Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
78/16.5SHLSB-B.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
INJUSTIÇA DA CONDENAÇÃO
ERRO DE IDENTIDADE
DEFERIMENTO
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: PROVIDO.
Sumário :
I - No âmbito do recurso extraordinário de revisão é de conceder a revisão da sentença num caso, como o presente, em que um terceiro, cuja identidade se não apurou, usou a do arguido e fez-se passar por ele no primeiro interrogatório de detido e no decurso do julgamento. Com efeito,
II - Surge como facto novo o erro de identidade do arguido, o que conjugado com o facto de as pessoas inquiridas nos autos, em particular os Agentes da PSP e a Técnica da DGRSP, terem afirmado que não se recordavam do aspecto físico do arguido, e que a pessoa que contactaram era toxicodependente e sem abrigo, sendo certo que AA é doente e toma medicação, não constando que viva na rua, nos suscita sérias e graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação.
III - Não é de aplicar o disposto no art. 380.º, n.º 1, al. b), do CPP, uma vez que não estando demonstrada, como se disse, a identidade da pessoa que praticou o crime e foi julgada, não é possível proceder-se à rectificação da sentença, corrigindo-se a identificação do arguido com a inserção da identificação correcta do agente do crime
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 78/16.5SHLSB-B.S1


Recurso Extraordinário de Revisão – 5.ª Secção


Acordam em Conferência na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


1. Relatório


1.1. Interpõe o Digno Magistrado do Ministério Público o presente recurso extraordinário de revisão relativamente à decisão proferida no âmbito do processo Comum Singular n.º 78/16.5SHLSB, que correu os seus termos no Juízo (J.) Local Criminal de ..., Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito do qual foi o arguido AA condenado, por decisão transitada em julgado no dia 16.02.2018, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 25.°, al. a), e 21.°, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova. Por despacho proferido em 2.11.2020, o Tribunal “a quo” determinou a não revogação da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido nos autos referenciados, ao abrigo do disposto no artigo 56.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal e, consequentemente, julgou extinta aquela pena de prisão, ao abrigo do disposto no artigo 57.º do Código Penal e artigo 475.º do Código de Processo Penal. Dessa de decisão interpôs recurso o Ministério Público, tendo sido, na sequência, proferido, em 10.3.2021, acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que determinou a revogação da suspensão da execução da pena aplicada ao arguido nos autos referenciados - acórdão esse, igualmente, transitado em julgado.


Invoca o Recorrente, para o efeito, terem surgido novos factos / meios de prova que, combinados com os que foram apreciados nos autos, suscitam graves dúvidas sobre a justiça da decisão que condenou o mesmo arguido pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 25.°, al. a), e 21.°, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova, em conformidade com o disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, tendo concluído o seguinte:


“A. A sentença, cuja revisão se requer, condenou, entre outro, o Arguido AA pela prática, em co-autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 25.°, alínea a), e 21.° do DL n.° 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova, a qual veio a transitar em julgado em 16/2/2018.


B. Na sequência de recurso interposto pelo MP, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 10/3/2021, que determinou a revogação da suspensão da execução da pena aqui em causa, o qual transitou, igualmente, em julgado.


C. Após a emissão de mandados de detenção do Condenado, para cumprimento da referida pena de 1 ano de 9 meses de prisão efectiva, chegou aos presentes autos a informação de que, detido que foi AA para cumprimento da pena de prisão efectiva que lhe foi aplicada no proc. n° 139/20.6..., do J... .., do Juízo Central Criminal de ..., o mesmo afirmou nunca ter sido julgado e condenado pela prática de qualquer crime, tendo aventado a hipótese de ter sido o seu irmão BB quem praticou os factos aí e aqui em apreço (…).


D. Assim, cautelarmente, foi aqui (assim como no processo supra identificado) determinada a suspensão do cumprimento dos mandados de detenção emitidos para o Condenado AA (cfr. Despacho judicial com ref. n° .......11, de 24/2/2022, constante de fls. 759, cuja extracção de certidão se volta a requerer, para acompanhar o presente requerimento).


E. Apurou-se que não foram efectuadas as recolhas datiloscópicas do condenado AA (ou de outra pessoa fazendo-se passar pelo mesmo), tal como previsto no art. 19° da Lei n° 37/2015, de 5/5, uma vez que este não esteve presente na leitura da sentença (cfr. pág. 68 da certidão que ora junta).


F. Foram convocados para audição e identificação da pessoa que foi julgada nos presentes autos, além de AA e BB (objecto da identificação em causa), os Exmos. Senhores Agentes da PSP id. no auto de notícia que deu origem aos presentes autos (CC, DD, EE e FF), o Exmo. Senhor Oficial de Justiça que esteve presente no primeiro interrogatório judicial de arguido detido de 18/7/2016 (GG), a Exma. Senhora Oficial de Justiça que esteve presente na sessão de julgamento de 17/10/2017 (HH), a Mma.. Juíza de Direito que presidiu ao julgamento (II), assim como a Digna. Magistrada do Ministério Público que interveio no julgamento (JJ), tendo faltado à mesma AA, devidamente notificado, e também BB, o qual não foi possível notificar para o efeito, sendo que foram ouvidas todas as restantes pessoas presentes, tendo afirmado não se recordarem do aspecto físico dos Arguidos, nem de nada em específico do processo, cujas declarações se encontram gravadas (cfr. acta constante das págs. 75 a 79 da certidão que ora junta) e cujo suporte digital se requer acompanhe presente requerimento, ao abrigo do disposto no art. 453, n° 1, do CPP.


G. Nesta sequência, foram emitidos mandados de detenção de AA, com vista ao seu reconhecimento por parte dos Exmos. Senhores Agentes CC e DD, o que veio a ocorrer no dia 22/11/2022, tendo também prestado declarações a Exma. Senhora Técnica da DGRSP que acompanhou o regime de prova fixado nestes autos - KK -, sendo que todos os presentes, confrontados com a presença de AA, não o reconheceram com ligação aos presentes autos (sendo que a pessoa com quem contactaram é sem-abrigo e toxicodependente), afirmando não o conhecer, cujas declarações se encontram gravadas (cfr. acta constante das págs. 81 a 86 da certidão que ora junta), e cujo suporte digital se requer acompanhe presente requerimento, ao abrigo do disposto no art. 453, n° 1, do CPP.


H. Sendo assim, foi determinada a realização de uma perícia destinada a apurar se o registo de voz de AA efectuado no dia da última diligência referida, em 22/11/2022, coincide com os registos de voz da pessoa que foi ouvida como arguido, ao longo do presente processo e, muito especialmente, da pessoa que foi ouvida aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido que teve lugar em 18/7/2016.


I. De tal perícia resultou "um suporte ligeiro/limitado da hipótese que o indivíduo presente em juízo no dia 22/11/2022 e o indivíduo presente no primeiro interrogatório ocorrido em 18/7/2016 não sejam a mesma pessoa" (cfr. pág. 93 da certidão que ora se junta, sendo que o negrito é nosso).


J. Por todo exposto, entendemos existirem poucas dúvidas de que não foi AA quem praticou os factos em apreço nos presentes autos, assim como não foi o mesmo quem esteve presente ao longo das diligências que ocorreram ao longo do processo, motivo pelo qual não se pode manter a condenação a que foi sujeito.


(…).”


1.2. A Mm.ª Juiz de Direito prestou a informação a que alude o artigo 454.º do Código de Processo Penal - CPP, pronunciando-se pelo deferimento da requerida revisão, nos seguintes termos:


“- por sentença de 9/11/2017, o arguido AA foi condenado, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 25.º, al. a), e 21.º, ambos do DL nº 15/93, de 22/1, com referência à Tabela I-B anexa ao mesmo diploma, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova;


- por decisão de 2/11/2020, foi declarada extinta a pena de prisão aplicada;


- o Ministério Público interpôs recurso de tal decisão;


- por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Março de 2021, foi revogado o despacho recorrido e revogada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA;


- após a emissão de mandados de detenção para cumprimento da pena pelo arguido condenado, foi remetida aos presentes autos a informação policial, datada de 7.02.2022, mencionando que, efectuadas as diligências tendentes à detenção ordenada, a pessoa identificada como AA afirmou nunca ter tido problemas com a Justiça, nem ter cometido nenhum crime, acrescentando que padece de uma doença que implica a toma de medicação diária;


- efectuadas diligências, foi apurada a possibilidade de o autor do ilícito ser o irmão da pessoa identificada, BB, conforme situação análoga verificada no âmbito do processo com o n.º 139/20.6...;


- assim, por despacho de 24/02/2022, foi determinada, em face das informações constantes dos autos, prestadas pela PSP e verificando-se que existe dúvida na identidade do condenado em causa nos presentes autos, a suspensão imediata do cumprimento de quaisquer mandados de detenção para cumprimento da pena de prisão aplicada no presente processo, em nome de AA;


- foram ouvidas LL – juiz que procedeu ao julgamento – CC e DD, EE, FF - agentes da PSP – JJ – magistrada do M.P. que interveio no julgamento – HH e GG – oficiais de justiça, AA; MM e KK – técnicas da DGRSP, NN – mãe do arguido – OO e PP – irmãos do arguido; QQ – que exerceu funções como defensora do arguido.


- foi realizada perícia destinada a apurar se o registo de voz do arguido AA coincide com os registos de voz da pessoa que foi ouvida como arguido, ao longo do processo, e, muito especialmente, da pessoa que foi ouvida aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que teve lugar em 18/07/2016;


- face aos elementos coligidos, concordamos com a análise da Digna Magistrada do Ministério Público, plasmada na motivação do recurso de revisão.


1.3. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de estarem verificados os pressupostos exigidos pela alínea d), do n.º 1 do artigo 449.º do C.P.P., devendo ser autorizada a revisão da sentença proferida no Processo Comum Singular n.º 78/16.5SHLSB, que correu os seus termos no Juízo (J.) Local Criminal de ..., Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em conformidade com o disposto no artigo 457.º, do mesmo compêndio legal.


1.4. Após exame preliminar foram colhidos os vistos legais e realizada a conferência.


Cumpre apreciar e decidir


2. Fundamentação de facto


Os factos provados são os do relatório que antecede.


3. Fundamentação de Direito


Uma vez que nos situamos no âmbito de um recurso extraordinário de revisão, afigura-se-nos útil fazer um breve enquadramento sobre o seu fundamento e respectivo regime.


O direito à revisão da sentença encontra-se previsto no art.º artigo 29.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa (CRP), como direito fundamental, aí se dispondo que «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos». A esse respeito referem Gomes Canotilho e Vital Moreira inConstituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 4.ª Edição Revista, Vol. I, pág. 498, “O n.º 6 (do art.º 29.º) reconhece e garante: (a) o direito à revisão de sentença; (b) o direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no caso de condenações injustas. É um caso tradicional de responsabilidade do Estado pelo facto da função jurisdicional o ressarcimento dos danos por condenações injustas provadas em revisão de sentença”.


A importância do recurso de revisão como instrumento para remediar situações de intolerável injustiça cobertas pelo caso julgado, deu-lhe assento constitucional. A reparação da decisão, condenatória ou absolutória, reputada de materialmente injusta, pressupõe que a certeza, a paz e a segurança jurídicas que o caso julgado encerra cedam perante a verdade material (Acórdão deste Supremo Tribunal de 16-06-2011, proc. n.º 108/07.1PASJM-K.S1, in www.dgs.pt).


A esse respeito ensina José Alberto dos Reis, inCódigo de Processo Civil Anotado”, 1984 (reedição), volume V, pág. 158, 336-337, “O recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa a eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”. Mais esclarecendo o mesmo autor que “a sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio. Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença».


Aduz, por seu turno, Eduardo Correia inA Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Almedina, 1983, pág. 302, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto”.


Refere Figueiredo Dias, inDireito Processual Penal, 1.ª Edição, 1974 – Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 42 a 45 “a segurança é um dos fins prosseguidos pelo processo penal, “o que não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança enfim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser, só, no fundo, a força da tirania”.


Uma vez que o princípio da res judicata pro verita habetur é um princípio de utilidade e não de justiça, não pode, por força dele, impedir-se a revisão de sentença quando haja fortes elementos de convicção de que a decisão proferida não corresponde em matéria de facto à verdade histórica que o processo penal pretende alcançar (Vd. Pereira Madeira, anotação ao art.º 449.º inCódigo de Processo Penal Comentado”, Henriques Gaspar e Outros, Almedina, 3.ª Edição, pág. 1436).


No presente domínio, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a acentuar o carácter excepcional do presente recurso, representando este uma válvula de segurança do sistema, um modo de reparar o erro judiciário cometido, sempre que, numa reponderação do decidido, possa ser posta em causa seriamente, através da consideração de factos-índice taxativamente enumerados, a justiça da decisão ou do despacho que ponha termo ao processo (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-04-2005, proc. n.º 135/05, CJSTJ, 2005, Tomo 2, pág. 179).


A revisão da sentença realiza, pois, o formato da concordância prática entre a segurança, a estabilidade e o ideal de justiça, que, em situações de clamorosa ofensa e lesividade do sentimento de justiça reinante no tecido social, reclama atenuação da eficácia da decisão a coberto do trânsito em julgado. Nenhum Estado pode adoptar como dogma, em nome do valor da certeza e segurança do direito o caso julgado, quando uma decisão já transitada contraria flagrantemente a verdade e os direitos fundamentais dos cidadãos (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10-09-2008, proc. n.º 2154/08 e de 23-11-2023, proc. n.º 1/07.4ACPRT-A.S1, in www.dgs.pt).


A consagração constitucional do recurso de revisão funda-se na necessidade de salvaguardar as exigências da justiça e da verdade material, já que também elas comportam valores relevantes que são igualmente condição de aceitação e legitimidade das decisões jurisdicionais e da paz jurídica.


Visa, assim, o recurso de revisão assegurar um equilíbrio, o equilíbrio possível, entre segurança jurídica e justiça material (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-05-2017, proc. n.º 344/15.7GDCNT-A.S1- 3.ª Secção).


O carácter excepcional desta modalidade de recurso extraordinário, reflecte-se no elenco taxativo de hipóteses que o legislador prevê como fundamento da admissibilidade da revisão da sentença transitada em julgado. Apenas circunstâncias substantivas e imperiosas devem permitir a quebra do caso julgado, de modo a que o recurso extraordinário de revisão se não transforme em uma apelação disfarçada. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2021, proc. n.º 2728/20.0T8VNG.P1.S1, in www.dgsi.pt).


Nessa linha, o recurso extraordinário de revisão não admite a reapreciação da prova produzida em julgamento, nem se destina a analisar nulidades processuais ou outros vícios do julgamento ou da sentença. Afastada está também a possibilidade deste tipo de recurso ter como fim único a correcção da pena concreta ou a correcção da qualificação jurídica dos factos (ainda que esta se afigure injusta ou errada), pois para essas situações existe o recurso ordinário.


Acresce ainda, como tem sido reiteradamente afirmado, que o caso julgado cobre inexoravelmente todos os erros de julgamento (Vd., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 06.11.2019, proc. n.º 739/09.5TBTVR-C. S1 e de 25-03-2018, proc. 558712.1JELSB-L1,S1, in www.dgsi.pt ).


São três as fases a considerar no âmbito do aludido recurso. A fase rescindente preliminar que abrange a apresentação do respetivo requerimento no tribunal que proferiu a decisão a rever, que deve ser sempre motivado e conter a indicação dos meios de prova, para além de ser instruído com determinados documentos. A fase rescindente intermédia que inclui toda a tramitação no Supremo até à decisão que concede ou denegue a revisão. E a fase rescisória, no caso de a revisão ser autorizada, que se inicia com a baixa do processo e termina com um novo julgamento.


Em regra a autorização da revisão não implica a anulação da sentença revidenda, antes a sua revisão após a realização de novo julgamento da matéria de facto, que será realizado pelo tribunal que, segundo as regras gerais, seja competente para o efeito.


O novo julgamento implicará a reapreciação das provas já produzidas além de outras novas, eventualmente aditadas, bem como a realização das diligências requeridas pelos interessados ou oficiosamente determinadas pelo juiz (Pereira Madeira, “Ob. Cit.”, pág. 1451).


Através do recurso de revisão visa obter-se uma outra decisão judicial que se substituirá, através de um outro julgamento, à já transitada em julgado. Decisão essa decorrente da realização de novo julgamento do feito, agora baseada em novos dados de facto.


O recurso de revisão encontra-se regulado nos artigos 449.º a 466.º do Código de Processo Penal (CPP).


Nos termos do art.º 449.º (Fundamentos e admissibilidade da revisão)


1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:


a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;


b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;


c) Os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;


d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.


e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;


f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;


g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.


2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.


3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.


4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.


Nos termos do citado normativo e conforme assinalado supra, são taxativos os fundamentos do recurso de revisão.


E, uma vez que o âmbito do pedido de revisão é o decorrente do requerimento inicial apresentado (nestes autos pelo Ministério Público – art.º 450.º n.º 1 alínea a), do CPP), importa considerar no presente caso o disposto na alínea d), do citado art.º 449.º, invocado pelo recorrente.


Será, pois, necessário, para se autorizar a revisão que se descubram novos factos ou novos meios de prova”, mas também que estes de “per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.


Importa, assim, aquilatar o que se deve entender por novos factos ou meios de prova.


Consoante resulta da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, são três as orientações que têm sido seguidas a este propósito. Uma primeira, mais ampla, considera que são novos os factos ou os meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, que não tiverem sido apreciados no processo que levou à condenação do arguido, por não serem do conhecimento do tribunal, na ocasião em que ocorreu o julgamento, pese embora, nessa altura, pudessem ser do conhecimento do condenado. A segunda, limitativa, apelando, essencialmente, à natureza extraordinária do recurso de revisão e ao dever de lealdade processual que recai sobre todos os sujeitos processuais, sustenta que os novos factos ou meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são apenas aqueles que eram desconhecidos do recorrente aquando do julgamento. E a terceira, mais restritiva do que a primeira, porém, mais ampla do que a segunda - seguida maioritariamente por este Supremo Tribunal - sustentando que os novos factos ou novos meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são os desconhecidos do tribunal e os conhecidos de quem cabia apresentá-los no momento em que o julgamento teve lugar, desde que seja apresentada justificação bastante para a omissão verificada - por impossibilidade ou por, na altura, se considerar que não deviam ter sido apresentados os factos ou os meios de prova agora novos para o tribunal (Neste sentido, entre outros, podem ver-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.10.2023, proc. n.º 28/20.4SVLSB-C.S1, de 25.05.2023, proc. n.º 149/17.0T9CSC-A.S1, de 26.10.2011, proc. 578/05.2PASCR.A.S1, de 09.02.2022, proc. n.º 163/14.8PAALM-A.S1, de 30.01.2013, proc. n.º 2/00.7TBSJM-A.S1 e de 29.04.2009, proc. n.º 15189/02.6.DLSB.S1, todos disponíveis em www.dgs.pt).


Para além dos novos factos ou meios de prova, é ainda indispensável, como se viu, que estes suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.


As dúvidas relevantes para a revisão têm de ser efetivamente fortes, significativas e consistentes. Não se trata apenas de uma dúvida “razoável”, mas de uma dúvida “grave” sobre a justiça da condenação. E, por graves, só podem ser havidas as dúvidas que “atinjam profundamente um julgado passado na base de inequívocos dados presentemente surgidos” (Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, inOb. Cit., pág. 759).


“A dúvida há-de, assim, elevar-se do patamar da mera existência e ser suficientemente grave, sólida e séria para pôr a condenação em causa, sugerindo fortemente a verificação de um erro judiciário e a inocência do condenado” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-10-2023, proc. n.º 28/20.4SVLSB-C.S1, www.dgs.pt).


No presente caso, como resulta dos autos - certidões de 31.05.2023 (Ref. .......38), de 13.10.2023 (Ref. .......38) e de 06.11.2023 (Ref. .......77).


AA foi condenado pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, p.e p. nos artigos 25.º al. a), e 21.° do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova. Por despacho proferido em 2.11.2020, o Tribunal “ a quo” determinou a não revogação da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido nos autos referenciados, ao abrigo do disposto no artigo 56.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal e, consequentemente, julgou extinta aquela pena de prisão, ao abrigo do disposto no artigo 57.º, do Código Penal e artigo 475.º, do Código de Processo Penal. Decisão esta que, por via do recurso interposto pelo Ministério Público, veio a ser alterada pelo Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 10.03.2021, igualmente transitado em julgado, o qual revogou suspensão da execução da pena aplicada ao arguido.


Após a emissão dos mandados, para cumprimento da referida pena de prisão de 1 ano e 9 meses de prisão, foi comunicado aos autos que o detido AA para cumprimento de pena no âmbito do proc. n.º 139/20.6..., afirmou nunca ter sido julgado ou condenado pela prática de qualquer crime, tendo referido que teria sido seu irmão BB quem praticou os factos em questão.


Nessa sequencia, foi determinada a suspensão do cumprimento dos mandados de detenção emitidos para AA.


Não foram efectuadas recolhas datiloscópicas do condenado AA ou de outra pessoa fazendo-se passar pelo mesmo, uma vez que este não esteve presente na leitura da sentença.


A fim de se proceder à identificação do arguido, foram convocados para audição e identificação da pessoa que foi julgada nos autos 78/16.5..., a que o presente recurso de revisão se encontra apenso, AA e BB (objecto da identificação em causa), bem como os Exmos. Senhores Agentes da PSP, identificados no auto de notícia que deu origem aos presentes autos, CC, DD, EE e FF, assim como o Exmo. Senhor Oficial de Justiça que esteve presente no primeiro interrogatório judicial de arguido detido de 18.07.2016, GG, a Exma. Senhora Oficial de Justiça que esteve presente na sessão de julgamento de 17.10.2017 (HH) a Mma. Juíza de Direito que presidiu ao julgamento (LL) e Digna. Magistrada do Ministério Público que interveio no julgamento (JJ).


A essa diligencia faltou AA, apesar de devidamente notificado, e também BB, o qual não foi possível notificar para o efeito.


Tendo sido ouvidas todas as restantes pessoas presentes, as mesmas afirmaram não se recordarem do aspecto físico dos arguidos, nem de nada em específico do processo.


Na sequência foram emitidos mandados de detenção de AA, com vista ao seu reconhecimento por parte dos Exmos. Senhores Agentes CC, DD, o que veio a ocorrer no dia 22.11.2022, tendo também prestado declarações a Exma. Senhora Técnica da DGRSP que acompanhou o regime de prova fixado nestes autos – KK.


As referidas pessoas confrontados com a presença de AA não o reconheceram com ligação aos presentes autos, sendo que a pessoa com quem contactaram é sem-abrigo e toxicodependente, afirmando não o conhecer.


Foi posteriormente ordenada a realização de perícia destinada a apurar se o registo de voz de AA efectuado no referido da 22.11.2022, coincide com os registos de voz da pessoa que foi ouvida como arguido, ao longo do processo 78/16.5333SHLSB.B e, muito especialmente, da pessoa que foi ouvida aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido que teve lugar em 18.07.2016.


Dessa perícia resultou “um suporte ligeiro/limitado da hipótese que o indivíduo presente em juízo no dia 22.11.2022 e o individuo presente no primeiro interrogatório ocorrido em 18.07.2016 não sejam a mesma pessoa”.


Procedendo à análise e ponderação do conjunto das diligências realizadas, emerge como novo dado que não terá sido o aludido AA o autor dos factos criminais em questão, mas sim uma outra pessoa, possivelmente BB, o qual, servindo-se da identificação de AA se terá feito passar por ele no âmbito dos autos em questão. Surgindo-nos, deste modo, como fundamento da revisão e como facto novo, a incorrecta identificação do arguido.


Em caso de erro de identidade do arguido por usurpação de identidade por terceiro, tem-se considerado que ao invés da aplicação do recurso extraordinário de revisão, dever lançar-se mão da figura da correcção da sentença nos termos do disposto no art.º 380.º, do CPP (1- O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando: (…).b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial (…)”).


Segundo esta posição, não há lugar a revisão de sentença penal condenatória quando o condenado é a pessoa física que foi julgada e que cometeu o crime objecto da condenação, embora identificada com os elementos de identidade relativos a outra pessoa. Feita a prova da verdadeira identidade do condenado, deve ser oficiosamente ordenada a correspondente correcção de sentença, nos termos do art.º 380.º do CPP. Nossos sublinhados. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2012, proc. n.º 31710.2GTCBR-A.S, CJAST, Tomo 1, pág. 295. Com o mesmo entendimento o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2023, proc. n.º 47/17.8PAMRA.S1, www.dgsi.pt).


Um outro entendimento considera que importa determinar se a dúvida, divergência ou incompletude de identificação se refere exclusivamente ao sujeito ou também ao julgamento; dito de outro modo, devem ser relevantes os termos e o modo em que a situação vem exposta e o recurso de revisão motivado e fundamentado. Segundo esta óptica, se a dúvida se refere apenas ao sujeito concreto, ou seja, quando as incorrecções ou a incompletude dos elementos sobre a identidade não possibilitem a execução da sentença, mas sem estar em causa outra pessoa (com a consequente possibilidade, probabilidade ou risco de confusão ou confundibilidade de posições ou papéis processuais) por não estar em causa um elemento essencial, será de efectuar a correcção (material) da sentença, nos termos permitidos pelo artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do CPP: erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial. No caso, porém, de não estar em causa apenas um erro de identificação, mas uma sobreposição, ou mesmo usurpação de identidade, a perspectiva não é já inteiramente coincidente. Na verdade, em tais circunstâncias, a relação formal que se estabelece tem implícita uma terceira pessoa e exige do tribunal um juízo de exclusão: ou foi A ou foi B. Tal realidade não constitui apenas um problema de identificação, mas também de conteúdo de julgamento, pois importa dizer, na reposição da correspondência da realidade com o processo, quem é o autor do acto ilícito. (Neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2010, proc. n.º 82/08.7PFAMD-A.S1 e de 31.12.2012, proc. n.º 117/95.1TBPNF-A.S1).


Uma vez que o aludido art.º 380.º do CPP se destina à correcção da sentença quando a mesma enferme de lapsos, falhas, erros, obscuridades ou ambiguidades que não sejam essenciais à sua estrutura normativa e que resultem do próprio texto ou sejam detectados pelos sujeitos processuais - aceitando-se em casos como o presente, à luz da indicada jurisprudência (Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-06-2017, proc. n.º 45/08.2GGLSB-A.L1.S1).


Sucede que no presente caso, não dispomos de elementos consistentes e seguros que nos permitam saber quem foi a pessoa (diversa de AA) que, em co-autoria, praticou os factos ilícitos em questão.


É um dado que AA ao ser detido, para cumprimento de pena aplicada no processo 139/20.6..., do j.... .., do Juízo Central Criminal de ..., referiu que nunca foi julgado ou condenado por qualquer crime, padece de doença que implica a toma de mediação diária, e que o ilícito penal teria sido cometido por seu irmão, BB.


E que em face da situação verificada no proc. 139/20.6..., por existir a possibilidade de o autor do ilícito em questão ser BB, foram suspensos os mandados de detenção em nome de AA e inquiridos os intervenientes nos presentes autos que não o reconheceram como tendo tido intervenção no processo na qualidade de arguido.


Também é certo que nestes mesmos autos não foram efectuadas recolhas datiloscópicas do condenado AA, ou de qualquer outra pessoa fazendo-se passar pelo mesmo.


A perícia forense realizada às gravações das vozes, concluiu (apenas) por “um suporte ligeiro/limitado da hipótese que o indivíduo presente em juízo no dia 22.11.2022 e o indivíduo presente no primeiro interrogatório ocorrido em 18.07.2017, não sejam a mesma pessoa”.


Para além disso, no âmbito destes autos BB não logrou ser localizado, nem compareceu nas diligências realizadas com vista à sua identificação, pressupondo-se, assim, tão só, que tenha sido o mesmo a usurpar a identidade de AA aquando do 1.º interrogatório de arguido e ao longo do desenrolar do processo.


O descrito quadro factual, permite-nos, contudo, concluir, como já antevisto, pela verificação de novo facto (incorrecta identificação do arguido – uso do nome de AA, por alguém que cometeu os factos), o que conjugado com os demais elementos do processo e com a circunstância de as pessoas inquiridas nos autos, em particular os Agentes da PSP e a Técnica da DGRSP, terem afirmado que não se recordavam do aspecto físico do arguido, e que a pessoa que contactaram era toxicodependente e sem abrigo, sendo certo que AA é doente e toma medicação, não constando que viva na rua, nos suscita sérias e graves dúvidas sobre a justiça da sua condenação, sendo, por conseguinte, de autorizar a revisão.


Em face disso, deverá determinar-se o reenvio do processo ao tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão a rever que se encontrar mais próximo - que, na presente situação, será o Juízo Local Criminal de ..., com excepção do Juiz . (artigos 455.º n.º 3 e 457.º n.º 1, do CPP e Mapa III do DL 49/2014, de 27 de Março).


Procede, pois, o presente recurso.


4. Decisão


Em face do exposto, acordam em conferência os Juízes Conselheiros que compõem a 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em autorizar a revisão da sentença, acima referida, proferida no processo comum singular n.º 78716.5SHLSB, que correu termos Juízo (J.), Local Criminal de ..., reenviando-se o processo, para esse efeito, para o Juízo Local Criminal de ......, com excepção do Juiz ..


Sem custas


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 2024.01.31


Albertina Pereira (Relatora)


Jorge Gonçalves (1.º Adjunto)


Heitor Vasques Osório (2.º Adjunto)


Helena Moniz (Presidente)