge (ou com quem viva em condições análogas), só merece a protecção conferida pela disposição penal prevista no art. 152º, nº 2 do C.P. quando, para além do aspecto formal, exista efectivamente uma relação familiar efectiva.
46. Só nestes casos é que os reiterados maus tratos físicos ou psíquicos assumem uma tal gravidade que justificam uma punição autónoma mais grave que o crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo art. 143°, nº 1 ou o crime de ameaças p. e p. pelo art. 153º, nº 1 ambos do CP.
47. No que concerne ao bem jurídico protegido a ratio do art. 152° do C.P. está na protecção da pessoa individual e a sua dignidade humana cujo interesse protegido é a integridade física/saúde, nas suas vertentes física e psíquica, onde a vítima se encontra numa situação de especial dependência, vulnerabilidade ou fragilidade em relação ao agressor. Mas, porque se trata de uma imputação criminal específica cujos reflexos se projectam na família, os maus tratos entre cônjuges, ou entre aqueles que vivem em condições análogas às dos cônjuges, para o preenchimento do tipo de ilícito, a violação dos bens jurídicos protegidos deve verificar-se no seio familiar.
48. O legislador quis com esta imputação salvaguardar também a paz familiar, o ambiente familiar sadio, onde o relacionamento entre os cônjuges ou os que vivam em condições análogos a estes deve ser efectivo, isto é, vivenciado em plena "sociedade familiar".
49. Aliás, essa também tem sido a posição da melhor jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, vide inter alia, o brilhante aresto deste Alto Tribunal de 16-11-2006, proc. 3760/06, da 5a secção.
50. Ou seja, "o cônjuge só necessita da protecção especial conferida por esta incriminação quando a relação conjugal, para além do aspecto formal, assenta numa vivência familiar efectiva”, não se exigindo para o preenchimento do preceito a aplicação das regras da união de facto (Lei 7/2001), tem-se por certo que "a relação de facto só merece protecção se for estável, monogâmica e assente num relacionamento entre pessoas de sexo diferente".
51. Por um lado, e caso o tribunal "ad quem” concorde com a posição do recorrente e considere incorrectamente julgado o facto 6 respeitante à retoma da vida em comum na noite de 5 para 6 de Março, torna-se óbvio que não há o preenchimento do tipo objectivo do ilícito previsto no art. 152°, nº 2 do C.P. na anterior redacção e nessa medida deve o recorrente ser absolvido.
52. Por outro lado, caso V. Exas. entendam não dar como não provado o facto 6, e considerando que existiu a retoma da vida em comum por parte do recorrente com a Dra. BB, coloca-se a questão jurídica de saber se ainda assim o tipo de ilícito se mostra preenchido.
53. E a verdade é que a Dra. BB não tinha qualquer relação de dependência ou de subordinação perante o recorrente, cabe talvez lembrar que ambos tinham casas autónomas sendo que a habitação da Dra. BB é própria, enquanto a do recorrente é arrendada.
54. Acresce que, ainda que ironicamente, o recorrente dava apoio e conforto à Dra. BB conforme decorre quer das declarações desta, quer do facto 93 dado como provado.
55. Ora, os maus tratos ou violência doméstica consubstanciam precisamente agressões físicas ou psíquicas por parte de um cônjuge ao outro de forma a impossibilitar a relação conjugal ou a gerar grande tensão no seio familiar, levando o cônjuge ofendido a procurar apoio e conforto fora dessa relação conjugal.
56. O curioso nesta situação é que a Dra. BB, alegadamente ofendida no crime de maus tratos, procurou apoio e conforto no seu companheiro, o recorrente, sentindo-se protegida no seio familiar.
57. Acontece, porém, que a conduta do recorrente embora moralmente inadmissível, não é subsumível nem ao tipo de crime de ameaças como concluiu o tribunal recorrido, nem ao crime de maus tratos, que, aliás, nos parece completamente fora de questão por tudo quanto se deixou exposto.
58. Nesta medida sempre deveria o ora recorrente ser absolvido do crime de maus tratos p. e p. no art. 152°, nº 2 do C.P. na sua anterior redacção.
59. No que respeita a imputabilidade diminuída de que padeceu o recorrente à data dos factos o tribunal recorrido só a latere abordou tal questão.
60. Por um lado, o tribunal recorrido não deu como provado nenhum facto donde resulte a imputabilidade diminuída do recorrente, dando ao invés como provado o facto 71 no sentido de excluir a inimputabilidade do mesmo.
61. Por outro, deu o tribunal "a quo” como não provado o facto 118, quando do depoimento dos peritos, bem como dos seus relatórios resulta claro que a capacidade de determinação do recorrente se encontrava afectada à data dos factos.
62. Cerceado pelo relatório psiquiátrico, uma hipotética discussão sobre a eventual inimputabilidade do recorrente à data dos factos mostra-se assim inoperante, contudo, aquele mesmo relatório invoca uma imputabilidade diminuída do arguido à data dos factos, face à sua incapacidade de determinação/controle dos seus impulsos.
63. Efectivamente, conforme ficou demonstrado supra que a capacidade de determinação do recorrente se encontrava afectada, sobretudo no que ao controlo dos seus impulsos criminógenos diz respeito, como aliás o tribunal "a quo” acaba por reconhecer em sede de fundamentação da decisão recorrida no par. 3º da pág. 18, quando afirma que “a capacidade de determinação do recorrente estaria diminuída em grau ligeiro”, sem contudo daí retirar as devidas consequências.
64. Esta questão assume particular relevo em sede de culpa.
65. As perícias médicas constataram que o sujeito é semi-imputável, ou seja, tem a sua capacidade de determinação apenas diminuída e não totalmente excluída.
66. São aliás inúmeros os exemplos jurisprudenciais de atenuações especiais da pena a propósito de imputabilidade diminuída do agente.
67. E a questão da imputabilidade diminuída, cuja figura jurídica é bastante complexa, é verdadeiramente um problema a ser equacionado ao nível da culpa como denota Carlota Pizarro de Almeida: "Se considerarmos, como parece mais ou menos consensual, a imputabilidade como capacidade de culpa, o que pode ser diminuído por factores vários é, na realidade, a culpa, não a capacidade da mesma: essa, ou se tem ou não se tem. Seguindo este raciocínio, as circunstâncias a que se refere o art. 20º, nº 2 deveriam actuar a nível de atenuação da pena, em consonância com o art. 40º, nº 2 (aliás, traduzindo um imperativo constitucional).”
68. A verdade é que o tribunal "a quo” nem sequer discutiu esta questão, podendo lançar mão do art. 72°, nº 1 do C.P. que como se sabe não se encontra limitado às circunstâncias descritas no nº 2, mas sim à culpa do arguido e às exigências de prevenção.
69. Assim, aplicando-se tal normativo e consequentemente o art. 73º do C.P., quanto à pena de crime de coacção contra órgão constitucional - e se nenhum dos argumentos supra expendidos procedesse - a sua moldura abstracta situar-se-ia entre os 2 meses e 5 anos e 3 meses; quanto ao crime de maus tratos na anterior redacção do código penal situar-se­-ia entre 2 meses e 3 anos e 3 meses.
70. Ora, relembrando que para o crime de coacção contra órgão constitucional não foi exercido qualquer dolo específico, mas antes necessário ou mesmo eventual e que para o crime de maus tratos - se se entender que o mesmo se encontra preenchido - o dolo não é intenso uma vez que a ofendida nunca soube que era o seu companheiro o autor dos actos intimidatórios, vendo nele, ao invés, um elemento de apoio e de conforto, qualquer pena de prisão que se afaste do seu limite mínimo peca por exagerada.
71. Assim uma pena que se situe entre os 6 meses e um ano de prisão para cada crime afigura-se suficiente, satisfazendo quaisquer necessidades de prevenção que neste caso são praticamente inexistentes.
72. Em cúmulo jurídico, uma pena única de prisão que não ultrapasse o ano e meio de prisão afigura-se consentânea com o entendimento de que o arguido preenche ambos os tipos de crime pelos quais vem condenado.
TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E EM CONSEQUÊNCIA:
A) CONSIDERAR OS FACTOS PROVADOS SUPRA INDICADOS INCORRECTAMENTE JULGADOS PELO TRIBUNAL RECORRIDO NOS TERMOS DO ART. 412°, Nº 3 E N° 4 DO C.P.P. E, EM CONSEQUÊNCIA, ALTERÁ-LOS NOS TERMOS ENUNCIADOS NA MOTIVAÇÃO;
B) DECLARAR O VÍCIO PREVISTO NO ART. 410°, N° 2, AL. C) DO C.P.P.
C) ABSOLVER O RECORRENTE DO CRIME DE COACÇÃO CONTRA ÓRGÃO CONSTITUCIONAL P. E P. NO ART. 333°, N° 1 DO C.P., BEM COMO ABSOLVÊ-LO DO CRIME DE MAUS TRATOS P. E P. NOS TERMOS DO ART. 152° DO C.P. PELOS FUNDAMENTOS MELHOR EXPENDIDOS SUPRA.
D) CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, CONDENAR O RECORRENTE NUMA PENA DE PRISÃO SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO, EM CÚMULO JURÍDICO, NUNCA SUPERIOR A ANO E MEIO DE PRISÃO.

A sra. Procuradora-Geral Adjunta na Relação respondeu nos seguintes termos:

Não se conformando com o acórdão de fls. 974 a 1007, pelo qual foi condenado na pena unitária de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa por igual tempo, recorre o arguido, pedindo, alternativamente:
- Se julgue incorrectamente julgada a matéria de facto;
- Ou se considere ter a decisão recorrida laborado em erro notório na apreciação da prova, com a consequente absolvição relativamente aos crimes de coacção contra órgão constitucional (art. 333°, nº 1) e de maus tratos (art. 152°, nº 2);
-Ou então que se altere a pena para uma, em cúmulo, não superior a ano e meio de prisão.
A - MATERIA DE FACTO INCORRECTAMENTE JULGADA:
1. Seria fastidioso estar a contrariar ponto por ponto a alegação do recorrente relativamente aos factos que, enunciados de fls. 8 e 35 da minuta de motivação de recurso (fls. 1029 a 1056), diz deverem ter sido não provados ou provados de acordo com a versão que lhe era favorável.
Como vulgarmente acontece, a prova que se produziu não é a que o arguido queria que se tivesse produzido, aquela que muito porfiou para que se firmasse.
O que resultou dos depoimentos prestados em audiência foi diferente daquilo que o arguido pretendia e, no caso presente, só não resultaram provados, de entre os factos da acusação, aqueles que a própria acusação não produziu por virtude da desistência da queixa apresentada pela ofendida Dra. EE.
No mais, e no essencial, a prova foi plena!
Toda a prova produzida na audiência está reproduzida em suporte áudio, em tomada de som de excelente qualidade, e ouvir os depoimentos prestados em audiência resulta numa imagem perfeita da forma como o colectivo cuidou do esclarecimento acerca da produção daqueles acontecimentos e dos factos muito graves que o arguido praticou bem como da forma como no acórdão se descrevem os factos que julgou provados, como não podia ter deixado de assim entender, em conjugação com os elementos que já resultavam dos autos por virtude da prova documental e pericial produzida na anterior fase de inquérito.
São especialmente impressivos os depoimentos das Dras. EE e BB, bem como os esclarecimentos, longos, pacientes e aprofundados dos peritos Drs. HH, médico psiquiatra, e II, psicóloga clínica.
2. Relativamente à retoma da vida em comum entre o arguido e a ofendida Dra. BB a partir do dia 6 de Março de 2006, não podem subsistir quaisquer dúvidas: são inúmeros os episódios contados pelos principais intervenientes mas, como é evidente, com especial relevo para a narrativa da vítima, companheira do arguido, que refere com vivacidade que aquele retomar da relação foi curto - pelas razões conhecidas, já que entretanto o arguido faz internar no Hospital Júlio de Matos por força dos factos aqui em apreciação - mas ainda mais intenso que os de períodos anteriores.
É vívido o depoimento da Dra. BB acerca da forma como o arguido a "apoiou" (permitimo-nos colocar entre aspas) naquelas três semanas em que viveu uma experiência de terror pela suposta ameaça que a sua vida e/ou integridade física corriam, advinda, pensava ela, de intervenientes no julgamento em que funcionalmente intervinha, e não restam quaisquer dúvidas de que a prova que se produziu é a do retomar de um relacionamento amoroso, uma vivência em comum semelhante a muitas outras ou tão mais intensa do que muitos outros.
Mais: é que o próprio arguido refere no seu depoimento que no dia 5 para 6 de Março aconteceu isso mesmo, ou seja, o retomar da relação tendo o arguido pernoitado essa noite em casa da Dra. BB e assim acontecendo, quase sempre, nas semanas que se seguiram!
3. No que respeita à factualidade integradora do crime de coacção contra órgão constitucional p. e p. no art. 333º do C. Penal, a decisão recorrida explica com muita clareza porque elencou nos factos provados os que constam dos pontos 30 a 34. Vamos citar:
"Assim, relativamente aos factos cuja prática o Arguido negou, e que são relativos ao anúncio da existência de uma bomba no Tribunal da Boa-Hora, foi relevante para a atribuição da sua autoria ao Arguido o facto de ter sido realizada através de um telefonema, meio que foi utilizado pelo Arguido para a prática dos restantes factos, designadamente a circunstância de à semelhança de outros dois telefonemas ter sido realizado de um posto público, e de tal telefonema ter ocorrido no contexto e com o escopo dos factos admitidos pelo Arguido - realização de telefonemas intimidatórios referidos nos Autos - bem como ainda o facto de as expressões utilizadas nesse telefonema - "ligue-me para a quinta terceira" (ponto 31) e "diga ao colectivo da 5ª Vara... " (ponto 32) - serem próprias e habituais nas pessoas que exercem funções nos tribunais, mormente no Tribunal da Boa-Hora".
Permitimo-nos destacar as tentativas, votadas ao insucesso como se vê, que o arguido fez de demonstrar que não tinha sido ele o autor daquele telefonema, tentando demonstrar a improbabilidade de passar àquela hora junto daquele posto de telefone público quando, na realidade aquela cabine se situa num local próximo da casa onde habitou durante largo tempo (ver depoimento transcrito a fls. 1040 "mantive absolutamente a minha casa"), próximo do local onde se situa a morada da Dra. BB (ver depoimento transcrito a fls. 1048, "General Roçadas; que fica também perto da Rua da Bela Vista onde ele tinha a casa dele?, sim; são pertinho as duas casas? São, talvez trezentos metros...") e próximo do local onde trabalhou largos anos quer como Director Nacional Adjunto da PJ quer como Magistrado no TIC de Lisboa quando aí estava sedeado esse Tribunal.
Isto, por um lado.
Por outro, tentando demonstrar que naquele dia tinha vindo com a Dra. BB para o Tribunal da Boa-Hora, no mesmo veículo, o que também não conseguiu.
Além disto, está demonstrado que o arguido estava a entrar no Tribunal da Boa-Hora quando aí ocorria a saída forçada de todas as pessoas como resultado da ameaça de existência da uma bomba, ocorrida minutos antes.
Disse a Dra. EE no seu depoimento, conforme transcrição de fls. 1045:
"Ah sotôra, lembro-me. Era de manhã, eram por volta das 11 e tal, 10 e tal da manhã, 11 horas e depois isto é tão ridículo que depois nós saímos todos do tribunal, o tribunal foi todo evacuado e nós fomos para um café da esquina e o Dr. AA acompanhou-nos, pagou-nos o café. Acompanhou-nos, isto é, o Dr. AA chegou ali naquela altura, não estava no tribunal, eu encontrei-o no hall de entrada, na rua e ele: "então, então" e não sei quê... portanto o Dr. AA já não entrou no tribunal...".
Por último, não pode deixar de relevar para a formação da convicção do Tribunal a coerência desses actos no objectivo admitido pelo arguido quando, a instâncias do tribunal acerca das actuações que não tinham como objecto a Dra. BB assim falou:
"As actuações que não têm a Dra. BB por objecto são aquilo a que podemos chamar, foram por extensão. Digamos, que o meu alvo, entre aspas, naturalmente seria a Dra. BB, a Dra. Juíza JJ e a Dra. EE foram por extensão, digamos...".
Seguidamente, instado pela Ex.mo Sra. Juíza Desembargadora Presidente a concretizar o que significava a expressão "por extensão" disse:
"Foram actuações no fundo, estendi a elas, digamos, fazendo parte de um colectivo que estava a julgar um determinado processo, estendi a elas o mesmo tipo de ameaças para dar um quadro de unidade de actuação".
Que bem que se enquadrou uma ameaça de bomba no cenário então criado pelo arguido, na referida "unidade de actuação"!
4. A questão da motivação da conduta do arguido, questão à qual o mesmo, no seu recurso, confere uma relevância que entendemos despropositada, por virtude do que considera um gravíssimo erro de julgamento (!!!) assim lhe dedicando várias páginas da motivação, deverá resolver-se também no sentido de não merecer crítica a decisão neste aspecto.
Na verdade ressalta da prova produzida que o arguido, no quadro daquele relacionamento amoroso tumultuoso e tendo como pano de fundo as características estruturais da sua personalidade que permitem até a constatação de que não assume, sequer, um verdadeiro arrependimento, por entender que era a Dra. BB a causa de todos os males que lhe aconteceram e até dos actos gravíssimos que praticou e que deram origem a esta condenação, possa ter em relação à ofendida o sentimento que refere ter, que refere ser de dualidade (o que quer que seja que isso signifique).
Mas não pode deixar de ficar absolutamente assente que foi por virtude da ocorrência das ameaças de que a referida Dra. BB também estava a ser vítima, que foi reatada a relação amorosa que terminou, apenas e só, pelo evoluir dos acontecimentos de que estes autos se ocupam.
Sobre esta questão também se debruça o perito a fls. 696 quando refere que o objectivo do arguido não será aquele que pretende que seja:
Citamos: "Quanto à sua vontade, enfatiza-se que foi capaz de delinear e executar um plano de acção dirigido, no caso, admite-se como por ele referido ao perito que eventualmente visando vingança ou pelo contrário aproximação à sua namorada".
Não se afastou, assim, a decisão recorrida da prova que efectivamente se fez em audiência.
5. Importante é, sem dúvida, como foi, a questão de saber se o arguido estava numa situação psicológica ou mental capaz de ver excluída a respectiva imputabilidade.
Tão importante é essa questão que foram realizadas perícias psiquiátricas e psicológicas ao arguido, na sequência das quais foram produzidos relatórios detalhados e que sobre as referidas perícias cuidou o tribunal de obter, em audiência, esclarecimentos dos peritos que os elaboraram.
Já tivemos ocasião de referir a importância do depoimentos dos mencionados peritos, não só pelo respectivo teor, em si mesmo considerado, mas também porque permitiu perceber melhor o que naqueles relatórios se refere acerca das características da personalidade do arguido.
Esses relatórios e esses depoimentos não deixaram quaisquer dúvidas ao tribunal de que não havia que divergir da conclusão exposta no relatório psiquiátrico a fls. 690 e 700 que refere que, não obstante o quadro de depressão major que afectava o arguido à data da prática dos factos "... e para estes, estaria globalmente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação « integrando pois pressupostos legais de imputabilidade, e atenta a integridade do processamento cognitivo, raciocínio lógico e compreensibilidade da situação contextuai onde se inserem os actos, sendo que o examinado tem, não só enquanto pessoa comum, consciência da ilicitude dos actos ... e tendo em consideração a anomalia psíquica de que sofre, e em particular a vulnerabilidade da sua personalidade prévia, estamos em crer que a capacidade de determinação estaria diminuída em grau ligeiro, sem que todavia se atingisse um nível razoável, leia-se, de importância significativa".
Não pode deixar de se referir que os depoimentos prestados em tribunal pelos já referidos peritos enfatizaram dois aspectos, relativamente ao quadro mental do arguido, que entendemos muito importantes tal como resulta também da fundamentação da sentença: por um lado essa referida ligeira diminuição da capacidade de determinação mas capaz de executar um "plano de acção" (fls. 696) num comportamento "... complexo, organizado, ponderado, não sendo notado pelos que o rodeiam anomalia ou desadequação, seja no seu dia-a-dia, seja no exigente desempenho profissional" (fls. 697); por outro a ausência de situações psicóticas bem como a não demonstração de que o comportamento que manteve naquele período se pudesse relacionar com o aneurisma cerebral que sofreu alguns anos antes.
Importante é referir, parece-nos, que a personalidade do arguido (narcísica, dramática, tendo-se em muito alto conceito), mais do que a já referida depressão major de que, à época, padecia, determinaram o modo do cometimento dos factos com perfídia e perversidade, características que impressionam ao rever-se a sucessão de acontecimentos relatados nos autos e que a decisão recorrida entendeu, como não podia deixar de entender, estarem verificados.
É forçoso, assim, concluir-se que, também neste aspecto, são absolutamente infundadas as críticas que o recorrente aponta à decisão recorrida.
B - ERRO NOTÓRIO NA APRECIACÃO DA PROVA:
O recorrente não tem razão e não consegue beliscar, por muito que se esforce, a correcta apreciação que é feita da prova produzida, a compreensibilidade do raciocínio lógico que levou o tribunal, face aos vários aspectos que lhe era dado ponderar, a concluir como concluiu pela matéria de facto que deu como assente, de forma estruturada, sequencial, razoável, enfim, irrepreensível!
C - DO DIREITO:
1. Do crime de coacção contra órgãos constitucionais:
O arguido é Magistrado do MºPº com mais de duas dezenas de anos de exercício, com experiência em vários tribunais e outros departamentos ligados à administração da justiça.
Certamente que teria tido a experiência do efeito que tem na rotina dum edifício afecto a tribunal, ou tribunais, o anúncio da existência de uma bomba, ainda que pouco crédito tal anúncio mereça: suspensão imediata de todos os actos que se estejam a realizar e evacuação do edifício, por razões de segurança.
Já o dissemos, mas vamos repeti-lo:
O arguido, confessadamente, utilizou a ocorrência daquele concreto julgamento para levar a cabo a sua intenção de, através da criação de um ambiente de medo, insegurança e, mesmo, de terror, obter um reatamento do seu relacionamento com a Dra. BB.
A ameaça de uma bomba, em conotação com aquele concreto julgamento, foi mais uma pincelada, esta muito colorida, muito impressiva, no "quadro de unidade de actuação" que ele próprio admite ter gizado, como se lê no segmento do depoimento que já transcrevemos, e nos permitimos repetir:
"As actuações que não têm a Dra. BB por objecto são aquilo a que podemos chamar, foram por extensão. Digamos, que o meu alvo, entre aspas, naturalmente seria a Dra. BB, a Dra. Juíza JJ e a Dra. EE foram por extensão, digamos..." (...) "Foram actuações no fundo, estendi a elas, digamos, fazendo parte de um colectivo que estava a julgar um determinado processo, estendi a elas o mesmo tipo de ameaças para dar um quadro de unidade de actuação".
O arguido quis que se verificasse aquela grave perturbação no funcionamento do tribunal - do Tribunal da Boa-Hora, em conjunto, como é evidente -, quis e conseguiu, por muito que afirme que a ratio última do seu comportamento era a Dra. BB, e até por causa da Dra. BB, objecto da sua perturbadora paixão.
Verifica-se, desta forma e sem margem para dúvida, o elemento subjectivo do tipo.
2. Do crime de maus tratos:
Louve-se o esforço, no contexto de uma motivação de recurso, do arguido em fazer a resenha possível da doutrina e da jurisprudência sobre o tipo legal de crime p. e p. no art. 152º do C. Penal, actualmente epigrafado de maus tratos.
Louvável, mas inglório, tendo em conta o que com a mesma pretendia!
A conclusão incontornável é a de que está demonstrada a factualidade que releva para que se possa dizer que o relacionamento entre o arguido e a Dra. BB foi retomado e que passaram a viver em condições análogas às dos cônjuges a partir do dia 6 de Março de 2006.
Quer na doutrina quer na jurisprudência o que tem relevo para o enquadramento da norma em referência é a concreta existência de uma relação conjugal, formal ou de facto, não curando nenhuma dessas instâncias de discutir a intensidade, a normalidade, a duração desse relacionamento numa área em que não existem figurinos pré-definidos. Pode ser um relacionamento de muitos anos ou de poucos dias, não é isso que importa, mas sim que esse relacionamento exista e que, nesse contexto, seja posta em causa a dignidade humana da vítima.
Não releva também, nem interessa sequer discutir isso, o facto de a ofendida ser o elemento economicamente mais favorecido do casal e, assim, não depender economicamente do arguido.
Por outro lado, é infindável o número e a variedade de situações em que se podem verificar actos objectivamente integráveis no tipo legal de crime de maus tratos, para além das "clássicos" agressões físicas ou psicológicas.
Haverá tantas formas possíveis de cometimento dos factos como pode resultar da imaginação de homens ou mulheres no âmbito de uma relação em que um dos membros opta por ter contra o outro "... um tratamento ofensivo da dignidade pessoal, com a consequente impossibilidade de desenvolvimento da personalidade..."e isto porque "... a criminalização dos maus tratos conjugais não se reconduz à punição de qualquer tipo de agressão física, verbal, sexual ou psíquica mas antes à necessidade de proteger quem, no âmbito de uma relação conjugal, formal ou de facto, vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçada com tais condutas" in "Ousar Vencer - A Violência sobre as Mulheres na Família"- APMJ (Associação Portuguesa de Mulheres Juristas), p. 19/20.
No caso concreto que nos ocupa é manifesto que os factos cometidos pelo arguido em que a Dra. BB é vítima são enquadráveis no tipo legal de crime de maus tratos a cônjuge, e resultam num exemplo, para além dos exemplos clássicos, de que a mente humana é fértil e a imaginação não tem limites, mesmo neste campo, ou também neste campo, ou, porque não, sobretudo neste campo!
Veja-se a situação pouco comum de o próprio "agressor" agir como "protector" da vítima e pela mesma ser tido como tal: a situação é pouco comum mas não será, certamente, inédita!
Parece-nos evidente que este item é mais um dos que será votado ao insucesso no recurso que ocupará V. Ex s.
D – DA MEDIDA DA PENA:
O arguido pretende que se considere que agiu no quadro duma doença psíquica que lhe afectou a capacidade de determinação, a qual estava reduzida em termos de se considerar a sua imputabilidade diminuída, com reflexo na medida da culpa e, consequentemente, da concreta medida da pena aplicada.
Mais uma vez, carece de razão!
Correndo o risco de alguma repetição não podemos deixar de afirmar, uma vez mais, que, quer da factualidade provada – factos praticados pelo arguido e contexto em que os cometeu -, quer da prova pericial que o tribunal teve acesso a apreciar, não resulta qualquer diminuição da culpa do arguido uma vez que tal não consente a circunstância de apenas haver uma diminuição “em grau ligeiro” da respectiva “capacidade de determinação”.
Há sim que enfatizar dois aspectos que nos parecem muito importantes:
- Primeiro: “a personalidade prévia” (ver fls. 699, 8.3) do Arguido que, mais do que a perturbação psíquica de que sofria, determinou aquele comportamento e, mais ainda, a gravidade daquele comportamento!
- Segundo: apesar da referida perturbação psíquica foi o arguido “…capaz de delinear e executar um plano de acção dirigido…” e teve um comportamento “…complexo, organizado, ponderado…” (ver fls. 696/697) a permitir, ao invés do que pretende o arguido, que se aplique a pena, como aliás o tribunal aplicou tendo em atenção, um “…muito alto grau de intensidade do dolo…” – ver fls. 1002.
A concreta medida da pena ponderou todos os itens que à respectiva escolha presidem, é adequada e esta fundamentada.
Sobre esta questão diremos o que se nos oferece dizer sobre a decisão que o arguido pretende criticar e já em jeito de conclusão:
É uma decisão muito bem elaborada, quer formal, quer substancialmente e fez uma assinalável justiça do caso concreto.
É uma decisão prestigiante para os Exmos Desembargadores que a elaboraram e para o nosso sistema de justiça!
Tudo o que se disse, esperamos, será o suficiente para demonstrar o que nos parece ser, para V.Exas, tarefa fácil:
Proferir decisão no sentido de que o acórdão recorrido não merece censura.
Certamente será mantido o acórdão recorrido.

Neste STJ, o sr. Procurador-Geral Adjunto manifestou concordância com a posição anteriormente assumida pelo MP, remetendo para a sua resposta.
Realizada a audiência de julgamento, nos termos legais, cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO

O recurso abrange a matéria de facto e a matéria de direito, pois a decisão da Relação foi proferida em 1ª Instância.
São as seguintes as questões colocadas pelo recorrente:
A) Impugnação da matéria de facto quanto aos factos descritos nos nºs 6, 30 a 32, 34, 52 e 69 dos factos provados, e dos factos indicados nos nºs 111, 112, 114, 116, 118 a 120 e 123 dos não provados.
B) Erro notório na apreciação da prova.
C) Não cometimento do crime de coacção contra órgãos constitucionais (art. 333º, nº 1 do CP).
D) Não cometimento do crime de maus tratos (art. 152º do CP).
E) Medida concreta da pena (e sua suspensão).
Para apreciação destas questões, importa, antes de mais, conhecer a matéria de facto apurada, que é a seguinte:

1. O Arguido conheceu Dra. BB no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, quando ambos aí exerceram funções, a Dra. BB, como Juíza de Direito, na 5ª Vara Criminal, e o Arguido, como Procurador da República, nas Varas Criminais de Lisboa.
2. Em Junho de 2004 o Arguido iniciou um relacionamento amoroso com a Dra. BB.
3. A 10 de Junho de 2004 o Arguido e a Dra. BB passaram a residir juntos.
4. O relacionamento entre o Arguido e a Dra. BB foi pautado por fases de instabilidade, com períodos de aproximações e de separações, tendo ocorrido vários rompimentos, com separação, por três vezes.
5. A primeira separação entre o Arguido e a Dra. BB ocorreu no Natal de 2004. A segunda no final de Abril de 2005 e a terceira no dia 25 de Janeiro de 2006. Nessa data deixaram de fazer vida em comum.
6. O relacionamento entre o Arguido e a Dr. a BB foi reatado na noite do dia 5 para 6 de Março de 2006, data em que retomaram a vida em comum.
7. Em 1 de Março de 2006 iniciou-se na 5ª Vara Criminal de Lisboa, 3a Secção, o julgamento do processo NUIPC 4287/02. 6TDLSB - "processo das burlas ao Serviço Nacional de Saúde" -, em que foram julgados sete Arguidos, pela prática de crimes de burla agravada, falsificação de documentos, usurpação de funções e subtracção de documentos, e que envolviam prejuízo ao Serviço Nacional de Saúde de montante económico muito elevado.
8. Esse julgamento foi noticiado pela imprensa.
9. O Tribunal Colectivo era presidido pela Dra. EE sendo Juízas Adjuntas a Dra. BB e a Dra. JJ.
10. À data o Arguido exercia funções na 4ª Vara Criminal.
11. A realização desse julgamento implicou que aquelas Juízas tivessem estado em exclusividade a preparar a Audiência. O seu início foi atrasado, em relação à data inicialmente prevista, por incidente de recusa da Dra. EE, em circunstâncias que foram divulgados pela imprensa.
12. Todos estes factos eram do conhecimento do Arguido.
13. No dia 1 de Março, às 23.37h, o Arguido, que se encontrava na zona da Graça, efectuou um telefonema com o telemóvel número ............., de que era proprietário e utilizador, para o telemóvel número .............., pertencente à Dra. EE.
14. Estabelecida a ligação, ninguém falou, e depois de ouvir a voz da Dra. EE, a chamada foi terminada.
15. No dia seguinte, 2 de Março de 2006, às 08. 17h, através do número ............, o Arguido estabeleceu nova ligação para o telemóvel........., utilizado pela Dra. EE, e, disfarçando a voz para que parecesse uma voz feminina, disse: «o julgamento vai­-te levar à morte, o julgamento vai-te levar à morte».
16. Este telefonema, que associou ao recebido na véspera, e a frase que lhe foi dita, deixou a Dra. EE muito receosa pela sua integridade física.
17. Ainda no dia 2 de Março de 2006, o Arguido dirigiu-se às imediações do "El Corte Inglês", sabendo que a Dra. BB era habitual frequentadora dos cinemas daquele estabelecimento comercial e que estacionava sempre à superfície o automóvel de que é proprietária.
18. Aí chegado, o Arguido encontrou estacionado na Av. ....................., eixo central, em frente à Pastelaria Imperial, o automóvel de marca Mercedes, modelo SLK 200, de cor preta, e de matrícula ..-..-.., que sabia ser propriedade da Dra. BB. Então, entre as 20h e as 23,30h, utilizando objecto não identificado de natureza rígida e pontiaguda, o Arguido riscou a carroçaria em toda a sua extensão, com a excepção do capot, tendo causado prejuízos materiais avaliados em €1548.80.
19. O Arguido agiu de forma voluntária e consciente e com a intenção de causar estragos no veículo.
20. No dia 3 de Março de 2006, às 08.11 h, do telemóvel com o número ............., o Arguido voltou a estabelecer ligação para o telemóvel número ................, pertencente à Dra. EE. Não tendo esta atendido a chamada o Arguido deixou uma mensagem de voz, em tom ameaçador dizendo: “a tua filha vai pagar, vai pagar a tua filha".
21. O Arguido, conhecedor da vida familiar da Dra. EE, sabia de que a mesma é mãe de uma filha menor.
22. Nesse mesmo dia, às 11.52h, do telemóvel número ..............., o Arguido ligou para o telefone fixo número ............., instalado no domicílio da Dra. EE.
23. No dia 4 de Março de 2006, sábado, às 17.21 h, o Arguido do seu telemóvel com o número .............., efectuou uma chamada para o telemóvel com o número ............ pertencente à Dra. EE, que o atendeu, e disse: "andas com um polícia".
24. O Arguido agiu dessa forma, por saber que a Dra. EE tinha passado a andar com escolta policial. Este facto só era do conhecimento de um número restrito de pessoas.
25. O Arguido sabia que, procedendo daquela forma, aumentava o receio que a mesma tinha pela sua integridade física e dos seus familiares.
26. Nesse mesmo dia, às 20. 36h, o Arguido voltou a ligar do seu telemóvel número ............, para o telemóvel número .............., pertencente à Dra. EE.
27. No dia 5 de Março de 2006, domingo, entre as 07.06h e as 07.13h, o Arguido efectuou cinco comunicações telefónicas do seu telemóvel número.................. para o telemóvel número............., utilizado pela Dra. BB, tendo sido atendida apenas a primeira chamada, em que nada foi dito.
28. E, às 07.15h, o Arguido efectuou do telemóvel número.............uma chamada para o outro telemóvel, este com o número ..........., que o Arguido sabia ser utilizado também pela Dra. BB.
29. O Arguido sabia que as sucessivas chamadas telefónicas, com curtíssimos intervalos de tempo, constituíam uma forma de incomodar, amedrontar e intimidar a respectiva destinatária que, no contexto factual descrito, sentiria receio pela sua integridade física.
30. No dia 6 de Março de 2006, segunda-feira, às 10.57h, de uma cabine telefónica com o número ................, situada na R. Gomes Freire, o Arguido ligou para o Tribunal da Boa-Hora, através do número..............
31. Esta chamada telefónica foi atendida por DD, telefonista no Tribunal da Boa-Hora, a quem o Arguido, que não se identificou, pediu para passar a chamada para a 5ª Vara, 3a Secção, utilizando a expressão: “ligue-me para a quinta terceira".
32. Feita a transferência da chamada, e sendo a mesma atendida por CC, funcionária judicial, o Arguido, sempre sem se identificar, utilizando um tom de voz muito alto e falando de forma muito rápida, disse: "Diga ao colectivo da 5ª Vara que está aí uma bomba na sala".
33. Depois de CC ter avisado o Escrivão da Secção e as Juízas que constituíam o Colectivo, foi suspenso o julgamento que estava a decorrer, bem como todos os outros que estavam em curso. O edifício da Boa-Hora foi evacuado, por um período de uma hora, enquanto decorreu a intervenção da PSP para se averiguar se aí havia algum explosivo que pusesse em perigo pessoas e bens.
34. O Arguido agiu da forma descrita bem sabendo que impedia o normal funcionamento do julgamento que decorria na 5ª Vara, e de todos os outros julgamentos ou diligências que se estivessem a realizar naquele edifício, durante aquele lapso de tempo.
50

35. No dia 6 de Março de 2006, cerca das 13,30h, o Arguido, utilizando no telemóvel o cartão número ................., que entretanto adquirira, enviou um SMS para o telemóvel número ............, utilizado pela Dra. BB, com o seguinte texto: «agora tens um xibo... ah! e a tua neta é tão sexy».
36. O Arguido sabia que a referida Dra. BB é avó de uma neta ainda criança.
37. Ainda no dia 6 de Março de 2006, durante a tarde, o Arguido colocou no gabinete da Dra. BB um papel onde escreveu, pelo seu próprio punho, a letra de imprensa, com tinta vermelha, a seguinte frase: «putas, é só o começo da festa R.I.P.».
38. Na sequência destes factos, e por indicação da PJ, as Dras. EE e BB passaram a ser acompanhadas por elementos do Corpo de Segurança Pessoal da P.S.P. e passaram a estar sob intercepção os telemóveis e os telefones fixos que utilizavam.
39. Este facto era do conhecimento do Arguido por então já ter reatado o seu relacionamento com a Dra. BB.
40. Por essa razão, aquelas adquiriram novos telemóveis, com outros cartões, de molde a, de forma sigilosa, poderem estabelecer os contactos que entendessem nas suas vidas privadas. A Dra. BB, que utilizava o n° ................ da rede Vodafone, passou também a utilizar o n° ................. da rede TMN.
41. Este facto era também do conhecimento do Arguido.
42. No dia 9 de Março de 2006, quinta-feira, às 10.18h, através do cartão número ..............foi enviado pelo Arguido um SMS para o telemóvel número ............, utilizado pela Dra. BB, dizendo «o xibo saiu estás só puta... já vais ver».
43. No dia 10 de Março de 2006, sexta-feira, às 17.26h, através do telemóvel com o número ..............., o Arguido ligou para o telemóvel número ..............., utilizado pela Dra. BB, tendo produzido sons equiparáveis aos de disparos de uma arma de fogo.
44. Nesse mesmo dia, cerca das 18.00h, o Arguido ligou para o telemóvel número ..............., utilizado pela Dra. EE, tendo produzido sons equiparáveis aos de disparos de uma arma de fogo.
45. No dia 11 de Março, às 18.02 h, duma cabine telefónica com o número ..............., sita na Av. ............, em frente ao nº ......., o Arguido estabeleceu uma ligação telefónica para o telefone fixo número ............... instalado em casa da Dra. EE.
46. No dia 12 de Março de 2006, domingo, cerca das 13.00h, o Arguido colocou à porta do apartamento da Dra. BB uma página da necrologia do jornal "Correio da Manhã", com que esta se deparou quando saiu de casa.
47. O Arguido agiu desta forma no contexto dos factos descritos.
48. No seguimento desse desígnio, no dia 13 de Março de 2006, segunda-feira, entre as 12.15h e as 12.25h, o Arguido colocou do lado de fora da porta do Gabinete da Juíza da 5a Vara Criminal, um papel com duas cruzes, uma suástica e a inscrição R.I.P.
49. Nesse mesmo dia, cerca das 12.22h, utilizando o telemóvel número ..............., o Arguido enviou um SMS para o telemóvel número ..............., utilizado pela Dra. EE com os dizeres: «diz à JJ que os pretos vão de vez».
50. O Arguido agiu assim para que a Dra. EE transmitisse o teor desta mensagem à Dra. JJ.
51. O teor desta mensagem referia-se ao facto de a Dra. JJ ser de ascendência goesa.
52. Ainda nesse dia, às 13.10 h, duma cabine telefónica com o número ..............., situada nos Armazéns do Chiado, o Arguido telefonou para o telefone fixo número ..............., instalado no Restaurante "Central da Baixa", onde as senhoras Juízas, que constituíam o Colectivo da 5ª Vara, se encontravam a almoçar, dizendo, para o empregado do estabelecimento que atendeu a chamada, que se encontrava uma bomba no local.
53. Este contacto telefónico e o seu teor foram comunicados às Sras. Juízas no final da refeição.
54. No dia 15 de Março de 2006, e na sequência dos factos referidos no ponto 18, a Dra. BB utilizou nas suas deslocações um automóvel cedido pela oficina onde mandara reparar o seu carro.
55. Nessa ocasião, estava acompanhada por um agente do Corpo de Segurança Pessoal da PSP.
56. Sabendo disto, às 16.33h, o Arguido utilizando o cartão com o número de telemóvel ..............., que entretanto adquirira, enviou para o telemóvel ..............., utilizado pela Dra. BB, um SMS com os dizeres: "puta que belo pópó e o xibo mudaste para um mais giro ou é polícia?".
57. Ainda nesse dia, cerca das 18.33h, do telemóvel número ............... o Arguido enviou, para o telemóvel número ..............., utilizado pela Dra. EE, um SMS dizendo: “Ó cancerosa os teus filhos vão primeiro".
58. O Arguido sabia que a Dra. EE sofrera de doença do foro oncológico, facto esse que era do conhecimento apenas de um núcleo restrito de seus familiares, colegas e amigos.
59. No dia 18 de Março de 2006, sábado, às 11.54h, através do telemóvel número ..............., o Arguido enviou para o telemóvel número ..........., utilizado pela Dra. BB, um SMS dizendo: "sabemos que saíste, fugiste-nos, vamos dar-te descanso depois verás".
60. O Arguido encontrava-se com a Dra. BB em Ferreira do Zêzere. A Dr. a BB não tinha dado conhecimento a ninguém da sua ausência de Lisboa.
61. Ainda nesse dia, às 12.04 h, utilizando o telemóvel número ..............., o Arguido enviou para o telemóvel número ..............., utilizado pela Dra. EE, um SMS.
62. No dia 20 de Março de 2006, segunda-feira, às 12.59 h, do telemóvel número ................, o Arguido efectuou uma ligação para o número.........., utilizado pela Dra. JJ, e simulando uma voz feminina, em tom ameaçador, disse: “JJ..JJ” e proferiu frases imperceptíveis.
63. Nesse mesmo dia, às 16.51 h, do telemóvel número ..............., o Arguido ligou para o telemóvel número..............., utilizado pela Dra. BB, e fez com que se ouvissem sons equiparáveis aos de disparos de arma de fogo.
64. No dia 22 de Março de 2006, quarta-feira, às 15.54h, utilizando o telemóvel ..............., o Arguido ligou para o telemóvel número ..............., utilizado pela Dra. JJ. Apenas se fizeram ouvir frases imperceptíveis, risos e tosses.
65. No dia 23 de Março de 2006, às 14.51h, quinta-feira, e do telemóvel com o número ..............., o Arguido enviou um SMS para o telemóvel com o número ..............., utilizado pela Dra. EE, com o seguinte teor: "fizeram bem entre as árvores com carabina uma limpeza".
66. Nesse mesmo dia, às 15.00h, utilizando o telemóvel com o número ............... o Arguido enviou um SMS para o telemóvel com o número..............., utilizado pela Dra. BB, dizendo: "puta mudas de homem a toda a hora gostei de te ver num dos nossos táxis até os entrefolhos fotografamos - INTERNET".
67. O Arguido praticou todos e cada um dos factos atrás descritos sabendo que causava as perturbações descritas no ponto 33) e que causava os estragos materiais descritas no ponto 17, e que às Dras. BB e EE causava receio pelas suas vidas ou integridade física e ainda que ofendia a honra e consideração das mesmas pessoas.
68. O Arguido agiu da forma descrita de modo a criar em torno daquelas Magistradas e respectivas famílias um clima de intimidação e de medo que as mesmas associassem à realização do julgamento referido no ponto 7.
69. O Arguido agiu como descrito de molde a criar à Dra. BB uma situação de perturbação e intranquilidade que facilitasse a reaproximação e o reatar da relação, o que conseguiu.
70. O Arguido praticou os factos referidos de forma livre e consciente.
71. A data dos factos o Arguido encontrava-se afectado por um episódio depressivo no contexto de uma depressão major recorrente e em personalidade vulnerável. Manteve a capacidade de processamento cognitivo, lógica, raciocínio e inteligência. Quanto à vontade mostrava-se capaz de delinear e executar um plano de acção dirigido visando um objectivo pré-definido. Apresentava um comportamento complexo, organizado e ponderado.
72. A organização da personalidade do Arguido tem traços de tipo "borderline", histeriformes, obsessivos, ansiosos e narcísicos.
73. O Arguido tem tido acompanhamento psiquiátrico, de forma intermitente, desde há mais de 30 anos. No decurso deste período o Arguido fez auto-medicação tomando apenas alguns dos medicamentos prescritos, quantos e quando bem entendia.
74. Em 2001 o Arguido sofreu um aneurisma cerebral.
75. Após os factos dos Autos o Arguido foi internado na urgência no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, onde permaneceu uma semana tendo depois sido transferido para a clínica psiquiátrica Casa de Saúde de Carnaxide, onde se manteve em tratamento durante três semanas.
76. No final de Abril de 2006 o Arguido foi para Ferreira do Zêzere onde possui uma casa, ali tendo permanecido, sempre de baixa médica, até Setembro de 2006, recuperando do estado depressivo, com o acompanhamento e ajuda de alguns amigos pessoais.
77. De 13 a 28 de Dezembro de 2006, na sequência de um agravamento do seu estado depressivo e da manifestação de tendências suicidas, esteve novamente internado no Hospital Júlio de Matos.
78. Em Junho de 2004 o Arguido e a Dra. KK acordaram sobre o exercício do poder paternal dos 3 filhos de ambos.
79. O Arguido é pai muito dedicado de três filhos, de 26, 19 e 13 anos de idade, para cuja educação e sustento contribui, com uma prestação de 1.650 €, 14 vezes por ano.
80. Como Magistrado do Ministério Público, o Arguido esteve colocado na comarca de Barcelos (1984-1988), pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa (1988-1993) pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa (1993-1998) e pelo Tribunal Judicial de Almada (1998-1999), locais onde Colegas do Ministério Público, Magistrados Judiciais, Advogados e Funcionários Judiciais sempre o consideraram um magistrado de grande competência técnica e de muito elevada dedicação à função e, bem assim, sempre reconheceram no Arguido qualidades humanas invulgares, evidenciadoras de grande equilíbrio.
81. Em 1999 o Arguido foi convidado para Director Nacional Adjunto da Polícia Judiciária, funções que exerceu até 2002, altura em que pediu a cessação da comissão de serviço à então Ministra da Justiça, Dra. Celeste Cardona, num contexto meramente político e porque entendeu dever acompanhar a cessação de funções do Director Nacional, Dr. Luís Bonina.
82. Enquanto Director Nacional Adjunto da Polícia Judiciária o Arguido chefiou um departamento com mais de trezentos funcionários, entre funcionários administrativos e de investigação criminal, tendo-se deslocado várias vezes ao estrangeiro, nomeadamente em representação do Estado Português no Comité STOP (tráfico de seres humanos), com sede em Bruxelas, tendo ainda acompanhado activamente todo o processo que conduziu à alteração da lei orgânica da Polícia Judiciária.
83. Enquanto desempenhou essas funções na Polícia Judiciária, o Arguido evidenciou-se pelo seu sentido de equilíbrio e de constância de comportamento, sendo certo que todos que com ele aí trabalharam guardam dele a ideia de um magistrado muito competente, extremamente dedicado ao trabalho e pautando a sua actividade por uma vivência de grande proximidade com o pessoal da investigação criminal.
84. Após cessação de funções na Polícia Judiciária, o Arguido foi colocado, como Procurador, no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, tendo desempenhado funções, sucessivamente, nas 5ª e 4a Varas Criminais.
85. Na sua relação com Colegas, funcionários e advogados o Arguido manteve sempre o comportamento que o caracterizou ao longo de todo o seu percurso pessoal e profissional. No plano profissional o Arguido manteve sempre a qualidade e dedicação que por todos lhe são reconhecidas.
86. Em 16.04.2007 o Arguido, já retirado de funções na Boa-Hora, após os factos destes autos, foi objecto de inspecção ordinária, tendo o Inspector proposto a classificação de Muito Bom, já confirmada por acórdão do Conselho Superior do Ministério Público.
87. O Arguido exerce funções no Tribunal de Trabalho de Vila Franca de Xira, desde Setembro de 2006, para onde foi transferido a seu pedido, funções a que se adaptou com facilidade e que vem desempenhando com níveis de prestação correspondentes a todo o seu trabalho anterior.
88. Nestas funções o Arguido granjeou o respeito consideração de Colegas e de magistrados judiciais, devido à sua competência técnica, dedicação profissional, equilíbrio e simpatia.
89. De Janeiro de 2007 até à suspensão de funções prestou serviço no Tribunal de Trabalho de Vila Franca de Xira.
90. O Arguido é uma pessoa socialmente empenhada. Exerceu funções na Direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, onde se destacou pelo seu empenhamento, dedicação e capacidade de relacionamento com todos os Colegas.
91. O Arguido encontra-se actualmente a frequentar um Curso de Relações Internacionais, na Universidade Autónoma de Lisboa.
92. A partir de Setembro de 2005, e durante o período em que o Arguido e a Dra. BB co-habitaram, as despesas relativas à compra do apartamento em que viveram, bem como os gastos mensais de manutenção da casa eram assegurados pela Dra. BB no montante global de cerca de 1.400 €.
93. No período em que ocorreram os factos dos Autos o Arguido acompanhou a Dra. BB e manifestou-lhe em mais de que uma ocasião o seu apoio e solidariedade.
94. No dia 23 de Março de 2006 o Arguido e a Dra. BB puseram termo ao seu relacionamento e deixaram de co-habitar.
E, como não provados, resultaram os seguintes factos:
95. A empregada doméstica da Dra. EE, LL, atendeu o telefonema referido no ponto 22 e o Arguido após ter inquirido se se tratava da residência da Dra. EE e ter obtido resposta afirmativa, disse-lhe que havia uma bomba no carro da Dra. EE.
96. O Arguido agiu da forma descrita de vontade livre e consciente e sabendo que LL transmitiria à Dra. EE o teor daquele telefonema, e que tal a deixaria ainda mais temerosa pela sua integridade física e dos seus familiares, como efectivamente aconteceu.
97. No telefonema referido no ponto 23 o Arguido deu várias gargalhadas e simulou uma voz feminina.
98. O telefonema referido no ponto 26 foi atendido pelo Agente Principal da PSP, do Corpo de Segurança Pessoal, MM, que estava encarregado da segurança pessoal da referida Magistrada Judicial. Neste, o Arguido e disse: «vou-te apertar o pescoço", simulando uma voz feminina. A esta frase seguiu-se o som de palmas.
99. A Dra. BB não atendeu o telefonema referido no ponto 28.
100. Ao fazer o telefonema referido no ponto 43 dos factos provados, o Arguido deu pancadas secas com um agrafador num furador de papel.
101. No telefonema referido no ponto 44 dos factos provados, o Arguido deu pancadas secas, com um agrafador num furador de papel.
102. Nessa ocasião, o Arguido encontrava-se no gabinete que utilizava no Tribunal da Boa-Hora.
103. O telefonema referido no ponto 45 foi atendido por NN, menor e filho da Dra. EE a quem o Arguido disse: «cheira-te a gás, cheira-te a gás?»
104. O Arguido agiu dessa forma sabendo, e querendo, que o menor NN contaria à sua mãe, como contou, o teor daquele telefonema, o que aumentou o receio e sentimento de insegurança daquela.
105. No telefonema referido no ponto 45 dos factos provados, o Arguido utilizou uma voz gritada e um tom ameaçador.
106. No telefonema referido no ponto 63, o Arguido deu pancadas secas com um agrafador num furador de papel.
107. O SMS enviado pelo Arguido, referido no ponto 61, dizia: "descansa puta, a semana que vem vai ser…".
108. Agindo da forma descrita no ponto 49, o Arguido pretendia, e conseguiu, ofender a honra e consideração da Dra. JJ
109. E pretendia também, e conseguiu, causar receio à Dra. JJ, pela sua vida ou integridade física.
110. O Arguido continuou a agir da forma descrita de forma a não levantar suspeitas.
111. A causa da conduta do Arguido residia na dualidade de sentimentos relativamente à Dra. BB.
112. O Arguido soubesse que uma investigação policial sumária e incipiente permitiria imediatamente detectar a origem dos telefonemas a partir do momento em que a visada, Dra. BB, participasse que se estava a passar à entidade policial competente e mesmo após saber que a Polícia Judiciária se achava já a investigar a situação por solicitação da Dra. BB.
113. Quando utilizou outros telemóveis para a prática de factos da mesma natureza, o Arguido manteve sempre consigo o seu telemóvel pessoal, devidamente ligado.
114. No exercício das suas funções na Polícia Judiciária competia-lhe, entre outras coisas, despachar os pedidos de intercepções telefónicas, acompanhando muitas vezes as mesmas, o que lhe deu um conhecimento muito especial de todos os mecanismos relacionados com as escutas telefónicas, nomeadamente o seu alcance e meios de detecção e listagem retroactivos.
115. As pessoas que lidavam mais de perto com o Arguido no Tribunal da Boa-Hora aperceberam-se que o Arguido dava mostras de algum desequilíbrio crescente, à medida que a relação deste com a Dra. BB ia conhecendo situações de crescente instabilidade.
116. A Dra. BB era o objecto absoluto da paixão do Arguido, mas, simultaneamente, este via-a como a responsável pela ruína em que a sua vida se havia tomado.
117. A relação com a Dra. BB havia levado o Arguido a aceitar um acordo para regulação do poder paternal com a sua ex-­mulher economicamente ruinoso e a criar um quadro altamente perturbador para o relacionamento daquele com os três filhos do casamento que tivera com a mãe destes.
118. No início de Março de 2006 o Arguido estava exausto, vivenciando um episódio psicótico, de intensidade e duração muito concentradas, no contexto de grande pressão e tensão emocional, o que lhe afectara as capacidades de avaliação e determinação.
119. No decurso daquele período de três semanas o Arguido viu-se mergulhado num quadro de dualidade, oscilando entre os actos afectivos e amorosos próprios de uma relação que profundamente desejava e os actos de natureza oposta, agressivos e ameaçadores, visando estranhamente a pessoa amada, cujo desvalor bem conhecia e que não desejava mas que, ainda assim, se sentia impelido a concretizar e que não era capaz de controlar.
120. Deste modo, durante todo período a que respeitam os factos dos Autos, o Arguido não definiu qualquer enredo ou estratégia pré-­determinada antes actuou sempre ao sabor dos impulsos que a cada momento se manifestaram e que não foi capaz de controlar.
121. Só uma afectação grave do equilíbrio do Arguido explica o uso recorrente do seu próprio telemóvel (...............) para efectuar as chamadas e enviar as mensagens descritas,
122. O comportamento perturbado e errático do Arguido, fazendo uso reiterado de instrumento que permitiria detectar com muita rapidez a origem das chamadas telefónicas, permite concluir que, intuindo que se sentia incapaz de pôr cobro ao processo vertiginoso em que achava enredado, o Arguido lançou mão de um meio - o seu telemóvel - que propiciaria uma rápida intervenção de terceiros que o levariam a suspender uma conduta que intimamente sabia ser grave.
123. A relação que manteve com a Dra. BB foi causadora de estados de depressão grave do Arguido, que determinou que este tivesse sido acometido de estados de prostração, os quais determinaram o recurso deste a ajuda psiquiátrica.
124. O estado de descontrolo em que se encontrava determinou, inclusivamente, a ocorrência de um acidente de viação por despiste da viatura que conduzia.
125. O Arguido encontra-se arrependido.

E fundamentou a matéria de facto da seguinte forma:
(…)
Deste modo, e no que toca às declarações do Arguido, refira-se que este confessou expressamente a prática dos factos relativos aos estragos causados no carro da Dra. BB, negou ter cometido os relativos ao anúncio da existência de uma bomba no Tribunal da Boa-Hora e admitiu, na generalidade, ter praticado todos os outros factos que lhe eram imputados.
Pelo que, é curial explicitar o modo como este Tribunal Colectivo firmou a sua convicção quanto à prática pelo Arguido dos factos cuja prática negou e daqueles que apenas admitiu na generalidade.
Pois que, em conformidade com o disposto no artigo 32° nº 2 da Constituição de República o arguido goza do direito ao silêncio sobre os factos que lhe forem imputados, circunstância de que é, aliás, expressamente informado antes do interrogatório - cfr. arts. 141°, nº 4, 143°, n° 2, 144° nº 1 e 343°, nº 1 do CPP, sendo que o seu silêncio do arguido não pode ser interpretado como presunção de culpa.
Por outro lado, a prestação de declarações não verdadeiras não é passível de qualquer sanção, ainda que se não trate de qualquer direito próprio à mentira.
Com efeito, se o arguido se negar a prestar declarações ou a responder, seja qual for a fase do processo o seu silêncio não poderá ser valorado como meio de prova pois está legitimado como exercício de um direito de defesa que em nada o poderá desfavorecer - cfr. art. 343º n° 1 e 345º nº 1, do CPP.
Se, porém, o arguido prestar declarações o seu valor probatório será livremente apreciado pelo Tribunal, nos termos gerais.
Assim, relativamente aos factos cuja prática o Arguido negou, e que são os relativos ao anúncio da existência de uma bomba no Tribunal da Boa-Hora, foi relevante para a atribuição da sua autoria ao Arguido o facto de ter sido realizada através de um telefonema, meio que foi utilizado pelo Arguido para a prática dos restantes factos, designadamente a circunstância de à semelhança de outros dois telefonemas ter sido realizado de um posto público, e de tal telefonema ter ocorrido no contexto e com o escopo dos factos admitidos pelo Arguido - realização de telefonemas intimidatórios referidos nos Autos - bem como ainda o facto de as expressões utilizadas nesse telefonema - «ligue-me para a quinta terceira» (ponto 31) e «diga ao colectivo da 5a Vara...” (ponto 32) - serem próprias e habituais nas pessoas que exercem funções nos Tribunais, mormente no Tribunal da Boa-Hora.
Estas circunstâncias ponderadas juntamente e apreciadas na globalidade dos factos dos Autos criaram a este Tribunal Colectivo a convicção de ter sido o Arguido o autor do referido telefonema.
Já no que toca aos restantes factos - a realização dos restantes telefonemas e mensagens de voz e SMS - a convicção do Tribunal radica fundamentalmente na circunstância de o Arguido ter admitido que os realizou, muito embora refira não se recordar em concreto de um ou outro, aliada ao facto de a prova obtida através das interceptações telefónicas e do rastreio do tráfego telefónico ter indicado que as chamadas e mensagens tiveram a sua origem em telemóveis utilizados pelo Arguido. Facto este que se provou através da apreensão desses aparelhos e cartão SIM ao Arguido, e ainda da confirmação bancária da titularidade da conta adstrita ao carregamento de um dos telemóveis utilizados pelo Arguido.
Importa referir também que este Tribunal Colectivo considerou como não provado o facto alegado pelo Arguido referente ao seu invocado arrependimento, na medida em que este conceito se tem necessariamente que materializar em factos dos quais resulte que o Arguido avalia negativamente os factos praticados e se mostra disposto a os não repetir. Ora, das declarações do Arguido extrai-se que muito embora este considere os factos como não abonatórios da sua personalidade, nunca os assume como tendo ocorrido por sua vontade, mas sim sempre como resposta ou reacção a uma situação criada pela sua companheira de então, a ofendida Dra. BB, a qual o teria colocado num estado de perturbação emocional tal que teria diluído ou mesmo apagado qualquer responsabilidade na formação da sua vontade.
Tal posição, independentemente do que adiante se verá quanto à sua caracterização psíquica e psicológica, não é compatível com a assumpção de qualquer consciencialização do mal causado e consequentemente da correlativa contrição. Antes é indiciadora de uma motivação para a prática dos factos que remete para responsabilidade não do agente mas da vítima na ocorrência do mal que o agressor é "forçado" a causar-lhe.
Já no que toca à prova testemunhal produzida pelas ofendidas foi particularmente relevante para este Tribunal Colectivo o modo sério, digno e isento como depuseram, mormente relativamente à narração dos factos em que foram intervenientes directas, narração esta que em tudo foi corroborada pelos restantes elementos de prova, designadamente a relativa às intercepções telefónicas e relatórios de tráfego telefónico que confirmaram as datas das conversações havidas e teores das mensagens recebidas.
Quanto aos depoimentos das ofendidas é ainda de destacar a integridade e nobreza manifestada pela ofendida Dra. EE, que sem ter deixado de elucidar este Tribunal Colectivo com toda a minúcia sobre os vários telefonemas e mensagens recebidas, entendeu dever perdoar ao Arguido todo o sofrimento que este lhe causou, a si e aos seus filhos.
Bem como cumpre distinguir a forma corajosa e digna como a ofendida Dra. BB prestou o seu depoimento, que conseguiu superar de forma notável a angústia e o tormento, que foi evidente para este Tribunal Colectivo, lhe causou o reviver de factos que, notoriamente, lhe provocaram grande dor e ansiedade.
Relativamente às restantes testemunhas de acusação, é curial indicar o modo preciso, claro e categórico como esclareceram este Tribunal Colectivo sobre os factos que presenciaram, mormente DD, telefonista no Tribunal da Boa Hora, CC, OO e PP, funcionárias judiciais daquele Tribunal, que relataram de um modo muito vívido e explícito todos os factos atinentes ao anúncio de bomba no Tribunal da Boa-Hora.
Também as testemunhas de defesa foram relevantes na formação da convicção do Tribunal, quer no que toca à descrição do modo como o Arguido agiu após a ocorrência dos factos dos Autos, quer sobre o seu estado psíquico após a prática dos factos e a sua evolução desde então, quer ainda muito especialmente ao comportamento cívico e profissional exemplar do Arguido.
Estes depoimentos mereceram toda a credibilidade deste Tribunal Colectivo seja pelo modo isento e imparcial com que foram prestados seja pela honorabilidade e respeitabilidade pública das testemunhas.
Não obstante o teor destes depoimentos, relativamente à caracterização da personalidade do Arguido, os elementos principais na formação da convicção deste Tribunal Colectivo quanto àqueles factos radicaram nos Relatórios sobre os Exames Periciais a que o Arguido foi sujeito e nos esclarecimentos prestados pelo perito médico e pela perita psicóloga que os realizaram.
Na verdade, no conjunto da apreciação da prova, este Tribunal Colectivo deu grande relevância à prova pericial, pois que atenta a especificidade da matéria sobre que versou, o teor dos Relatórios periciais juntos aos Autos e os esclarecimentos prestados em Audiência de Julgamento contribuíram decisivamente para a avaliação dos factos em apreço.
Assim, o exame psiquiátrico do Arguido revela que a depressão major que o arguido padece é de natureza recorrente, não tendo sido despoletada aquando, ou por causa, dos factos dos Autos, antes já existia anteriormente a estes. Aliás, a este propósito refira-se que é o próprio Arguido quem nas suas declarações indica ter acompanhamento psiquiátrico, de forma intermitente, desde há mais de 30 anos.
Sendo certo que ao longo desses 30 anos nunca tal doença o impeliu a ter comportamentos como os em apreço nestes Autos.
O mesmo exame psiquiátrico atesta também que a patologia que o afecta, "no momento da prática dos factos e para estes (o Arguido) estaria globalmente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação, integrando pois pressuposto médico-legais de imputabilidade", e a sua "capacidade de determinação estaria diminuída em grau ligeiro".
Ou seja, aquela perícia médica indica com clareza que a depressão major recorrente não afectou de modo decisivo a capacidade de entender e querer do Arguido, ou seja de avaliar a ilicitude dos factos em causa e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Do mesmo modo, a perícia psicológica enfatiza o "funcionamento intelectual global de nível superior, com processamento cognitivo íntegro" que o Arguido apresenta, indicando também que as características da sua personalidade o façam reagir "de uma forma afectiva e mais emocional, agindo com algum egocentrismo e impulsividade a situações potenciais de tensão e stress".
Todos estes indicadores foram extremamente relevantes na formação da convicção deste Tribunal Colectivo, como já se referiu, permitindo enquadrar a conduta do Arguido não numa atitude de efémero e passageiro desvairo provocado por uma descompensação afectiva, mas sim por uma vontade formada livremente, e que as limitações dessa liberdade não eram de molde a afectar decisivamente a sua capacidade de determinação.
Relativamente à prova documental cumpre indicar que a fidedignidade e genuinidade dos documentos juntos aos Autos não ofereceu qualquer dúvida a este Tribunal Colectivo, e nem aliás foi impugnada, pelo que lhe mereceram toda a credibilidade para sustentarem a prova da ocorrência dos factos a que se reportam.
Refira-se ainda que os factos alegados pelo Arguido relativamente ao seu processo de divórcio e regulação de poder paternal não foram dados como provados por este Tribunal Colectivo, nos exactos termos em que foram alegados pelo Arguido, por carência da respectiva prova documental.

Analisemos então as questões propostas pelo recorrente.

A) Impugnação da matéria de facto

a) A retoma da vida em comum entre o arguido e a Dra. BB (nºs 6 e 94 da matéria de facto)

Contesta o arguido a matéria do ponto nº 6 dos factos provados, que refere a retoma da vida em comum entre ele e a Dra. BB, a partir da noite de 5 para 6 de Março de 2006.
Segundo ele, os depoimentos prestados em audiência por ambos não permitem tirar essa conclusão.
De acordo com a matéria de facto, o arguido e a Dra. BB iniciaram um relacionamento amoroso em Junho de 2004, passando a residir juntos a partir do dia 10 desse mês, deixando de fazer vida em comum em 25 de Janeiro de 2006, após rompimentos, com separação, por três vezes (nºs 2 a 5).
Refere também a matéria de facto que a vida em comum foi retomada na noite de 5 para 6 de Março de 2006 (o já referido nº 6), até ao dia 23 de Março do mesmo ano (nº 94).
Não se especifica na fundamentação da matéria de facto quais os concretos meios de prova em que o Tribunal se baseou para considerar provados esses factos.
Mas terão, certamente, resultado dos depoimentos do arguido e da Dra. BB, pelo que importa analisá-los.
Eles não são de forma alguma coincidentes e, em grande medida, são opostos.
Quanto ao arguido, ele é peremptório em afirmar que o relacionamento iniciado em 5 de Março de 2006 era completamente distinto do anterior, de carácter precário, tendo cada um a sua casa, pois arrendara para si em Janeiro desse ano uma casa, para onde transportara todas as suas coisas (haviam procedido nessa ocasião à “partilha” de todos os objectos comprados em comum), tendo-se limitado, em Março, a transportar para casa da Dra. BB a roupa necessária e os objectos de higiene pessoal, pois era aí que dormia.
Por sua vez, a Dra. BB declarou considerar o reatamento de Março de 2006 como “mais um”, no quadro da relação mantida, com várias interrupções pelo meio, desde 2004, e que ela e o arguido viviam juntos “como um casal”. Reconheceu, porém, que o arguido não comparticipava nas despesas e encargos com a compra nem com a “manutenção” da casa (que era exclusivamente dela). Contudo, as despesas correntes do dia-a-dia eram comparticipadas pelos dois. Confirmou também que em Janeiro de 2006 haviam partilhado todos os bens adquiridos juntos, levando o arguido os seus para casa dele, e que, em Março seguinte, o arguido trouxera apenas para sua casa roupas e objectos de higiene pessoal.
Aliás, ficou provado, no nº 92 da matéria de facto, que as despesas com a compra do apartamento e os gastos mensais da manutenção da casa, a partir de Setembro de 2005 e durante o período em que “co-habitaram”, eram assegurados exclusivamente pela Dra. BB.
Destes dados poderá concluir-se que eles retomaram a “vida em comum”?
Não há dúvida de que o arguido passou a co-habitar com a Dra. BB, na casa desta, a partir de 5 de Março. Ele manteve a casa arrendada, mas não era aí que residia. A convivência entre ambos não era ocasional, era permanente, diária, ininterrupta, passavam juntos as noites, como os fins-de-semana (aliás por uma ou duas vezes foram passá-los fora de Lisboa, numa casa que o arguido possui em Ferreira do Zêzere). A co-habitação era, pois, absolutamente idêntica à de um casal.
Quanto às despesas e encargos, apenas as relacionadas com a compra e manutenção da casa não eram compartilhadas. Sem dúvida que essas seriam as despesas maiores, mas tal terá correspondido à vontade da Dra. BB: a de assegurar para si a propriedade exclusiva da casa. Aliás, foi a partir de Setembro de 2005, e apesar de a co-habitação com o arguido se ter mantido até Janeiro de 2006, que a Dra. BB passou a assumir tais encargos (ver nº 92 da matéria de facto), tendo ela inclusivamente devolvido então ao arguido a quantia de 5.000,00 €, que este lhe tinha entregue para comparticipar na entrada para a compra da casa. Tudo isso revela que a questão da propriedade da casa não interferia com a relação entre ambos. Ou seja, apesar de a casa pertencer exclusivamente à Dra. BB, essa era a casa onde ambos faziam vida em comum.
Também o facto de o arguido ter mantido, entre 5 e 23 de Março de 2006, a casa arrendada, aí guardando a maioria das suas coisas, não é significativo. Essa casa funcionava como uma espécie de “depósito” das suas coisas. Não era aí que residia, mas sim na casa da Dra. BB. E esse é o que é o facto decisivo: o arguido, na noite de 5 de Março, mudou-se para casa dela e com ela passou a viver até ao dia 23 do mesmo mês. Tal como anteriormente à (última) separação, em termos de comunhão diária de cama, mesa e habitação, à semelhança dos cônjuges.
E não foi um reatamento precário ou a prazo. Foi por tempo indefinido. É que essa relação só não continuou depois de 23 de Março porque nesse dia a Dra. BB descobriu que era o arguido o autor das ameaças e injúrias anónimas que lhe eram dirigidas. Se não fosse essa descoberta, o relacionamento continuaria indefinidamente, porque era uma relação com vocação duradoura.
Nenhuma diferença, ao menos significativa, é pois possível estabelecer entre o reatamento da vida em comum no dia 5 de Março e as anteriores retomas, após outras tantas separações. Foi mais uma, no quadro de uma relação, algo tumultuosa, mantida desde 2004. Mas, ao fim e ao cabo, sempre a mesma relação.
Uma relação que nunca foi ocasional ou precária, antes estável e duradoura, embora entrecortada por desavenças e separações, aliás como tantas vezes acontece com os casais, mesmo os unidos pelo laço do casamento.
Sendo assim, conclui-se que o arguido e a Dra. BB, durante o período entre 5 e 23 de Março de 2006, viveram em comunhão de vida, à semelhança dos cônjuges, pelo que nenhum censura há a fazer ao acórdão recorrido nesta parte.


b) As ameaças das bombas (nºs 30 a 32, 34 e 52 da matéria de facto)

Contesta também o arguido os factos constantes dos nºs 30 a 32, 34 e 52, na parte em que lhe atribui a autoria das chamadas telefónicas aí descritas.
Invoca o recorrente o testemunho das Dras. EE e BB e de DD e CC, além do auto de fls. 250, para afastar a sua responsabilidade quanto a estes actos.
Quanto a esta matéria o Tribunal recorrido indicou com precisão os elementos de prova em que se baseou, e que agora se retranscrevem:

Assim, relativamente aos factos cuja prática o Arguido negou, e que são os relativos ao anúncio da existência de uma bomba no Tribunal da Boa-Hora, foi relevante para a atribuição da sua autoria ao Arguido o facto de ter sido realizada através de um telefonema, meio que foi utilizado pelo Arguido para a prática dos restantes factos, designadamente a circunstância de à semelhança de outros dois telefonemas ter sido realizado de um posto público, e de tal telefonema ter ocorrido no contexto e nos Autos - bem como ainda o facto de as expressões utilizadas nesse telefonema - «ligue-me para a quinta terceira» (ponto 31) e «diga ao colectivo da 5ª Vara...» (ponto 32) - serem próprias e habituais nas pessoas que exercem funções nos Tribunais, mormente no Tribunal da Boa-Hora.
Estas circunstâncias ponderadas juntamente e apreciadas na globalidade dos factos dos Autos criaram a este Tribunal Colectivo a convicção de ter sido o Arguido o autor do referido telefonema.

Atentando na motivação, constata-se que o Tribunal concluiu pela autoria do arguido, na ausência de qualquer prova directa, unicamente com base em elementos de prova meramente indiciários: o “modus operandi” (chamada telefónica de cabine pública), o contexto em que é praticado o crime, a linguagem utilizada.
Bem frágeis se apresentam, contudo, estes indícios quando analisados com rigor.
Na verdade, do facto de se ter provado que o arguido tinha proferido ameaças (telefónicas) de diversa ordem nas pessoas das Dras. EE e BB, que integravam o colectivo da 5ª Vara Criminal, 3ª Secção, de Lisboa, não se pode extrapolar que todas as ameaças telefónicas que as abrangessem de alguma forma seriam necessariamente da autoria do arguido.
É evidente que, no específico contexto dos factos, ele é obviamente suspeito. Mas da suspeição à prova há um passo que é preciso dar (com elementos de prova seguros).
E que não é dado obviamente pelo facto de a voz anónima ter pedido a ligação à “quinta terceira”, pois essa forma de identificar o tribunal é corrente em todos os que trabalham ou lidam com os tribunais. Nem pelo facto de as chamadas provirem de uma cabine pública, pois é o procedimento normal em casos idênticos, isto é, de ameaças anónimas.
Os factos indicados pelo Tribunal recorrido (meio utilizado, contexto do crime, linguagem utilizada) são, insiste-se, meros indícios da autoria do crime pelo arguido, indícios que, para se converterem em prova, terão de ser confirmados ou comprovados por meios de prova minimamente seguros, que excluam a possibilidade de atribuição da autoria a outra pessoa.
Existirão esses meios de prova?
O arguido negou a autoria das ameaças de bombas e nenhuma testemunha identificou a sua voz.
No caso da ameaça feita para o Tribunal da Boa-Hora, um facto há assinalar: a Dra. EE refere que, pouco depois da interrupção do julgamento, devido à ameaça da bomba, preparando-se para sair do tribunal, enquanto se procedia à operação de detecção de explosivos, apareceu no átrio do tribunal o arguido, que a acompanhou, bem como às colegas, a um café das proximidades.
Sabe-se que pelas 10,23 horas desse dia o arguido se encontrava na Rua de Sapadores (localização celular do seu telemóvel – fls. 150) e que pelas 11,13 horas já se encontrava na Baixa (localização celular – fls. 161).
Tendo o telefonema sido feito da Rua Gomes Freire, às 10,57 horas, e sendo o julgamento interrompido de imediato (segundo a Dra. EE, pouco depois da 11,00 horas), o aparecimento do arguido no Tribunal da Boa-Hora cerca de um quarto de hora depois, a ser o autor da chamada, e tendo de percorrer o trajecto entre a Rua Gomes Freire e aquele Tribunal, seria muito pouco provável.
Acresce que, segundo o auto de fls. 250, o percurso entre a casa do arguido e a cabine telefónica donde foi efectuada a chamada demora cerca de 15 minutos, tempo substancialmente mais reduzido do que aquele que o arguido teria demorado a fazer no dia 6 de Março, caso fosse o autor da chamada, entre casa e a cabine telefónica (34 minutos).
Não existem, pois, nenhumas provas minimamente seguras que confirmem as “suspeitas” de envolvimento do arguido nas ameaças de bombas. Os fundamentos enunciados na motivação de facto, acima transcritos, não passam de indícios não comprovados.
Desta forma, os nºs 30 a 32, e 52 da matéria de facto passam a ter a seguinte redacção:

30. No dia 6 de Março de 2006, segunda-feira, às 10,57 h, de uma cabine telefónica com o nº .............., situada na Rua Gomes Freire, alguém, não identificado, ligou para o Tribunal da Boa-Hora, através do nº ................
31. Esta chamada telefónica foi atendida por DD, telefonista no Tribunal da Boa-Hora, a quem a pessoa não identificada pediu para passar a chamada para a 5ª Vara, 3ª Secção, utilizando a expressão: “ligue-me para a quinta terceira”.
32. Feita a transferência da chamada, e sendo a mesma atendida por CC, funcionária judicial, a pessoa não identificada, utilizando um tom de voz muito alto e falando de forma muito rápida, disse: “Diga ao colectivo da 5ª Vara que está aí uma bomba na sala.”
52. Ainda nesse dia, às 13,10 h, duma cabine telefónica com o nº ..............., situada nos Armazéns do Chiado, alguém não identificado telefonou para o telefone fixo nº ..............., instalado no Restaurante Central da Baixa, onde as Senhoras Juízas, que constituíam o Colectivo da 5ª Vara, se encontravam a almoçar, dizendo, para o empregado do estabelecimento que atendeu a chamada, que se encontrava uma bomba no local.
Por sua vez, o nº 34 passará, com a mesma redacção, a constar dos factos não provados.
c) A motivação da conduta do arguido

Pretende o recorrente que a prova produzida em audiência não permitiria dar como provado que a motivação da sua conduta era a de criar à Dra. BB uma situação de perturbação e intranquilidade que facilitasse a reaproximação e o reatar da relação entre ambos, matéria constante do nº 69 da matéria de facto.
Considera também que deveria considerar-se provada a matéria contida nos nºs 111 e 116 da sua contestação, que atribuem os motivos da conduta à sua dualidade de sentimentos em relação à Dra. BB.
Apoia-se o recorrente substancialmente no depoimento desta para demonstrar o bem fundado da sua posição.
Na verdade, a Dra. BB descreveu a sua relação com o arguido como de grande intensidade e simultaneamente muito tumultuosa, pautada por conflitos e mesmo separações, estas sempre da iniciativa do arguido.
É sobretudo com base neste ponto que o arguido pretende contestar a motivação que ficou provada: a sua intenção de reaproximação e reatamento da relação com a Dra. BB. Pois se foi sempre ele que punha termo à relação, tendo ela o desejo do seu reatamento…
No entanto, as provas não são de forma nenhuma claras quanto à motivação da conduta do arguido.
Este terá agido, como já veremos, num quadro de depressão episódica, mas ficou na obscuridade a motivação profunda da acção do arguido, pelo que o nº 69 da matéria de facto passará a ter a seguinte redacção:

69. O arguido agiu como descrito de molde a criar à Dra. BB uma situação de perturbação e intranquilidade.

d) O estado de perturbação do arguido e a questão da “imputabilidade diminuída”

Prossegue o arguido a sua impugnação da matéria de facto questionando que tivessem sido dados como não provados os factos alegados na contestação e que estão vertidos nos nºs 112, 114, 118, 119, 120 e 123 (factos não provados), sendo que os dois primeiros se referem aos conhecimentos que o arguido teria adquirido quando da sua passagem pela Polícia Judiciária sobre intercepções telefónicas e consequentemente sobre a facilidade na identificação do autor das chamadas ameaçadoras para a Dra. BB, caso esta participasse o caso à polícia, e os últimos sobre o “estado psicótico” em que o arguido se encontraria aquando dos factos, estado esse que afectaria a sua capacidade e de avaliação e de determinação, e consequentemente determinaria uma situação de imputabilidade diminuída.
Quanto aos dois primeiros números, a única prova invocada pelo arguido é constituída pelo depoimento do Dr. GG, que não é suficientemente preciso sobre as funções desempenhadas pelo arguido quando esteve na Polícia Judiciária, nem quanto aos conhecimentos que possa ter adquirido na área das escutas telefónicas.
Não há, por isso, razões para alterar os factos (negativos) contidos nos nºs 112 e 114 dos factos não provados.
Já quanto ao estado de saúde mental do arguido na época dos factos, a prova é abundante, constituída tanto pelos relatórios periciais juntos aos autos a fls. 681-700 (relatório psiquiátrico elaborado pelo Dr. HH) e a fls. 701-734 (relatório psicológico elaborado pela Dra. II) como pelos depoimentos prestados em audiência pelos peritos e ainda pela Dra. FF, médica do arguido ao tempo dos factos.
As conclusões do relatório psiquiátrico são as seguintes:

1. O examinando apresenta um quadro de Depressão Major Recorrente, episódio depressivo em remissão parcial, situação clínica prevista e definida nos principais sistemas de classificação psiquiátrica, como seja o D.S.M. – IV-TR, Manual de Diagnóstico e Estatísticas das Doenças Mentais da Associação Psiquiátrica Americana, 4ª edição revista, Washington, 2000.
2. Sem prejuízo do atrás afirmado, no momento da prática dos factos e para estes estaria globalmente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação, integrando pois pressupostos médico-legais de imputabilidade, atenta a integridade do processamento cognitivo, raciocínio lógico e compreensibilidade da situação contextual onde se inserem os actos, sendo que o examinado tem, não só enquanto pessoa comum, consciência da ilicitude dos actos, como possui conhecimentos jurídicos específicos na área criminal.
3. Ainda assim, e tendo em consideração a anomalia psíquica de que sofre, e em particular a vulnerabilidade da sua personalidade prévia, estamos em crer que a capacidade da determinação estaria diminuída em grau ligeiro, sem que todavia se atingisse um nível razoável, leia-se, de importância significativa.
4. Admitida que foi a presença de pressupostos médico-legais de imputabilidade, não se pronuncia o exame sobre a perigosidade, conceito jurídico que ultrapassa a competência pericial. Ainda assim, e para melhor auxiliar o Tribunal na sua decisão, enfatiza-se que foi realizada competente avaliação psicológica complementar, incluindo análise de características da personalidade independentes de estado psicopatológico, bem como check-lists específicas para avaliação de risco de violência, como sejam o PCL-R e o HCR-20.
5. Acresce dizer que deve manter consultas de tratamento psicofarmacológico e psicoterapêutico, que são compatíveis com qualquer contexto judicial que venha a ser decidido (prisão, medida de segurança, libertação), visando melhor tratar e prevenir sofrimento depressivo e impulsividade, bem como estimular estratégias de lidar com o dia-a-dia e resolução de problemas, destinando-se em última análise a tentar evitar a passagem ao acto suicidário, cuja probabilidade não nos parece negligenciável.
Por sua vez, o relatório psicológico concluiu:
1. AA apresenta, à data da observação, uma certa angústia aparentemente reactiva à matéria relatada nos autos. Os factos pelos quais se encontra acusado são descritos de uma forma clara, com juízo crítico, revelando uma correcta apreciação dos factos e simultaneamente uma capacidade de elaboração pessoal adequada.
2. Da avaliação psicológica realizada sobressai ainda uma organização da personalidade com traços de tipo borderline (estado limite), histeriformes, obsessivos, ansiosos e narcísicos. A socialização revela-se mantida, manifestando facilidade no contacto e identificação com os outros, revelando facilidade na empatia na relação pessoal e social. Manifesta respeito pelos outros e pelas normas sociais. Verifica-se uma reacção às situações vividas de uma forma afectiva e mais emocional, agindo com algum egocentrismo e impulsividade a situações potenciais de tensão e stress.
3. Ao nível cognitivo o examinado apresenta um global de nível superior, com processamento cognitivo íntegro, sem indicadores de deterioração mental ou de deterioração mnésica, apenas manifestando dificuldades na focalização da atenção.
Ouvidos em audiência, os peritos mantiveram basicamente o teor das conclusões transcritas.
Algo diferente foi o depoimento da Dra. FF disse que o arguido vivia em estado de depressão profunda ao tempo dos factos, com dificuldade em controlar os seus impulsos, e tendo mesmo estado num estado psicótico, que o impedia de ter uma avaliação correcta da realidade (neste aspecto divergindo claramente dos peritos). Já quando interrogada sobre a possibilidade de ambivalência de sentimentos do arguido relativamente à Dra. BB, a testemunha limitou-se a admitir essa possibilidade.
É evidente que o valor da prova pericial é claramente superior ao da testemunhal, aliás por força do princípio exposto no art. 163º do Código de Processo Penal (CPP), pelo que é à luz das conclusões dos relatórios periciais que se decidirá.
Ora, perante esses elementos de prova, não é possível chegar às conclusões que o arguido defende. Na verdade, nem a dualidade de sentimentos, nem a diminuição substancial ou significativa da sua capacidade de determinação e autocontrolo se provaram.
Ele agiu de forma obsessiva, num estado de depressão episódica, no quadro de uma depressão recorrente, sendo ele portador de uma personalidade vulnerável, com características obsessivas e narcísicas.
Vem referida uma tendência para a impulsividade em situações de tensão e stress, mas também, em contrapartida, a integridade do processamento cognitivo.
Em síntese, mantendo uma capacidade de avaliação íntegra, a personalidade do arguido revela alguma vulnerabilidade, que poderá afectar ligeiramente a sua capacidade de determinação, mas nunca em grau significativo.
É isso que resulta dos relatórios periciais. E que está vertido de forma adequada nos nºs 71 e 72 dos factos provados.
Portanto, nenhuma censura há a fazer à decisão de considerar como não provada a matéria constante dos nºs 112, 114, 118 a 120 e 123.

B) Erro notório na apreciação da prova

Considera o arguido que existe erro notório na apreciação da prova, quanto à matéria relativa ao crime de coacção contra órgãos constitucionais, na medida em que a fundamentação da decisão é insuficiente, tendo sido violado o princípio in dubio pro reo.
Este questão, colocada pelo arguido subsidiariamente em relação à impugnação da matéria de facto, está prejudicada, uma vez que atrás ficou decidido modificar os factos no sentido proposto pelo recorrente.

C) Crime de coacção contra órgãos constitucionais

Prejudicada está também a questão que o arguido coloca quanto à inexistência de dolo específico no crime de coacção contra órgãos constitucionais, daí inferindo a sua absolvição.
Na verdade, a absolvição do arguido é imposta desde logo pela nova redacção dada à matéria de facto, que afastou a imputação da autoria do crime ao arguido.

D) Crime de maus tratos

O arguido fora acusado de três crimes de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, nº 2, e três crimes de injúria agravada, p e p. pelos arts. 181º, nº 1 e 184º, todos do CP, relativamente aos factos praticados contra as juízas Dras. EE, BB e JJ.
No decurso do julgamento, a Dra. EE desistiu da queixa, desistência que foi homologada pelo Tribunal.
Quanto à Dra. JJ, considerou o Tribunal que os factos apurados não integram aqueles ilícitos criminais.
Relativamente à Dra. BB, na fase final do julgamento, o Tribunal entendeu que os factos praticados pelo arguido poderiam ser qualificados não como ameaças ou injúrias, mas sim como crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1 e 2 do CP, na redacção da Lei nº 7/2000, de 27-5, vigente à data dos factos, de forma que notificou o arguido nos termos e para os efeitos do art. 358º, nº 3 do CPP.
Na decisão final, o Tribunal considerou efectivamente os factos caracterizados na acusação como crimes de ameaça e injúria como integrando o crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1 e 2 do CP, na redacção da referida Lei nº 7/2000.
O arguido contesta tal decisão em duas vertentes: por um lado, porque entende que o crime de maus tratos só se verifica quando a vítima se encontra numa situação de especial dependência, vulnerabilidade ou fragilidade em relação ao agressor, o que resultaria da própria inserção sistemática no art. 152º do CP; por outro lado, defende que os maus tratos devem ocorrer no “seio familiar” para poderem ser integrados naquele tipo legal de crime, pois o bem jurídico não é apenas a pessoa do cônjuge (ou equiparado), que já recebe protecção contra as agressões por via do crime de ofensa à integridade física, mas sim também a “paz familiar”, sendo pois um crime não exclusivamente contra as pessoas, pois protege um bem jurídico compósito.
Daqui parte o arguido para negar a verificação, no caso dos autos, do crime de maus tratos, quer porque a Dra. BB não tinha qualquer relação de dependência ou de subordinação perante ele, quer porque a “paz familiar” não foi perturbada pela sua conduta, já que a Dra. BB ignorava que era ele o autor das ameaças e injúrias, e inclusivamente ele dava-lhe conforto, apoio e carinho, sentindo-se assim ela protegida no “seio familiar”.
Já atrás se rejeitou a alteração pretendida pelo arguido quanto ao ponto nº 6 da matéria de facto, tendo assim ficado confirmado que ele e a Dra. BB retomaram a vida em comum no dia 5 de Março de 2006.
Verificado se encontra, pois, um dos elementos típicos descritos no nº 2 do art. 152º do CP, na versão da Lei nº 7/2000: a convivência em condições análogas às dos cônjuges.
Mas será também elemento do tipo a situação de “dependência, vulnerabilidade ou fragilidade” da vítima relativamente ao agente?
É óbvio que não! O art. 152º do CP (estamos a reportar-nos evidentemente à versão citada) prevê vários tipos legais de crime que, no fundo, apenas têm em comum a pena, divergindo quanto aos respectivos elementos típicos. A história do preceito (1). explica essa “amálmaga” de tipos criminais diferentes. Em qualquer caso, a análise dos elementos típicos de cada uma das infracções vertidas no artigo tem necessariamente que ser feita a partir da descrição/previsão contida em cada um dos números do mesmo artigo, e não da sua epígrafe, aliás demasiado abrangente (“Maus tratos e infracção de regras de segurança”) para dar indicações precisas quanto ao (ou aos) bem jurídico tutelado.
No nº 2, punem-se os maus tratos conjugais. Não se exige, como no nº 1, que a vítima seja uma pessoa “particularmente indefesa”. Basta a existência de uma relação conjugal ou equiparável para que os maus tratos físicos ou psíquicos sejam subsumíveis à sua previsão.
O que se justifica pelo facto de a inflicção de maus tratos (físicos ou psíquicos) na pessoa do cônjuge (ou equiparado) constituir violação do dever de respeito que vincula reciprocamente os cônjuges, nos termos do art. 1672º do Código Civil. Independentemente das forças ou fraquezas de cada um, a violação desse dever de respeito integra um desvalor especial, relativamente aos “maus tratos” praticados contra quaisquer outras pessoas, tornando por isso essa conduta merecedora de uma censura penal mais intensa quando dirigida contra o cônjuge.
Conclui-se, pois, que não integra a tipicidade do crime do nº 2 do art. 152º, na versão da Lei nº 7/2000, insiste-se, a especial fragilidade da vítima. Caso essa situação se verifique, ou seja, se os maus tratos forem infligidos em cônjuge especialmente indefeso, então a situação será subsumível ao nº 1 do mesmo artigo. (2)
Acresce que o bem jurídico protegido nesta incriminação, tendo em conta até a sua inserção sistemática no Título I do CP (“Crimes contra as pessoas”), é a pessoa do cônjuge (ou equiparado), a sua integridade física, a sua saúde e a sua dignidade, enquanto pessoa humana, e não a instituição familiar. Na verdade, da descrição típica não consta qualquer referência que possa induzir a preocupação do legislador com a família, ou o ambiente familiar. É certo que a punição do cônjuge infractor poderá contribuir para a pacificação familiar, mas também poderá suceder o oposto. Em qualquer caso, serão efeitos reflexos ou laterais da tutela penal, pois é óbvio que a preocupação do legislador, neste preceito, é o cônjuge-vítima, a sua saúde física ou psíquica, a sua dignidade como pessoa.(3) É um crime contra as pessoas, não um crime contra a família.
Não têm cabimento, pois, as considerações do arguido acerca da relevância do “apoio” dado pelo arguido à Dra. BB, que a levava a sentir-se “protegida no seio familiar” (sempre havia então “família”, e não apenas relação precária?!). Pois, se é certo que ela “sentia” esse apoio, desconhecendo que o seu “protector” era também o seu agressor, esse facto é indiferente para a consumação do crime. O desconhecimento da identidade do agressor é irrelevante. O que importa é que a acção seja praticada pelo agente contra o cônjuge (ou quem com ele viver em condições análogas às dos cônjuges), ainda que subreptícia ou encapotadamente. A dissimulação da identidade não obsta à verificação do ilícito típico, nem sequer atenua a culpa, constituirá até circunstância agravante.
Improcedem, pois, as considerações do recorrente, nesta parte.

E) Medida das penas

Alega o arguido que não foi tomada em conta, na determinação das penas, a imputabilidade diminuída com que agiu, que seria determinante da aplicação da atenuação especial prevista no art. 72º, nº 1 do CP, devendo, assim, a pena única ser fixada no máximo em 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução.
A figura da imputabilidade diminuída não tem hoje autonomia dogmática nem legislativa. Da leitura do art. 20º do CP resulta que não há “3ª via” entre a imputabilidade e a inimputabilidade. As situações que não puderem ser reconduzidas, nos termos dos diversos números do artigo, ao conceito de inimputabilidade terão que ser tratadas inequivocamente como imputabilidade, com todas as consequências daí derivadas.
Contudo, tal não exclui, como lembra o recorrente, a possibilidade de encarar a situação de diminuição da capacidade de determinação como de culpa diminuída, a ser tratada eventualmente à luz do art. 72º do CP.
Como diz a Dra. Carlota Pizarro de Almeida:

Analisemos agora o artigo 20.°/2. A primeira questão com que nos deparamos é se se trata aí de verdadeiros casos de inimputabilidade, ou de sujeitos que, sendo imputáveis, são tratados como inimputáveis. No sentido desta última leitura vai desde logo a letra do preceito: “pode ser declarado inimputável” em contraposição à clara e inequívoca afirmação do n.° l “é inimputável”. E, se comparado com a definição de inimputabilidade consagrada no n.° 1 logo vemos que o n.° 2 não se refere, verdadeiramente, a inimputáveis, pois se trata de indivíduos que, no momento da prática do facto, dispunham de capacidade para avaliar a ilicitude deste e de se determinar de acordo com essa avaliação – ainda que, pelos motivos enunciados (também eles, aliás, de alcance vasto) essa capacidade se encontrasse diminuída.
(…)
O regime criado pelo artigo 20.º/2 traduz, mais uma vez, a dificuldade de conciliar um sistema que se pretendia monista a todo o custo, com as necessidades de defesa social a que não se quis deixar de dar resposta. É inquestionável que, em certos casos, a culpa do agente se encontra sensivelmente diminuída, por força de condicionalismos, endógenos ou exógenos, a que está sujeito e contra os quais nada pode. Nos casos em que, sendo ainda o arguido imputável, houvesse que aplicar uma pena, devia esta, atendendo à menor culpa, ser correspondentemente atenuada. No entanto, a menor culpa não evita a perigosidade, por vezes até aumentada pelos precisos motivos que tornam o indivíduo menos consciente e responsável pelos seus actos. Daqui resulta um impasse, de difícil solução quando se recusa a conjugação das penas com medidas de segurança. A declaração de uma inimputabilidade artificial terá, então, o objectivo de permitir a aplicação de medidas de segurança a indivíduos imputáveis de cuja elevada perigosidade a sociedade queira defender-se.
O problema da imputabilidade diminuída é reconhecidamente de difícil solução. A própria figura é de desenho complexo, na medida em que, em bom rigor, um indivíduo ou é imputável ou inimputável, não havendo lugar a figuras intermédias. Se considerarmos, como parece mais ou menos consensual, a imputabilidade como capacidade de culpa, o que pode ser diminuído por factores vários é, na realidade, a culpa, não a capacidade da mesma: essa, ou se tem ou não se tem. Seguindo este raciocínio, as circunstâncias a que se refere o artigo 20.°/2 deveriam actuar a nível de atenuação da pena, em consonância com o artigo 40.°/2 (aliás, traduzindo um imperativo constitucional). Mas essa solução, que parece a mais correria de um ponto de vista puramente dogmático, deixa-nos a braços, num sistema monista, com o problema da perigosidade.
O artigo 20.°/2 traduziria assim a solução encontrada para aqueles casos em que, havendo ainda culpa, esta é diminuta, mas, em contrapartida, a perigosidade é elevada. Em nada interfere, portanto, com o conceito de inimputabilidade, tal como ele vem definido matricialmente no artigo 20.°/1. (4).

Nesta perspectiva, o nº 2 do art. 20º do CP incluirá no âmbito da inimputabilidade aqueles casos em que a culpa é diminuta, sendo a perigosidade elevada.
Em contrapartida, nas situações em que a questão da perigosidade não se coloca, os condicionalismos que limitam o comportamento do agente, não o isentando de culpa, ao interferirem nela, devem considerados devem ser considerados para efeitos de atenuação (geral ou especial) da culpa.
Reportemo-nos agora ao caso dos autos.
Ao arguido são imputáveis, após a modificação da matéria de facto operada por este STJ, dois crimes: um de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do CP, pelo qual vem condenado na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 10 €, pena esta não impugnada pelo recorrente; e outro de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º, nº 2 do CP (redacção da Lei nº 7/2000).
Impõe-se avaliar as condições em que o arguido agiu, em termos de averiguar se elas diminuem substancialmente a sua culpa, em que grau e com que consequências.
Do exame da matéria de facto realizado atrás, resultou a rejeição da tese do recorrente, ao pretender que a sua capacidade de autodeterminação estava substancialmente afectada.
Contudo, há que considerar que ela estava “ligeiramente diminuída”, conforme foi enunciado pelo perito psiquiátrico.
Daí que tal atenuação da culpa deva reflectir-se na medida da pena, embora só em termos gerais, e não como atenuação especial, pois é “ligeiro” ou diminuto o grau de redução da culpa.
Em sentido favorável ao arguido, há também que apelar a tudo quanto se provou sobre a sua prestação profissional e o seu empenhamento social e cívico (nºs 80 a 90).
Mas, em sentido inverso, há que ponderar a elevada ilicitude dos factos e culpa do agente. A conduta do arguido manifestou-se em numerosos telefonemas e outras mensagens de conteúdo fortemente assustador e intimidatório, que perturbaram profundamente a ofendida Dra. BB, sua companheira, lhe infundiram um receio efectivo e iminente pela integridade física e pela vida, lhe criaram mesmo um clima de terror no seu dia-a-dia, tendo o arguido inteiro conhecimento destes factos, porque a acompanhava diariamente, ao mesmo tempo que lhe manifestava exteriormente um grande “apoio” e “solidariedade”, que ela cria autênticos e a faziam sentir-se protegida, o que revela, da parte do arguido, um elevado grau de perversidade: proteger a vítima das suas repetidas e insistentes ameaças, deixando-a no desconhecimento da identidade do agressor!
Poderá contrapor-se que, conforme amplamente referido atrás, a capacidade de autodeterminação do arguido se encontrava (ligeiramente) diminuída, o que atenua a culpa e pode pôr em causa a qualificação da conduta do arguido como “perversa”. Mas não é assim. Insiste-se: sendo essa diminuição ligeira, não afectando minimamente a capacidade de intelecção e só ligeiramente a de determinação, a culpa imputável ao arguido é muito acentuada.
Tendo em conta todos estes parâmetros, e ainda os fins das penas, entende-se adequada a pena de 2 anos e 9 meses de prisão fixada pela Relação.
Partilhando das considerações expostas na decisão recorrida quanto ao juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do arguido, entende-se que a pena deve ser suspensa, mas apenas por 2 anos, nos termos do disposto no nº 5 do art. 50º do CP, na redacção anterior à Lei nº 59/2007, de 4-9, por ser mais favorável ao arguido (art. 2º, nº 4 do CP).
III. DECISÃO
Com base no exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso, da seguinte forma:
a) Modificar a matéria de facto (nºs 30, 31, 32, 34, 52 e 69), nos termos expostos no ponto A) da Fundamentação;
b) Absolver o arguido do crime de coacção contra órgãos constitucionais, p. e p. pelo art. 333º, nº 1 do CP;
c) Confirmar a condenação do arguido por um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º, nº 2 do CP, na versão da Lei nº 7/2000, de 27-5, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;
d) Suspender a execução desta pena pelo período de 2 (dois) anos, nos termos do art. 50º, nº 5 do CP, na versão anterior à Lei nº 59/2007;
e) Confirmar a condenação do arguido, como autor de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 10 €;
f) Condenar o arguido, nos termos do art. 77º, nº 3 do CP, na pena única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 (dois) anos, e de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 10 €;
g) Condenar o arguido em 10 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 5 de Novembro de 2008


Maia Costa (relator)
Pires da Graça


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(1)-Ver A. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, p. 330-33105-11-2008
(2) Neste sentido, loc. cit., p. 333.
(3) Loc. cit., p. 332.
(4) Modelos de Inimputabilidade: da Teoria à Prática, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 87-89