Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3619
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: ARRESTO
EMBARGOS
RESPONSABILIDADE CIVIL
CUMULAÇÃO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
INDEMNIZAÇÃO
ACÇÃO CÍVEL
CULPA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: SJ200312180036197
Data do Acordão: 12/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 107/03
Data: 03/27/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - O arrestado pode, em embargos ao arresto, pedir indemnização quando concorram no caso os pressupostos da responsabilidade do arrestante prevista no art. 621º C.Civ., e, em consonância, no art.390º, nº 1, aplicável, no caso, por remissão do nº 1 do art.392º, CPC: pressupostos esses, afinal, coincidentes com os requisitos gerais da responsabilidade civil (art. 483º ss C.Civ.).
II - Essa responsabilidade, que pode também ser exigida em acção própria, autónoma, ou principal, não depende apenas de vir a julgar-se injustificado ou infundado o arresto: exige igualmente a prova de culpa do arrestante, a apreciar nos termos do art. 487º, n. 2, e dos danos ou prejuízos causados, bem como do competente nexo de causalidade adequada; e é sobre o arrestado que recai o ónus da prova de todos esses elementos, consoante art. 342º, n. 1, sempre do C.Civ.
III - Não podendo recorrer quem tiver aceite a decisão, expressa ou tacitamente (art.681º, ns. 2º e 3º, CPC), é pelo menos, discutível a inequivocidade da incompatibilidade com a vontade de recorrer do pagamento efectuado na sequência de providência cautelar quando assim se tenha tido em vista apenas obter o seu levantamento.
IV - Feito esse pagamento em situação de necessidade, a alegação e prova da falta de justificação do arresto pode ter lugar em acção declarativa autónoma, com processo comum, de indemnização.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. Em 25/6/97, a A, requereu, e veio a obter, providência cautelar de arresto contra B, decretada em 4, executada em 7 e levantada, após pagamento da dívida invocada, em 8/7/97.
Alegando, em indicados termos, consciente deturpação, por parte da requerente dessa providência, dos pressupostos de facto invocados para o decretamento da mesma e consequente prejuízo, além do mais, do seu prestígio e bom nome comercial, resultantes da má fé daquela, a arrestada intentou, em 26/1/98, no Tribunal de Círculo de Santiago do Cacém, acção declarativa com processo comum na forma ordinária, pedindo a condenação da arrestante a pagar-lhe indemnização no montante de 78.452.194$00, sendo 70.000.000$00 pelo sobredito dano não patrimonial e o mais por indicados danos patrimoniais, com juros de mora, à taxa legal, contados desde a apresentação desse articulado até integral pagamento.
Aos 71 artigos da petição, a demandada respondeu em contestação com 152. Para além de defesa por impugnação, deduziu reconvenção relativa a facturas por pagar e juros de mora no montante conjunto de 1.532.341$00, com juros vincendos, à taxa legal também. Pediu, ainda, a condenação da demandante por litigância de má fé, para além da competente multa, em indemnização a seu favor não inferior a 10.000.000$00.
Houve réplica, em que a A. nomeadamente pediu, por sua vez, a condenação da demandada, por igual motivo, para além da multa, em indemnização a favor da A. no valor de 5.000.000$00.
Infrutífera tentativa de conciliação em audiência preliminar, foi, depois, lavrado saneador tabelar, indicada a matéria de facto assente e fixada a base instrutória, em parte, por remissão, tendo as reclamações de ambas as litigantes sido parcialmente deferidas.
Instruída a causa, após julgamento, findo o qual foi indeferida reclamação da A. contra as respostas aos quesitos, veio, em 16/9/2002, a ser proferida sentença, que, mencionando, designadamente, o disposto no nº 1 dos arts. 390º, 392º, 406º e 408º CPC e 342º, nº 1, 483º e 562º ss C.Civ., depois de analisar, um por um, os fundamentos da acção à luz da matéria de facto efectivamente provada, julgou esta acção improcedente, por não provada, e absolveu a Ré do pedido. Por ter havido renúncia tácita aos juros assim reclamados, a reconvenção foi julgada procedente, por provada, no respeitante, apenas, às facturas arguidas, tendo a A. sido condenada a pagar à Ré € 2.034,76 (407.933$00), com indicados juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal. Considerou-se não revelada má fé.
O Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente a apelação da A., que pede, agora, revista dessa decisão.
2. Em remate da alegação respectiva, a recorrente formula 45 conclusões (eram, na apelação, 39), prática repetição ou reprodução do texto dessa alegação.
Desrespeita, assim, por modo flagrante, a imposição expressa de síntese constante do nº 1 do art. 690º CPC.
Obvia a maior demora a consideração de não ser, propriamente, às conclusões oferecidas por quem recorre, mas às questões suscitadas na alegação do recorrente que se refere o nº 2 do art. 713º CPC. Como assim:

Para além da adiante referida, essas questões resumem-se à da arguida injustificação do aresto aludido, da culpa da ora recorrida ao requerer essa providência, e dos consequentes prejuízos (conclusões 1ª a 25ª e 30ª a 39ª (1), e, a final, à da litigância de má fé (conclusões 41ª a 44ª).
Em mais lógica ordenação, porém, terá de considerar-se, em primeiro lugar, a contrariedade da tese da arrestante que fez, na Relação, vencimento, e em que ora insiste, de que "o arrestado, como acto prévio à propositura de acção indemnizatória contra o arrestante, (...) terá de reagir, ou poder reagir (,) contra o arresto e fundamentos em que o mesmo assentou" (fls.30 desse acórdão, a fls. 1015 dos autos, 1º par.; conclusões 26ª a 29ª da alegação da recorrente).
A recorrente dá por violados os arts. 483º, 484º, 562º, e 621º C.Civ., e 390º, nº1, 456º e 457º CPC (conclusão 45ª ).

Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir. Antes de mais:
3. Mostra-se expressa, na conclusão 20ª da alegação da recorrente, discordância relativa à decisão da matéria de facto.
Tão só assim, porém, na medida em que aí se adianta que o depoimento das testemunhas que indicou foi tal que "amplamente provado (...) que a Recorrida tinha perfeito conhecimento, à data da propositura da citada providência cautelar, que o "tramo" arrestado era propriedade da empresa" Coinfra "e não da Recorrente".

Conhecido o disposto nos arts. 396º C.Civ., 655º, nº 1, CPC e 26º LOFTJ (Lei nº 3/99, de 13/1), e não invocada a previsão do nº 2 dos arts. 722º, nº 2, e 729º (e nem, antes, aliás, do nº 1 do art. 712º) CPC, outrossim não pedida, em sede de recurso, a alteração ou modificação da decisão sobre a matéria de facto, logo, enfim, se compreende não passar aquela conclusão, no que a essa decisão se refere, de obiter dictum que a deixa intocada.
Como assim, a matéria de facto a ter em atenção é, apenas, a fixada pelas instâncias, para que se remete em obediência ao disposto no art. 713º, nº 6, ora aplicável ex vi do art. 726º, CPC. Isto firmado:
4. O arrestado pode, de facto, opor-se à providência decretada agravando do despacho que a ordenou ou deduzindo embargos (2).

Fora de questão a dedução dum tal pedido em via de recurso, dada a sua mesma natureza e função de simples reexame do decidido na instância recorrida (cfr. art. 676º, nº 1, CPC), pode - isto é, é lícito ou consentido - em tais embargos, ou, em reconvenção, na acção proposta pelo arrestante, pedir-se indemnização (3), quando efectivamente concorram no caso os requisitos ou pressupostos da responsabilidade do arrestante prevista no art . 621º C.Civ., e, em consonância, no art. 390º, nº 1, aplicável, no caso, por remissão do nº1 do art. 392º, CPC - e que são, afinal, os gerais da responsabilidade civil (art. 483º ss C.Civ) (4).
Como já elucidado em Ac.STJ de 30/11/94, BMJ 441/236 ss (v. 243), essa responsabilidade não depende apenas de vir a julgar-se injustificado ou infundado o arresto, exigindo igualmente a prova de culpa do arrestante, a apreciar nos termos do art. 487º, nº 2, e dos danos ou prejuízos causados (bem como o competente nexo de causalidade adequada - cfr. art. 563º); sendo sobre o arrestado que recai o ónus da prova de todos esses elementos, consoante art. 342º, nº 1, sempre do C.Civ.
Não podendo recorrer quem tiver aceite a decisão, expressa ou tacitamente (art. 681º, nºs 2º e 3º, CPC), é pelo menos discutível a inequivocidade da incompatibilidade com a vontade de recorrer do pagamento efectuado na sequência de providência cautelar quando assim tido em vista apenas obter o seu levantamento (5). A outro tempo:
5. Foi em função das "graves repercussões que a ocultação ou deturpação da verdade por parte do requerente do arresto pode determinar ao arrestado "que" o legislador permitiu a este um meio mais expedito que o emprego do processo comum para se ressarcir dos prejuízos sofridos" (6); e que, sem prejuízo do mais, já referido, o requerido pode fazer valer esse direito em acção própria, autónoma, ou principal dizem-no, expressamente, Lebre de Freitas e outros, "CPC Anotado", 2º (2001), 61, Abrantes Geraldes, "Temas da Reforma do Processo Civil", III, 2ª ed. (2000), nº 94.3., pp. 296 e 297, e, afinal, até, Ac. STJ de 18/3/2003, no Proc. nº 4556/02-1ª, com sumário (v. ponto III) na pág. 12, 2ª col., do nº 69 dos Sumários de Acórdãos organizados pelo Gabinete dos Juízes Assessores deste Tribunal.

Não pode, por conseguinte, acompanhar-se o acórdão sob revista no passo transcrito em 2., supra.
No que ao caso dos autos vem mais a ponto, sustenta-se, por outro lado, neste acórdão, com apoio em Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos de Processo Civil", 254-b.-255, não poder exigir-se essa responsabilidade quando a providência se torne supervenientemente, inútil por um acto do requerido, nomeadamente se, por facto deste, a providência caducar nos termos do art. 389º, nº 1, al. e), CPC, como é o caso quando o arrestado pague a sua dívida: quando tal ocorra, "a providência caduca por inutilidade superveniente, mas esse devedor não tem direito a qualquer reparação".

Crê-se ter aqui cabimento clássico tempero: est modus in rebus. Com efeito:
Alegadamente efectuado o pagamento "a fim de evitar um dano incomparavelmente maior" (artigo 51º da petição inicial), a douta declaração de voto exarada no acórdão sob revista justifica a discordância daquela conclusão com referência aos artigos 21º ss, maxime 50º a 55º, da petição inicial e ao certificado a fls.256 a 258.
Vale isto por dizer que firma no estado de necessidade arguido o entendimento de que, numa tal hipótese, a alegação e prova da falta de justificação do arresto pode, ainda assim, ter lugar em acção declarativa autónoma, com processo comum, de indemnização (cita, a propósito deste último ponto, Abrantes Geraldes, na forma atrás referida). Ora:

Um dos princípios gerais acolhidos na última reforma do processo civil foi, precisamente, como salientado no preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12, o da prevalência do fundo sobre a forma.
Como assim, afigura-se de admitir que, em consideração não apenas formal, antes, como devido, substancial, da questão, efectivamente deva ser o entendimento acima referido o que há-de ter-se por melhor no caso sub judice (ou em qualquer que se lhe assemelhe).
6. A ser deste modo, terá, de facto, que acompanhar-se a fundamentação da sentença apelada. Na verdade:
Arguido, para, à luz do disposto no art. 406º, nº 1, CPC justificar o arresto, crédito no valor de 7.872.127$00, só se provou, é certo, ser, na realidade, no montante de 3.693.861$00.
São, em todo o caso, perto de 3.700 contos (€ 18.455,52). Não é, ainda assim, uma quantia insignificante; e, como notado na sentença proferida, havia divergência das partes acerca do prazo de vencimento das facturas, que só em sede de julgamento veio a ser esclarecida.

No que respeita ao receio de perda da garantia patrimonial desse crédito, observou-se naquela sentença que, exigível tal crédito, a ora recorrida, que no primeiro trimestre de 1997 tinha enviado para Itália diversa maquinaria (7), laborava com pouco pessoal e equipamento próprios, estando prestes a terminar os trabalhos no estaleiro de Sines. Sobrava, apenas, um escritório em Lisboa, que veio a ser encerrado no final do ano 2000.

O quesito 22º, em que se perguntava se a Ré sabia que, com o decretamento do aresto, iria provocar prejuízos à A., teve resposta negativa.

Na parte relativa ao prestígio e bom nome comercial da ora recorrente, os quesitos 1º e 23º receberam respostas restritivas.

Na própria alegação da recorrente (8) se reconhece a existência de "situações de contencioso" com fornecedores, mesmo se em número restrito. Da resposta dada ao quesito 38º constam cinco.

O âmbito da providência foi de imediato reduzido nos termos do art. 408º, nº 2, CPC.
Encurtado razões: não se provou a falta de injustificação do arresto; e mesmo quando assim não entendido, não se vê que a ora recorrida, ao requerer a providência em questão, tenha agido por forma imprudente; como assim ficando prejudicada a consideração dos danos arguidos.
A matéria de facto apurada é insuficiente para que possa considerar-se afectada a reconvenção deduzida, imprejudicada na parte em que obteve acolhimento (cfr., a propósito, resposta negativa dada ao quesito 47º).

7. Alcança-se, em razão do exposto, a decisão seguinte:
Nega-se a revista; e assim mesmo se, preferido o deduzido (como próprio, resumidamente) na declaração de voto aposta no acórdão recorrido, por motivos diferentes dos nele adiantados.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2003
Oliveira Barros
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
------------------------------------
(1) Sobre a 40ª, v. Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", III, 299-3.
(2) v., A este respeito, Lebre de Freitas e outros, "CPC Anotado", 2º (2001), 41 ss, em nota ao art. 388º. Anterior à reforma do processo civil operada em 1995/96, v. ARP de 11/91, CJ, XVI, 3º, 254.
(3) V. Alberto dos Reis, "Anotado", II, 36 e 48, citado no acórdão recorrido - v. também 49, e BMJ 3/90-91.
(4) V, Pires de Lima e Antunes Varela, "C.Civ. Anotado", I, 4ª ed., 638 e 639, Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", II, 3ªed. (2000), 176, em nota ao actual art. 390º, Abrantes Geraldes, "Temas da Reforma do Processo Civil", III, 2ª ed. (2000), 297. Sumariamente mencionada pelo primeiro processualista referido a história desse preceito, v., mais desenvolvidamente, Lebre de Freitas e outros, ob. e vol. cits, 57 ss, e, em especial, 60.
(5) V., a este respeito, despacho do Presidente da Relação do Porto de 14/1/79 na CJ, IV, 935-I, que cita Alberto dos Reis," Anotado", V, 280.
(6) Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", II, 2ª ed. (1971), de que o acórdão recorrido cita a pág. 276.
(7) Quaisquer que fossem as razões desse facto, importa incontornável diminuição do património da recorrente ao alcance da ora recorrida.