Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3586
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PARTILHA EM VIDA
DOAÇÃO
RESERVA DE USUFRUTO
TORNAS
NEGÓCIO GRATUITO
CONHECIMENTO NO SANEADOR
NULIDADE PROCESSUAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: SJ200711080035867
Data do Acordão: 11/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Afirmando a Relação não se verificarem os pressupostos da aplicação do nº 4 do artigo 712º, em vez de se referir à alínea b) do nº 1 do artigo 510º, ambos do Código de Processo Civil, não há nulidade por omissão de pronúncia sobre a legalidade do conhecimento de mérito no despacho saneador.
2. As afirmações do réu conclusivas e as subjectivas motivadoras da doação do prédio na contestação, incluindo a de obter financiamento bancário para proceder ao pagamento do credor, são insusceptíveis de justificar o não julgamento da causa na fase da condensação.
3. São actos gratuitos para efeitos de impugnação pauliana os relativos à partilha em vida por via de doação dos bens a todos os seus herdeiros pelos doadores com reserva de usufruto e recebimento de tornas.
4. Tendo o crédito em causa sido constituído antes da doação do prédio pelo devedor e não afirmando na contestação ser titular de bens ou rendimentos susceptíveis de garantir a realização daquele direito pelo credor impõe-se a decisão, na fase da condensação da verificação dos pressupostos da impugnação pauliana.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I

"AA" intentou, no dia 5 de Maio de 2005, contra BB e CC, DD e EE, FF e GG, HH e II, JJ e KK, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a declaração de ineficácia em relação a si do contrato de doação e partilha em vida do prédio sito na freguesia de Lever, descrito sob o nº 01271 na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, e, subsidiariamente, a declaração da sua nulidade, e, em qualquer caso, o cancelamento do seu registo.
Alegou ser credora do primeiro réu pela quantia de € 77 653,77 e juros, por força de sentença condenatória e que ele, antes da execução, doou aos seus filhos, os outros réus, o referido prédio, impossibilitando-a de satisfazer o seu crédito.
Os réus, em contestação, alegaram ser oneroso o negócio impugnado, que o celebraram para possibilitar a obtenção de um empréstimo bancário por parte dos filhos do primeiro destinado a satisfazer o crédito da autora e ser o valor da dívida substancialmente inferior ao valor do prédio.
Foi concedido o apoio judiciário às recorrentes DD e HH na modalidade de pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo,por despachos de 31 de Agosto de 2005 e de 12 de Outubro de 2005, respectivamente.
Na fase da condensação, dispensada a audiência preliminar, foi proferida sentença no dia 18 de Outubro de 2006, por via da qual se declarou a ineficácia em relação autora do contrato de doação e partilha em vida celebrado entre os réus e o reconhecimento do seu direito de executar o mencionado imóvel no seu património na medida do seu direito de crédito.
Apelaram os réus, e a Relação, por acórdão proferido no dia 16 de Maio de 2007, negou provimento ao recurso.

Os apelantes interpuseram recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- nos termos do artigo 692º, nº 1, do Código de Processo Civil, o efeito do recurso é suspensivo;
- os factos considerados provados são insuficientes para alicerçar a decisão de mérito, sendo necessários para verificação do requisito do prejuízo e os constantes de 13º a 24 da contestação, não devia ter sido dispensada a audiência preliminar, impunha-se deixar seguir o processo para a produção de prova, sendo nulo o acórdão recorrido por não se ter pronunciado sobre tal insuficiência;
- o acto impugnado visou a inscrição do prédio no registo predial a fim de constituir garantia real a favor do banco mutuário através de hipoteca, com vista a pagar à recorrida a quantia exequenda e, com a aprovação do crédito no dia 30 de Outubro de 2006, criou-se a capacidade de satisfazer o crédito da recorrida, desaparecendo o prejuízo pressuposto da impugnação pauliana;
- se a intenção fosse sonegar garantia patrimonial autora não fazia sentido a constituição do usufruto, com valor patrimonial relevante, susceptível de integrar o seu património;
- houve tornas, trata-se de um acto oneroso, porque há saída de um direito e entrada de outro na esfera jurídica de todos os participantes, e não resulta do acto impugnado que o património do devedor não integre bens que permitam solver o crédito da recorrida;
- ao não considerar toda a mencionada factualidade, o acórdão recorrido não permitiu fosse produzida prova bastante para infirmar a convicção do julgador, violando os artigos 610º do Código Civil e 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil;

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão de alegação:
- como o objecto da acção é a recuperação e a manutenção da garantia patrimonial do crédito da recorrida, o acórdão fixou correctamente o efeito do recurso;
- os factos da contestação confessados pelos recorrentes traduzem declarações não sérias produzidas na escritura pública de doação e partilha, porque não acompanhadas de vontade negocial;
- o Supremo Tribunal de Justiça pode declarar nulo o negócio jurídico materializado na referida escritura;
- o acórdão recorrido aplicou correctamente os artigos 692º, nº 1, do Código de Processo Civil e 610º a 612º do Código Civil.
II
É a seguinte a factualidade considerada assente no acórdão recorrido:
1. Por sentença transitada em julgado no dia 29 de Maio de 2003, o réu BB foi condenado a pagar à autora a quantia de € 77.653,77 e juros, a título de indemnização.
2. No dia 3 de Outubro de 2003, a autora intentou contra o réu BB acção executiva para pagamento da quantia mencionada sob 1, na qual indicou à penhora o único bem conhecido ao executado - o prédio urbano de rés-do-chão, ... andar e terreno de logradouro, situado na Rua Central, nº ..., freguesia de Lever, Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz em nome do executado sob o artigo 769.
3. Por escritura pública outorgada entre os réus no dia 12 de Setembro de 2003, BB e CC declararam:
- serem legítimos possuidores de um prédio de dois pavimentos, com logradouro, destinado à habitação, sito na Rua Central, nº ..., freguesia de Lever, Vila Nova de Gaia, omisso nas Conservatórias do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz a favor do ré BB, sob o artigo 769;
- doarem-no em comum aos seus quatro filhos, DD, FF, HH e JJ, com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo a seu favor;
- serem os donatários seus únicos filhos e que procediam à partilha em vida do imóvel da seguinte forma: o valor da meação de cada um dos cônjuges doadores era de € 10 000, e que, pelo falecimento de um deles cabia ao cônjuge sobrevivo uma quarta parte dessa meação, no valor de € 2 500, e o remanescente dessa meação, no valor de € 7 500, adicionada à outra meação, perfazia € 17 500, divididos em quatro partes iguais, correspondentes às quotas de cada um dos filhos, no valor unitário de € 4 375, e que procediam ao preenchimento das referidas quotas, adjudicando a cada um dos filhos ¼ em raiz do prédio no valor de € 5.000,00 e que os referidos filhos haviam reposto aos referidos declarantes, seus pais, o valor, individual de € 625.
4. Os réus, DD, FF, HH e JJ declararam, na referida escritura, aceitar tal doação, e obtiveram a descrição predial do referido prédio sob o nº 01271 na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia e o registo da sua aquisição por doação.
- exige-se que a diminuição do património do devedor ponha em perigo a possibilidade da satisfação do crédito, e que tal prejuízo se traduza em impossibilidade para o credor de satisfação integral do seu crédito ou no seu agravamento, o que se não verifica;
III

A questão essencial decidenda é a de saber se ocorrem ou não na espécie os pressupostos da declaração de ineficácia em relação à recorrida do contrato mencionado sob II 3.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelos recorrentes e pela recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- pode ou não este Tribunal conhecer da legalidade ou ilegalidade do efeito atribuído ao recurso de apelação?
- está ou não acórdão recorrido afectado de nulidade por omissão de pronúncia?
- são ou não os factos assentes suficientes para a decisão do mérito da causa?
- caracterização do contrato mencionados sob II 3;
- pressupostos legais da impugnação pauliana;
- a aplicação do direito ao caso implica ou não a ampliação da matéria de facto?
- verificam-se ou não no caso os pressupostos objectivos da impugnação pauliana?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados, da dinâmica processual envolvente e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela análise da questão de saber se este Tribunal pode ou não conhecer da legalidade/ilegalidade do efeito atribuído ao recurso de apelação.
Ao interporem o recurso de apelação da sentença proferida no tribunal da primeira instância no dia 7 de Novembro de 2006, os apelantes indicaram o efeito suspensivo, mas ele foi recebido, no dia 13 de Novembro de 2006, com efeito meramente devolutivo.
Nas alegações do recurso de apelação, os apelantes suscitaram a correcção do efeito do recurso no sentido de lhe dever ser atribuído o efeito suspensivo.
O relator da Relação, por despacho proferido no dia 15 de Março de 2007, invocando o disposto no artigo 692º, nºs 1 e 2, alínea b), do Código de Processo Civil, decidiu ser o efeito do recurso o meramente devolutivo por se não tratar de acção respeitante à posse ou ao direito de propriedade da casa de habitação do réu.
Os apelantes não usaram da faculdade de reclamação para a conferência, a que se reporta o nº 3 do artigo 700º do Código Civil, do mencionado despacho do relator da Relação.
Em consequência, resolveu o referido despacho, definitivamente, a questão do efeito do recurso de apelação em causa, em termos de caso julgado formal (artigo 672º do Código de Processo Civil).
Por conseguinte, não pode este Tribunal conhecer da questão processual relativa ao efeito do mencionado recurso de apelação.

2.
Prossigamos com a análise da questão de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por omissão de pronúncia.
Os recorrentes fundaram a arguição da nulidade do acórdão na circunstância de a Relação não ter conhecido da questão da insuficiência dos factos considerados assentes pelo tribunal da primeira instância para a decisão de mérito e de deverem ser seleccionados com vista ao julgamento os que afirmaram relativamente aos motivos da doação e da proposta de contrato de mútuo com hipoteca sobre o prédio indicado à penhora.
Expressa a lei que o acórdão da Relação é nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O tribunal deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito a que a lei se reporta.
Na perspectiva do direito substantivo, as questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Correspondentemente, devem ser consideradas para efeito do disposto naquele normativo os pontos de facto e ou de direito de natureza processual, como é o caso de saber se os factos assentes por confissão, acordo das partes ou documentos com força probatória plena são ou não suficientes para o conhecimento imediato do mérito da causa, a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 510º do Código de Processo Civil.
O tribunal deve conhecer das referidas questões, mas não de todos os argumentos expressados pelas partes a fim de o convencer do sentido com que devem ser interpretados os factos e as normas jurídicas envolventes.
Os apelantes afirmaram, nas alegações do recurso de apelação, ter a doação e a partilha em vida visado a inscrição do prédio no registo predial e a obtenção de empréstimo hipotecário para proceder ao pagamento da quantia exequenda e ter a aprovação dessa operação de crédito gerado a sua capacidade de pagamento à recorrida.
Portanto, pretenderam os apelantes que a Relação, sindicando o juízo do tribunal da primeira instância ao conhecer, na fase da condensação, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 510º do Código de Processo Civil, do mérito da causa, ordenasse a elaboração da base instrutória com vista à inclusão das afirmações relativas aos motivos da celebração do contrato impugnado por via da acção.
O nº 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil, na parte em que atribui à Relação o poder-dever de anular a decisão da matéria de facto quando considere indispensável a sua ampliação, envolve certo paralelismo com o fundamento de revogação por aquele Tribunal da sentença proferida em sede de condensação, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 510º daquele diploma, por virtude da insuficiência dos factos assentes para a decisão de mérito segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito.
Ora, o colectivo dos juízes da Relação, depois de expressar que a matéria de facto considerada assente no tribunal da primeira instância não havia sido impugnada, afirmou não se verificarem os pressupostos da aplicação do nº 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil.
Em consequência, enquadrando embora a questão suscitada pelos apelantes no disposto no nº 4 do artigo 712º, em vez de a enquadrar no que se prescreve na alínea b) do nº 1 do artigo 510º, ambos do Código de Processo Civil, a Relação dela conheceu, no sentido inverso ao por eles pretendido, ou seja, de submeter à fase da instrução da causa as afirmações mencionadas por eles inseridas no instrumento de contestação.
Não ocorre, por isso, a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia a que se reporta a primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.

3.
Vejamos, ora, se os factos considerados assentes nas instâncias são ou não suficientes para a decisão do mérito da causa.
Findos os articulados, não havendo lugar à convocação da audiência preliminar, deve o juiz conhecer imediatamente do mérito causa, sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (artigo 510º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil).
Assim, a decisão de mérito na fase da condensação do processo só se justifica se estiverem assentes factos suficientes para o efeito segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito (artigos 508º-A, nº 1, alínea e) e 511º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Independentemente do suscitar da mencionada questão de conhecimento indevidamente antecipado do mérito da causa, pode este Tribunal corrigi-la em sede de recurso, porque aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido deve aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, mas se verificar que eles não constituem base suficiente para a decisão de direito, remeterá o processo ao tribunal recorrido a fim de ser operada ou determinada a respectiva ampliação (artigo 729º, nºs. 1 e 3, do Código de Processo Civil).
Volvendo ao caso concreto, temos que, no instrumento de contestação da acção que contra os recorrentes foi intentada pela recorrida, eles afirmaram, por um lado, não pretender BB eximir-se a pagar a dívida exequenda por ter 70 anos de idade e graves problemas de saúde agravados com a situação, e que, na tentativa da sua resolução, só não pagou à última por não ter dinheiro.
E, por outro, ter-se dirigido a uma instituição bancária no sentido de obter um financiamento que lhe permitisse pagar a quantia exequenda, o seu pedido haver sido indeferido em razão da sua idade e dos seus parcos rendimentos, ter a única solução apresentada a da inscrição do prédio no registo predial a fim de constituir hipoteca a favor do banco mutuário.
E, finalmente, porque a concessão do mútuo dependia de o requerente apresentar, para além da garantia, idade inferior à sua, só lhe restou a possibilidade de requerer o mútuo em nome de um ou de todos os seus filhos na sequência da escritura impugnada, sem consciência ou intenção de por em causa a satisfação do crédito da recorrida ou a esta causar prejuízo, mas de criar as condições para o pagamento, agindo, por isso, de boa fé.
A maioria das referidas afirmações envolvem meras conclusões, ou seja, não se traduzem em factos jurídicos concretos, e, consequentemente, não eram susceptíveis, só por isso, de selecção para inclusão na base instrutória.
Acresce que as mencionadas afirmações se traduzem no enunciado da motivação que terá estado na origem da contratação que ocorreu entre BB e CC, por um lado, e DD, FF, HH e JJ, por outro.
Trata-se, pois, de elementos subjectivos, insusceptíveis de influir no quadro objectivo que se traduziu, muito simplesmente, na alienação por BB e CC do único imóvel conhecido na sua titularidade e que a recorrida, para realizar o seu direito de crédito indemnizatório no confronto do primeiro, indicara à penhora na acção executiva que instaurara.
Em consequência, não relevam as mencionadas afirmações para a decisão do mérito da causa, pelo que não tinham de ser averiguadas na fase da instrução do processo (artigos 508º-A, nº 1, alínea e) e 511º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Por isso, a Relação, ao não revogar no recurso de apelação a sentença proferida no tribunal da primeira instância, com vista à elaboração de base instrutória, não infringiu o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 510º do Código de Processo Civil.

4.
Caracterizemos, de seguida, em tanto quanto releva no caso vertente, em sintéticos termos, o contrato mencionados sob II 3.
Os factos provados revelam, por um lado, que BB e CC declararam doar em comum aos seus quatro filhos - BB, JJ, FF e HH -, com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo a seu favor, o referido prédio urbano, e que os últimos declararam aceitar tal doação.
E, por outro, que procediam à partilha em vida, adjudicando um quarto da raiz do prédio a cada um dos filhos, no valor de € 5 000 e que cada um deles lhe havia reposto o valor de € 625.
A doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente, podendo a primeira reservar para si o usufruto dos bens doados (artigos 940º, nº 1 e 958º, nº 1, do Código Civil).
O usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância, susceptível de ser constituído por contrato a favor de uma pluralidade de pessoas simultânea ou sucessivamente (artigos 1439º a 1441º do Código Civil).
Em regra, o usufruto constituído por contrato a favor de uma pluralidade de pessoas conjuntamente só se consolida com a propriedade por morte da última que sobreviver (artigo 1442º do Código Civil).
Não é havido como sucessório o contrato por via do qual alguém faz doação entre vivos, com ou sem reserva de usufruto, de todos ou parte dos seus bens a algum ou alguns dos presumidos herdeiros legitimários, com o consentimento dos outros, e os donatários pagam ou se obrigam a pagar a estes o valor das partes que proporcionalmente lhes caberiam nos bens doados (artigo 2029º, nº 1, do Código Civil).
Resulta, pois, deste artigo, à margem da figura do contrato sucessório, a previsão de uma doação entre vivos, com a intervenção de todos os herdeiros legitimários dos doadores.
Trata-se, pois, da partilha dos bens doados por via do próprio contrato de doação, em que as tornas funcionam como meio de composição dos respectivos quinhões.
No caso vertente, BB e CC procederam à partilha do prédio em causa por via de contrato de doação, com a particularidade de todos os herdeiros legitimários dos primeiros terem intervindo naquele contrato na posição de donatários.
Grosso modo, os actos gratuitos visam conceder a uma das partes um benefício pecuniário ou de outra espécie, e os actos onerosos a obtenção de vantagem para ambas as partes.
Face ao mencionado conceito de actos gratuitos e onerosos, tendo em conta a estrutura do referido contrato, não obstante a reserva de usufruto e as tornas recebidas pelos recorrentes BB e CC, a conclusão é no sentido de que se trata de actos gratuitos.

5.
Analisemos, ora, os pressupostos legais objectivos e subjectivos do instituto designado por impugnação pauliana, meio de conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações.
A procedência deste meio de conservação da garantia patrimonial a que se reporta o artigo 601º do Código Civil, ou seja, os bens do devedor susceptíveis de penhora, implica a atribuição ao impugnante do direito à restituição na medida do seu interesse, a prática de actos de conservação da garantia e à execução no património do obrigado à restituição (artigo 616º, nº 1, do Código Civil).
São seus requisitos os actos envolventes de natureza não pessoal que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito, a anterioridade deste em relação àqueles, o nexo de causalidade entre o acto e a impossibilidade de satisfação integral do direito de crédito verificada na altura da sua prática e a má fé dos respectivos sujeitos no caso de se tratar de actos onerosos (artigos 610º e 612º do Código Civil).
No que concerne ao ónus de prova, ocorre a especialidade de o credor dever provar o seu direito de crédito, incluindo a sua quantificação, e o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do acto a existência no património do obrigado de bens penhoráveis de igual ou maior valor no confronto com o valor do referido acto (artigo 611º do Código Civil).
Isso significa, em termos práticos, que, provada pelo impugnante a existência e a quantidade do direito de crédito e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, se presume a impossibilidade de realização do direito de crédito em causa ou o seu agravamento.
Mas nesta matéria distingue a lei conforme os actos em causa sejam onerosos ou gratuitos e, quanto aos primeiros, exige que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé, que caracteriza como consciência do prejuízo que eles causem ao credor (artigo 612º do Código Civil).
A exigência da má fé de ambas as partes deriva da ideia de que à prestação do devedor corresponde a prestação equivalente de terceiro e este ficar em situação de grave afectação da sua esfera patrimonial.
A má fé a que a lei se reporta envolve a representação pelos respectivos outorgantes de que o acto praticado afectará negativamente a realização do direito de crédito do credor no confronto do devedor; não exigindo, porém, que os contratantes actuem com intenção de lhe causar prejuízo.
Como o contrato de doação impugnado é de natureza gratuita, não se coloca na espécie o requisito da má fé em relação ao devedor e aos terceiros, ou seja, no que concerne aos recorrentes doadores e donatários.
Portanto, o êxito da pretensão da recorrida no confronto dos recorrentes apenas depende da verificação dos pressupostos de facto a que se reporta o proémio, a primeira parte da alínea a) e a alínea b) do Código Civil, ou seja, dos elementos objectivos da impugnação pauliana.

6.
Prossigamos com a análise da subquestão de saber se ocorrem ou não na espécie os pressupostos objectivos da impugnação pauliana.
Tendo em conta os factos provados, verifica-se que a recorrida é titular de um direito de crédito no confronto do recorrente BB e que o mesmo se constituiu antes da celebração do contrato de doação impugnado.
Ignora-se qual é património da titularidade BB, bem como se ele integra ou não bens suficientes para que a recorrida realize, no seu confronto, o direito de crédito de que é titular.
Mas como sobre ele incumbia o ónus de prova dessa suficiência, e não a produziram, nem articularam factos susceptíveis de a revelar, a conclusão é no sentido da sua insuficiência patrimonial no confronto do direito de crédito da titularidade da recorrida e que esta pretende fazer valer contra eles na acção executiva (artigo 611º do Código Civil).
Na realidade, os recorrentes BB e CC desafectaram do seu património um relevante elemento patrimonial, com o que impossibilitaram a recorrida de satisfazer o seu direito de crédito, ou seja, está verificado o pressuposto a que alude a alínea b) do artigo 610º do Código Civil.
Assim, importa concluir verificar-se a impossibilidade para a recorrida de satisfazer o seu direito de crédito no confronto dos recorrentes por via da execução de bens existentes no património dos recorrentes BB e CC.
Acresce ser o contrato de doação impugnado pela recorrida posterior à constituição do direito de crédito por aquela pretendido realizar na acção executiva que instaurou contra o recorrente BB, pelo que verificado está também o pressuposto da impugnação pauliana previsto na alínea a) do artigo 610º do Código Civil.
Ocorrem, por isso, na espécie, os pressupostos objectivos da impugnação pauliana a que se reporta o artigo 610º, nº 1, alíneas a), 1ª parte, e b), do Código Civil.

7.

Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
O caso julgado formal impede que este Tribunal conheça da legalidade ou ilegalidade do efeito atribuído ao recurso de apelação.
O acórdão recorrido não está afectado de nulidade por omissão de pronúncia porque conheceu da questão da suficiência ou insuficiência da matéria de facto assente para a decisão de mérito.
A Relação cumpriu o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 510º do Código de Processo Civil ao não revogar a sentença proferida no tribunal da primeira instância para que fosse elaborada a base instrutória com a inclusão das afirmações justificativas da alienação do imóvel.
A recorrida é titular, no confronto de BB, de um direito de crédito indemnizatório no montante de 77 653,77, constituído anteriormente ao contrato de doação celebrado entre ele e CC, como doadores, e os outros recorrentes, na posição de donatários.
Trata-se de um contrato gratuito que teve por objecto o único imóvel conhecido na titularidade dos recorrentes BB e CC, por via do qual foi logo transmitida a respectiva propriedade de raiz.
Os recorrentes BB e CC não articularam factos que, a serem provados, revelassem serem titulares de bens ou rendimentos suficientes para garantir a realização do direito de crédito da titularidade da recorrida.
Em consequência, ocorrem na espécie os pressupostos fáctico-jurídicos da declaração da ineficácia do mencionado contrato de doação no confronto da recorrida, ou seja, verificam-se os pressupostos objectivos da impugnação pauliana a que se reporta o artigo 610º do Código Civil.

Improcede, por isso o recurso.

Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Todavia, como as recorrentes DD e HH beneficiam do apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo, tendo em conta o que se prescreve nos artigos 10º, nº 1, 13º, nºs 1 a 3 e 16º, nº. 1, alínea d), da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que sejam condenadas no pagamento das referidas custas.


IV

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes, salvo DD de Azevedo e HH, no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2007

Salvador da Costa( relator)

Ferreira de Sousa

Armindo Luís