Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
696/21.0T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: DIREITO A ALIMENTOS
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
VÍTIMA
MORTE
PROGENITOR
ÓNUS DA PROVA
DIREITOS DE TERCEIRO
DANOS FUTUROS
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Para que a indemnização ao abrigo do art. 495.º, n.º 3, do CC, possa ser atribuída é necessário que o reclamante alegue e prove a necessidade de alimentos, pelo que não tendo o autor demonstrado qualquer necessidade ou carência de alimentos não pode tal indemnização ser atribuída ao pai do falecido vítima do acidente de viação em causa nos autos, que também não demonstrou que esses alimentos lhe eram prestados, por via de obrigação legal ou em cumprimento de obrigação natural
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. AA, residente na Rua do ..., ... instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Companhia de Seguros Tranquilidade, actualmente designada Generali Seguros, S.A., em virtude de processo de fusão, com escritórios na Rua ... ..., onde concluiu pedindo seja a ré condenada a pagar ao autor a quantia global de € 120.000,00€, sendo 50.000,00 € a título de dano não patrimonial e € 70.000,00 a título de dano patrimonial, acrescido de juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias peticionadas, desde a data de citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que em virtude do acidente ocorrido de que foi vítima o seu filho já lhe foram arbitradas em acção anterior (pedido cível formulado em acção penal: processo n.º 336/17.1...), indemnizações pelo “dano da morte” do seu filho e pelos danos sofridos pelo próprio falecido.

Acrescentou que restam por discutir e fixar as indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo próprio autor, cuja reparação, agora, peticiona.

2. Citada, a Ré contestou, aceitando, no essencial, a versão do acidente descrita pelo Autor na petição inicial, bem como a responsabilidade da sua segurada na eclosão do mesmo, impugnando, todavia, os danos invocados, reputando de excessivos os montantes peticionados a título de indemnização.

3. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais.

4. Após julgamento, foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e decidiu condenar a Ré, Generali Seguros, S.A., a pagar ao autor, AA, a quantia de € 50.000,00, acrescida de juros de mora contados desde a data de prolação da sentença e até efectivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no artigo 559.º do Cód. Civil, absolvendo a ré do demais pedido.

5. Não se conformando com a decisão proferida, o recorrente AA, veio interpor recurso de apelação, conhecido pelo Tribunal e que decidiu:

“Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo autor, bem como o recurso de apelação interposto pela ré, confirmando a decisão recorrida.”

6. Não se conformando com a decisão, o A. veio interpor recurso de revista excepcional, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

“Do recurso em si:

6. A título de danos patrimoniais, entendeu o tribunal a quo ser de confirmar a douta sentença proferida pela primeira instância pela qual foi negado ao A. o direito de receber qualquer valor indemnizatório a título de danos patrimoniais.

7. Considerando o alcance do vertido no artigo 495 nº3 do CC e o enquadramento do A. nesse mesmo preceito e, bem assim a matéria de facto dada como provada nos presentes autos é devida ao A. indemnização a título de danos patrimoniais em virtude do falecimento do seu filho porquanto ficou impedido de receber alimentos por parte do mesmo.

8. Considerando a matéria de facto dada como provada é previsível que o A. venha a necessitar de alimentos e que os mesmos lhe seriam prestados pelo seu filho não fosse o falecimento prematuro deste.

9. Independentemente da prestação de alimentos ou da sua previsibilidade, nos termos do nº3 do 495º artigo do CC, sempre o A. terá direito a ser ressarcido a título de danos patrimoniais.

10. Atento o disposto no artigo 495 nº 3 do CC, não é necessária a prova da efetiva necessidade de alimentos para que assista ao A. o direito a ser ressarcido a título de danos patrimoniais.

11. Pretendeu o legislador não apenas proteger a perda de alimentos que estivessem já a ser prestados mas também a perda da possibilidade de os pedir ao falecido.

12. Tendo em conta a factualidade dada como provada e, bem assim o previsto no nº3 do artigo 495 do CC, por equidade, deverá ser arbitrado ao A. valor indemnizatório a título de danos patrimoniais nunca inferior a 70.000,00€.

13. O douto acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 495, 503, 562, 564, 566, todos do CC.”

7. foram apresentadas contra-alegações, onde se afirma(transcrição):

16. Caso não se entenda como supra, e se considere a admissibilidade o presente recurso, o que de admite como mera hipótese que não se consente, o mesmo está destinado ao insucesso.

17. De facto, resulta à saciedade dos presentes autos, que o malogrado Manual não prestava quaisquer alimentos ao Autor, nem ao abrigo de qualquer obrigação imposta por lei ou decisão judicial, nem sequer ao abrigo de uma obrigação natural.

18. Nem sequer resultou provado, ao contrário do que o Autor insiste em afirmar, que o mesmo o ajudasse monetariamente.

19. Provou-se, apenas e só, que o mesmo contribua para a economia doméstica na estrita medida das despesas que a sua presença no mesmo importava.

20. Do que tudo a quantia de € 200,00 é, por si só, e por comparação até com os vencimentos auferidos pelo malogrado BB, indiciadora.

21. Por outro lado, se é certo que o autor se encontra entre aqueles que, em abstracto, tinham legitimidade para exigir alimentos ao seu filho, dos factos apurados não resulta que, em concreto, estivessem reunidas as restantes condições para se fazer essa exigência.

22. Nem mesmo se demonstrou, com qualquer grau de previsibilidade, que o aqui Autor necessite ou possa vir a necessitar, de futuro, dos mesmos.

23. Não bastará, pois, e ao contrário do que anseia o recorrente, ter apenas a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito a alimentos. Não fazendo sentido a atribuição da mesma, por parte de terceiro, a quem deles não necessite.

24. Nesse mesmo sentido se tem pronunciado a doutrina e a jurisprudência dos nossos tribunais, entre os quais o acórdão da Relação de Lisboa de 22.03.2011, proc. nº 1084/08.9TCSNT.L1-7, disponível em www.dgsi.pt:

“O direito de indemnização em causa visa a compensação do prejuízo derivado da perda do direito a exigir alimentos que teria se o obrigado fosse vivo.

Assim, se o falecido não prestava alimentos ao terceiro no momento da sua morte, só será titular do direito de indemnização previsto no nº3 do art. 495º do CC, se, em tal data, pudesse exigir alimentos ao falecido se vivo fosse.

E, não podendo o lesante ser condenado em prestação superior (seja no montante, seja na própria duração), àquela que provavelmente o lesado suportaria se fosse vivo, o terceiro terá de demonstrar que, embora não estando a receber alimentos ao tempo da verificação do facto danoso, se encontrava em situação de legalmente os exigir. E, para tal, terá de alegar e de demonstrar a sua carência de alimentos e ainda que o falecido os podia prestar” (sublinhado nosso).

25. Neste sentido ainda o acórdão do STJ de 03.11.2016, proc. n.º 6/15.5T8VFR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:

“I - O art.º 495º, n.º 3, do Cód. Civil, consagra uma excepção ao princípio geral de que só ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado assiste direito a indemnização, aí se abrangendo terceiros só reflexamente prejudicados com o evento danoso.

II - Contudo, esse direito não é de atribuição directa e automática às pessoas indicadas nesse normativo. existirá se (e na medida em que) for demonstrada a facticidade em que necessariamente terá que assentar.” (sublinhado nosso)

26. Aliás, qualquer decisão – como a pretendia pelo Autor - que tenha por base a atribuição automática, e sem prova da efectiva necessidade por parte do beneficiário, conduzirá necessariamente a situações injustas e abusadoras para os responsáveis civis.

Com tal entendimento, os mesmos poderiam ver-se confrontados com a necessidade de liquidar indemnizações em casos em que a própria vítima não teria de assegurar qualquer prestação, num claro enriquecimento sem causa de terceiros.

27. Por outro lado, seria também necessário que o beneficiário/necessitado da prestação de alimentos – o que, de resto, e como virmos, não será o caso, - provasse que não os poderia exigir, cumulativamente ou alternativamente, de outros obrigados. Tudo na ordem prevista no artigo 20009.º do CC.

28. Prova – e mesmo alegação - essa que o aqui Autor em momento algum fez, tendo resultado dos depoimentos ouvidos que o Autor tem um outro filho que, em caso de obrigação de alimentos, responderia na mesma medida que o malogrado BB.”

8. Remetidos os autos à formação a que se reporta o art.º 672.º, por acórdão, foi o recurso de revista admitido para ser conhecida da questão jurídica relevante assim delimitada:

“saber se o autor, reformado por invalidez, tem direito, ao abrigo do artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil, a indemnização pelos danos patrimoniais causados pela morte do filho (um jovem de 19 anos vítima de um homicídio negligente num acidente de viação) – com quem vivia em economia comum, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 6/2001, de 11 de maio, e se esta situação de cooperação económica do filho em relação ao agregado familiar do pai pode ou não ser equiparada às situações previstas no n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil.”

Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

II. Fundamentação

De Facto

9. Factos provados

As instâncias deram como provados os seguintes factos: - Dinâmica do acidente

1. No dia ... de outubro de 2017, pelas 20h e 45 mm, o ciclomotor de matrícula ..-TL-.., propriedade de M..., SA., conduzido por BB (adiante, BB), seguia pela estrada D. ... no sentido J...-G..., pela hemifaixa de rodagem direita, considerando o referido sentido, a uma velocidade inferior a 30 km/hora.

2. O local é iluminado e o ciclomotor seguia com as luzes médios acesas.

3. Na mesma data e local circulava pela referida estrada D. ..., no sentido oposto ao da circulação do ciclomotor, o veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-OM, propriedade de T..., Lda., na altura conduzido, por sua conta, no seu interesse e sob a sua direção efetiva, pelo seu funcionário CC, no cumprimento das suas obrigações laborais ao serviço da referida sociedade.

4. O condutor do pesado, ao alcançar o entroncamento da estrada D. ... com a rua ..., aí pretendendo mudar de direção à esquerda, atento o seu sentido de circulação G...-J..., virou à esquerda, invadindo a hemifaixa de rodagem destinada ao sentido de marcha oposto, por onde circulava o ciclomotor, sem se aperceber da sua presença.

5. O ciclomotor e o pesado embateram um no outro sobre a hemifaixa direita da estrada D. Miguel atento o sentido de marcha J...-G....

6. Com o embate, o condutor do ciclomotor foi projetado e caiu no chão.

7. A ré (antes Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.), enquanto seguradora, e T..., Lda., enquanto tomador, declararam acordar que a primeira assumiria o risco da ocorrência de sinistros causados pelo veículo de matrícula pesado, nos termos

constantes do documento intitulado apólice n.º 4393756, junto aos autos a fls. 77 a 83 do anexo documental e que aqui se dá por transcrito, suportando a indemnização eventualmente devida a terceiros lesados.

8. Correu termos processo-crime n.º 336/17.1..., no âmbito do qual o referido condutor do pesado foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, sentença essa transitada em julgado em 8 outubro de 2020, conforme certidão judicial junta a fls. 24 v. a 59 v. do anexo documental.

- Danos

9. Em 6 de outubro de 2017, em consequência do embate e queda supra referidos, BB morreu.

10. BB nasceu em ... de março de 1998, sendo filho do autor e de DD, tendo falecido sem descendentes.

11. BB era pessoa alegre e ativa, frequentando convívios e festas com amigos e familiares.

12. Pelo menos desde o ano de 2003, a mãe de BB saiu da casa de morada de família, deixando-o a residir com o autor.

13. Após sair da casa de morada de família, a mãe de BB não manteve contacto regular com o filho, não o visitando, nem lhe telefonando com regularidade, nem lhe prestava alimentos.

14. Foi o autor quem criou BB desde o ano de 2003, existindo entre ambos uma relação de proximidade e harmonia.

15. O autor sente-se profundamente desgostoso, triste e amargurado com a morte do filho.

16. O autor nasceu em ... de agosto de 1966.

17. À data do acidente, autor vivia, e ainda vive, maritalmente com EE, que exerce a profissão de empregada doméstica.

18. À data do acidente, BB morava com o autor e com a companheira deste.

19. Desde 19 de novembro de 2016, o autor recebe uma pensão de invalidez, sendo o valor desta, em setembro de 2021, de € 668,81.

20. BB contribuía para as despesas do agregado familiar composto por si, pelo autor e pela companheira deste.

21. À data do acidente, BB era funcionário da sociedade E..., S.A.

22. Entre 1 de janeiro de 2017 e 6 de outubro de 2017, auferiu a quantia de € 9.450,84 por trabalho prestado por conta da E..., S.A..

23. À data do acidente, BB era, ainda, funcionário a tempo parcial da sociedade I..., S.A., enquanto distribuidor de pizzas, auferindo um vencimento mensal de € 264,58.

10. Factos não provados

O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:

24. Era usual BB pagar as despesas de água, luz, gás e telefone em alternância com o autor.

25. BB entregava ao autor a quantia de € 200,00 mensais.

26. BB era pessoa muito poupada e económica, não gastando consigo um terço do valor que auferia.

27. BB não bebia, não fumava, não tinha quaisquer vícios e só gastava o estritamente necessário.

28. O que BB não gastava consigo revertia para o seu agregado familiar.

29. BB dizia frequentemente que nunca deixaria o pai e não tinha qualquer intenção de casar.

De Direito

11. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

A questão objecto do recurso é a de saber se o A. tem direito à indemnização peticionada por danos patrimoniais.

12. No acórdão recorrido a questão suscitada na revista foi assim decidida:

“- Da indemnização por danos patrimoniais.

O apelante, em sede recursiva, pugna que a ré seja condenada no pagamento da quantia por si peticionada a título de danos atrimoniais.

Afigura-se-nos, todavia, que o Tribunal a quo fez correcta interpretação e aplicação do direito quanto à não existência de fundamento para condenação da Ré no pagamento de indemnização por danos patrimoniais emergentes da violação da obrigação de alimentos.

Como já referimos, no caso vertente, o autor, aqui apelante, pediu, ainda, uma indemnização pela perda de rendimentos que a morte do filho lhe causa e causará.

A respeito do pedido de indemnização deste dano, duas questões se levantam, de imediato.

Por um lado, configurando-se como um dano futuro, só poderá ser atendido pelo tribunal se for previsível, nos termos do disposto no artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil.

Por outro lado, tratando-se de um dano que não atinge a esfera do lesado directo (e, repita-se, só a este se refere o artigo 483.º, do Código Civil), esta perda de rendimentos só merecerá tutela jurídica se puder enquadrar-se no já aludido artigo 495.º do Código Civil, segundo o qual, no caso de lesão de que proveio a morte, têm direito a indemnização as pessoas que podiam exigir alimentos ao lesado ou aquelas a quem ele os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

No caso dos autos é, infelizmente, verdade que o autor, aqui apelante, deixou de poder contar com a ajuda do seu filho.

Porém, ao contrário do que havia sido alegado na petição inicial, não se provou que, na data do óbito de BB, o seu pai recebesse dele alimentos.

Com efeito, dizer que o falecido contribuía para a economia doméstica não é o mesmo que dizer que prestava alimentos a outrem.

Por outro lado, se é certo que o autor, aqui apelante, se conta entre aqueles que, em abstracto, tinham legitimidade para exigir alimentos ao seu filho (cfr. artigo 2009.º, al. b), do Código Civil), dos factos apurados não resulta que, em concreto, estivessem reunidas as restantes condições para fazerem essa exigência.

Como resulta do disposto nos artigos 2004.º e 2013.º, al. b), in fine, do Código Civil, a obrigatoriedade de prestar de alimentos só surge com a carência por parte do alimentando. Ora, atenta a matéria de facto apurada nada nos permite afirmar que o recorrente esteja ou venha a estar carenciado de alimentos.

Conforme bem refere o Tribunal a quo “Devemos aceitar que estamos perante uma situação assimilável à vivência em “economia comum” – cfr. o art. 2.º da Lei n.º 6/2001, de 11 de maio. De um lado, temos, por exemplo, a prestação habitacional do autor; do outro lado, temos contribuições financeiras do falecido. Ora, como é sabido, no que a estes “alimentos” diz espeito, a perspetiva correta, à semelhança do que ocorre na união de facto, consiste não em analisar uma ou outra prestação com natureza de alimentos de forma isolada, mas o conjunto das prestações entre os sujeitos que vivem em economia comum – sobre o instituto próximo da “união de facto”, veja-se JÚLIO VIEIRA GOMES, «O enriquecimento sem causa e a união de facto», CDP, n.º 58, pp. 3 a 22. Poder-se-á mesmo dizer que, na falta da efectiva prova dos pressupostos do direito de alimentos, estamos em face de prestações executadas em cumprimento de obrigações naturais tacitamente assumidas (art. 402.º do Cód. Civil).”.

Soçobra, por isso, igualmente este fundamento de recurso.

Impõe-se, assim, a improcedência do recurso de apelação interposto pelo autor.”

13. Na sentença havia sido justificada a recusa da procedência do pedido nos seguintes moldes:

“3. Alimentos prestados ao autor

Não resulta dos factos provados que, na data do óbito de BB, o seu pai recebesse dele alimentos. Dizer que o falecido contribuía para a economia doméstica não é o mesmo que dizer que prestava alimentos a outrem.

Devemos aceitar que estamos perante uma situação assimilável à vivência em “economia comum” – cfr. o art. 2.º da Lei n.º 6/2001, de 11 de maio. De um lado, temos, por exemplo, a prestação habitacional do autor; do outro lado, temos contribuições financeiras do falecido. Ora, como é sabido, no que a estes “alimentos” diz espeito, a perspetiva correta, à semelhança do que ocorre na união de facto, consiste não em analisar uma ou outra prestação com natureza de alimentos de forma isolada, mas o conjunto das prestações entre os sujeitos que vivem em economia comum – sobre o instituto próximo da “união de facto”, veja-se JÚLIO VIEIRA GOMES, «O enriquecimento sem causa e a união de facto», CDP, n.º 58, pp. 3 a 22. Poder-se-á mesmo dizer que, na falta da efetiva prova dos pressupostos do direito de alimentos, estamos em face de prestações executadas em cumprimento de obrigações naturais tacitamente assumidas (art. 402.º do Cód. Civil).

Acresce que não se pode afirmar ser previsível que o falecido continuasse a viver com o autor até este falecer: ainda que se tivesse provado que falecido andava a verbalizar tal intenção (o que não sucedeu), em termos de normalidade do comportamento humano é mais provável que tal não sucedesse.

Pelo exposto, conclui-se pela improcedência do pedido de condenação da ré no pagamento de € 70.000,00 a título de danos patrimoniais sofridos pelo autor.”

14. No presente recurso o recorrente entende que o tribunal violou as normas legais relativas ao dever de indemnizar um pai, pelo falecimento do seu filho (artigos 495, 503, 562, 564, 566) por danos patrimoniais que indica ter sofrido/vir a sofrer em virtude da morte deste, que assim deixou de contribuir para a subsistência do pai, com quem vivia em economia comum, partilhando despesas dessa vivência, e também por entender que viria, no futuro, a precisar de alimentos a serem prestados pelo filho, que ficaram frustrados, em virtude da sua morte prematura.

Os factos provados nos autos não foram suficientes no sentido de se dar por demonstrado que o filho contribuía com regularidade para as despesas da vivência em comum, ou que prestasse alimentos ao pai, nem se provou que o pai tinha grande probabilidade de vir a carecer de alimentos a prestar pelo filho, no futuro, e que o filho, se fosse vivo, teria condições de os prestar.

Em face destes factos, não se vê como o tribunal podia decidir de outro modo, sem criar uma situação de enriquecimento sem causa do pai, à custa da seguradora.

Nesse sentido, a norma do n.º3 do art.º 495.º do CC não levanta grandes dúvidas:

Artigo 495.º - (Indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal)

1. ….

2. ….

3. Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

Assim, ao contrário do que havia sido alegado na petição inicial, não se provou que, na data do óbito de BB, o seu pai recebesse dele alimentos.

Dizer que o falecido contribuía para a economia doméstica não é o mesmo que dizer que prestava alimentos a outrem.

Não vem demonstrado que o filho prestasse alimentos ao pai nem sequer a título de obrigação natural.

Se é certo que o autor se conta entre aqueles que, em abstracto, tinham legitimidade para exigir alimentos ao seu filho (cfr. artigo 2009.º, al. b), do Código Civil), dos factos apurados não resulta que, em concreto, estivessem reunidas as restantes condições para fazerem essa exigência.

Como resulta do disposto nos artigos 2004.º e 2013.º, al. b), in fine, do Código Civil, a obrigatoriedade de prestar de alimentos só surge com a carência por parte do alimentando.

E quanto à possibilidade de a prestação de alimentos vir a ser necessária no futuro, também há que dizer que, sendo uma necessidade futura e eventual, para poder ser atendida como dano futuro, teria de ser previsível, nos termos do disposto no artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil, previsibilidade que se deve aferir em função dos factos apurados.

Atenta a matéria de facto apurada nada nos permite afirmar que o recorrente esteja ou venha a estar carenciado de alimentos.

E mais: dos factos provados resulta igualmente que o filho tinha 19 anos, não era casado, e não tinha descendentes, mas tinha pai e mãe vivos e que, em virtude da sua morte, no âmbito de processo-crime veio a ser arbitrada uma indemnização aos pais do falecido, e que certamente reforçará as suas capacidades de subsistência autónoma sem recurso a alimentos futuros.

Compulsados os autos, pelos documentos juntos pelo A. (doc. 2, junto com a PI), o valor arbitrado foi o seguinte:

“Quanto à parte cível:

Julga-se o pedido formulado por DD e AA parcialmente provado e, nessa medida parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a demandada Seguradoras Unidas, S.A. a pagar:

A) A título de danos não patrimoniais:

- a quantia de 80.000,00 (a ) pela perda do direito à vida;

- a quantia de 5.000,00 (cc ) pelos danos não patrimoniais próprios da vítima;

- a quantia de 3.000,00 (três mil euros) para DD e 7.000,00 (sete mil euros) para AA, pelos danos sofridos pelos próprios.

A estas quantias acrescem juros, à taxa legal, devidos desde a data de sentença até integral pagamento, absolvendo-se a demandada do demais peticionado.

B) A título de danos patrimoniais:

- a quantia de 2.331,00 (d , a ) de despesas feitas com o funeral da vítima. (…)”

A jurisprudência deste STJ tem sufragado o entendimento que aqui se expressa, como se pode confirmar pelo Ac. relativo ao processo n.º 674/20.6T8VFR.S1, de 25/05/2021 (http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5d20be6cd3c9554f802586e6003762c2?OpenDocument), numa situação diversa, ante a prova da prestação de alimentos pelo falecido e da necessidade dela pelos alimentados:

“Por outro lado, invocam os autores danos patrimoniais, direito a alimentos.

Refere a sentença:

“Peticionam ainda os autores a condenação da ré no que juridicamente consubstancia um dano patrimonial futuro (indemnização pela perda de direito a alimentos). Quanto a estes, dispõe o art.° 495.° n.° 3, do Código Civil que “têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava em cumprimento de uma obrigação natural”. Este preceito consagra uma exceção ao princípio geral de que só ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado assiste direito a indemnização, pois nele se abrangem terceiros que só reflexamente são prejudicados com o evento danoso, sendo desiderato do legislador conferir uma compensação pelos danos patrimoniais futuros resultante da perda de alimentos por falta da vítima, danos esses que devem ser previsíveis e, não podendo ser averiguado o seu valor exato, deverá recorrer-se à equidade (art.° 566° n° 3 do Código Civil).

Ora, de acordo com o disposto no art.° 2009.°, do Código Civil a vinculação à prestação de alimentos é devida pela seguinte ordem: “a) o cônjuge ou o ex-cônjuge; b) os descendentes; c) os ascendentes (...)”, estabelecendo o n.° 2, do mesmo normativo que “entre as pessoas designadas nas alíneas b) e c) do número anterior, a obrigação defere-se segundo a ordem da sucessão legítima”. Quanto a esta, dispõe o art.° 2131.°, do mesmo Código que “se o falecido não tiver disposto válida e eficazmente, no todo ou em parte, dos bens de que podia dispor para depois da morte, são chamados à sucessão desses bens os seus herdeiros legítimos”, estatuindo o art.° 2133.° que a ordem por que são chamados os herdeiros legítimos é a seguinte — relativamente à que importa in casu: “a) Cônjuge e descendentes; b) Cônjuge e ascendentes”.

Na medida em que o falecido CC era, à data da sua morte, solteiro e deixou como única herdeira a sua filha EE, esta descendente é única que, de acordo com os preceitos enunciados, tem direito a peticionar uma prestação de alimentos, estando os autores excluídos desse direito, por se encontrarem na classe sucessível seguinte”.

Em relação aos danos patrimoniais, ou seja, o prejuízo efetivo sofrido pela morte da vítima, tem direito a indemnização qualquer pessoa que pudesse exigir alimentos à vítima (lesado).

Estatui o nº 3 do art. 495 do CC que têm direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava.

E são titulares do direito a indemnização, como enunciado no nº 3 do art. 495º do CC, os ascendentes, aqui autores, porque conforme alegam, o lesado seu descendente já lhes prestava alimentos.

E de acordo com a ordem contemplada pelo art. 2009º, nº 1, b), do CC, os descendentes estão vinculados à prestação de alimentos.

Como se entendeu no Ac. deste STJ de 17-02-2009, no proc. nº 08A2124, “A referência que é feita, no respetivo nº 3, do artigo 495, do CC, aqueles que podiam exigir alimentos ao lesado, destina-se, desde logo, a explicitar o âmbito ou leque dos beneficiários de indemnização a que o terceiro causador do dano fica obrigado.

A isto acresce que a justificação teleológica deste normativo, ao referir-se, concretamente, aos alimentandos e não a outra categoria ou qualidade de destinatários, consiste no facto de no mesmo preceito se tentar preservar o direito a alimentos daqueles que já antes usufruíam ou deles podiam usufruir”.

Ao nível dos danos patrimoniais resultantes da perda da capacidade aquisitiva da vítima, está alegado o que esta auferia, em rendimentos do trabalho, do qual revertia (assim vem alegado) uma quantia para ajuda às despesas dos autores.

A indemnização por danos patrimoniais devidos aos parentes, em caso de morte da vítima, reconduz-se, praticamente, à prestação dos alimentos, sendo titulares deste direito os que podiam exigir alimentos ao lesado, em conformidade com o disposto pelos artigos 495º, nº 3 e 2009º, nº 1, do CC.

No caso vertente, os autores têm a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito, pois que são os pais do falecido e, como tal, este estava vinculado a prestar-lhes alimentos, como alegam os autores que lhes prestava.

Em abstrato verifica-se a suscetibilidade desse mesmo benefício (direito a indemnização) pelos autores, ascendentes da vítima.

A suscetibilidade de terem direito, não equivale a terem-no.

Os autores teriam sempre de alegar e provar que os seus rendimentos são insuficientes atualmente e ou previsivelmente no futuro para prover às suas necessidades, por reporte aos parâmetros referenciais nos arts. 2003º e 2004º, do CC.

No art. 28º da PI alegaram os autores: “28 -Os AA eram ajudados financeiramente pelo falecido filho, que contribuía para o pagamento das despesas da habitação, nomeadamente da luz, água, gás, renda de casa (260€ - DOC Nº 5), alimentação (aquisição de géneros alimentícios) e roupa, em montante mensal nunca inferior a 300,00€”.

E no art. 29, “29- Com o desaparecimento do filho, os AA deixaram de receber essa ajuda financeira e de alimentos, de que usufruíam há pelo menos cinco anos, ao que agora têm direito nos termos do artº 495º do CC”.

Os autores alegam que estavam dependentes economicamente da vítima, que eram por esta ajudados. Que o filho (vítima) contribuía monetariamente.

Assim discorda-se do decidido na sentença, de que tendo a vítima falecido no estado civil de solteiro e tendo deixado como única herdeira a sua filha, esta descendente é única que tinha direito a peticionar uma prestação de alimentos, estando os autores excluídos desse direito.

Como refere P. Lima e A. Varela em anotação ao art. 495 do seu Código Civil anotado, o nº 3 constitui uma exceção ao princípio de que só o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado tem direito a indemnização. Consagra o preceito o direito a indemnização a “terceiros que apenas reflexa ou indiretamente sejam prejudicados”.

Assim que se entenda que os autores têm legitimidade para peticionar esta indemnização, com fundamento em danos patrimoniais.

Ou ainda (disponível no pdf O dano morte na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, na página electrónica do STJ):

Revista n.º 1178/16.7T8VRL.L1 - 7.ª Secção Távora Victor (Relator)- Maria dos Prazeres Beleza -Olindo Geraldes - 19-12-2018, com o seguinte sumário:

I - Na fixação da indemnização pelos danos sofridos pela vítima antes de falecer há-que considerar a intensidade das dores físicas e morais sofridas aquilatadas pelos elementos disponíveis, sendo um importante critério não apenas os momentos que precederam a consumação do acidente, como o tempo que decorreu entre esta e a morte da vítima.

II - Tendo ficado provado que a vítima, antes de falecer, teve plena consciência e apercebeu-se, gradual e progressivamente, da gravidade do acidente e dos danos daí decorrentes, tendo sofrido de enorme pânico e aflição com o aproximar eminente da morte, é de fixar a indemnização referida em I no montante de € 10 000,00.

III - Na fixação da indemnização decorrente da perda do direito à vida pesam as circunstâncias de cada caso, sendo que, no caso de uma vítima de 61 anos de idade, estimada e inserida no meio em que vivia e susceptível de ganhar o seu sustento, mostra-se adequado fixar a indemnização a título do dano morte no montante de € 60 000,00.

IV - Para que a indemnização ao abrigo do art. 495.º, n.º 3, do CC, possa ser atribuída é necessário que a reclamante alegue e prove a necessidade de alimentos, pelo que não tendo a autora demonstrado qualquer necessidade ou carência de alimentos não pode tal indemnização ser atribuída à filha do falecido vítima do acidente de viação em causa nos autos.

Em face do exposto, improcede o recurso.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário.


Lisboa, 24 de Outubro de 2023

Relatora: Fátima Gomes

1º adjunto – Dr. Lino Ribeiro

2º adjunto – Dr Sousa Lameira