Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
225/20.2YHLSB-A.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
FUNDAMENTOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO PER SALTUM
PRESSUPOSTOS
PROPRIEDADE INTELECTUAL
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 10/19/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC (PROPRIEDADE INTELECTUAL)
Decisão: DEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

Novartis Pharma AG e Novartis Farma- Produtos Farmacêuticos S.A. tendo intentado contra Laboratórios Alter, S.A. e Alter S.A., nos termos do disposto no art. 3º da Lei 62/2011, acção que foi julgada improcedente, interpôs recurso per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso este que foi indeferido por considerar que não se encontravam preenchidos os requisitos que o art. 678 nº 1 do CPC fixa como exigíveis à admissão desse recurso.

A recorrente reclamou nos termos do art. 643 do CPC concluindo que:

 “1. A presente reclamação é admissível ao abrigo do artigo 643.º do CPC, por ter como objeto uma decisão que indefere o recurso per saltum interposto e que é prevista como não definitiva nos termos da lei;

2. O recurso per saltum interposto pelas Recorrentes cumprem todos os requisitos processuais elencados no artigo 678.º, n.º 1 do CPC, não estando a interposição do mesmo dependente de acordo entre as partes e inexistindo impugnação de matéria de facto;

3. O despacho reclamado deve ser revogado admitindo-se o recurso per saltum e ordenando-se a subida ao STJ.”.

Na resposta as recorridas defenderam que devia ser mantida a decisão de não admissão do recurso per saltum para o STJ sublinhando que no recurso interposto é impugnada a matéria de facto.

… …

 Por decisão singular manteve-se a de não admissibilidade do recurso per saltum.

Desta decisão reclamam as requerentes para a conferência, concluindo que:

“A decisão reclamada constitui uma decisão surpresa porquanto foi proferida sem observância de contraditório tal como previsto no art. 3º nº 3 do CPC

Estamos perante uma nulidade que pode ser considerada ao abrigo dos arts. 195 ou 615 nº1 al. d) do CPC, respectivamente, podendo o Supremo Tribunal de Justiça determinar os termos que considerar processualmente adequados para desta conhecer.

- O art. 3º nº 7 da Lei 62/2011 referindo-se a “decisão arbitral” não tem aplicação aos presentes autos judiciais, como aliás já fora demonstrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em casos similares, devendo admitir-se o recurso per saltum por cumprir pontualmente os requisitos necessários para tal.”

Na resposta as requeridas mantêm que deve a revista ser rejeitada por se discutir na mesma matéria de facto.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

… …

Fundamentação

Analisando as questões suscitadas pelas reclamantes, entendemos que a decisão singular não contém decisão surpresa que a fira de nulidade.

O art. 3º nº 3 do CPC estatui que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

A lei consagra a garantia de as partes intervirem no processo, tendo conhecimento e possibilidade de se pronunciarem quanto aos pedidos que deduzem ou contra si são deduzidos e às questões determinantes para a decisão a proferir e que, constituindo novidade, não tenham sido objecto de pronúncia no decurso do normal contraditório previsto na tramitação processual. Todavia, as decisões surpresa, conceito que a jurisprudência tem vindo a densificar, são apenas aquelas com que as partes sejam confrontadas, com sentido de novidade relativamente às questões que haviam suscitado, e que não poderiam prever ou antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável.

Só quanto a estas, a violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que determine a anulação da decisão, mas a uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma.

De acordo com o referido e na sua aplicação à situação em discussão verificamos que a questão suscitada era a de saber se a decisão proferida pelo Tribunal da Propriedade Intelectual era passível de recurso per saltum para o STJ, isto é, se os requisitos fixados legalmente no art. 678 do CPC para essa admissão se verificavam ou não. E foi sobre essa a questão que a decisão singular se pronunciou, não crendo que se possa identificar a mesma com qualquer decisão surpresa que importasse, antes de ser proferida, o exercício de um novo contraditório.

Sobre as razões, pelas quais as reclamantes entendiam estar verificados os requisitos de admissibilidade do recurso per saltum, em oposição com a decisão que a indeferira, tiveram aquelas a possibilidade de se pronunciar.  Uma possibilidade que englobava e se estendia à recorribilidade da decisão em si mesma, nos seus mais diversos aspectos, desde a tempestividade, legitimidade, valor e sucumbência, até aos específicos do recurso per saltum. Se uma recorrente, em reclamação por o seu recurso não ter sido admitido, faz incidir a sua oposição apenas num dos requisitos (v.g. a tempestividade) desconsiderando os outros que poderia ter invocado (por fazerem parte do quadro de previsibilidade de arguição inerente ao conhecimento da admissibilidade dos recursos) e não invocou, julgamos que não pode arguir a nulidade, por falta de contraditório prévio, da decisão que mantenha a não admissão do recurso.

Sendo as questões de direito e de facto a decidir aludidas no art. 3º nº 3 do CPC identificadas por referência ao objecto da própria pretensão, no caso, esta envolvia a verificação da existência dos requisitos da admissibilidade do recurso e foi essa questão que a decisão singular conheceu sem se afastar da questão a decidir, não constituindo decisão surpresa porque se a matéria decidenda era a do conhecimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso, foi esta que foi conhecida dentro da latitude que comportava o seu conhecimento, balizada pelos reclamantes, isto é, saber se o recurso era admissível ou não.

Assim, não se verifica a nulidade da decisão reclamada por violação do princípio do contraditório.

… …

 Num segundo momento e porque a decisão reclamada havia considerado que o recurso per saltum era inadmissível por não ter sido requerido por ambas as partes, mas só por uma delas, e por nele ser abordada matéria de facto, os reclamantes sustentaram que não era exigível que o recurso per saltum fosse requerido por ambas as partes e, por outro lado, não suscitava questões de facto no recurso interposto.

Neste âmbito, resulta do art.678 nº 1 do CPC que “As partes podem requerer, nas conclusões da alegação, que o recurso interposto das decisões referidas no nº 1 do artigo 644.º suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, desde que, cumulativamente:

a) O valor da causa seja superior à alçada da Relação;

b) O valor da sucumbência seja superior a metade da alçada da Relação;

c) As partes, nas suas alegações, suscitem apenas questões de direito;

d) As partes não impugnem, no recurso da decisão prevista no nº 1 do artigo 644.º, quaisquer decisões interlocutórias”

Esta figura do recurso per saltum, originária da Reforma introduzida pelo Decreto-lei no 329-A/95, de 15 de Outubro e que se manteve na Reforma de 2007 (Decreto-lei no 303/2007, de 24 de Agosto) e, posteriormente, na Lei 41/2013, de 26 de Junho, remete para situações em que no recurso apenas se discutem matérias de direito (e não de facto), permitindo a lei a supressão de um grau de jurisdição, desde que o respectivo valor seja superior à alçada do Tribunal da Relação; a sucumbência superior a metade deste mesmo valor; o recurso não abranja decisões interlocutórias, passiveis de nele serem incluídas à luz do disposto no artigo 644 nº 3 do CPC.

Este tipo de recurso encontra-se, pois, reservado para os casos previstos no nº 1 do artigo 644 do CPC e depende de requerimento das partes (bastando uma delas, inclusive do recorrido) tendo a importante vantagem de contornar a impossibilidade de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça em virtude da formação de dupla conforme, nos termos do artigo 671 nº 3 do CPC. Isto é, constitui uma via aberta e garantida de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, sem o recorrente correr os riscos associados à confirmação do decidido em segunda instância com fundamentos essencialmente convergentes e sem a ressalva de qualquer voz dissonante (voto de vencido) – cfr. Luís Espírito Santo, in Recursos Cíveis, O sistema Recursório Português. Fundamentos, regime e actividade judiciária. pag. 310.

Explicado o travejamento jurídico em que assenta o recurso per saltum temos por evidente que o mesmo pode ser requerido por qualquer das partes desde que estejam reunidas as condições legalmente exigíveis, bastando que uma delas o requeira.

Por outro lado, o requisito de as partes nas suas alegações, suscitarem apenas questões de direito significa que a matéria fixada em primeira instância não pode estar impugnada, isto é, não pode pretender-se a sua alteração no recurso, o que obviamente não significa que nas alegações não possa referir-se a matéria julgada provada na invocação da subsunção jurídica que se defenda. Só que, abordar a matéria de facto não significa pretender alterá-la como não se pretende no recurso e, como assim, é inquestionável que na presente situação também este requisito está satisfeito.

Referiu-se na decisão singular que faz parte, também, da verificação dos requisitos de admissibilidade do recurso per saltum, saber se a própria decisão admite, em tese, recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, e isto, por existirem previsões legais que balizam e impedem esse acesso, como ocorre, designadamente, com aos recursos das decisões em primeira instância proferidas no âmbito do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas, nos casos dos procedimentos cautelares ou nos previstos no art. 45 nº 3 do CPI. Em tais situações deve compatibilizar-se a remissão do art. 678 para o art. 644 nº 1 do CPC com essas prescrições normativas destinadas a evitar que se ultrapassem situações de inimpugnabilidade das decisões para o Supremo Tribunal de Justiça e que a lei expressamente prevê – cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil. 6ª edição pág. 476 e Luís Espírito Santo, op. loc. cit. A ideia é a de permitir o seu acesso directo e facilitado, estando em causa apenas questões de direito e verificados os pressupostos gerais que sempre permitiriam, à partida, o seu conhecimento pelo órgão jurisdicional de cúpula.

A decisão singular, ora reclamada para a conferência, entendeu que, no caso, mesmo que satisfeitos os requisitos de admissibilidade do recurso per saltum antes enunciados, a aceitação do recuso per saltum interposto era obstada pelo art. 3º nº 7 DL 62/2011 por aí se dispor que “Da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal da Relação competente, com efeito meramente devolutivo.”

Na explicação desse normativo escreveu-se que a leitura a realizar do citado art. 3º na aponta no sentido da inadmissibilidade de recurso para o Supremo, na medida em que os preceitos que resolvem a questão da recorribilidade das decisões em matéria de propriedade industrial não vão no sentido da irrestrita irrecorribilidade das mesmas para o Supremo Tribunal e Justiça. E que “ o n.º 3 do artigo 46.º do Código da Propriedade Industrial – em cujo regime substantivo se buscaria, em parte, a solução para o caso em apreço – prevê que «Do acórdão do Tribunal da Relação não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que este é sempre admissível», fixando, assim, a Relação como normal teto recursório para o recurso, de plena jurisdição, previsto no artigo 39º desse Código, tendo por objeto a impugnação das decisões que concedam ou recusem direitos de propriedade industrial.” cfr. ac. STJ de 3-3-2021 no proc. 1002/19.9YRLSB.S1

Concluiu, então, a decisão singular ora reclamada para a conferência, que determinando a lei um único grau de recurso (para o Tribunal da Relação) com a exclusão de acesso ao STJ, nos casos em que tal aconteça, não é admissível o recurso per saltum mas sim, tão só, recurso para o Tribunal da Relação. Este mesmo entendimento é o professado no ac. deste STJ de 8-4-2021 no proc. 219/19.0YHLSB.L1.S1, in dgsi.pt, em que se deixou decidido que “o processo previsto no art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, deverá representar-se (continuar a representar-se) como um “‘processo especial’ de acertamento de direitos: i) susceptível de ser desencadeado em face da publicitação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado (altura em que não haverá, via de regra, qualquer infracção ou ameaça iminente de infracção de direitos de propriedade industrial); ii) que os titulares de direitos podem instaurar ou não, consoante o interesse que vejam nele; iii) que apenas pode ser instaurado dentro do prazo de um mês a contar dessa publicitação, porque isso se enquadra na lógica de um processo rápido, destinado a concluir-se idealmente antes de haver uma decisão do Infarmed sobre o pedido de autorização de introdução no mercado; e iv) com uma única instância de recurso”. E neste acórdão, em anotação de doutrina referiu-se a posição sustentada por Evaristo Mendes - “Patentes de medicamentos. Arbitragem necessária. Comentário de jurisprudência. Súmula da Lei nº 62/2011”, in Propriedades Intelectuais, n.º 4 - 2015, págs. 26-40.

Mantendo-se como exacto o que se escreveu na decisão singular ora reclamada para a conferência, no sentido de a previsão normativa do art. 3º nº 7 do DL 62/2011 ao prever um único grau de recurso para o Tribunal da Relação não permitir o recurso per saltum para o STJ, as reclamantes sinalizam, na reclamação para a conferência, que a decisão singular errou ao ter considerado que a acção onde foi interposto o recurso cabe na previsão daquele preceito (art. 3 nº 7).

Em análise desta questão, o nº 1 do artigo em estudo (3º do DL 62/2011) prevê que o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do art. 2º desse diploma – e que são os relacionados com medicamentos de referência, designadamente os medicamentos que são autorizados com base em documentação completa, incluindo resultados de ensaios farmacêuticos, pré-clínicos e clínicos, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de proteção - deve fazê-lo junto do Tribunal da Propriedade Intelectual ou, em caso de acordo entre as partes junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efetuar pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada.

Esse DL 62/2011 - que criou o regime de composição dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos - na versão original  (anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de dezembro), previa unicamente a arbitragem necessária para a discussão desses direitos mas  introduzidas veio a ser revogado o regime da arbitragem necessária e passou a ser possível optar entre a propositura da acção junto do TPI ou o recurso à arbitragem que passou a ser voluntária.

A diferença de regime processual segundo a opção que se accione comporta, como referem as reclamantes, diferentes consequências processuais e foi por não se ter atendido com o devido critério a estas diferenças que na decisão singular se julgou que o nº 7 do art. 3º do DL 62/2011 determinava nos autos apenas um grau de recurso para a Relação.

Sendo verdade que esse regime, tomado como solução na decisão singular desta reclamação, é a resposta e solução para a situação em que a discussão dos direitos tenha sido realizada no tribunal arbitral, e por expressa disposição legal, já não é exacto (como se entendeu na decisão singular) que essa limitação se aplique aos casos em que o interessado tenha proposto acção no Tribunal da Propriedade Intelectual que não cabem na previsão do citado art. 3º nº 7. Não obstante esteja previsto no mesmo preceito (no nº 1) quer a propositura da acção junto do TPI quer a o recurso à arbitragem voluntária, o regime não é unitário e, em matéria de recursos, a limitação a um grau (para a Relação) foi apenas prevista para os casos de arbitragem.

Que assim é resulta, não directamente de alguma decisão jurisprudencial que o afirme expressamente, mas da evidência que se cobra nos mais diversos acórdãos que no STJ têm sido produzidos em recurso sobre acções que nesta mesma matéria têm sido propostas no TPI ao abrigo do nº 1 do art. 3ª do DL 62/2011. vd. por todos e como exemplo o ac. STJ de 20-05-2021 no proc. 384/16.9YHLSB.L1.S1.

Em síntese, assiste razão às reclamantes quanto à admissibilidade do presente recurso de revista e, como assim, deve a reclamação ser atendida.

… …

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar procedente a reclamação dos requerentes e, deferindo-a, admite-se o recurso de revista interposto pelas reclamantes.

Oportunamente, cumpra-se o disposto no art. 643 nº 6 do CPC, requisitando-se o processo principal ao tribunal recorrido.

Sem custas


Lisboa, 19 de Outubro de 2021

 

Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva

2º adjunto: Sr.ª Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza