Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28247/10.4T2SNT-A-L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ESCRITURA PÚBLICA
PREÇO
CONFISSÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
ADMISSIBILIDADE
PROVA TESTEMUNHAL
FALSIDADE
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
DECLARAÇÃO NÃO SÉRIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/15/2015
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Manual do Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, vol. I, em anotação ao art.393º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 352.º, 358.º, N.º2, 371.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 2 DE FEVEREIRO DE 2010, PROC. N.º 1272/03.4TBTNV.C1.S1.
Sumário :
I - A escritura pública confere – à declaração feita pelo vendedor, no contrato de compra e venda, de que relativamente ao preço «já o recebeu do comprador» – força probatória plena, comportando uma declaração confessória de um facto à parte contrária.

II - Não obstante, a força probatória plena do documento só vai até onde alcançam as percepções do notário – existência da declaração – mas já não à veracidade do conteúdo da mesma, no caso concreto que o vendedor recebeu efectivamente a quantia indicada a título de preço.

III - Este facto pode ser impugnado por qualquer das partes sem necessidade de arguição da falsidade do documento, uma vez que o mesmo faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas mas já não quanto ao rigoroso sentido, sinceridade, veracidade ou validade das declarações emitidas pelas partes.

IV - A declaração referida em I valerá nos seus textuais termos se, e enquanto, o declarante não alegar e provar que a declaração não contém o facto que o declarante disse conter, podendo tal prova ser feita por qualquer forma, maxime¸ a prova testemunhal.

V - Nada impede assim que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta ou vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



AA

                      intentou, no Tribunal de Comarca da Grande Lisboa Noroeste, onde foi distribuída em Sintra ao Juízo de Grande Instância Cível – 2ª Secção – Juiz 5 ( veja-se fls.31 a 37 )  acção declarativa na forma ordinária de processo, que recebeu o nº2847/10.4T2SNT, contra

                      herdeiros da herança indivisa por óbito de BB

pedindo a condenação destes a pagar-lhe a quantia de 168 500,00 euros, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação até integral pagamento.

Os RR contestaram ( fls.80 ).

Elaborou-se despacho saneador (fls.91) - com fixação da matéria de facto assente e alinhamento da base instrutória – findo o qual se exarou o seguinte despacho:

« Consigna-se que a admissibilidade de prova testemunhal sobre os factos ora integrados na base instrutória dependerá da junção de prova documental indiciadora da veracidade desses factos – cfr. Art.394º do CCiivil ».

O autor apresentou reclamação defendendo que seja admitida, sem mais, prova testemunhal sobre a base instrutória.

Em despacho de fls.105 a 110, foi julgada improcedente uma tal reclamação e, assim, indeferido o requerido. E, em face disso, decidido:

« Relativamente à testemunha a ouvir por carta rogatória e em face do exposto nos autos relativamente à necessidade de início de prova documental de forma a permitir a audição da prova testemunhal     ( arts.393º/394º, ambos do CCivil ) antes de mais, notifique-se o autor para, se assim o entender, juntar aos autos tal prova documental, a fim de que se decida quanto à expedição da aludida carta rogatória ».

A fls.112 veio o autor AA informar que « não possui prova documental relativa à questão em litígio mas mantém e reitera o seu requerimento probatório, requerendo a audição de prova testemunhal indicada, bem como a expedição da respectiva carta rogatória … ».

Em despacho de fls.114, datado de 7 de Maio de 2013, foi decidido que « a audição de prova testemunhal nestas circunstâncias não se afigura ser legalmente admissível ( cfr. Arts.347º, 352º, 358º, nº2, 363º, nº1 e 2, 371º, nº1 e 393º, nº2 do CCivil ), termos em que se indefere a requerida expedição de carta rogatória ».

Inconformado, o autor veio interpor recurso de apelação desta decisão, « nos termos recurso do disposto no art.691º, nº2, al. i ) do CPCivil », recurso que foi admitido por despacho de fls.119.

Em acórdão de fls.124 a 129, de 27 de Fevereiro de 2014, sem voto de vencido, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente a apelação, confirmando|…| o despacho recorrido.

Ainda inconformado, o autor/apelante AA veio ( fls.134 ) « interpor recurso de revista excepcional, nos termos do disposto no artigo 671º, nº 3, parte final e art.672º, nº1, als. a ) e c ), nºs 2 e 3, ambos do CPCivil ».

E, alegando, dá conta « das razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma clara aplicação do direito         | …e | dos aspectos de identidade que determinam a contradição entre o acórdão recorrido  e o acórdão que fundamenta o presente recurso ».

Neste Supremo Tribunal o processo chegou à formação desenhada no nº3 do art.672º do NCPCivil que, em acórdão de fls.192 a 196, admitiu a revista como excepcional.

O recorrente junta certidão do acórdão – transitado já em julgado – deste STJ, de 9 de Junho de 2005, com a sua alegação, na qual apresenta – no que agora importa ( a revista está admitida ) - as seguintes CONCLUSÕES:




8. Não consta na escritura de compra e venda em discussão nos presentes autos que o Notário tivesse presenciado o pagamento do preço.

9.   Nos termos do disposto no artigo 371°, nº1, do Código Civíl, os documentos autênticos, como o sejam as escrituras de compra e venda, só fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.  

10. Fora das duas aludidas situações, como é o caso, os factos constantes dos documentos autênticos não fazem prova plena.

11. Conforme expressamente é referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 09.06.2005 " no que tange ao preço e respectivo pagamento, o mesmo só estará coberto pela força probatória plena do documento autêntico se o notário tiver atestado esse facto através de percepção sua (directa), isto é, que tal pagamento haja sido feito na sua presença “.

12. É assim errada a interpretação que o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido faz do nº1 do artigo 371º do Código Civil, no sentido de que constitui confissão com força probatória plena a declaração constante da escritura de compra e venda em questão de ter sido recebido pelo vendedor o preço acordado, sem que tal pagamento tivesse sido presenciado pelo Notário.

13. Não constituiu também confissão extrajudicial a menção constante nessa escritura do preço ter sido pago ao Autor, conforme defendido no acórdão recorrido.

14. Com efeito, refere o citado n°2 do artigo 358° do Código Civil que " a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena. "

15. Ora, os documentos autênticos, como analisado, só fazem prova plena dos factos que tenham sido praticados ou presenciados, no caso, pelo Notário. Fora destas duas situações, como é o caso, tais documentos (autênticos) não têm força plena, sendo o seu conteúdo (demais declarações prestadas na escritura) sujeito à livre apreciação do julgador conforme expressamente resulta da parte final do referido nº1 do artigo 371° do Código Civil.

16. Resulta assim da interpretação dessas duas normas jurídicas - artigo 358°, n? 2, e 371°, n° 1, do Código Civil - que se o facto declarado (pagamento do preço) foi feito na presença do Notário, essa declaração é tida como confissão, e se for feita à parte contrária, terá força plena. Se não o foi, como é o caso dos autos, não pode a mesma ser tida como confissão mas apenas como uma mera declaração de um facto sujeito à livre apreciação do julgador (como o é qualquer facto sujeito a julgamento que não tenha essa força plena).

17. Neste sentido pronunciou-se este Alto Tribunal no seu acórdão de 09.06.2005 | Revista nº1417/05 – 2ª secção, Ferreira de Almeida | no qual expressamente refere: " existe uma diferença entre a confissão e a admissão ou mera declaração de um facto (...). Assim, a declaração constante de uma escritura de cessão de quotas na qual é mencionado pelo cedente o recebimento do preço ou de um dado preço, não pode ser havida como confissão por não conter a admissão pelo declarante da veracidade de tal recebimento ".

18. Também assim foi entendido por este Supremo Tribunal no seu acórdão de 02.03.2011 | Revista nº888/07.4TBPTL.G1.S1 – João Bernardo | supra citado que expressamente refere: " temos que a figura da confissão não permite, no nosso caso, alcançar a prova plena. Ainda que a declaração de recebimento do preço tenha sido feita à parte contrária, vale apenas o que resulta do regime probatório dos documentos autênticos (...). Ou seja, trata-se dum caso de "simples interpretação do contexto do documento", como refere o n°3 do artigo 393º, subtraindo-a às limitações quanto a produção de prova ".

19. Tendo o Autor, ora Recorrente, alegado que apesar da declaração que ficou a constar da escritura de que o preço acordado havia sido por si recebido, mas que na realidade não o chegou a receber (devido ao facto do seu irmão, comprador, poucos meses depois ter falecido), não tinha o mesmo que alegar a falsidade desse documento (escritura) nem de invocar estar a sua vontade omissa ou viciada no momento da declaração, como entendeu o Tribunal da Relação, conforme também é referidos nos acórdãos de 09.06.2005, 23.02.2010 e 02.03.2011, na parte supra transcrita das presentes alegações.

20. O Tribunal da Relação de Lisboa fez uma errada aplicação e interpretação dos artigos 347°, 358°, 359°, 363°, 369°, 371°, 372°, 376º e 393°, todos do Código Civil.



~~



Apreciando e decidindo, cumpridos os vistos, valerá a pena começar por deixar aqui transposto o texto exacto da escritura de compra e venda celebrada no Cartório Notarial de Sintra, em 9 de Fevereiro de 2007, entre o aqui autor AA e CC, na qualidade de procurador de BB, de cuja herança ilíquida e indivisa os RR são os herdeiros.

E então veja-se:

« Que pela presente escritura, nas qualidades em que outorgam, celebram o seguinte contrato de compra e venda:

O primeiro outorgante, AA, vende ao representado do segundo outorgante, BB, a sua metade indivisa no identificado imóvel.

O preço da transmissão é de CENTO E OITENTA E SEIS MIL E QUINHENTOS EUROS, dos quais cento e setenta e quatro mil euros respeitam à parte urbana e doze mil e quinhentos euros à parte rústica, que o vendedor já recebeu do comprador ».

Se bem que, de algum modo, não pudesse dizer-se em absoluto que o vendedor AA declarou que já recebeu do comprador o preço da transmissão (para esse absoluto haveria que constar textualmente, por exemplo, que “ o primeiro outorgante declarou ter já recebido do comprador o preço da transmissão “ ), a verdade é que na sua petição inicial o próprio autor parece aceitar que essa declaração lhe pode ser imputada a si quando afirma ( art.5º ) que nessa escritura ficou declarado  … que o vendedor já recebeu do comprador e ( art.6º ) sucede, na verdade, que o aludido preço … nunca foi pago ao autor ( art.13º ) … o réu CC … procedeu à marcação da escritura, para o que avisou o autor, seu tio, que se limitou a assiná-la ( art.14º ) tendo o referido CC perfeito conhecimento que o preço desse prédio não tinha sido pago ao autor, nem antes da celebração da escritura nem durante esse acto nem posteriormente.

Seja como for, é a essa declaração e apenas a ela que a escritura pública (enquanto documento autêntico) onde está exarada confere força probatória plena, nos termos do que dispõe o nº1 do art.371º do CCivil, sem deixar de se considerar que ela comporta ( se comportar ) uma declaração – confessória – de um facto à parte contrária, a aceitar nos termos que resultam do disposto nos arts.352º e 358º, nº2 do CCivil.

Como escreve Antunes Varela, a págs.521 do seu Manual do Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, reflectindo exactamente sobre uma igual hipótese, « a força probatória plena do documento só vai até onde alcançam as percepções do notário … No exemplo figurado, ter-se-á assim como plenamente provado (até prova em contrário, feita no incidente da falsidade) que um dos outorgantes declarou perante o notário … ter recebido determinada quantia, a título de preço da coisa. Mas já se não tem por provado que … este recebeu efectivamente a quantia indicada … (É)são facto(s) que pode(m), consequentemente, ser impugnado(s) por qualquer das partes, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estar(em) coberto(s) pela força probatória plena deste. O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes ».

Fora do documento – e do seu valor probatório pleno – há então que procurar o verdadeiro sentido e alcance que a declaração comporta (veja-se o Ac. deste STJ de 2 de Fevereiro de 2010 - Salazar Casanova - na revista nº1272/03.4TBTNV.C1.S1), a sinceridade, veracidade ou validade da declaração emitida (emissão, de modo autêntico, assegurada).

É isso, in casu: temos por definitivamente assente (nos termos e pelas razões acima referidas) que o autor declarou ter recebido do comprador o preço da transmissão.

E assim valerá essa declaração, assim se aceitará o facto que ela incorpora - confessória que é - se o autor dela a não impugnar ou se, impugnando-a, não fizer a prova que destrua esse sentido confessório ou a sua sinceridade ou veracidade ou validade, a sua conformidade com o facto que verbaliza.

A declaração vale – e vale com força probatória plena - e vale com o facto, o recebimento, que está dentro dela, porquanto é um facto desfavorável ao autor.

Mas não mais do que isso: ela valerá se, e enquanto, o declarante não alegar - e provar - que a declaração não contém dentro o facto que declaradamente diz conter. Mas essa prova pode fazê-la o declarante por qualquer forma, maxime a prova testemunhal. Por qualquer modo poderá demonstrar que, afinal, o facto declarado ( ou que parece declarado ) é um facto … inexistente.

Como escrevem Pires de Lima/Antunes Varela, no seu CCivil Anotado, vol.I, em anotação ao art.393º, « nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta ou os vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada ».

É o que se passa aqui:

o autor AA, que declarou perante o notário ter recebido já o preço da transmissão, afinal alega – e quer demonstrar – que uma tal declaração não tem suporte sério na realidade factual verbalizada, o que necessariamente ele e o seu declaratário, ambos, conhecem.

E é essa a prova que pretende fazer, a prova dos factos constantes dos artigos da base instrutória:


BB, previamente à celebração da escritura de 9 de Fevereiro de 2007, havia combinado com o ora autor que o pagamento dos 168 500,00 euros ali mencionados apenas seria feito posteriormente, quando BB se deslocasse a Portugal?


O ora autor e BB confiavam plenamente na palavra um do outro?


Foi após esse acordo entre o autor e o BB que o ora réu CC procedeu à marcação da escritura?


BB nunca chegou a fazer o acima aludido pagamento acordado com o ora autor?

É essa a prova que pretende fazer e que – repete-se – pode fazer por qualquer meio, inclusive a prova testemunhal.

Não se trata de uma questão de falsidade – ao contrário, afirma-se a autenticidade do documento – nem de falta ou vício de vontade – ao contrário, a declaração foi feita e querida nos exactos termos em que foi recolhida pelo notário.

No limite será uma declaração não séria quando e se o declaratário alegar e provar a sua falta de seriedade, a desconformidade entre a expressão e o conteúdo, o que poderá fazer por qualquer meio. Até esse momento ela valerá por si própria, nos seus precisos termos, incorporando o que seja o facto declarado.

O recurso é assim procedente, havendo que revogar o despacho que, com fundamento na falta « de início de prova documental », indeferiu a requerida expedição de carta precatória a Angola para inquirição de uma testemunha.


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D   E   C   I   S   à  O



Na procedência da apelação,

                                      concede-se a revista e revoga-se o despacho recorrido na parte em indefere o pedido de expedição da carta rogatória para inquirição de uma testemunha com fundamento em falta de “ início de prova documental “.

Custas a cargo dos RR.

LISBOA, 15 de Abril de 2015


Pires da Rosa (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza (com declaração de voto)

Salazar Casanova

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Declaração de voto:

“Votei a decisão, porque entendo que a prova testemunhal foi oferecida com o objectivo de demonstrar a divergência entre a declaração e a vontade (declaração não séria), do conhecimento da contraparte, e não para contrariar a força probatória plena da confissão (artº 358º do C. Civil).