Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A333
Nº Convencional: JSTJ00036790
Relator: TORRES PAULO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
ASSEMBLEIA GERAL
CONVOCATÓRIA
REQUISITOS
DELIBERAÇÃO SOCIAL
SUPRIMENTO DA NULIDADE
VÍCIOS
NORMA IMPERATIVA
RENOVAÇÃO
Nº do Documento: SJ199905040003331
Data do Acordão: 05/04/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1676/97
Data: 11/24/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS.
Legislação Nacional: CCOM888 ARTIGO 146.
LSQ ARTIGO 46.
CCIV66 ARTIGO 279 B.
CSC86 ARTIGO 56 N1 N3 ARTIGO 58 N1 A ARTIGO 59 ARTIGO 62 N2 ARTIGO 248 N3.
Sumário : I- Os requisitos convocatórios - forma e tempo - expressos no n. 3 do artigo 248 do CSC são aferidos à sua expedição e não à sua recepção, aplicando-se ao prazo a regra do artigo 279, alínea b), do CCIV.
II- Para distinguir os vícios que determinam a nulidade ou a anulação de uma deliberação viciada, há que surpreender se eles dizem respeito ao conteúdo (alíneas c) e d) do n. 1 do artigo 56 do CSC), ou ao processo de formação (alíneas a) e b) do mesmo artigo) da deliberação.
III- As "nulidades" resultantes dos vícios de formação (alíneas a) e b) do n. 1 do artigo 56) são sanáveis nos termos do n. 3 do mesmo artigo, pelo que estamos perante uma invalidade mista.
IV- Se a deliberação colidir com normas dispositivas ou do pacto social - na disponibilidade dos sócios -, ela será só anulável (artigo 59).
V- A dicotomia normas imperativas e dispositivas só tem relevância quando o vício ataca o conteúdo da deliberação; se ele ataca o processo de formação de deliberação, a consequência é a sua anulabilidade.
VI- A alínea a) do n. 1 do artigo 58 do CSC é uma norma residual: residual por exclusão de partes, na medida em que abarca as hipóteses em que a deliberação continua a contrariar a lei em área não prevista no artigo 56.
VII- O n. 2 do artigo 62 do CSC acolheu a doutrina que se pronunciava pela admissibilidade da renovação de deliberação nula por vício de formação e nunca quando ela se circunscrevia ao cerne do conteúdo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1- No Tribunal de Círculo de Pombal, A e mulher B, aquele sócio de D, accionaram esta, pedindo que se decrete a anulação da deliberação que ela tomou em assembleia geral realizada em 15-12-94, por não ter sido convocada respeitando os 15 dias de antecedência, ou subsidiariamente, que seja declarada a sua nulidade.
Em contestação a Ré aceita que não foi observada realmente aquela antecedência mínima de 15 dias e pede prazo razoável para deliberar sobre a renovação de deliberação.
Em réplica os AA sustentam que, no caso em apreço, não é possível a renovação de deliberação e pedem que nos termos do art. 62 nº2 CSC seja decretada a anulação das deliberações tomadas naquela assembleia, relativamente ao período anterior às eventuais deliberações renovatórias.
Por sentença a acção foi julgada procedente e em consequência declarou-se que a assembleia realizada em 22-12-94, pelas 9 h, foi irregularmente convocada, pelo que se anularam as deliberações tomadas nessa assembleia, incluindo aquelas relativamente ao período anterior à eventual deliberação renovatória.
Aí se entendeu que não estamos perante uma deliberação nula, por força do art. 56 nº 1 a) e b) do C.S.C., mas anulável em função do art 58 nº1 a), do mesmo diploma, pelo que em face do estatuído no art. 62 do C.S.C. as deliberações anuláveis não são renováveis.
Em apelação o douto Ac. Relação de Coimbra - fls. 109 a 117 - revogou o decidido.
Daí a presente revista.
2- Os AA recorrentes nas conclusões das suas alegações afirmam, com utilidade, em resumo:
a) As deliberações foram tomadas em assembleia irregularmente convocada e por isso são anuláveis nos termos do art 58 nº 1 a), ou pelo menos sempre nulas, nos termos do art 56 nº 1, ambos C.S.C.
b) Esta nulidade não podia ser sanada,
c) Só as deliberações nulas por força das al. a) e h) do art. 56 são renováveis,
d) O A tinha sempre interesse na anulação das deliberações pelo menos sempre com referência ao período anterior à deliberação renovatória.
Em contra alegação a recorrida pugnou pela bondade do decidido.
3- Colhidos os vistos, cumpre decidir.
4- O douto Ac. recorrido recebeu os factos consignados no saneador-sentença, para os quais se remete - art 713 nº6 CPC - sendo de nuclear importância:
- A gerência da Ré emitiu uma convocatória da Assembleia Geral para 15 de Dezembro 94, pelas 9 h, e datou-a de 30-11-94,
- A convocatória foi enviada em 30-11-94 e recebida em 2-12-94,
- A assembleia realizou-se em 15-12-94,
- O A não esteve presente, não votou, nem deu esse assentimento por ordem verbal.
E aditou o seguinte:
- Em 22-12-94 teve lugar uma assembleia geral da Ré, a que correspondeu a acta nº 16, de 1994, e na qual foi deliberada a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, tendo sido aprovado, posteriormente, o texto do novo estatuto social
- Em 31-03-95 teve lugar a 1ª assembleia geral da sociedade anónima, a que correspondeu a acta nº1, de 1995, e para a qual se fez constar, na respectiva ordem de trabalhos, conforme avisos publicados no D.R. e no "ECO", de Pombal, de 23-02-95, respectivamente, e ainda mediante cartas registadas com A/R, expedidas em 26-03-95, entre o mais, o seguinte:
4- "Renovação das deliberações tomadas na assembleia de 15 de Dezembro de 1994".
5- "Renovação das deliberações tomadas na assembleia de 22 de Dezembro de 1994" ... sendo que
tais pontos da ordem de trabalhos foram então unanimemente aprovados com a presença de "... accionistas titulares de trinta e oito mil setecentos e sessenta acções, o que representa noventa e três ponto quatro (93.4%) por cento do capital social".
5- Em face deste fulcral complemento da matéria de facto, que extingue o interesse processual nesta acção de anulação de deliberação social, o douto Ac. recorrido julgou a acção inviável.
Assentou, para tanto, que a renovação de deliberação inserta no art 62 CSC ser legalmente admissível relativamente a deliberação meramente anulável, sendo certo que no caso em apreço estamos perante uma deliberação anulável - art 58 nº1 a), daquele diploma.
6- O art 248 C.S.C. estatui no seu nº3:
"A convocação das assembleias gerais compete a qualquer dos gerentes e deve ser feita por meio de carta registada, expedida com a antecedência mínimo de 15 dias, ...."
Os requisitos convocatórios aqui expressos - forma e tempo - são aferidos à sua expedição e não à sua recepção.
Àquele prazo aplica-se a regra do art. 279 al. h) do CC.
Daí a conclusão concorde de que a assembleia geral se realizou antes do decurso daquele prazo de 15 dias.
A consequência desta falha é a anulação da deliberação, que nos surge, assim, como um nado-vivo diminuído na sua vitalidade e ameaçado de morte.
O C.S.C. trata separadamente, quanto às deliberações sociais, a sua ineficácia stricto-sensu, no art 55; a sua nulidade no art 56 e a sua anulabilidade no art 58.
Anteriormente o art 146 do C. Comercial e 46 da Lei das Sociedades por Quotas, de 11 de Abril de 1901, apenas se referiam à anulabilidade, ficando a invalidação da deliberação dependente de propositura de acção, visando tal efeito.
Embora doutrina e jurisprudência admitissem a nulidade das deliberações.
Esta foi expressamente admitida no art 114 nº1 do Anteprojecto de Lei das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada - Revista de Direito e Economia, 1977, Ano III, nº2, Pg. 349 e seg. - e no art 76 nº1 do Projecto do Código das Sociedades Comerciais - Bol. 327, Pg. 43 e sg.
Da leitura do art 56 nºs 1 e 2 e 58 n. 1 do C.S.C. para distinguir os vícios que determinam a nulidade e a anulação de uma deliberação viciada, há que surpreender se eles dizem respeito ao conteúdo ou ao processo de formação, procedimento de deliberação: os primeiros insertos pelas al. c) e d) do art 56 e os segundos pelas al. a) e h) do mesmo artigo.
As al. c) e d) são duas manifestações tradutoras de um mesmo critério: são nulas as deliberações tomadas sobre matérias que estão fora da autonomia reconhecida aos sócios, extravasando assim da esfera da soberania da assembleia geral.
Como bem diz Dr. Henrique Salinas - critérios de distinção entre a anulabilidade e a nulidade das deliberações sociais ... Direito e Justiça, 1994, vol. VIII, Ano 2, Pag 225 "O legislador concretizou esta ideia ao determinar a nulidade das deliberações cujo conteúdo viole normas que não podem ser derrogados, nem sequer pela vontade unânime dos sócios", ou seja as normas imperativas.
Apresentando-se como normas imperativas, interpretadas teleologicamente: as que visam proteger o interesse público, os interesses de terceiros (sócios actuais, que se apresentem perante a sociedade sem esta qualidade, a futuros sócios e a credores sociais) e os direitos irrenunciáveis dos actuais sócios.
Não há, quanto a elas, sanções: são nulidades típicas.
No entanto já as nulidades resultantes dos vícios de formação - al. a) e b) do nº1 art 56 - são sanáveis, nos termos do nº3 art 56, pelo que estamos perante uma invalidade mista.
Se a deliberação colidir com normas dispositivas ou do pacto social, isto é, todas na disponibilidade dos sócios, elas já serão só anuláveis - art 59.
A dicotomia normas imperativas e dispositivas só tem relevância quando o vício ataca o conteúdo de deliberação.
Com efeito se ele ataca o processo de formação de deliberação - caso dos autos - a consequência é a sua anulabilidade.
Tudo porque a violação de norma legal ainda que de carácter imperativo ou estatutário, no que concerne ao processo de formação da deliberação, limita-se a pôr em causa interesses próprio e disponíveis dos respectivos sócios.
É o que acontece no caso em apreço: a violação do preceito que impõe o mencionado prazo mínimo projecta-se no processo de formação da deliberação e não no seu conteúdo: sabido que todas as irregularidades de convocação da assembleia geral não subsumidas ao nº2 art 56 do nº1 art 56 caem na alçada da regra do nº1 a) do art 58.
É a solução legal inserta na al. a) do art 58: "violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do art 56, quer do contrato de sociedade".
Estamos, pois, perante uma norma residual.
Residual por exclusão de partes, na medida em que abarca as hipóteses em que a deliberação continua a contrariar a lei em área não prevista no art 56.
Ou seja, se não estiver submetida a alguma das facti species legais de nulidade, vai ser enquadrada na anulabilidade.
7- Antes de surgir a anulação judicial, uma deliberação social tem intrinsecamente força para fazer desaparecer a irregularidade de outra, anteriormente tomada, por forma a corrigir ou suprimir o vício que afectava esta.
Nisto se traduz a renovação da deliberação - art 62 CSC.
Ela fundamenta-se no princípio da autonomia privada.
Opera pelo fenómeno da substituição: a deliberação renovada vai ocupar o lugar da anterior, que se encontrava viciada.
Este ocupar do lugar é a projecção prática de passarmos a estar agora perante uma deliberação validamente vinculativa: a outra, a anterior, deixou de existir.
Já a doutrina anteriormente ao C.S.C se pronunciava pela admissibilidade da renovação de deliberação nula por causa de vício de formação e nunca quando ela se circunscrevia ao cerne do conteúdo.
No nº 2 art 62 estatui-se:
"A anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação, desde que esta não enferme do vício precedente ..."
Prevê-se aqui expressamente a renovação de uma deliberação anulável, na esteira do estipulado no art 115 nº2 do Anteprojecto de Lei da Sociedade por Quotas.
Conforme o atrás sustentado não há aqui uma sanção de deliberação anulável.
Mas sim havendo, como há, substituição por renovação de anterior deliberação anulável, que por substituída deixou de existir, será agora impossível proceder o pedido de anulação daquela deliberação.
Como concretamente julgou o douto Ac. recorrido.
Daí que a 2ª parte do nº1 art 62 ao estipular "o sócio, porém, que nisso tiver um interesse atendível pode obter anulação da primeira deliberação, relativamente ao pedido anterior à deliberação renovatória" deve ser interpretada no sentido de se obter a "anulação dos efeitos desencadeados com a primeira deliberação" - Cons. Pinto Furtado, Deliberações da Sociedade ... 1990, Pg. 55.
E esta seria pretensão dos AA.
Só que os AA não demonstraram, nem alegaram factos que demonstrem serem portadores de tal interesse.
8- Termos em que se nega a revista.
Custas pelos AA recorrentes.
Lisboa, 4 de Maio de 1999.
Torres Paulo,
Aragão Seia,
Lopes Pinto.
Lisboa