Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | PAULO SÁ | ||
Descritores: | REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA REGIME DE BENS ALTERAÇÃO ORDEM PÚBLICA NULIDADE DE ACÓRDÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 05/26/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISÃO DE SENTENÇA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I - Não tendo sido suscitada pelas partes a questão da não correspondência entre o acordo notarial de modificação do regime matrimonial de bens com o decidido na sentença do tribunal francês (de 13-05-1987) que homologou tal acordo, não tinha o julgador nacional que apreciar o mérito da decisão revidenda, para determinar se o homologado se limita a ratificar o que decidiram as partes. II - Não é necessário que dos autos conste o documento que consubstancia tal acordo notarial, até porque a sentença homologatória faz uma referência pormenorizada ao teor do referido acordo. Não existe, pois, nulidade - por omissão de pronúncia - do acórdão recorrido, que julgou procedente a acção, revendo e confirmando a aludida sentença. III - A situação em nada diverge da comum revisão de uma decisão estrangeira de divórcio, a qual, muitas vezes, se limita a decretar o divórcio sem nenhuma referência aos pressupostos de facto em que a mesma assentou. IV - No caso, a lei francesa aplica-se quer às relações entre os cônjuges, quer relativamente às convenções antenupciais e regime de bens (arts. 52.º, n.º 2, e 53.º, n.º 2, do CC), pois as partes tinham nacionalidade diferente (francesa e portuguesa) e residiam em França à data do casamento e após este. V - A alteração do regime de bens nos termos do acordo celebrado entre as partes não põe em causa as razões justificativas do princípio da inalterabilidade (cf. art. 1714.º do CC), uma vez que: os cônjuges não optaram expressamente por qualquer regime; na formulação do pedido de alteração foi invocada a protecção do património da requerida; e esta, no fundo, pretende obter a comunhão no aumento do património do marido, realizada a partir de 1989 e sobretudo da fixação da residência do casal em Portugal (1990). VI - Mesmo que a lei portuguesa fosse a aplicável, o reconhecimento da decisão revidenda não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, não enfermando a decisão recorrida de erro na interpretação e aplicação da alínea f) do art. 1096.º do CPC. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I – AA veio, nos termos do preceituado nos artigos 1.094.º e seguintes do Código de Processo Civil, intentar, na Relação de Lisboa, acção especial de revisão de sentença estrangeira contra BB, pedindo a confirmação da sentença transitada em julgado e proferida em processo que correu em França, pelo Tribunal de Grande Instância d’ Aix-enProvence, que homologou o acordo de modificação do regime matrimonial de bens celebrado entre ambos. Foram juntas certidões da sentença e certidão do casamento dos cônjuges. Devidamente citada, a requerida deduziu oposição., Observado o disposto no artigo 1099° do CPC, o requerente apresentou as suas alegações, pugnando pela revisão e confirmação da sentença estrangeira. Também a requerida apresentou alegações no sentido do indeferimento da pretensão do requerente. A final, a Relação proferiu acórdão a julgar a acção procedente, revendo e confirmando “a sentença proferida em 13 de Maio de 1987 que homologou a escritura datada de 23 de Dezembro de 1986, lavrada pelo Doutor ..., Notário em GARDANNE (França), nos termos da qual os cônjuges, AA e BB que estavam casados sob o regime da comunhão de bens adquiridos, declararam optar pelo regime da separação de bens, proferida pelo Tribunal de Grande Instância de Aix-en--Provence, França.” Inconformada, interpôs a Requerida recurso de revista, recurso que foi admitido. A Requerida apresentou as suas alegações, formulando as seguintes conclusões: a) O instrumento notarial outorgado em 23 de Dezembro de 1986, de alteração do regime matrimonial de bens de requerente e requerida, deve considerar-se parte integrante da decisão do Tribunal de Grande Instânce d’Aix-en-Provence, cuja revisão foi pedida no presente processo; b) Tal documento não foi junto pelo requerente, não tendo sequer sido ordenada oficiosamente a respectiva junção; c) Não constando tal instrumento dos autos é impossível verificar, nomeadamente, do respectivo conteúdo e termos, da existência do requisito de revisão da alínea f) do artº 1096º do CPC; d) Apesar de desconhecer tal conteúdo a decisão recorrida entendeu que ele se verificava; e) Imputa-se-lhe, pois, por erro de interpretação e de aplicação, a violação da alínea f) do art.º 1096º do CC impondo-se que seja concedida a presente revista com a consequente revogação da decisão recorrida; f) Ainda que se entenda não se estar perante uma situação subsumível a erro de decisão deverá entender-se que o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, na medida em que não apreciou o conteúdo e os termos do acordo outorgado notarialmente e objecto do pedido de homologação de molde a apurar da verificação do requisito da alínea f) do artº 1096º; i) Fica, assim, arguida, subsidiariamente, tal nulidade, – artºs 668º nº 1 alínea d) e 716º do CPC, – cuja procedência implicará a baixa dos autos à Relação para que, junto que seja o instrumento notarial, aquele tribunal aprecie da verificação do referido requisito. Houve contralegações. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação II.1. Na Relação foi dada como provada a seguinte factualidade: a) Em 22-12-1984, o requerente e a requerida, residentes em 00, Résid. Côte ...., 0000 – Carry le Rouet (França), casaram entre si, sem convenção antenupcial (fls. 36); b) Na altura referida na alínea anterior, o requerente tinha nacionalidade portuguesa e a requerida nacionalidade francesa; c) Em 09-03-1987, o requerente e a requerida requereram junto do Tribunal de Grande Instância de Aix-en-Provence (França) a homologação da escritura lavrada pelo Doutor ..., Notário em GARDANNE, a 23 de Dezembro de 1986, nos termos da qual os cônjuges optaram pelo regime da separação de bens, do qual consta: “TÊM A HONRA DE EXPOR: Que casaram um com o outro perante o Conservador do Registo Civil de CARRY LEROUET em 22 de Dezembro de 1984. Que, não tendo a sua união sido precedida de contrato de casamento, o Senhor e a Senhora BB ficaram sujeitos ao regime da comunhão de bens adquiridos. Que, no entanto, o referido regime matrimonial já não se encontra actualmente adequado ao interesse da respectiva família. Que, com efeito, o senhor AA encara a possibilidade de constituir sociedades em Portugal, pelo que pretende que o património da família fique protegido contra as vicissitudes das suas actividades. Que, assim, decidiram mudar de regime matrimonial, conforme lhes é permitido pelas disposições do artigo 1397º do Código Civil francês. Que, por escritura lavrada pelo Doutor ..., Notário em GARDANNE (França), em 23 de Dezembro de 1986, ambos declararam querer optar pelo regime da separação de bens, conforme se encontra definido pelos artigos 1536º a 1541º do Código Civil francês. Que a alteração sujeita à homologação do Tribunal está de harmonia com o interesse da família.”(fls. 13/14); d) Em 13-05-1987, pelo Tribunal de Grande Instância de Aix-en-Provence (França) foi proferida sentença que homologou “a escritura datada de 23 de Dezembro de 1986, lavrada pelo Doutor ..., Notário em GARDANNE (França), nos termos da qual os cônjuges, que estavam casados sob o regime da comunhão de bens adquiridos, declararam optar pelo regime da separação de bens. “(fls. 15); e) Em 05-06-1995, a requerida adquiriu a nacionalidade portuguesa (fls. 37); f) O requerente e a requerida vivem em Portugal, com carácter de permanência, desde o Verão de 1990 (art.º 14º da oposição e art.º 6º da resposta). II.2. – Como resulta dos artigos 684.º, n.º 4 e 690.º do Código de Processo Civil as conclusões das alegações delimitam o âmbito do recurso. As únicas questões em discussão são as seguintes: a) omissão de pronúncia relativamente ao conteúdo e os termos do acordo outorgado notarialmente e objecto do pedido de homologação; b) erro na interpretação e aplicação da alínea f) do artigo 1.096.º do Código de Processo Civil. II.3. Em matéria de reconhecimento de sentenças estrangeiras, perfilam-se duas orientações extremas: a da “revisão de mérito e a da “aceitação plena”. No primeiro caso, a recepção de uma sentença impõe uma revisão de mérito, o que implica quase que se ignore o aresto de origem, relegado para a posição de simples fundamento, para que o Estado do foro proceda a julgamento, emitindo a final uma nova decisão de mérito, só esta passando a assumir força de caso julgado com efeito executivo. No segundo caso advoga-se o acolhimento amplo das sentenças estrangeiras, sendo certo que cedo se reconheceu a dificuldade da sua aplicação no estado puro, o que originou a existência de excepções, considerando as peculiaridades dos ordenamentos jurídicos dos países de acolhimento. O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal. O que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz a certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Ou seja, desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa (cf. ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, p.141). A excepção à referida regra só ocorre se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, caso em que a impugnação também pode ser fundada na circunstância de que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa (artigo 1.100.º, n.º 2, do Código de Processo Civil). Feito este breve intróito, cabe abordar a questão da nulidade, sendo certo que, do que atrás se disse, não haverá lugar a uma revisão de mérito. É sabido que a nulidade prevista pela al. d) do n.º 1 do art. 668.º do C. Proc. Civil (omissão de pronúncia) "está directamente relacionada com o comando que se contém no n.º 2 do art. 660.º (o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras), servindo de cominação ao seu desrespeito". Podem suscitar-se dificuldades em fixar o exacto conteúdo das questões a resolver que devem ser apreciadas pelo juiz na decisão. Existe, porém, acentuado consenso no entendimento de que "não devem confundir-se questões a decidir com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes: a estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido". Saliente-se, antes de mais, que questão a resolver, para os efeitos do artigo 660.º do C. Proc. Civil, é coisa diferente de questão jurídica (v.g., determinação de qual a norma legal aplicável e qual a sua correcta interpretação que, como fundamento ou argumento de direito, pudesse – ou até devesse – ser analisada no âmbito da apreciação da questão a resolver). A melhor resolução da questão a resolver deveria, porventura, levar à apreciação de várias questões jurídicas, utilizadas como argumentos e fundamento da decisão sobre a questão decidenda. Se o juiz, porém, não apreciar todas essas questões jurídicas e não invocar todos os argumentos de direito, que cabiam na melhor, mais completa ou exaustiva fundamentação, mas vier a proferir decisão, favorável ou desfavorável à parte, sobre a questão a resolver, haverá deficiência ou incompletude de fundamentação, mas não omissão de pronúncia. Seguindo os ensinamentos do Prof. ALBERTO DOS REIS, a propósito do critério de reconhecimento do que se deve entender por questão a resolver, as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado. Para tanto, o Juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer. Por isso, a circunstância de não considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, não constituirá nulidade. No acaso em apreço, nunca se suscitou a questão da não correspondência do decidido com o acordo notarial sobre o regime de bens do casamento. Não a suscitaram as partes e não tinha o julgador que apreciar o mérito da decisão revidenda, para determinar se o homologado se limita a ratificar o que decidiram as partes. Acresce que os autos estão instruídos com o pedido de homologação formulado e a sentença homologatória faz uma referência pormenorizada ao referido acordo: “homologa a escritura de alteração datada de 23 de Dezembro de 1986, lavrada pelo Doutor ..., notário em GARDANNE (França), nos termos da qual os cônjuges, que estavam casados sob o regime da comunhão de bens adquiridos, declararam optar pelo regime da separação de bens.” A situação em nada diverge da comum revisão de uma decisão estrangeira de divórcio, a qual, muitas as vezes, se limita a decretar o divórcio sem nenhuma referência aos pressupostos de facto em que a mesma assentou. Não existe, pois, manifestamente a arguida nulidade. II.4. Ultrapassada esta primeira questão debrucemo-nos ainda sobre o sistema português de revisão de sentenças estrangeiras. Em Portugal está consagrado o princípio, segundo o qual as sentenças estrangeiras são admitidas a desenvolver na ordem jurídica do foro os efeitos que lhe são atribuídos no sistema jurídico de origem. Contudo, o Estado Português condicionou, salvo tratado ou lei especial em contrário, a produção de tais efeitos a um conjunto de requisitos sediados nos artigos 1.094.º e ss. do Código de Processo Civil (diploma ao qual doravante pertencerão os normativos citados, se nada se disser em contrário). Comecemos pela análise dos requisitos de revisão de sentenças estrangeiras e dos pressupostos da sua impugnação, à luz do direito interno português. Nos termos do artigo 1.096.º, a revisão e a confirmação de sentenças estrangeiras depende da verificação dos seguintes pressupostos: – exclusão de dúvida sobre a inteligência da decisão ou sobre a autenticidade do documento que a consubstancia; – trânsito em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; – proveniência de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei; – não ser a matéria sobre que verse da exclusiva competência dos tribunais portugueses; – ininvocabilidade de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, salvo se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; – citação regular do réu e observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes; – conteúdo não manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Vejamos agora os fundamentos de impugnação dos pedidos de revisão de sentenças estrangeiras, à luz do mencionado regime. Nos termos dos artigos 771.º, alíneas a), c) e f), e 1.100.º, o pedido de revisão de sentenças estrangeiras proferidas contra cidadãos estrangeiros só pode ser impugnado com algum dos fundamentos seguintes: – falta de algum dos requisitos atrás referidos; – existência de sentença criminal transitada em julgado reveladora de que a sentença revidenda foi proferida por prevaricação, concussão, peita, suborno ou corrupção do juiz seu autor; – existência de documento suficiente para modificar a sentença revidenda em sentido mais favorável à parte contrária de que esta não tivesse tido conhecimento ou não tivesse podido dele fazer uso no processo em que foi proferida; – ser a sentença revidenda contrária a outra que constitua caso julgado para as partes formado anteriormente. É, pois, face a estes princípios que será apreciado o caso sub judice. A requerida opõe-se à revisão em causa, por entender que o reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português. Como já se deixou dito, um dos requisitos necessários à confirmação das sentenças estrangeiras é o de não serem contrárias aos princípios de ordem pública do Estado Português. O conceito de ordem pública internacional difere do de ordem pública interna (BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, Atlântida Editora, Coimbra, 1974, p. 254; A. FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, Vol. I, Outubro de 2000, Almedina, Coimbra, p. 405; MACHADO VILLELA, Tratado Elementar de Direito Internacional Privado, 1921, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 567-568; J. A. REIS, obra e volume citados, pp. 175-176). Esta restringe a liberdade individual. Aquela limita a aplicabilidade das leis estrangeiras. Por isso, a ordem pública internacional é uma excepção ou limite à aplicação de uma norma de direito estrangeiro, fundada no interesse do Estado local (lex fori). “Uma lei de ordem pública interna deve sempre ser aplicada pelo juiz do Estado local, ao passo que uma lei de ordem pública internacional tem a sua aplicação dependente de uma regra de conflitos local lhe atribuir ou não competência, podendo, portanto, ser aplicada ela ou uma lei estrangeira. Assim, nos Estados que admitem o princípio locus regit actum, a lei reguladora da forma externa dos actos é uma lei de ordem interna, devendo ser aplicada pelo juiz a lei do seu país ou uma lei estrangeira, segundo o lugar onde o acto tenha sido praticado; e nos Estados que proíbem a poligamia, a lei que impede um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido, é uma lei de ordem pública internacional que o juiz deve aplicar sempre, quer se trate de um súbdito do Estado local, quer se trate de súbditos de um Estado que admita a poligamia.” (v. MACHADO VILLELA, op. cit., p. 568.) «O conteúdo da noção de ordem pública internacional é forçosamente impreciso e vago. Ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem socio-jurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la.» (FERRER CORREIA, obra citada, p. 410; v., também MACHADO VILLELA, opus cit., pp. 565-580, J. A. REIS, opus cit., p. 178 e BAPTISTA MACHADO, opus cit., pp. 253 e 259). Apesar de não existir até hoje uma fórmula precisa, nítida e infalível do conceito de ordem pública, e até talvez isso seja impossível, pelo menos no actual estado da ciência do direito internacional privado, na maioria dos casos, é possível, com grande aproximação, delimitar a ordem pública internacional através da síntese de vários critérios gerais de orientação que têm sido avançados com vista a fixar o conteúdo da ordem pública internacional. E então, dentro desta linha de orientação, e com vista a orientar o juiz para determinar se a lex fori deve ou não ser considerada de ordem pública internacional, pode dizer-se que são de ordem pública internacional as leis relativas à existência do Estado e essencialmente divergentes (divergência profunda) da lei estrangeira normalmente competente para regular a respectiva relação jurídica, as quais devem ser leis rigorosamente imperativas e que consagram interesses superiores do Estado. E os interesses que estão aqui em causa são os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa. Mas porque estas características também convêm às leis de ordem pública interna, e nem todas as normas de ordem pública interna são normas de ordem pública internacional, para que possa intervir a excepção de ordem pública internacional será necessário que as disposições da lex fori essencialmente divergentes da lei estrangeira normalmente aplicável sejam fundadas em razões de ordem económica, ético-religiosa ou política (v. MARQUES DOS SANTOS, ob. cit., pp. 580--581). Continua-se a acentuar que não se está perante uma definição mas antes a procurar encontrar critérios de orientação para o juiz, e com valor aproximativo. Assim, por exemplo, são leis de ordem pública internacional a expropriação sem indemnização (confisco), as leis que proíbem a poligamia e que impedem um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido (editada por razões morais), e também teria de intervir a reserva de ordem pública internacional se a aplicação do direito estrangeiro atropelasse grosseiramente a concepção de justiça material como o Estado do foro a entende, abalando os próprios fundamentos da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade, que choquem a consciência, como seria o caso de lei estrangeira que admitisse a morte civil ou a escravidão, ou a norma estrangeira que estabelecesse como impedimento à celebração do casamento a diversidade de raça ou de religião, ou a aceitação do repúdio por um marido muçulmano de uma esposa portuguesa, sem que esta tenha prestado o seu consentimento. Mas já não é uma lei de ordem pública internacional, mas de ordem pública interna, a lei que exige a forma escrita para o contrato de arrendamento urbano que, de acordo com o princípio locus regit actum admitido pelo nosso direito, só interessa aos arrendamentos celebrados em Portugal, e cujo fim a que obedeceu a dita norma em nada é comprometido ou atraiçoado pelo facto de em Portugal ser reconhecido como válido um arrendamento urbano celebrado verbalmente. Estão fora do âmbito da ordem pública internacional as leis políticas, as leis penais, as leis de polícia e de segurança, e todas as leis de direito público, visto que as leis de ordem pública internacional que interessam ao direito internacional privado, não podem deixar de ser o direito privado (civil ou comercial) do país do tribunal onde a questão se coloca, porque o recurso ao conceito de ordem pública internacional significa precisamente que se está em presença de um caso de competência normal da lei estrangeira designada pelo DIP da lex fori. Resta aditar, ao que vem dito, que são características da ordem pública internacional, para além da feição nacional – as exigências da ordem pública internacional variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles – a excepcionalidade, a imprecisão e actualidade. A excepcionalidade e a imprecisão já resultam do que ficou dito; as leis de ordem pública internacional são um limite à aplicação da lei normalmente competente para regular as relações jurídicas, consistindo a sua função em desviar a aplicação dessa lei, substituindo-a pela lex fori, a imprecisão da sua noção é um mal sem remédio, e a sua actualidade ou mobilidade, mostra que as leis de ordem pública internacional têm um cunho nacional, são função das concepções no tempo e no espaço do País onde a questão se põe, hão-de vigorar na ocasião do julgamento, e podem deixar de o ser e vice-versa, visto que podem variar de acordo com a variação das exigências do interesse geral (V. FERRER CORREIA, obra cit., p. 409 e ss.) Obtido assim um critério de orientação para o juiz, mas não uma definição, repete-se, do que seja a ordem pública internacional, a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública, implícita em toda a remissão que o DIP opera para os direitos estrangeiros, visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, conduza, no caso concreto, a um resultado intolerável. O domínio operacional desta excepção ou reserva de ordem pública situa-se ao nível dos casos concretos sub judice e não comporta qualquer juízo de desvalor sobre a própria norma estrangeira cuja aplicação é recusada, nem muito menos, sobre o ordenamento jurídico estrangeiro. Toda a acção preclusiva da ordem pública internacional incide directa e unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si (V. BAPTISTA MACHADO, opus cit., p. 269). Não é, portanto, a decisão propriamente que conta, nem os seus fundamentos, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento (A. MARQUES DOS SANTOS, Aspectos do novo Código de Processo Civil, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras”, Lex, Lisboa, 1997, p. 140 e FERRER CORREIA, cit., p. 483). “A decisão pode apoiar-se numa norma que, considerada em abstracto, pode contrariar a ordem pública internacional do Estado Português, mas cuja aplicação concreta o não seja. Ao invés, pode a lei em que se apoiou a decisão não ofender, considerada abstractamente, a ordem pública, mas a sua aplicação concreta assentar em motivos inaceitáveis” (FERRER CORREIA, opus cit., p. 483). E o que está aqui em causa são, não apenas os princípios mas os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa, “que de tão decisivos que são, não podem ceder, nem sequer nas relações jurídico-privadas plurilocalizadas (…).” (MARQUES DOS SANTOS, opus cit., p. 139) Assim sendo, há que indagar se esse é o caso da aludida decisão. Disse-se no acórdão recorrido: “A sentença a rever em nada contraria a ordem pública internacional do Estado Português. A imutabilidade do regime de bens do casamento estabelecida pelo art.º 1714º do Código Civil, não é um princípio de ordem pública. O mesmo tem de ser visto à luz do regime legal aplicável em caso de casamento entre cidadãos de nacionalidades diferentes. As regras de ordem pública internacional do Estado Português no que respeita às relações de família encontram-se estabelecidas nos artºs 49º e segs. do Código Civil e a sentença francesa em nada colide com as mesmas. Note-se que a sentença estrangeira em nada colide com tais normas do Código Civil. O casamento entre o requerente e a requerida foi celebrado em França e ambos ali tinham residência. A residência da família manteve-se em França até 1990, ou seja, durante mais de três anos após a sentença a rever. À data da sentença francesa, os cônjuges tinham nacionalidade diferente e a alteração da nacionalidade não tem efeitos retroactivos. Em suma, a lei aplicável era a lei civil francesa, por ali os cônjuges terem centrada a sua vida após o casamento até depois da sentença francesa, como a própria requerida confessa no art.º 14º da sua oposição, e porque já residiam em França à data do casamento. Assim, quer às relações entre os cônjuges, quer relativamente às convenções antenupciais e regime de bens é aplicável a lei francesa (artºs 52º, n.º 2, e 53º, n.º 2, do Código Civil). Permitindo a lei francesa, como considerou o Tribunal de Grande Instância d’ Aix-En-Provence, a modificação do regime de bens, também por força do art.º 54º do Código Civil o mesmo lhe é permitido, sem prejuízo dos direitos de terceiros já adquiridos. Com efeito, no que respeita aos direitos adquiridos, a lei portuguesa ressalvou apenas os de terceiros (art.º 54º, nº 2). Nem faz sentido falar sequer dos direitos adquiridos pela requerida, como defende na sua oposição, na medida em que ela celebrou a escritura de alteração do regime de bens do casamento e também ela requereu a sua homologação judicial. No requerimento de homologação da alteração consta expressamente que a alteração está de harmonia com o interesse da família.” Pouco há a acrescentar à fundamentação do acórdão recorrido. Diremos, no entanto, que, mesmo no direito português a regra do artigo 1714.º admite excepções, as quais se encontram enunciadas no artigo 1715.º do mesmo diploma legal. Ora, entre estas excepções ao regime da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei se conta a simples separação judicial de bens ou os demais casos previstos na lei de separação de bens na vigência da sociedade conjugal. O que significa que o resultado obtido pelo requerente e requerida com a alteração do regime de bens do casamento para separação de bens poderia ser obtida, se a lei portuguesa fosse a aplicável, através da separação judicial de bens (não interessando abordar mais detalhadamente a causa de pedir para a formulação desse pedido, uma vez que, se os cônjuges estão de acordo, a prova do perigo da perda do património do requerente é facilmente feita). Importa ainda frisar que o princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento inicialmente fixado pela lei ou pelos nubentes responde a exigências de protecção dos interesses de cada um dos cônjuges, face ao ascendente do outro (v. Ac. STJ de 27.04.1989, BMJ n.º 386.º, p. 463). Ou, mais detalhadamente, poder-se-á dizer que durante os trabalhos preparatórios do actual Código Civil, discutiu-se (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, 4º vol, p. 359), qual o caminho a seguir no domínio das relações patrimoniais entre os cônjuges: se o perfilhado no Código Civil de Seabra, que consagrava o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais (artigo 1105.º do Código de 1867) importado do Código de Napoleão e que se propagou à generalidade das legislações latinas, se o inverso vindo do Código alemão, por este se mostrar conforme ao princípio básico da liberdade negocial dos cônjuges. Seguiu-se, como ninguém ignora, o que vinha sendo seguido pela legislação portuguesa: o da imutabilidade do regime de bens, quer este seja estipulado por convenção antenupcial, quer supletivamente, quer por forma imperativa (artigo 1714.º, 1717.º e 1720.º do Código Civil). Prevaleceram, "no juízo global sobre a matéria", as razões justificativas do princípio da inalterabilidade, quais sejam: a) a de afastar o risco de um dos cônjuges se aproveitar do ascendente psicológico eventualmente adquirido sobre o outro para obter uma alteração do regime que lhe fosse favorável; b) a de evitar que as convenções antenupciais, tantas vezes correspondentes a verdadeiros pactos de família, se pudessem alterar, após a celebração do casamento, por simples decisão dos cônjuges; e c) a da necessidade de salvaguardar os interesses de terceiros, cujas expectativas na manutenção do regime convencionado ou fixado por lei também poderiam vir a ser defraudadas, caso o mesmo se pudesse alterar livremente (ibidem, p. 360 e A. VARELA, Direito da Família, edição de 1982, p. 357; v., também, ac. deste STJ de 26.05.93, proc. 083628, in www.dgsi.pt). No caso em apreço, não se vê que a alteração pusesse em questão as razões justificativas do princípio da inalterabilidade, uma vez que os cônjuges não optaram expressamente por qualquer regime, na formulação do pedido de alteração foi invocada a protecção do património da requerida e que esta, no fundo, pretende obter a comunhão no aumento do património do marido, realizada a partir de 1989 e sobretudo da fixação da residência do casal em Portugal (1990). Tudo para concluir que, mesmo que a lei portuguesa fosse a aplicável e não é, o reconhecimento das decisões revidendas não conduz, pois, a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. No mesmo sentido, veja-se o acórdão deste Tribunal, de 12.09.2006, proc. 06A2286, in www.dgsi.pt. III – Termos em que se acorda em negar a revista e em confirmar a decisão recorrida. Custas pela recorrente. Lisboa, 26 de Maio de 2009 Paulo Sá (relator) Mário Cruz e Garcia Calejo |