Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
696/05.7TAVCD.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
MOTIVAÇÃO DO RECURSO
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
ÓNUS DA IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
DIREITO AO RECURSO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS
Doutrina: - Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, 1981, p. 359.
- Germano Marques da Silva, «A aplicação das alterações ao Código de Processo Penal», Forum Iustitiae, Maio de 1999, p. 21; Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2000, p. 335.
- Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, em anotação ao artigo 417.º do CPP, p. 1142.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 412.º, N.ºS1, 3 E 4, 417.º, N.ºS3 E 4, 434.º,
Sumário :

I - O recurso para este Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito; por ser assim, o acórdão da Relação, que conhece de facto, está subtraído a uma apreciação de mérito deste Tribunal. Contudo, no estrito âmbito dos seus poderes de cognição, o que o STJ pode apreciar é se o Tribunal da Relação, ao conhecer de facto e com a amplitude com que o fez, não se vinculou aos pressupostos legais que condicionam os seus próprios poderes de cognição em matéria de facto.
II - A motivação de recurso compreende dois ónus: o de alegar e o de concluir. O recorrente deve começar por expor todas as razões da impugnação da decisão de que recorre (enunciar especificamente os fundamentos do recurso) e, depois, indicar de forma sintética, essas mesmas razões (formular conclusões em que resume as razões do pedido).
III - São as conclusões da motivação que definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, são as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior.
IV - Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP: as indicações aqui exigidas são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.
V - É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto.
VI - A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância.
VII - O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
VIII - O convite ao aperfeiçoamento pressupõe que não se esteja perante uma deficiência substancial da própria motivação, que necessariamente se reflectirá em deficiência substancial das conclusões.
IX - Não se estando perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiências substanciais da própria motivação, o princípio constitucional do direito ao recurso em matéria penal não implica que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto.
X - Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso, o que o legislador reconheceu ao estatuir que o aperfeiçoamento das conclusões, na sequência do convite formulado nos termos do n.º 3 do art. 417.º d CPP, não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (n.º 4 da norma).


Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I


1. No processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, n.º 696/05.7TAVCD, do 1.º juízo criminal do Tribunal Judicial de Vila do Conde, em que são assistentes AA e BB e arguidas CC e DD, foi, em 13/04/2007, proferido acórdão que decidiu, no que, agora, releva considerar:

1.1. Condenar a arguida CC, como co-autora de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), com referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal (CP), na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, cuja execução foi suspensa, pelo prazo de 3 (três) anos. 1.2. Condenar a arguida DD, como co-autora de um crime de burla qualificada previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), com referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do CP, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução foi suspensa, pelo prazo de 3 (três) anos.

1.3. Condenar as arguidas e demandadas CC e DD a, solidariamente, pagarem aos assistentes e demandantes BB e AA a quantia global de € 49.879,78, acrescida dos juros, à taxa de 4%, vencidos e vincendos, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento, absolvendo-as do demais peticionado pelos demandantes.

2. Inconformadas, as arguidas, em 04/05/2007, recorreram para o Tribunal da Relação do Porto.

Formularam as seguintes conclusões:

«1. No que tange à matéria de facto dado como provada, foi, salvo o devido e maior respeito, objecto de análise insuficientemente critica, pelo que não andou bem o Colectivo de juízes «a quo»

«2. As arguidas nunca referiram que era intenção «trespassar» o estabelecimento, pois, não colocaram cartaz na montra ou fizeram qualquer tipo de publicidade.

«3. O tribunal «a quo» não andou bem ao valorar os depoimentos dos Assistentes e das testemunhas, nomeadamente quanto ao facto de só terem conhecimento que o «o Bica estava ao passe» por intermédio de terceiros.

«4. As testemunhas nada disseram de relevante relativamente à formalização do negócio em concreto.

«5. O tribunal «a quo», deu credibilidade ao depoimento da testemunha EE, que alterou o seu depoimento em relação ao prestado em inquérito.

«6. Os assistentes afirmaram que foi o Advogado deles que tratou de tudo.

«7. Que tinham total confiança no seu Advogado de vários anos, que sempre formalizou os negócios que faziam.

«8. Analisando o contrato de Cessão de Quotas, celebrado entre as aqui arguidas e os assistentes, verifica-se que se trata de um simples contrato de cedência de quotas, não tendo as partes clausulado sobre qualquer matéria, nomeadamente no que concerne ao arrendamento,

«9. As partes podiam, no próprio contrato de Cessão de quotas, estabelecer uma cláusula na qual ficasse expresso que no contrato outorgado havia transmissão do arrendamento, funcionando como uma prestação acessória da principal, que está no âmbito da liberdade contratual entre as partes.

«10. Em sede de alegações na audiência de julgamento o Ex. mo Sr Procurador, pugnou pela absolvição das arguidas,

«11. Relativamente ao pedido de Indemnização cível o tribunal «a quo» não decidiu de forma correcta, pois à data da prática dos factos os assistentes não eram casados entre si, ou seja o património não era com um.

«12. O Tribunal «a quo», não leu a contestação ao pedido eivei formulado pelos assistentes, na qual requeriam que fosse extraída certidão de uma acção ordinária que está a correr os seus termos no 2° Juízo sob o n° 2534/04. 9TBPVZ no Tribunal da Póvoa de Varzim, na qual os assistentes/demandantes, reclamam o mesmo valor do Sr. Dr. FF - Advogado dos assistentes/demandantes que formalizou todo o negócio.

«13. Passando á margem do Colectivo de Juízes do tribunal «a quo» a litispendência existente nos termos dos art. 497° e ss do CPC, sendo esta do conhecimento oficioso do Tribunal - art. 495° do CPC na medida em que é excepção dilatória nos termos do art. 494° ai i) do CPC.

«14. Há um desajustamento entre a matéria de facto dada como provada e a prova realizada em audiência de julgamento,

«15. Pelo que não se verificam os pressupostos para que a conduta das arguidas seja no âmbito jurídico - penal censurada de molde a se enquadrar no tipo de ilícito do crime de Burla qualificada p e p nos termos dos artigos 217° e 218° com referência ao art. 202 ai b) do Código Penal,

«16. O Tribunal «a quo» não conseguiu na sua fundamentação, explicar qual a forma ardilosa que as arguidas usaram, e qual o plano que traçaram para ser outorgado um contrato de cessão de quotas, elaborado pelo advogado dos assistentes e assim estes entregarem os dois cheques tudo conforme consta do referido documento. TERMOS EM QUE devem as arguidas serem julgadas absolvidas, do crime e do pedido cível, pois só assim se fará justiça.»

3. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 01/10/2008, foi decidido “conceder provimento ao recurso interposto pelas recorrentes CC e DD, determinando a modificação da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto nos termos definidos no parágrafo 23.;” revogando “as condenações penal e civil estabelecidas no acórdão recorrido, absolvendo as recorrentes quanto a ambas as acções”.

4. Recorreram, então, os assistentes, para o Supremo Tribunal de Justiça.

5. Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/07/2009, foi decidido, no provimento do recurso interposto pelos assistentes, "declarar a nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, no que respeita à modificação da matéria de facto, devendo ser proferida nova decisão a emitir pronúncia sobre as questões colocadas dentro dos limites pressupostos e traçados pelas recorrentes, que constituem objecto do recurso, ou se assim for entendido, com prévio convite às arguidas/recorrentes a corrigirem as suas conclusões de forma a obedecerem aos requisitos legais".

6. Devolvidos os autos ao Tribunal da Relação do Porto, na sequência, o relator convidou as arguidas/recorrentes a “aperfeiçoarem as conclusões da sua motivação de recurso, de modo a especificarem os pontos enunciados nos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP”, “nos termos e sob a cominação prevista no artigo 417.º, n.º 3, do CPP”.

7. Em função desse convite, as arguidas/recorrentes apresentaram as seguintes conclusões da motivação de recurso:

«1.º No que tange à matéria de facto dada como provada, foi, salvo o devido e maior respeito, objecto de análise insuficientemente crítica, pelo que não andou bem o Colectivo de juízes "a quo" «PELO QUE, «2.º Se impugna a matéria de facto dada como provada pelo tribunal " a quo”, nomeadamente as alíneas:

«" (...) e) As arguidas decidiram dar de trespasse o referido estabelecimento comercial de café e pastelaria;

«f) Os assistentes tomaram conhecimento da vontade de trespassar o estabelecimento e, mostrando interesse no trespasse, deslocaram-se diversas vezes àquele estabelecimento e aí se reuniram com a arguida CC, sendo que, em algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente a arguida DD;

«g) Nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2002, os assistentes reuniram-se diversas vezes com a arguida CC, sendo que algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente a arguida DD, a quem manifestaram interesse na aquisição do estabelecimento comercial de trespasse e com quem negociaram o preço e condições de pagamento;

«h) Durante esse período de tempo os assistentes, com conhecimento e autorização das arguidas, deslocaram-se ao local para estudar um conjunto de obras que permitiriam uma actualização do estabelecimento comercial;

«i) O interesse dos assistentes residia no referido estabelecimento comercial, que lhes havia sido proposto tomar de trespasse;

«j) O único interesse dos assistentes residia no estabelecimento comercial "Café Bica Italiana ", facto que era conhecido das arguidas, até porque era o único bem da sociedade comercial "Café Bica Italiana, Lda"; «p) Os assistentes não teriam interesse no estabelecimento ou realizado aquele ou qualquer outro negócio com as arguidas se soubessem da existência da acção e da sentença de despejo, visto o seu interesse no negócio residir exclusivamente naquele espaço comercial com aquela localização; «q) na data da celebração daquele contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes às arguidas já estas tinham conhecimento da existência da acção e da subsequente sentença de despejo;

«r) Durante todo o período em que ocorreu a negociação as arguidas ocultaram tais factos aos assistentes;

«s) As arguidas deliberadamente ocultaram aos assistentes a existência daquela acção judicial e a sentença de despejo de forma a determinar a realização do negócio que sabiam que aqueles nunca realizariam caso tivessem conhecimento desses factos;

«t) As arguidas agiram voluntária e conscientemente, sabendo que o seu comportamento era proibido por lei; "

«3.º As provas valoradas pelo tribunal "a quo" no que se refere às negociações entre assistentes e arguidas, são muito débeis, pois, se é verdade que o segredo é a alma do negócio, no caso sub Júdice, esta máxima está bem patente pela forma sigilosa como os assistentes geriam as suas aquisições comerciais -Conferir os depoimentos das testemunhas II e JJ.

«4.º As testemunhas nada disseram de relevante relativamente à formalização do negócio em concreto e face à inexistência de elementos documentais, não há muito mais para além dos depoimentos das partes - arguidas e assistentes, que terão de ser lidos com muita cautela atendendo aos interesses de cada um na caracterização do negócio, senão vejamos:

«5.º A arguida DD, nunca participou nas negociações, o que resulta das suas próprias declarações (Alguma vez falou com estas pessoas (assistentes)?" Nunca na vida. Conheci essas pessoas quando foi para eu...quando foi para eu assinar o contrato de quotas(...)Quem tratava dos assuntos relacionados com o estabelecimento era só com a minha mãe(...) A minha mãe precisava de uma pessoa, sócia, pronto. Pediu-me a mim e foi o que eu fiz, Sr.Meritíssimo. Eu apenas...tinha o meu nome"- fls 553-554).

«Das declarações da sua mãe a arguida CC ( " ela nunca tratou de nada, ela não sabia absolutamente nada, só simplesmente, eu a quem comprei a sociedade, eu também tinha que formar uma sociedade e então, devia-se meter uma pessoa de fora, meti a minha filha como sócia "- ffs.541

«Inclusive das declarações dos assistentes (GG. " Porque a mãe, porque a Sra que tratava do negócio era a mãe, não era a filha (fls.567) (...) Eu não disse nada à filha, eu não tive conversas, as conversas sempre que houve foram sempre com a mãe(...) A filha não se meteu em nada, simplesmente telefonou à mãe e a mãe é que aparecia sempre para vir falar comigo"( fls 586); HH " Essa ( CC ) é que mandava (...) E as conversas eram sempre com essa Sra...Ela é que (...) falava. Embora a outra estivesse e tal, e concordasse e chamasse, mas quem mandava no assunto era essa Sra CC " fls 594). «6.º A subtileza com que o assistente HH se refere à presença e concordância da arguida DD, parece-nos que não tem consistência, não merecendo grande credibilidade face ao depoimento da assistente GG, que de forma clara e objectiva a excluiu, demonstrando esta sempre uma grande objectividade, em contraponto com a falta de coerência do depoimento do assistente.

«7.º No que concerne à natureza do contrato, parece-nos não ser possível afirmar com toda a segurança, qual a verdadeira natureza do contrato acordado entre os assistentes e as arguidas, pelo menos com a segurança que o acórdão se arroga, na medida em que na matéria dada como provada nomeadamente nas alíneas e), f), g) e i) (transcritas no art.° 2 das conclusões, se refere ao Trespasse,

«ISTO PORQUE

«8.º O contrato foi preparado e redigido pelo advogado dos assistentes, facto esse que o acórdão omite (GG "O meu marido foi a um advogado fazer um papel em como ele lhe ia entregar os dez mH contos (fls 572) (...) era um advogado de que já tinha feito certos trabalhos para mim e de que eu confiei (...) Era o vosso advogado? Sim (...) era um advogado que eu já conhecia e eu já me tinha feito outros passes de outras casas de que eu já tinha (fls 573) (...) O advogado é que escreveu e deu o papel ao meu marido, já escrito (fls 574) (...) o Dr. LL já sabia o que é costume fazer,..ele já me tinha feito um contrato dum outro café" (fls 585); HH: " Falei com um advogado (...) era um advogado que já me tinha tratado de outras coisas"( fis598).

«9.º Analisando os depoimentos dos assistentes transcritos no art.º 8.º, torna-se liquido que a negociação tornou-se decisiva com a intervenção do advogado dos assistentes que estabeleceu contactos com a arguida CC, desconhecendo-se em absoluto os termos dessa intervenção, só se sabe que os assistentes demandaram o advogado atribuindo-lhe responsabilidade por deficiente realização do mandato (ver cópia da respectiva petição inicial a fls 370-384 ) que corre no 2.° Juízo cível sob o n.° 2534/04.9T6PVZ no Tribunal da Póvoa de Varzim. -

«TANTO MAIS QUE

10.º antes dessa intervenção, não se vislumbra a possibilidade de se determinar, com a segurança que o direito exige, a natureza do contrato apalavrado entre as partes.

«POIS,

«11.º Os assistentes e o seu advogado é que gizaram o negócio (Contrato de Cessão de Quotas) não tendo a arguida CC, imposto ou sugerido determinado contrato, como se percebe do seu depoimento ("deixei tudo ao encargo deles, eles é que trataram do contrato com o advogado deles, eu simplesmente, Meritíssimo, só me sujeitei a assinar a minha quota (...) Eu simplesmente “sujeitei-me a vender-lhes a sociedade ( fls541) (...) Ó Meritíssimo, isso estava tudo nas mãos do advogado dessas pessoas e eu estava, prontos, o que eles decidissem, estava decidido (fls 547) (...)Eu não sei o que eles pretendiam" (fls 543) (...)meritíssimo, eu apenas falei com o Dr. LL peio telefone. O Sr. LL é que se encarregou de fazer tudo( fís561)(..,)O Dr. LL, Meritíssimo, nunca me perguntou nada, nunca(...) Eu simplesmente, Meritíssimo, assinei. Eu não fiz absolutamente nada. Nunca ninguém me perguntou nada(...)"( fls 562)

«12.º Da parte dos assistentes observa-se nos seus depoimentos uma grande insistência, até mesmo algum rigor na caracterização do contrato que alegadamente acordaram com a arguida CC, sobressaindo incoerências e desconexões que nos levam, no domínio das regras da experiência comum, a retirar às suas declarações a relevância que lhes deu o tribunal " a quo ", senão vejamos: (Assistentes: GG: " Nunca ouvi falar em quotas, nem...e digo-lhe mais, SR. Dr. Juiz, eu não sabia, e eu que já tive sete cafés, toda a minha vida trabalhei nisso e nunca ouvi falar que existiam cafés com quotas(...) eu ainda nem sei o que é um contrato de quotas(..) ( fls 569) Sr. Dr. Juiz, já tenho vinte e cinco anos de trabalho e sei o que é passar um café e o que é trespassar e eu estou muito habituada nisso" ( fls 576 ) HH - " Juiz: Queria comprar o asse do café, foi? ( note-se a pergunta sugestiva com resposta condizente por parte do assistente António Ferreira )Resposta: O trespasse daquele café (...) Juiz: O Sr. disse ao Dr. LL, o que é que queria, que queria comprar? Resposta: Disse que queria, queria aquela casa."( fIs 598).

«13.° Não se consegue vislumbrar através dos depoimentos dos assistentes, que afirmam vincadamente que pretendiam o "passe" do café, desconhecendo em absoluto o que são " quotas " (Conforme depoimentos transcritos em 12.°), mas não tem lembrança dos termos em que foi negociado o pagamento da renda, que é elemento essencial do contrato, pois a instâncias diz a assistente GG "(...) eu parece-me que era ela que continuava, ou éramos nós ? Não sei (... ) ( fls 578 ) ), nem se lembram tão pouco de ter apurado o montante da renda, GG " ela nunca me disse ( montante da renda ) ( fls 578 ); E depois da observação do Juiz "Diz que tem vinte e cinco anos disto, que passou não sei quantos cafés (...) e faz um negócio destes, nem sabe quanto é que era a renda, quem era o senhorio" responde "Eu sabia quanto e que era a renda na altura (...) só que agora já não me lembra" ( fls 578-579);

«E o assistente HH: "Não, porque, como era... aquela casa já existia há muitos anos e eu vi que a coisa e tal, pensei sempre que o aluguer que nunca fosse um grande aluguer" ( fls 613).

«14.º No que concerne ao conhecimento por parte das arguidas da acção de despejo por falta de pagamento de rendas, o acórdão recorrido não valorizou a alegação que os próprios assistentes produziram na acção civil interposta contra o seu advogado onde no art.° 8.° da petição inicia! ( fls 371 ) dizem os assistentes: " Nessa consulta, o R. ( advogado ) reconheceu o nome do café e informou os AA. (assistentes) de que supunha existir, para esse local, uma acção de despejo" (sublinhado nosso)

«ORA,

«15.º daqui se conclui que os assistentes não desconheciam, ou pelo menos tinham a suspeita que haviam rendas em atraso, pois o próprio assistente HH reconhece a possibilidade de pagarem as rendas em atraso quando a instâncias diz " que ela ( CC) nos tivesse dito: 'Olhe que vocês agora pagaram mas vocês arranjem dinheiro para pagar ao senhorio e nós imediatamente tínhamos interesse, pagaríamos ao senhorio " (fls. 604)

«TANTO MAIS QUE

«16.º Não se pode afirmar com a segurança que o direito exige que na outorga do contrato entre assistentes e arguidas, estas já tivessem conhecimento da sentença de despejo, tomando em consideração que a carta foi expedida a 8 de Março, sexta feira e o contrato subscrito na segunda feira seguinte, pelo que não se pode considerar que elas tivessem o conhecimento efectivo e o ocultaram.

«PELO QUE-

«17.º De harmonia com todas as observações feitas, e contradições evidenciadas, impõe-se uma ampla alteração do acórdão ora recorrido, por forma a determinar a exclusão das alíneas:

«"i) O interesse dos assistentes residia no referido estabelecimento comercial, que lhes havia sido proposto tomar de trespasse;

«j) O único interesse dos assistentes residia no estabelecimento comercial "Café Bica Italiana ", facto que era conhecido das arguidas, até porque era o único bem da sociedade comercial" Café Bica Italiana, Lda."; «p) Os assistentes não teriam interesse no estabelecimento ou realizado aquele ou qualquer outro negócio com as arguidas se soubessem da existência da acção e da sentença de despejo, visto o seu interesse no negócio residir exclusivamente naquele espaço comercial com aquela localização; «s) As arguidas deliberadamente ocultaram aos assistentes a existência daquela acção judicial e a sentença de despejo de forma a determinar a realização do negócio que sabiam que aqueles nunca realizariam caso tivessem conhecimento desses factos;

«t) As arguidas agiram voluntária e conscientemente, sabendo que o seu comportamento era proibido por lei; (...)" da matéria de facto provada, que deverá passar para a matéria de facto não provada.

«ASSIM COMO,

«18.º A alteração das alíneas:

«" e) As arguidas decidiram dar de trespasse o referido estabelecimento comercial de café e pastelaria;

«f) Os assistentes tomaram conhecimento da vontade de trespassar o estabelecimento e, mostrando interesse no trespasse, deslocaram-se diversas vezes àquele estabelecimento e aí se reuniram com a arguida CC, sendo que, em algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente a arguida DD;

«g) Nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2002, os assistentes reuniram-se diversas vezes com a arguida CC, sendo que algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente a arguida DD, a quem manifestaram interesse na aquisição do estabelecimento comercial de trespasse e com quem negociaram o preço e condições de pagamento;

«h) Durante esse período de tempo os assistentes, com conhecimento e autorização das arguidas, deslocaram-se ao local para estudar um conjunto de obras que permitiriam uma actualização do estabelecimento comercial;

«q) Na data da celebração daquele contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes ás arguidas já estas tinham conhecimento da existência da acção e da subsequente sentença de despejo;

«r)Durante todo o período em que ocorreu a negociação as arguidas ocultaram tais factos aos assistentes;

«QUE PASSAM

«19.° a ter a seguinte redacção:

«(...) e) As arguidas decidiram negociar o referido estabelecimento comercial de café e pastelaria; «f) Os assistentes tomaram conhecimento da vontade de negociar o estabelecimento e, mostrando interesse no negócio deslocaram-se diversas vezes àquele estabelecimento e aí se reuniram com a arguida CC, sendo que, em algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente a arguida DD

«g) Nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2002, os assistentes reuniram-se diversas vezes com a arguida CC, sendo que algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente a arguida DD, a quem manifestaram interesse na aquisição do estabelecimento comercial e com quem negociaram o preço e condições de pagamento;

«h) Durante esse período de tempo os assistentes, com conhecimento e autorização da arguida CC, desfocaram-se ao focal para estudar um conjunto de obras que permitiriam uma actualização do estabelecimento comercial;

«q) Na data da celebração daquele contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes ás arguidas estas tinham conhecimento da existência da acção mas não da subsequente sentença de despejo;

«r)Durante todo o período em que ocorreu a negociação a arguida CC referiu a existência da acção de despejo.

«20.° ADITANDO AOS FACTOS NÃO PROVADOS QUE:

«As arguidas decidiram dar de trespasse o referido estabelecimento comercial;

«Os assistentes mostraram interesse no trespasse e só no trespasse do estabelecimento;

A arguida DD tivesse qualquer intervenção nas negociações mantidas entre os assistentes e a arguida sua mãe, CC;

«Na data da celebração do contrato e da entrega dos cheques para o início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes às arguidas já estas tinham conhecimento da sentença de despejo;

«21.º Com a alteração da matéria de facto provada, devem as arguidas ser absolvidas pela prática do crime de burla qualificada pelo qual vêm acusadas e condenadas,

«POIS,

«22.º Não se apuraram os elementos objectivos nem os elementos subjectivos do tipo, uns e outros imprescindíveis à imputação do crime para que a conduta das arguidas seja no âmbito jurídico-penal censurada de molde a se enquadrar no tipo de ilícito do crime de burla qualificada p.e p. nos termos dos artigos 217.° n.° 1 e 218.° n.° 2 alínea a) com referência ao art.° 202.° alínea b) todos do Código Penal.

«23.° Pois, para preencher o tipo legal do crime de Burla é necessário que o erro ou engano tenham sido provocados de forma astuciosa pelo agente da infracção, usando de meio engenhoso para enganar ou induzir em erro.

«24.º Neste tipo de crime, o dolo antecede a entrega da coisa, mas para tal, o agente tem que de forma engenhosa induzir o " burlado " a ter uma acção que o vai lesar.

«25.º Ora no caso sub judice o tribunal "a quo" fundou a sua decisão no facto de as arguidas terem ocultado a identificação do senhorio e rendas em atraso do estabelecimento, bem como da acção de despejo - omissão de informação - pois convenceu-se que o único interesse era o "trespasse", e que essa omissão por si preenche o elemento " astúcia "

«26.º O tribunal" a quo " não caracterizou bem o elemento "astúcia" pois, foram os assistentes quem decidiram como e a forma do negócio, tanto mais que foi o advogado deles que o elaborou, sendo certo também que foi o assistente marido que levou o citado documento às arguidas para o assinarem.

«27.º Pelo que o Tribunal "a quo", ao fundar a sua douta decisão na falta de lealdade e consequente violação do princípio da Boa Fé por parte das arguidas no negócio estabelecido com os assistentes - violação de um dever de informação -sendo certo que toda a base negocial e sua formalização foi exclusivamente dirigida pelos assistentes SENDO CERTO QUE

«28,º O que sobressai é a precipitação e a imprudência dos assistentes que, apesar de estarem numa posição privilegiada pela experiência acumulada com aquisições idênticas ao longo de mais de vinte e cinco anos e por contarem com o acompanhamento e aconselhamento de um advogado de confiança, partiram para a celebração do contrato sem previamente se certificarem de elementos tão básicos como o valor da renda do locado e a possibilidade de dívidas (apesar de alertados pelo advogado como reconhecem na acção civil que posteriormente lhe moveram) «29.° Por isso, mais do que a violação de um qualquer dever de informação, imputável à arguida, o que verificamos ê um "deficit" nos mecanismos de auto-tutela por parte dos assistentes. «30.º A absolvição criminal das arguidas por falta da verificação dos pressupostos objectivos e subjectivos do crime implica a improcedência do pedido de indemnização civil, assente como está, no ilícito que não se confirmou (responsabilidade por factos ilícitos - art.° 483.° do Código Civil).

8. Ordenada a notificação a que se refere o n.º 5 do artigo 417.º do Código de Processo Penal (CPP), vieram os assistentes apresentar a sua resposta, na qual questionam o momento processual em que foi formulado o convite às arguidas/recorrentes para aperfeiçoarem as conclusões antes apresentadas e alegam que as recorrentes, nem na motivação nem nas conclusões inicialmente formuladas, impugnaram as alíneas q) e t) e que, quanto às restantes alíneas, apenas manifestam a sua discordância face à valoração da prova feita pelo tribunal recorrido, o que, por si só, não é fundamento para o recurso. Não deixam, ainda, de sustentar a confirmação da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto.

9. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/12/2009, foi decidido “conceder provimento ao recurso interposto pelas recorrentes CC e DD, determinando a modificação da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto nos termos definidos no § 26., e revogando as condenações penal e civil estabelecidas no acórdão recorrido, absolvendo as recorrentes quanto a amas as acções”.

10. Desse acórdão vieram os assistentes interpor o presente recurso, para este Supremo Tribunal, formulando as seguintes conclusões:

«1º - Não se conformando com o acórdão do tribunal de 1.ª instância que as condenou, as arguidas apresentaram recurso com as seguintes conclusões:

[segue-se a reprodução dessas conclusões, já antes transcritas no ponto 2.]

«2º - A Relação, tendo abundantemente alterado a decisão sobre a matéria de facto, deu provimento a este recurso o que originou que os assistentes viessem a interpor um primeiro recurso para o STJ por se entender que o acórdão da Relação padecia de excesso de pronúncia e por entender que o recurso apresentado pelas arguidas violava o disposto nos n°s 3 e 4 do art. 412° do CPP.

«3º - Veio o STJ a acolher a argumentação produzida e, em douto acórdão, este tribunal veio a considerar nulo o acórdão da Relação,

«4º - Em sequência, a Relação veio a notificar as arguidas para APERFEIÇOAREM AS CONCLUSÕES ANTERIORMENTE PROFERIDAS, tendo estas, formalmente, apresentado novas conclusões nos seguintes termos:

[segue-se a reprodução dessas conclusões, já antes transcritas no ponto 7.]

«5º - Tais conclusões são mera reprodução do conteúdo do acórdão da Relação que veio a ser declarado nulo pelo STJ,

«6º - Na sequência deste «aperfeiçoamento», a Relação veio a proferir «novo» acórdão, que reproduz o seu primeiro acórdão,

«7º - Ao ter convidado as arguidas a efectuar o aperfeiçoamento, a Relação violou o disposto no art. 417° do CPP,

«8º - 0 momento para efectuar o convite é o do exame preliminar, mas a primeira vez que vai para exame,

«9º - Seguramente que nunca terá sido intenção do legislador conceder a possibilidade de os recorrentes aperfeiçoarem as suas conclusões depois de conhecerem a decisão de mérito do recurso,

«10° - Porque senão acontece o que aconteceu nestes autos, os convidados ao responderem ao convite de aperfeiçoamento TRANSCREVEM PARA AS SUAS CONCLUSÕES A DECISÃO, O ACÓRDÃO, QUE JÁ CONHECEM,

«11º - Tal hipótese é inconcebível, e está muito longe da razão de ser da hipótese de aperfeiçoamento, a forma como foi exercido o art. 417° do CPP constitui um avantajar injustificado para a parte que conhece o acórdão e que só depois vai apresentar as conclusões, obviamente que as vais conformar com o próprio texto do acórdão,

«12º - Portanto, o art. 417° do CPP, deve ser entendido no sentido que o momento para se efectuar o convite é o da primeira apresentação ao Juiz para exame preliminar, Porém,

«13° - A resposta ao convite não respeita o preceituado nas alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 412° do CPP, as novas conclusões que impugnam a matéria de facto, continuam a surgir de forma genérica e vaga,

«14º - Sem concreta menção das provas existentes que impõe decisão distinta daquela a que chegou o tribunal de 1ª instância,

«15º - As transcrições efectuados pelas arguidas dos depoimentos das arguidas, assistentes e testemunhas, são insuficientes para dar como preenchido aqueles pressupostos,

«Porquanto,

«16º - Apesar de as arguidas terem de uma assentada enumerado quais as alíneas que pretendiam impugnar, não se percebe depois, em concreto, quais as alíneas da matéria de facto provada, que aqueles depoimentos põe em crise e que impõe decisão contrária,

«17º - Isto é não se faz a ligação entre a transcrição e a alínea atacada por aquela transcrição, tudo surge vago e genérico, o que impede o exercício do contraditório,

«18º - Devia assim a Relação ter decidido, rejeitar o recurso nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 420° do CPP, ou, se assim não o entendesse,

«19° - Limitar a sua decisão às conclusões inicialmente apresentadas, o que não fez,

«20º - As conclusões constantes do aperfeiçoamento excedem o âmbito do admissível em sede de aperfeiçoamento, porquanto, não se contém dentro dos limites da anterior motivação, violando o nº 4 do art. 417° do CPP,

«21° - Veio agora em sede de aperfeiçoamento a ser impugnada as alíneas q) e t) da matéria de facto provada, tendo estas sido incluídas em sede de aperfeiçoamento, pois nunca antes, nas conclusões iniciais, houve intenção de as ali incluir,

«22º - O acórdão da Relação ao ter acolhido a pretensão das arguidas e ao ter alterado a decisão da matéria de facto sobre aquelas alíneas violou o disposto no n.º 4 do art. 417° do CPP,

«23º - Ao manter como provada aquela matéria de facto, não pode deixar de se dar como preenchido o elemento «astúcia» necessário para preencher o tipo legal de crime de que as arguidas vieram condenadas,

«24º - Da leitura atenta das conclusões apresentadas pelas arguidas, quanto à impugnação da matéria de facto, quer as iniciais quer as do aperfeiçoamento, resulta que, a discordância destas é para com a valoração da prova efectuada pelo tribunal de 1.ª instância,

«25º - Mas isso não constitui por si só fundamento de recurso, isso seria admitir impugnar a convicção a que chegou o Tribunal no final do julgamento, sobre esta matéria rege o principio da livre apreciação da prova do julgador,

«26º - E isso não pode a Relação alterar, a intervenção da Relação quanto a alteração da matéria de facto há-de ser, quando possível, limitada, cirúrgica, imposta pelas provas existentes, ora das conclusões apresentadas pelas arguidas não vislumbra nenhum elemento de prova que permita de forma decisiva que houve qualquer erro na apreciação da prova por parte do tribunal de 1ª instância,

«27.º - Pelo que alteração da matéria de facto produzida pela Relação é injustificada.»

Terminam, pedindo que seja revogada a decisão do acórdão da relação de alterar a matéria de facto dada por provada na 1.ª instância, mantendo-se, assim, as condenações, penal e cível, das arguidas, conforme resulta do acórdão de 1.ª instância.

11. Ao recurso respondeu o Ministério Público, pronunciando-se pela sua improcedência.

12. Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este Tribunal.

13. Na oportunidade conferida pelo artigo 416.º, n.º 1, do CPP, o Ministério Público, junto deste Tribunal, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

14. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada chegou aos autos.

15. Não tendo sido requerida a realização da audiência, e devendo, por isso, o recurso ser julgado em conferência (n.º 5 do artigo 411.º e alínea c) do n.º 3 do artigo 419.º do CPP), colhidos os vistos, com projecto de acórdão, procedeu-se ao julgamento do recurso em conferência.

Do mesmo procedendo o presente acórdão.


II

1. À compreensão do objecto do recurso, interessa, para além do já registado, o que passaremos a referir.

1.1. A fundamentação de facto do acórdão da 1.ª instância é a seguinte:

«1. Matéria de facto provada.

Dos factos constantes da pronúncia (dela se excluindo o art. 27° por ser manifestamente conclusivo) e do pedido cível resultaram provados os seguintes:

«a) À data de 12 de Março de 2002, as arguidas eram as únicas sócias da sociedade comercial por quotas "Café Bica Italiana, Limitada", com o NIF 501566325, matriculada na respectiva Conservatória do Registo Comercial sob o n.º 641;

«b) Aquela sociedade tinha sua sede na Avenida Dr. João Canavarro, ..., da cidade de Vila do Conde, onde funcionava, desde meados de 1984, o seu estabelecimento comerciai de café e pastelaria denominado "Café Bica Italiana";

«c) A referida sociedade comercial tem a sua actual denominação de "Café Bica Italiana, Limitada" desde 27.05.92, sendo a sua anterior denominação "Justo da Silva & Filhos, Limitada";

«d) E foi sobre essa denominação e com outros sócios, que não as arguidas, que foi celebrada em 15.05.84 escritura pública de arrendamento pela qual os proprietários da fracção letra "P" correspondente ao rés-do-chão esquerdo nascente, com cave e sobreloja, deram de arrendamento àquela sociedade comercial a dita fracção para aí funcionar o seu estabelecimento de café e pastelaria, que aí funcionou até meados de 2002; «e) As arguidas decidiram dar de trespasse o referido estabelecimento comercial de café e pastelaria; «f) Os assistentes tomaram conhecimento da vontade de trespassar o estabelecimento e, mostrando interesse no trespasse, deslocaram-se diversas vezes àquele estabelecimento e aí se reuniram com a arguida CC, sendo que, em algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente a arguida DD;

«g) Nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2002, os assistentes reuniram-se diversas vezes com a arguida CC, sendo que, em algumas dessas ocasiões, encontravam-se presente a arguida DD, a quem manifestaram interesse na aquisição do estabelecimento comercial de trespasse e com quem negociaram o preço e as condições de pagamento;

«h) Durante esse período de tempo os assistentes, com conhecimento e autorização das arguidas, deslocaram-se ao local para estudar um conjunto de obras que permitiriam uma actualização do estabelecimento comercial;

«i) O interesse dos assistentes residia no referido estabelecimento comercial, que lhes havia sido proposto tomar de trespasse;

«j) O único interesse dos assistentes residia no estabelecimento comercial de café e pastelaria "Café Bica Italiana", facto que era conhecido das arguidas, até porque era o único bem da sociedade comercial "Café Bica Italiana, Lda";

«I) Em 11 de Março de 2002, os assistentes e as arguidas celebraram um contrato denominado de contrato de cessão de quotas, no qual se estipulou a cessão das duas únicas quotas da sociedade comercial por quotas "Café Bica Italiana, Lda", sendo a cessão de uma quota de valor nominal de € 2992,79 da titular DD a favor da assistente BB, pelo preço de € 37.409,00, e a cessão de uma quota de valor nominal de € 2.992,79 da titular CC a favor do assistente AA, pelo preço de € 37.409,00;

«m) Com a assinatura do contrato os assistentes entregaram às arguidas dois cheques no valor de € 24.939,89 cada, sacados sobre a conta de HH CS, para início de pagamento do preço de aquisição do estabelecimento comercial;

«n) Sob o n° 103/02 correu termos, no 1.º juízo cível da comarca de Vila do conde, acção judicial de despejo por falta de pagamento de rendas que, por sentença de 08 de Março de 2002, decretou o despejo da "Café Bica Italiana, Lda" do local arrendado no n.º ... da Avenida Dr. João Canavarro, Vila do Conde;

«o) Dias após terem efectuado o referido pagamento, os assistentes tiveram conhecimento da existência de acção judiciai de despejo da arrendatária "Café Bica Italiana, Lda" do local onde funcionava o estabelecimento comercial "Café Bica Italiana";

«p) Os assistentes não teriam interesse no estabelecimento ou realizado aquele ou qualquer outro negócio com as arguidas se soubessem da existência da acção e da sentença de despejo, visto o seu interesse no negócio residir exclusivamente naquele espaço comercial com aquela localização;

«q) Na data da celebração daquele contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes às arguidas já estas tinham conhecimento da existência da acção e da subsequente sentença de despejo;

«r) Durante todo o período em que ocorreu a negociação as arguidas ocultaram tais factos aos assistentes;

«s) As arguidas deliberadamente ocultaram aos assistentes a existência daquela acção judicial e a sentença de despejo de forma a determinar a realização do negócio que sabiam que aqueles nunca realizariam caso tivessem conhecimento desses factos;

«t) As arguidas agiram voluntária e conscientemente, sabendo que o seu comportamento era proibido por lei;

«u) À data dos factos supra referidos a arguida CC não tinha antecedentes criminais;

«v) A arguida DD não tem antecedentes criminais;

«x) A arguida CC encontra-se desempregada, vive com o companheiro, que trabalha, em casa própria;

«z) A arguida DD encontra-se desempregada;

«Tem um filho de 9 anos de idade; O marido trabalha; Vivem em casa própria;

«aa) As arguidas/demandadas, apesar de instadas para o efeito, nenhuma delas devolveu o dinheiro recebido dos assistentes.»

«2. Matéria de facto não provada.

«2.1.Da pronúncia.

«Não se provou que:

«As arguidas tivessem decidido dar de trespasse o estabelecimento comercial porque as receitas geradas já não eram as esperadas.

«2.2. Do pedido cível.

«Não se provou que:

«As arguidas tivessem reconhecido a necessidade que tinham de dinheiro para fazer face a um conjunto de dívidas.»

1.2. Na sequência do recurso interposto pelas arguidas, cujas conclusões estão transcritas em I 2., o acórdão da relação, de 01/10/2008, modificou a decisão proferida sobre matéria de facto.

Constando, desse acórdão, no que, agora, releva, o seguinte:

«Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto

«11. As recorrentes [arguidas] impugnam a decisão que deu como provados os factos constantes das alíneas e), f), g), h), i), j), p), r) e s) do acórdão recorrido. Alegam aspectos em que os depoimentos prestados não só não apoiam a decisão tomada como a até a contradizem. Abordaremos a questão em bloco.------------------

«12. São muito débeis as provas que permitem recriar as negociações entre os assistentes e as arguidas. Se é verdade que o segredo é a alma do negócio, no caso dos autos esta característica vem fortemente sublinhada pela forma reservada como os assistentes geriam as suas aquisições comerciais [ver depoimentos de II e JJ]. Assim, quanto aos termos precisos das negociações travadas, e face à inexistência de elementos documentais, não há muito mais a esperar para além dos depoimentos das partes directamente envolvidas, e mesmo estes terão de ser lidos com especiais cautelas dados os evidentes e prementes interesses de cada uma na caracterização do negócio. ---------------------------------

«13. Em primeiro lugar, parece inequívoco que a arguida DD nunca participou nas negociações havidas. Vão nesse sentido as suas próprias declarações [Alguma vez falou com estas pessoas [assistentes]? “Nunca na vida. Nunca. Conheci essas pessoas quando foi para eu... quando foi para eu assinar o contrato de quotas (...) Quem tratava dos assuntos relacionados com o estabelecimento era só com a minha mãe (...) A minha mãe precisava de uma pessoa, sócia, pronto. Pediu-me a mim e foi o que eu fiz, Sr. Meritíssimo. Eu apenas... tinha o meu nome” – fls. 553-554]; as declarações da mãe [CC: “ela nunca tratou de nada, ela não sabia absolutamente nada, só simplesmente, eu a quem comprei a sociedade, eu também tinha que formar uma sociedade e então, devia-se meter uma pessoa de fora, meti a minha filha como sócia” [fls. 541]]; e até as declarações dos assistentes [GG: “Porque a mãe, porque a Srª que tratava do negócio era a mãe, não era a filha [fls. 567] (...) Eu não disse nada à filha, eu não tive conversas, as conversas sempre que houve foram sempre com a mãe (...) A filha não se meteu em nada, simplesmente telefonou à mãe e a mãe é que aparecia sempre para vir falar comigo” [fls. 568]; HH: “Essa [CC] é que mandava (…) E as conversas eram sempre com essa Sra... Ela é que (...) falava. Embora a outra estivesse e tal, e concordasse e chamasse, mas quem mandava no assunto era essa Sra. CC” [fls. 594]]. A ténue insinuação do assistente à presença e à concordância da recorrente DD não tem consistência nem merece credibilidade face à clareza do depoimento da assistente GG que abertamente a excluiu, sendo certo que esta patenteou, ao longo de todo o depoimento, uma grande objectividade, em contraste com a falta de coerência e de relevância concreta do depoimento daquele [em linha com a aparente subalternização dele face à mulher na dinâmica do negócio].---------------------------------------------

«14. Em segundo lugar, não é possível afirmar com segurança [pelo menos com a segurança de que o acórdão se arroga] qual a natureza do contrato acordado entre os assistentes e as arguidas. Desde logo, porque o contrato foi preparado e redigido pelo advogado dos assistentes, facto que o acórdão omite [GG: “O meu marido foi a um advogado para fazer um papel em como ele lhe ia entregar os dez mil contos [fls. 572] (...) era um advogado de que já tinha feito certos trabalhos para mim e de que eu confiei (...) Era o vosso advogado? Sim (...) era um advogado que eu já conhecia e eu já me tinha feito outros passes de outras casas de que eu já tinha [fls. 573] (...) O advogado é que escreveu e deu o papel ao meu marido, já escrito [fls. 574] (...) o Dr. LL já sabia o que é costume fazer... ele já me tinha feito um contrato dum outro café” [fls. 585]; HH: “Falei com um advogado (...) era um advogado que já me tinha tratado de outras coisas” [fls. 598].------

«15. É óbvio que a negociação teve a sua fase decisiva quando passou a intervir o advogado dos assistentes e este entabulou contactos com a arguida CC. Sobre os termos dessa intervenção, nada se conhece – para além de se saber que os assistentes demandaram o advogado atribuindo-lhe responsabilidade por deficiente realização do mandato [ver fotocópia da respectiva petição inicial a fls. 370-384]. Ainda assim, a montante dessa intervenção, não se vê que seja possível determinar, com a segurança que o Direito exige, a natureza do contrato apalavrado entre as partes. Com as cautelas impostas pela intensidade do envolvimento dos participantes e pelas percepções jurídicas que o decurso do tempo lhes trouxe, anotamos que a arguida CC refere que acordaram a cessão de quotas, salientando sempre a relevante participação dos assistentes e do seu advogado na caracterização e tipificação do negócio de tal forma que em momento algum dá conta de ela ter imposto, exigido ou sequer sugerido determinado contrato [“Deixei tudo ao encargo deles, eles é que trataram do contrato com o advogado deles, eu simplesmente, Meritíssimo, só me sujeitei a assinar a minha quota (...) Eu simplesmente ‘asujeitei-me’ a vender-lhes a sociedade [fls. 541] (...) Ó Meritíssimo, isso estava tudo nas mãos do advogado dessas pessoas e eu estava, prontos, o que eles decidissem, estava decidido [fls. 547] (...) Eu não sei o que eles pretendiam” [fls. 543] (...) meritíssimo, eu apenas falei com o Dr. LL pelo telefone. O Dr. LL é que se encarregou de fazer tudo [fls. 561] (...) O Dr. LL, Meritíssimo, nunca me perguntou nada, nunca (...) Eu simplesmente, Meritíssimo, assinei. Eu não fiz absolutamente nada. Nunca ninguém me perguntou nada (...)” [fls. 562].---------------------------------------

«16. Esta postura é consentânea com uma certa pressa na venda por parte da arguida, facto que ela deixa subentendido na primeira intervenção [fls. 541, quando alude à ruptura do menisco] e a que se referem, também por meias palavras, as testemunhas [por exemplo, MM – fls. 632 e 634].-------------------------------

«17. Já da parte dos assistentes verificamos uma grande insistência e, agora, um grande rigor na caracterização do contrato que alegadamente acordaram com a arguida CC. Verificamos também incoerências e desconexões que nos levam, ao abrigo das regras da experiência comum, a retirar às suas declarações a relevância que lhes deu o tribunal de 1ª instância. Como veremos mais à frente, trata-se, aliás, de um aspecto que, ao contrário da preponderância que teve em audiência, não é decisivo para a tipificação do crime de burla pelo qual as arguidas vêm condenadas. Mas por ora, cingimos à mera apreciação da decisão da matéria de facto. Assim: [GG - Assistente: “Nunca ouvi falar em quotas, nem... e digo-lhe mais, Sr. Dr. Juiz, eu não sabia, e eu que já tive sete cafés, toda a minha vida trabalhei nisso e nunca ouvi falar que existiam cafés com quotas (...) eu ainda nem sei o que é um contrato de quotas (...) [fls. 569] Sr. Dr. Juiz, já tenho vinte e cinco anos de trabalho e sei o que é passar um café e o que é trespassar e eu estou muito habituada nisso” [fls. 576]; HH - Assistente: “Juiz: Queria comprar o passe do café, foi? [pergunta sugestiva com resposta condizente] Resposta: O trespasse daquele café (…) Juiz: O Sr. disse ao Dr. LL o que é que queria, que queria comprar? Resposta: Disse que queria, queria aquela casa [fls. 598]] --------------------

«18. Ou seja: os assistentes não apresentam um discurso coerente e são ambos incapazes de especificar os exactos termos da negociação travada com a arguida CC. O laconismo é ainda maior após a entrada em cena do seu advogado, incumbido como foi de concretizar o negócio – no que não sofreu qualquer oposição ou contrariedade por parte da arguida CC.----------------------------------------------------------------------

«19. Mas há mais: é surpreendente que os assistentes não tenham lembrança dos termos em foi negociado o pagamento da renda, elemento essencial do contrato [GG - Assistente: (…) eu parece-me que era ela que continuava, ou éramos nós? Não sei (…) [fls. 578]]; – que não se lembrem sequer de ter apurado o montante da renda [GG: ela nunca me disse [montante da renda] [fls. 578]; E depois da observação do Juiz “Diz que tem vinte e cinco anos disto, que passou não sei quantos cafés (…) e faz um negócio destes, nem sabe quanto é que era a renda, quem era o senhorio” responde: “Eu sabia quanto e que era a renda na altura (…) só que agora já não me lembra [fls. 578-579]; HH - Assistente: “Não, porque, como era… aquela casa já existia há muitos anos e eu vi que a coisa e tal, pensei sempre que o aluguer que nunca fosse um grande aluguer” [fls. 613]]. ---------------------------------------------------------------------------------------------

«20. Também a decisão em torno do conhecimento da acção de despejo, por falta de pagamento de rendas, merece algumas rectificações. Em primeiro lugar, o acórdão recorrido não levou em consideração a alegação que os assistentes produziram na acção civil interposta contra o seu advogado. Sobre o primeiro contacto que com ele tiveram relativamente a este assunto, dizem os assistentes: “Nessa consulta, o R. [advogado] reconheceu o nome do café e informou os AA. [assistentes] de que supunha existir, para esse local, uma acção de despejo” – artigo 8.º, da petição inicial [fls. 371]. Portanto, os assistentes não desconheciam, ou pelo menos tinham a suspeita que haviam rendas em atraso. Aliás, é o próprio assistente que acaba por reconhecer a possibilidade de pagarem as rendas em atraso [HH: “que ela [CC] nos tivesse dito: ‘Olhe que vocês agora pagaram mas vocês arranjem dinheiro para pagar ao senhorio’ e nós imediatamente tínhamos interesse, pagaríamos ao senhorio” [fls. 604]].----------------------------------------------------------

«21. E sobre o conhecimento, por parte das arguidas, da sentença de despejo aquando da outorga do contrato… perante as dúvidas manifestadas [fls. 545] e à falta de documento equivalente ao de fls. 391 [fotocópia do comprovativo da citação postal], tendo em consideração que a carta registada foi expedida a 8 de Março, sexta-feira e o contrato subscrito na segunda-feira seguinte, cremos que não se pode dar como “provado” tal conhecimento efectivo.------------------------------------------------------------------------------

«22. De acordo com as observações feitas, as contradições evidenciadas impõem uma ampla modificação da decisão da 1ª instância.-----------------------------------------------------------

«23. Reconhecendo, nesta parte, a procedência do recurso e, ao abrigo do disposto no artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal, determinamos a modificação da decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto com: ----------------------------------------

«- a exclusão das alíneas i), j), p), s) e t) dos “Factos Provados”, que transitam para os “Factos Não Provados”; ---------------------------------------------------------------------------

«- a alteração das alíneas e), f), g), h), q), r), que passam a ter a seguinte redacção: -------

«e) As arguidas decidiram negociar o referido estabelecimento comercial de café e pastelaria; -------------

«f) Os assistentes tomaram conhecimento da vontade de negociar o estabelecimento e, mostrando interesse no negócio, deslocaram-se diversas vezes àquele estabelecimento e aí se reuniram com a arguida CC, sendo que, em algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente no estabelecimento a arguida DD; --------------------

«g) Nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2002, os assistentes reuniram-se diversas vezes com a arguida CC – sendo que, em algumas dessas ocasiões se encontrava no estabelecimento a arguida DD – a quem manifestaram interesse na aquisição do estabelecimento comercial e com quem negociaram o preço e as condições de pagamento; --------------------------------------------------------------------------

«h) Durante esse período de tempo os assistentes, com conhecimento e autorização da arguida CC, deslocaram-se ao local para estudar um conjunto de obras que permitiriam uma actualização do estabelecimento comercial; -------------------------------

«q) Na data da celebração daquele contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes às arguidas já estas tinham conhecimento da existência da acção e da subsequente sentença de despejo; -------------

«r) Durante todo o período em que ocorreu a negociação a arguida CC não referiu a existência da acção de despejo; e, ---------------------------------------------------

«- o aditamento aos “Factos Não Provados” os seguintes segmentos: ----------------------

«. que as arguidas decidiram dar de trespasse o referido estabelecimento comercial; ----

«. que os assistentes mostraram interesse no trespasse e só no trespasse do estabelecimento; -----------

«. que a arguida DD tivesse qualquer intervenção nas negociações mantidas entre os assistentes e a arguida sua mãe, CC; -----------------------------------------

«. que na data da celebração do contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes às arguidas já estas tinham conhecimento da sentença de despejo; ----------» 1.4. No recurso interposto desse acórdão, para o Supremo Tribunal de Justiça, os assistentes formularam as seguintes conclusões:

«1º Não se conformando com o acórdão que as condenou, vieram as arguidas, a recorrer, apresentando na sua motivação as seguintes CONCLUSÕES:

[segue-se transcrição das conclusões formuladas pelas arguidas, já transcritas]

«2º. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto que julgou o recurso referido em 1, veio a modificar a decisão da matéria de facto do tribunal de 1ª instância e a conceder procedência ao recurso.

«3º Na sequência da alteração da decisão sobre a matéria de facto foram excluídos dos factos provados os descritos nas alíneas i), j), p), s) e t) da sentença do tribunal de 1ª instância, respectivamente:

«i) o interesse dos assistentes residia no referido estabelecimento comercial, que lhes havia sido proposto tomar de trespasse,

«j) o único interesse dos assistentes residia no estabelecimento comercial de café e pastelaria « Café Bica Italiana», facto que era conhecido das arguidas, até porque era o único bem da sociedade comercial « Café Bica Italiana Lda»

«p) Os assistentes não teriam interesse no estabelecimento ou realizado aquele ou qualquer outro negócio com as arguidas se soubessem da existência da acção e da sentença de despejo, visto o seu interesse no negócio residir exclusivamente naquele espaço comercial com aquela localização

«s)As arguidas deliberadamente ocultaram aos assistentes a existência daquela acção judicial e a sentença de despejo de forma a determinar a realização do negócio que aqueles nunca realizariam caso tivessem conhecimento desses factos

«t) As arguidas agiram voluntária e conscientemente, sabendo que o seu comportamento era proibido por lei

«4º Factos esses que passaram para «não provados».

«5º Foi ainda alterada a redacção das alíneas e), f), g), h), q) e r) da sentença de 1ª instância, que passaram a ter a seguinte redacção:

«e) As arguidas decidiram negociar o referido estabelecimento comercial de café e pastelaria

«f) Os assistentes tomaram conhecimento da vontade de negociar o estabelecimento e, mostrando interesse no negócio, deslocaram-se diversas vezes àquele estabelecimento e aí reuniram com a arguida CC, sendo que, em algumas dessas ocasiões, encontrava-se presente no estabelecimento a arguida DD

«g) Nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2002, os assistentes reuniram-se diversas vezes com a arguida CC – sendo que, em algumas dessas ocasiões se encontrava no estabelecimento a arguida DD. a quem manifestaram interesse na aquisição do estabelecimento comercial e com quem negociaram o preço e as condições de pagamento.

«h) Durante esse período de tempo os assistentes, com conhecimento e autorização da arguida CC, deslocaram-se ao local para estudar um conjunto de obras que permitiriam uma actualização do estabelecimento comercial.

«q) Na data de celebração daquele contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes às arguidas já estas tinham conhecimento da existência da acção e da subsequente sentença de despejo

«r) Durante todo o período em que ocorreu a negociação a arguida CC não referiu a existência de acção de despejo.

«6º Com as alterações assim produzidas sobre a matéria de facto provada, o acórdão proferido pela Relação acabou por conceder procedência ao recurso apresentado pelas arguidas, por entender que com alterações introduzidas não se apurou todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime, arts, 217º nº 1, 218º nº 2 do Código Penal.

«7º Não concordámos com a actuação do tribunal da Relação, porquanto, em nenhum momento das conclusões apresentadas pelas arguidas no seu recurso, estas se batem, de forma especifica e concreta, pela alteração das alíneas e), f) g), h), i), j), p), q), s) e t) anteriormente transcritas, como o entendeu o Tribunal da Relação no acórdão de que agora se recorre.

«8º E não tendo vertido para as conclusões do seu recurso aquela matéria de facto, com a específica discordância quanto aos factos descritos em cada uma das alíneas, o poder de conhecimento e de decisão do tribunal superior ficou limitado á matéria constante das conclusões.

«9º O âmbito do recurso é limitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, Acd. STJ de 94-05-12, proc nº 45 100, 98-01-28, proc 1494/97

«10º Devendo as conclusões ser «um resumo explícito e claro das questões levantadas pelo recorrente ……. O tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto nº art. 684º nº 3 do CPC» - Cód Processo Penal Anotado volume II, Simas Santos e Leal Henriques, 2ª edição, pág. 801 e, no mesmo sentido, Germano Marques, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo 2000, pág. 335.

«11º Ao conhecer, como fez a Relação, de matéria não constante das conclusões, o acórdão da Relação violou o disposto nos art 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal, conjugado com o disposto no art. 684º nº 3 do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do art. 4º do Cód. Proc. Penal.

«12º Alterada assim a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, sem que, em matéria de recurso o tribunal superior estivesse habilitada para tal, o acórdão recorrido padece de excesso de pronúncia quanto à alteração da decisão sobre a matéria de facto, sendo em consequência nulo - art. 379º, nº 1, alínea c) do CPP

«13º Mas mesmo que se entenda que nas conclusões apresentadas no recurso das arguidas se encontra impugnada a matéria de facto anteriormente referida, chegaríamos á mesma conclusão - de excesso de pronúncia do acórdão da Relação -, porque as arguidas no recurso por si apresentado não cumpriram com o disposto nos nº 3 e 4 do art 412º do CPP,

«14º As exigências postas nos nº 3 e 4 do art. 412º do CPP quanto á impugnação da matéria de facto não são meramente formais, traduzem um ónus que impende sobre o recorrente, não podendo aquele ónus de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga, genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre a matéria de facto.

«15º As exigências colocadas pelo nº 3 e 4 do art. 412º do CPP estão conexionadas com a inteligibilidade e concludência da impugnação da matéria de facto,

«16º E com o respeito pelo princípio do contraditório, pois só assim se pode, em sede de resposta á motivação apresentar um contributo para o julgador.

«17º Em consequência, se for entendimento que o recurso apresentado pelas arguidas ataca a matéria de facto tida por provada em 1ª instância, o que apenas se concede por dever de patrocínio, o recurso destas deveria cumprir o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.

«18º Não tendo sido apresentado naqueles moldes, deveria ter sido rejeitado nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 420º do CPP.

«19º O recurso apresentado pelas arguidas, na sua forma vaga e genérica, limita-se a por em causa o principio da livre apreciação da prova, art. 127º do CPP

«20º Pelo que, não cumprindo com o disposto nos nº 3 e 4 do art 412º do CPP, não se pode considerar impugnada a decisão sobre matéria de facto por parte do recurso apresentado pelas arguidas

«21º Pelo que aqui se teria de concluir pela violação do disposto nos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP, com a consequência de também se considerar que o acórdão da Relação padece de excesso de pronuncia quanto á alteração da decisão sobre a matéria de facto, e em consequência, pedir a sua nulidade nos termos da alínea c) nº 1 art. 379º do CPP.

«22º O colectivo de juízes que decidiu em 1ª instância fundamentou devidamente a sua decisão, indicando as razões e as suas convicções face á prova produzida,

«23º Não existe nenhum vicio no texto da decisão de 1º instância, nem por si nem conjugado com as regras da experiência comum, que permitisse á Relação, nos termos do nº 2 do art. 410º do CPP alterar a decisão da matéria de facto.

«22º (1) A decisão da Relação de alterar a matéria de facto provada é uma violação do princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP.

«23º O acórdão da Relação exorbita de novo os seus poderes de conhecimento e de decisão quando reputa de insuficientes, os elementos que a 1ª instância recolheu para caracterizar a «astúcia» empregue enquanto elemento do tipo de crime,

«24º Com efeito, nas conclusões apresentadas no recurso das arguidas, nenhuma referencia é feita quanto a este ponto pelas arguidas,

«25º Mas, não se deixará de referir que a Relação não ajuizou bem a situação quando considerou não existirem suficientes factos provados na sentença da 1ª instância para preencher o tipo legal de crime em que aquele tribunal condenou as arguidas, designadamente quanto ao elemento «astúcia».

«26º No seu douto acórdão, a Relação começa por afirmar a existência de um dever de informação das arguidas para com os assistentes quanto aos aspectos fundamentais do negócio que gizava com aqueles

«27º Mas posteriormente coloca este dever de informação num plano subalterno face aos denominados mecanismos de auto tutela dos particulares, que para melhor concretizar, e pensando traduzir o pensamento da relação, - uma obrigação dos particulares enquanto parte de um negócio de procurar a informação indispensável ao negócio.

«28º Sem cuidar muito de analisar todas as implicações que a anterior afirmação produziria, seria até possível concordar com aquela conclusão da Relação se estivéssemos perante uma violação do dever de informação negligente, descuidada,

«29º Mas já não é possível aceitar a conclusão da Relação se essa violação do dever de informação é deliberada, intencional, pensada, dolosa,

«30º Esse silêncio cirúrgico, deliberado das arguidas, ocultando dos assistentes informação relevante quanto ao despejo do estabelecimento que aqueles pretendiam adquirir, não pode deixar de ser visto como revelando um comportamento astucioso, que visou não afastar os assistentes do negócio,

«31º E essa omissão deliberada da informação acabou por determinar a concretização do negócio

«32º Ao decidir como decidiu sobre este ponto o acórdão violou o disposto nos art. 217º e 218º do Cód Penal.

«33º Mas a admitir, o que apenas por dever de patrocínio se admite, que o acórdão que agora se recorre não violou o disposto nos art. 412º nº 1, 3 e 4 do Cód Proc. Penal e nº 3 do art. 684º do Cód. Proc. Civil sendo em consequência nulo, e que por isso a matéria de facto considerada como provada é a que a resulta deste acórdão.

«34º Ainda assim decidiu mal o acórdão de que se recorre, ao absolver as arguidas da prática do crime e do pedido cível formulado.

«35º E ao decidir mal violou o disposto no art. 217º e 218º do Cód. Penal,

«36º Isto porque, mesmo com a nova matéria de facto provada se encontra suficiente matéria facto para preencher o tipo legal de crime, previsto e punido pelo art. 217.º e 218º nº 2 do Cód Penal

«37º E assim manter a condenação das arguidas, quer pela prática do crime de burla qualificada, quer do pedido de indemnização cível formulado.

1.5. Do acórdão, deste Supremo Tribunal, de 15/07/2009, é de destacar que, nele, se reconhece que as arguidas, no recurso interposto para a relação, colocaram a questão de facto.

Do que é elucidativo o que passamos a extractar:

«(…)

«O acórdão recorrido encarou o recurso das arguidas como se estivesse perante uma verdadeira, própria e correcta impugnação de matéria de facto, como de resto resulta da forma como abre a discussão do tema proposto no recurso: “Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto”.

«A apelidada impugnação de facto consistiu, como resulta da motivação e das conclusões do citado anterior recurso, na mera manifestação de discordância das arguidas com o decidido pelo Colectivo de Vila do Conde, a nível de fixação da matéria de facto.

«As arguidas, na verdade, imputam erro de julgamento, como se vê do que expõem logo a abrir a motivação, na parte referente aos factos: «No que tange à matéria de facto dada como provada, foi, salvo o devido e maior respeito, objecto de análise insuficientemente crítica, pelo que não andou bem o Colectivo de juízes “a quo”».

«De imediato, refere-se na motivação «Relativamente ao facto e), (…) não se vislumbra da prova produzida como é que o colectivo de juízes do tribunal “a quo” chegou a tal conclusão…».

«Ao longo da motivação, repetem-se os exemplos do exercício do estilo impugnatório das recorrentes, que, a par e passo, vão somando os pontos de discordância em relação ao que ficou provado e ao modo como o foi, o que é feito, ora opinando sobre a bondade das conclusões a que chegou o tribunal, como quando referem a fls. 426 «Em relação aos factos g), h) e i), é interessante a conclusão do tribunal “a quo” pois que a testemunha Apolinário Gonçalves disse que …, as restantes testemunhas … para além de dizerem que…», ora invocando depoimentos de testemunhas prestados em sede de inquérito e cotejando-os com os prestados em audiência de julgamento, como ocorre a fls. 426/7, ora ainda referindo declarações da assistente em julgamento, incluindo o que disse a instâncias, fazendo citações das mesmas, o mesmo se passando com depoimento do assistente - fls. 428 -, limitando-se as arguidas a referências genéricas, sem referência a suporte técnico, enfim, alinhando citações, que consubstanciam puro exercício de manifestação de discordância em relação ao que foi a convicção do Colectivo, pretendendo fazer vingar/prevalecer os seus pontos de vista, imputando uma errada valoração da prova produzida.

«A fechar a motivação, deixam as arguidas expresso o modus operandi processual usado, ao afirmarem, a fls. 433: «No nosso entender não ficou provado que a conduta das arguidas preenchesse os elementos objectivos e subjectivos do crime de Burla Qualificada. Segundo a nossa humilde opinião, há por assim dizer um erro na apreciação da prova, apresentando-se como fundamentação e bases da matéria de facto provada factos que em plena audiência foram relatados de forma exacerbada, criando uma realidade distinta da verdade desses mesmos factos» - realce nosso.

«Esta discordância das arguidas em relação ao que ficou provado vem sintetizada nas conclusões, maxime, pela forma que segue, com realces (sublinhados) naturalmente nossos:

«3. O tribunal “a quo” não andou bem ao valorar os depoimentos dos Assistentes e das testemunhas, nomeadamente quanto ao facto de só terem conhecimento que o «o Bica estava ao passe» por intermédio de terceiros.

«4. As testemunhas nada disseram de relevante relativamente à formalização do negócio em concreto.

«5. O tribunal “a quo”, deu credibilidade ao depoimento da testemunha EE, que alterou o seu depoimento em relação ao prestado em inquérito.

«14. Há um desajustamento entre a matéria de facto dada como provada e a prova realizada em audiência de julgamento.

«O que verdadeiramente estava posto à discussão pelas arguidas no recurso por si interposto da decisão do Colectivo de Vila do Conde era a imputação ao acórdão então recorrido de errada valoração da prova produzida na audiência de julgamento, o que foi feito fora do quadro de uma verdadeira e correcta sindicância da matéria de facto, num exercício impugnatório possível, ou com imputação de verificação de vícios decisórios, ou com uma correcta e adequada impugnação da matéria de facto, centrando as arguidas a sua pretensão de cognição pelo tribunal superior, àquilo a que chamam «um desajustamento entre a matéria de facto dada como provada e a prova realizada em audiência de julgamento» - fls. 432 do recurso apresentado -, afirmação levada pelas recorrentes à conclusão 14ª, sendo que, no seu entender, «há por assim dizer um erro na apreciação da prova» - fls. 433 – opinião expressa que, contudo, as arguidas não levaram às conclusões.»

A questão que a este Tribunal, então, se colocou, foi a de saber se:

«1º - Estaremos perante uma autêntica impugnação da matéria de facto;

«2º - Se é possível no contexto concreto do caso apresentado à Relação, e tal como o foi, no seu expresso sentido, alcance e contornos, reapreciar o decidido a esse nível, procedendo a modificação da matéria de facto e retirando daí a Relação as consequências que conduziram a absolvição das arguidas, num quadro em que se excede a vinculação temática do recurso.»

Vindo-se, a dado passo, a observar:

«Há que ter em consideração que de entre as vias possíveis de impugnação da matéria de facto, no anterior recurso as arguidas abdicaram de o fazer nos termos do artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP (e mesmo aqui, há que relembrar que a impugnação da matéria de facto só pode proceder quando o recorrente, tendo por base o raciocínio lógico e racional feito pelo tribunal, indica provas que imponham decisão diversa da recorrida), e nem houve sequer invocação dos vícios decisórios, com os estreitos limites de cognição por parte do tribunal superior, que decorrem dessa opção.

«Como é sabido, a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, constitui a área por excelência, a hipótese única, em que se verifica o duplo grau de jurisdição em matéria de facto; dela abrindo mão, não podem alcançar-se resultados que poderiam ser obtidos se fosse aquela a opção assumida.

«Não obstante, o tribunal recorrido avançou na cognição, conhecendo “ultra vel extra petitum”, em rigor, apreciando matéria não constante das conclusões, não havendo qualquer dúvida quanto ao rotundo não cumprimento por parte das arguidas do ónus decorrente dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º, como expõem os recorrentes nos pontos focados nas conclusões 7ª, 11ª, 12ª, 13ª,15ª,16ª,18ª, 20ª, 21ª, 23ª.

«E conheceu da matéria de facto, não através de referências concretizadas a passagens constantes de suportes magnéticos, nunca referenciados pelas arguidas, mas antes de citações de depoimentos de testemunhas, como II, JJ e MM, declarações das arguidas Amélia e mãe, CC, e dos assistentes, com várias referências a excertos da transcrição, que são reproduzidos, e reportando-se a páginas onde se encontravam as transcrições.

«O Tribunal recorrido incorreu em excesso de pronúncia, estabelecendo o artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

«Considerando a hipótese de o tribunal recorrido entender que é viável o convite para aperfeiçoamento das conclusões, deverá fazê-lo, como o poderia/deveria ter feito aquando da anterior intervenção, pois o novo regime estava em vigor à data.

«Estabelece o n.º 3 do artigo 417º do Código de Processo Penal: «Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada».

«Aceite o convite, deverá então ser notificada a pretensão recursória consertada aos assistentes, a fim de que a ela se possam opor, como decorre do n.º 5 do mesmo preceito «No caso previsto no n.º 3, os sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso são notificados da apresentação de aditamento ou esclarecimento pelo recorrente, podendo responder-lhe no prazo de 10 dias».

«Assim se cumprirá o contraditório, o princípio de lealdade processual e o princípio de igualdade de armas, sabido que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, caso em que o tribunal emitirá pronúncia sobre uma questão concretamente colocada e com observância dos ditames legais, a que a outra parte teve a possibilidade de responder, contribuindo para a conformação do objecto do recurso, não constituindo surpresa a decisão substitutiva/alternativa que então vier, com toda a legitimidade, a ser tomada e independentemente do seu sentido.»

Para se concluir:

«No recurso interposto para a Relação do Porto as arguidas limitaram-se a manifestar a sua discordância relativamente à matéria de facto dada por provada.

«De forma expressa (e mesmo implícita) não invocaram qualquer dos vícios decisórios previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

«Não tencionaram lançar mão do instrumento reactivo concedido pelo artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.

«Não procuraram sindicar a matéria de facto fixada pelo Colectivo pelas duas vias possíveis.

«Ao tribunal restava a verificação oficiosa dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

«Fora desse quadro, tal como se apresentava o recurso, pareceria conduzir à manifesta improcedência e rejeição.

«Diverso foi o entendimento da Relação que reviu a decisão ao nível da matéria de facto, tendo por base as declarações documentadas e transcritas, modificando amplamente a matéria de facto com a consequência de absolvição das arguidas.

«O que não pode deixar de constituir surpresa para os assistentes, que não haviam sido confrontados com um tal objecto de recurso, a que não puderam opor os seus pontos de vista e dar contributo para a conformação global do tema a decidir, com o que claramente foi violado o princípio do contraditório.

«Porque não feito o convite de aperfeiçoamento ao abrigo do disposto no artigo 417º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a não observância das regras do n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP afecta os direitos dos recorridos.

«Verifica-se, assim, excesso de pronúncia face ao tema a decidir, com a conformação que lhe havia sido dada pelas recorrentes, extravasando o acórdão recorrido os limites da vinculação temática, do concreto objecto de recurso submetido a reapreciação, do quadro temático submetido à cognição proposta pelas recorrentes e que era o único apresentado aos recorridos.

«Tal excesso de pronúncia consubstancia nulidade do acórdão recorrido, nos termos do artigo 379º, n.º1, alínea c), segmento final, por força do artigo 425º, n.º 4, do Código de Processo Penal.»

1.6. Como acima dissemos, na sequência do acórdão deste Tribunal, o Exm.º Desembargador-relator formulou às recorrentes/arguidas o convite a que se refere o n.º 3 do artigo 417.º do CPP, a que elas responderam, apresentando as conclusões transcritas em 1 7., das quais os recorrentes/assistentes foram notificados, apresentando a sua resposta, sintetizada em I 8.

1.7. No acórdão do Tribunal da Relação do Porto, agora objecto de recurso, conheceu-se da impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, nos termos que passamos a reproduzir:

«Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto

«14. As recorrentes [arguidas] impugnam a decisão que deu como provados os factos constantes das alíneas e), f), g), h), i), j), q), r), e s) do acórdão recorrido. Alegam aspectos em que os depoimentos prestados não só não apoiam a decisão tomada como a até a contradizem. Abordaremos a questão em bloco.

«15. São muito débeis as provas que permitem recriar as negociações entre os assistentes e as arguidas. Se é verdade que o segredo é a alma do negócio, no caso dos autos esta característica vem fortemente sublinhada pela forma reservada como os assistentes geriam as suas aquisições comerciais [ver depoimentos de II e JJ]. Assim, quanto aos termos precisos das negociações travadas e face à inexistência de elementos documentais, não há muito mais a esperar para além dos depoimentos das partes directamente envolvidas — sendo certo que mesmo estes terão de ser lidos com especiais cautelas dados os evidentes e prementes interesses de cada uma na caracterização do negócio.

«16. Em primeiro lugar, parece inequívoco que a arguida DD nunca participou nas negociações havidas. Vão nesse sentido as suas próprias declarações [Alguma vez falou com estas pessoas [assistentes]? "Nunca na vida. Nunca. Conheci essas pessoas quando foi para eu... quando foi para eu assinar o contrato de quotas (...) Quem tratava dos assuntos relacionados com o estabelecimento era só com a minha mãe (...) A minha mãe precisava de uma pessoa, sócia, pronto. Pediu-me a mim e foi o que eu fiz, Sr. Meritíssimo. Eu apenas... tinha o meu nome" ~ fls. 553-554]; as declarações da mãe [CC: "e/a nunca tratou de nada, ela não sabia absolutamente nada, só simplesmente, eu a quem comprei a sociedade, eu também tinha que formar uma sociedade e então, devia-se meter uma pessoa de fora, meti a minha filha como sócia" [fls. 541]]; e até as declarações dos assistentes [GG: Porque a mãe, porque a Sra que tratava do negócio era a mãe, não era a filha [fis. 567] (...) Eu não disse nada à filha, eu não tive conversas, as conversas sempre que houve foram sempre com a mãe (...) A filha não se meteu em nada, simplesmente telefonou à mãe e a mãe é que aparecia sempre para vir falar comigo" [fis. 568]; HH: "Essa [CC] é que mandava (...) E as conversas eram sempre com essa Sra... Ela é que (...) falava. Embora a outra estivesse e tal, e concordasse e chamasse, mas quem mandava no assunto era essa Sra. CC" [fis. 594]]. A ténue insinuação do assistente à presença e à concordância da recorrente DD não tem consistência nem merece credibilidade face à clareza do depoimento da mulher, assistente GG, que abertamente a excluiu, sendo certo que eia patenteou, ao longo de todo o depoimento, uma grande objectividade, em contraste com a falta de coerência e de relevância concreta do depoimento daquele [em linha com a aparente subalternização dele face à mulher, na dinâmica do negócio],

«17. Em segundo lugar, não é possível afirmar com segurança [pelo menos com a segurança de que o acórdão se arroga] qual a natureza do contrato acordado entre os assistentes e as arguidas. Desde logo, porque o contrato foi preparado e redigido pelo advogado dos assistentes, facto que o acórdão omite [GG: "O meu marido foi a um advogado para fazer um papel em como ele lhe ia entregar os dez mil contos [fls. 572] (...) era um advogado de que já tinha feito certos trabalhos para mim e de que eu confiei (...) Era o vosso advogado? Sim (...) era um advogado que eu já conhecia e eu já me tinha feito outros passes de outras casas de que eu já tinha [fls. 573] (...) O advogado é que escreveu e deu o papel ao meu marido, já escrito [fis. 574] (...) o Dr. LL já sabia o que é costume fazer... ele já me tinha feito um contrato dum outro café" [fis. 585]; HH: "Falei com um advogado (...) era um advogado que já me tinha tratado de outras coisas"' fls. 598].

«18. É óbvio que a negociação teve a sua fase decisiva quando passou a intervir o advogado dos assistentes e este entabulou contactos com a arguida CC. Sobre os termos dessa intervenção, nada se conhece - para além de se saber que os assistentes demandaram o advogado em acção civil que corre os seus termos, atribuindo-lhe responsabilidade por deficiente realização do mandato [ver fotocópia da respectiva petição iniciai a fls. 370-384]. Ainda assim, a montante dessa intervenção, não se vê que seja possível determinar, com a segurança que o Direito exige, a natureza do contrato apalavrado entre as partes. Com as cautelas impostas pela intensidade do envolvimento dos participantes e pelas percepções jurídicas que o decurso do tempo lhes trouxe, anotamos que a arguida CC refere que acordaram a cessão de quotas, salientando sempre a relevante participação dos assistentes e do seu advogado na caracterização e tipificação do negócio de tal forma que em momento algum dá conta de ela ter imposto, exigido ou sequer sugerido determinado contrato ["Deixei tudo ao encargo deles, eles é que trataram do contrato com o advogado deles, eu simplesmente, Merítissimo, só me sujeitei a assinar a minha quota (...) Eu simplesmente 'assujeitei-me' a vender-lhes a sociedade [fls. 541] (...) Ó Merítissimo, isso estava tudo nas mãos do advogado dessas pessoas e eu estava, prontos, o que eles decidissem, estava decidido [fls. 547] (...) Eu não sei o que eles pretendiam" [fls. 543] (...) Merítissimo, eu apenas falei com o Dr. LL pelo telefone. O Dr. LL é que se encarregou de fazer tudo [fls. 561] (...) O Dr. LL, Meritíssimo, nunca me perguntou nada, nunca (...) Eu simplesmente, Meritíssimo, assinei. Eu não fiz absolutamente nada. Nunca ninguém me perguntou nada (...)" [fls. 562].

«19. Esta postura é consentânea com uma certa pressa na venda por parte da arguida, facto que ela deixa subentendido na primeira intervenção [fls. 541, quando alude à ruptura do menisco] e a que se referem, também por meias palavras, as testemunhas [por exemplo, MM - fls. 632 e 634].

«20. Já da parte dos assistentes verificamos uma grande insistência e, agora, um grande rigor na caracterização do contrato que alegadamente acordaram com a arguida CC. Verificamos também incoerências e desconexões que nos levam, ao abrigo das regras da experiência comum, a retirar às suas declarações a relevância que lhes deu o tribunal de 1ª instância. Como veremos mais à frente, trata-se, aliás, de um aspecto que, ao contrário da preponderância que teve em audiência, não é decisivo para a tipificação do crime de burla pelo qual as arguidas vêm condenadas. Mas por ora, cingimos à mera apreciação da decisão da matéria de facto. Assim [GG - Assistente: "Nunca ouvi falar em quotas, nem... e digo-lhe mais, Sr. Dr. Juiz, eu não sabia, e eu que já tive sete cafés, toda a minha vida trabalhei nisso e nunca ouvi falar que existiam cafés com quotas (...) eu ainda nem sei o que é um contrato de quotas (...) [fls. 569] Sr. Dr. Juiz, já tenho vinte e cinco anos de trabalho e sei o que é passar um café e o que é trespassar e eu estou muito habituada nisso" [fls. 576]; HH - Assistente: "Juiz: Queria comprar o passe do café, foi? [pergunta sugestiva com resposta condizente] Resposta: O trespasse daquele café (...)

«Juiz: O Sr. disse ao Dr. LL o que é que queria, que queria comprar? «Resposta: Disse que queria, queria aquela casa [fls. 598]].

«21. Ou seja: os assistentes não apresentam um discurso coerente e são ambos incapazes de especificar os exactos termos da negociação travada com a arguida CC. O laconismo é ainda maior após a entrada em cena do seu advogado, incumbido como foi de concretizar o negócio - no que não sofreu qualquer oposição ou contrariedade por parte da arguida CC.

«22. Mas há mais; é significativo que os assistentes não tenham lembrança dos termos em foi negociado o pagamento da renda, elemento essencial do contrato que invocam [GG - Assistente: (...) eu parece-me que era ela que continuava, ou éramos nós? Não sei (...) [fls. 578]]; - que não se lembrem sequer de ter apurado o montante da renda [GG: ela nunca me disse [montante da renda] [fls. 578]; E depois da observação do Juiz "Diz que tem vinte e cinco anos disto, que passou não sei quantos cafés (...) e faz um negócio destes, nem sabe quanto é que era a renda, quem era o senhorio" responde: "Eu sabia quanto e que era a renda na altura (...) só que agora já não me lembra fls. 578-5793; HH - Assistente: "Não, porque, como era... aquela casa já existia há muitos anos e eu vi que a coisa e tal, pensei sempre que o aluguer que nunca fosse um grande aluguer" [fls. 613]].

«23. Também a decisão em torno do conhecimento da acção de despejo, por falta de pagamento de rendas, merece algumas rectificações. Em primeiro lugar, o acórdão recorrido não levou em consideração a alegação que os assistentes produziram na acção civil interposta contra o seu advogado. Sobre o primeiro contacto que com ele tiveram relativamente a este assunto, dizem os assistentes: "Nessa consulta, o R. [advogado] reconheceu o nome do café e informou os AA. [assistentes] de que supunha existir, para esse local, uma acção de despejo" - artigo 8,°, da petição iniciai fls.371]. Portanto, os assistentes - conforme e!es próprios reconhecem - não ignoravam a possibilidade de estar pendente a acção de despejo, conforme informação prestada pelo seu advogado. Aliás, é o próprio assistente que acaba por reconhecer a possibilidade de pagarem as rendas em atraso [HH: "que ela [CC] nos tivesse dito: 'Olhe que vocês agora pagaram mas vocês arranjem dinheiro para pagar ao senhorio' e nós imediatamente tínhamos interesse, pagaríamos ao senhorio" [fls.604]], -

«24. Sobre o conhecimento da sentença de despejo, por parte das arguidas, aquando da outorga do contrato, importa considerar que, perante as dúvidas manifestadas [fls. 545] e à falta de documento equivalente ao de fls. 391 [fotocópia do comprovativo da citação postal], tendo em consideração que a carta registada foi expedida a 8 de Março, sexta-feira, e o contrato subscrito na segunda-feira seguinte, cremos que não se pode dar como "provado" tal conhecimento efectivo. «25. De acordo com as observações feitas, as contradições evidenciadas impõem uma ampla modificação da decisão da 1.ª instância, que envolve não só as alíneas referidas pelas recorrentes mas também, como consequência directa e necessária daquelas e com vista à harmonização da decisão, as alíneas q) e t).

«26. Assim, ao abrigo do disposto no artigo 431.°, alínea b), do Código de Processo Penal, determinamos a modificação da decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto com:

«- a exclusão das alíneas i), j), p), s) e t) dos "Factos Provados", que transitam para os "Factos Não Provados")

«- a alteração das alíneas e), f), g), h), q), r), que passam a ter a seguinte redacção:

«e) As arguidas decidiram negociar o referido estabelecimento comercial de café e pastelaria; «f) Os assistentes tomaram conhecimento da vontade de negociar o estabelecimento e, mostrando interesse no negócio, deslocaram-se diversas vezes àquele estabelecimento e aí se reuniram com a arguida CC, sendo que, em algumas dessas ocasiões, a arguida DD encontrava-se presente, no estabelecimento;

«g) Nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2002, os assistentes reuniram-se diversas vezes com a arguida CC - sendo que, em algumas dessas ocasiões, a arguida DD encontrava-se presente, no estabelecimento - a quem manifestaram interesse na aquisição do estabelecimento comercial e com quem negociaram o preço e as condições de pagamento; «h) Durante esse período de tempo os assistentes, com conhecimento e autorização da arguida CC, deslocaram-se ao local para estudar um conjunto de obras que permitiriam uma actualização do estabelecimento comercial;

«q) Na data da celebração daquele contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes às arguidas já estas tinham conhecimento da existência da acção e da subsequente sentença de despejo;

«r) Durante todo o período em que ocorreu a negociação a arguida CC não referiu a existência da acção de despejo; e,

«- o aditamento aos "Factos Não Provados" os seguintes segmentos:

«que as arguidas decidiram dar de trespasse o referido estabelecimento comercial;

«que os assistentes mostraram interesse no trespasse e só no trespasse do estabelecimento; «que a arguida DD tivesse qualquer intervenção nas negociações mantidas entre os assistentes e a arguida sua mãe, CC;

«que na data da celebração do contrato e da entrega dos cheques para início de pagamento do preço acordado por parte dos assistentes às arguidas já estas tinham conhecimento da sentença de despejo.»

2. Como dispõe o artigo 434.º do CPP, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Por ser assim, o acórdão da relação recorrido, enquanto conheceu de facto, alterando a decisão da 1.ª instância em matéria de facto, está subtraído a uma apreciação de mérito deste Tribunal.

No estrito âmbito dos seus poderes de cognição, o que este Tribunal pode apreciar é se a relação, ao conhecer de facto e com a amplitude com que conheceu de facto, não se vinculou aos pressupostos formais, legalmente enunciados, que condicionam os poderes de cognição da relação em matéria de facto.

E é, efectivamente, essencialmente neste quadro, que os recorrentes, por via do recurso, reclamam a intervenção deste Tribunal.

Com efeito, como emerge das conclusões que formularam – pelas quais se define e delimita o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, do CPP) –, o que os recorrentes questionam é que a relação tivesse exercido os seus poderes de cognição em matéria de facto, do modo como o fez.

Servindo-se de três vias:

– a do momento em que foi formulado o convite às recorrentes/arguidas para aperfeiçoarem as conclusões do recurso, antes apresentadas;

– a de as conclusões apresentadas, em resposta a esse convite, continuarem a não obedecer ao preceituado nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP; e

– a de as conclusões apresentadas, em resposta a esse mesmo convite, não se conterem no âmbito da motivação.

3. Serão essas as questões que passaremos a apreciar e decidir.

3.1. Sobre a motivação do recurso e conclusões, estatui logo o n.º 1 do artigo 412.º do CPP que «a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido».

A motivação compreende, portanto, dois ónus: o de alegar e o de concluir.

O recorrente deve começar por expor todas as razões da impugnação da decisão de que recorre (enunciar especificamente os fundamentos do recurso) e, depois, indicar, de forma sintética, essas mesmas razões (formular conclusões em que resume as razões do pedido).

Como, com plena actualidade, ensinou Alberto dos Reis (2) , a propósito do artigo 600.º do Código de Processo Civil (na redacção do artigo 8.º do Decreto n.º 38387, de 8-8-951):

«Entendeu-se que, exercendo os recursos a função de impugnação das decisões judiciais (...), não fazia sentido que o recorrente não expusesse ao tribunal superior as razões da sua impugnação, a fim de que o tribunal aprecie se tais razões procedem ou não. E como pode dar-se o caso de a alegação ser extensa, prolixa ou confusa, importa que no fim, a título de conclusões, se indiquem resumidamente os fundamentos da impugnação (...).

«(...). No contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: Que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados, e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, no final da minuta.

«É claro que, para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»

As conclusões devem ser, por conseguinte, um resumo explícito e claro dos fundamentos do recurso, indicando, com precisão, as razões por que se pede o seu provimento.

3.2. Como tem sido repetidamente afirmado, são as conclusões da motivação que definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior. «São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem de apreciar.» (3).

Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, com a seguinte a redacção, à data em que foi apresentado o recurso das recorrentes arguidas (4) :

«3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

«a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

«b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;

«c) As provas que devem ser renovadas.

«4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.»

E com a seguinte redacção, resultante da 15.ª alteração ao CPP, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto:

«3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

«a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

«b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

«c) As provas que devem ser renovadas.

«4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.»

As indicações exigidas pelos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto.

Pois, como tem sido repetidamente afirmado, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância (5) .

O uso pela relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve, portanto, restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.

Daí a imprescindibilidade de os recorrentes indicarem concretamente os pontos de facto que se encontram incorrectamente julgados e especificarem as provas que impõem decisão diversa, em relação a esses pontos de facto.

E não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina. Por aí, se limita, ainda, o recurso em matéria de facto aos casos de valoração de provas proibidas ou de valoração das provas admissíveis em patente desconformidade com as regras impostas para a sua valoração.

3.3. Estando em causa uma insuficiência ou deficiência formal das conclusões extraídas da motivação, isto é, uma deficiente condensação da própria motivação, a qual, em si mesma, contém os elementos que proporcionariam a formulação de conclusões que cumprissem as especificações a que aludem os n.os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, foi solução rejeitada pelo Tribunal Constitucional, em múltiplas decisões (6) .

Levando o legislador a introduzir, no actual n.º 3 do artigo 417.º do CPP, a obrigatoriedade de convite para correcção das conclusões:

«3. Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.os 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.»

Este convite pressupõe que não se esteja perante uma deficiência substancial da própria motivação, que necessariamente se reflectirá em deficiência substancial das conclusões.

Quer dizer, e quanto ao incumprimento das indicações dos n.os 3 e 4 do artigo 412.º – as, agora, em causa –, que não seja caso de a própria motivação não delimitar o âmbito da impugnação em matéria de facto (ficando-se por uma impugnação genérica da decisão proferida sobre matéria de facto, sem concretização dos pontos de facto que se encontram incorrectamente julgados) e, portanto, não definir o objecto do recurso, nem expressar os motivos da impugnação através da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

Não se estando perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiências substanciais da própria motivação, o princípio constitucional do direito ao recurso em matéria penal não implica que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto. Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso, como, ainda, o legislador reconheceu ao estatuir que o aperfeiçoamento das conclusões, na sequência do convite formulado nos termos do n.º 3 do artigo 417.º do CPP, não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (n.º 4 do artigo 417.º do CPP).

3.4. Ora, analisando-se a motivação apresentada pelas recorrentes/arguidas – na base da qual elas formularam as primitivas conclusões e as conclusões apresentadas na sequência do convite ao aperfeiçoamento – não podem subsistir dúvidas sobre elas visarem a impugnação da decisão proferida, em 1.ª instância, sobre matéria de facto, por erro de julgamento (erro na apreciação da prova).

A motivação contém a especificação dos pontos de facto que as recorrentes/arguidas consideram incorrectamente julgados, referindo-se, expressamente, aos concretos factos das alíneas e), f), g), h), i), j), p), r) e s), dados por provados.

As recorrentes/arguidas, na crítica à convicção adquirida pelo tribunal, quanto aos factos dados por provados, que especificaram como incorrectamente julgados, e que relevaram para a decisão condenatória, convocam a prova produzida e examinada em audiência para, com base nela, ensaiarem a demonstração de que não era suficiente para nela se fundar uma convicção de certeza quanto a tais factos.

A individualização das provas que imporiam uma decisão diversa da recorrida, não constituindo, embora, um modelo de boa técnica, não está ausente da motivação. As recorrentes/arguidas não só destacam prova documental examinada em audiência – o contrato de cessão de quotas – como, explicitamente, convocam a prova por declarações e testemunhal produzida em audiência – as suas próprias declarações e as declarações dos assistentes e os depoimentos das testemunhas A... G..., A... da S..., M... C..., J... M..., M... C... e EE – para tentarem evidenciar que a compreensão conjugada e articulada de todos esses meios de prova, produzidos e examinados em audiência, não era adequada a sustentar uma convicção de certeza quanto aos concretos factos dados por provados que consideram incorrectamente julgados.

O que as recorrentes/arguidas se esforçam por demonstrar, na motivação, é que a convicção do tribunal se formou num sentido não consentido pela prova produzida e examinada em audiência, sendo, por isso mesmo, uma convicção subjectiva e arbitrária,

Daí que a sua impugnação em matéria de facto passe por convocar toda a prova produzida e examinada em audiência a que, expressamente, fazem referência, em bloco, não deixando, porém, de extractar (transcrever) passagens das declarações e dos depoimentos prestados em audiência, em abono da tese que sustentam. Modo de cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 412.º do CPP que não se mostra absolutamente desadequado, na consideração de que o processo subiu à relação acompanhado da transcrição integral da prova produzida em audiência.

3.5. Do que decorre que a motivação apresentada pelas recorrentes/arguidas contém a enunciação das razões da impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, com suficiente individualização e especificação dos fundamentos do recurso, nesse particular.

Ou seja, a motivação delimita o âmbito da impugnação em matéria de facto, com concretização dos pontos de facto que se encontram incorrectamente julgados, e, assim, define o objecto do recurso, expressando os motivos da impugnação através da indicação das provas produzidas e examinadas em audiência que imporiam uma decisão diversa quanto a tais concretos pontos de facto.

Por isso, constando da motivação os elementos necessários ao cumprimento dos ónus impostos pelos n.os 3, alíneas a) e b), e 4 do artigo 412.º do CPP, e a considerar-se que as conclusões inicialmente formuladas não os cumpriam, de forma suficiente, às recorrentes/arguidas teria de ser dada a oportunidade de completar ou esclarecer as conclusões apresentadas, formulando-se-lhes, convite, para tal, em observância do disposto no n.º 3 do artigo 417.º do CPP.

O que, bem vistas as coisas, já é afirmado no anterior acórdão, deste Tribunal, de 15/07/2009, quando, a dado passo, se diz que, «Considerando a hipótese de o tribunal recorrido entender que é viável o convite para aperfeiçoamento das conclusões, deverá fazê-lo, como o poderia/deveria ter feito aquando da anterior intervenção, pois o novo regime estava em vigor à data» (destaque nosso).

É certo que este Tribunal não vinculou a relação à formulação do convite para aperfeiçoamento das conclusões mas, por outro lado, também não inviabilizou a hipótese de a relação exercer esse poder/dever, no que parece estar implicado o pressuposto de que a motivação constituiria substrato idóneo à formulação de conclusões que cumprissem as indicações legais.

3.6. É depois de este Tribunal ter anulado o acórdão da relação, de 01/10/2008, que o desembargador-relator, na sequência dele, deu cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 417.º do CPP.

E já só o poderia fazer, justamente, nesse momento.

Porque, antes, pura e simplesmente, não teve as conclusões formuladas como impeditivas do exercício pela relação dos poderes de cognição em matéria de facto, tal como foram exercidos.

E porque, depois, o acórdão deste Tribunal impôs o reconhecimento de que tal como as conclusões tinham sido formuladas esses poderes de cognição não podiam ter sido exercidos, tal como o tinham sido.

Quer dizer, “o momento” em que o desembargador-relator obervou o disposto no n.º 3 do artigo 417.º do CPP é a consequência necessária do acórdão deste Tribunal, pelo que, quando os recorrentes/assistentes põem em causa a possibilidade de as recorrentes/arguidas serem convidadas para corrigir as conclusões, no momento em que o foram, estão, afinal, a reagir à decisão deste Tribunal, de ter deixado ao critério da relação o uso dessa possibilidade.

Por outro lado, se, em regra, a formulação do convite para formulação ou correcção das conclusões ocorrerá no momento processual a que se refere o n.º 1 do artigo 417.º do CPP («Colhido o visto do Ministério Público o processo é concluso ao relator para exame preliminar»), a consideração do direito ao recurso, constitucionalmente consagrado, não suporta o entendimento de que, para além desse momento e até à decisão final da causa, se deva ter por precludida a possibilidade de o convite vir a ser formulado; ou seja, quando a falta ou deficiência das conclusões não seja imediatamente detectada, no primeiro momento em que o processo é concluso ao relator, para exame preliminar, nem por isso o relator está impedido de, até à decisão da causa, detectando tais falta ou deficiência, convidar o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões.

Na medida em que o acórdão da relação, de 01/10/2008, foi anulado pelo acórdão deste Tribunal, de 15/07/2009, não se mostra sustentada a pretensão dos recorrentes/assistentes de que já estava ultrapassado o momento processual em que seria admissível a formulação de convite às recorrentes/arguidas para correcção das conclusões, por já ter sido proferido o acórdão da relação.

Sendo, neste ponto, de realçar o que, a propósito, se afirmou no acórdão da relação:

«Questão prévia 2: admissibilidade do convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação de recurso.

«13. Os assistentes contestam a oportunidade do convite ao aperfeiçoamento das conclusões. Ora, tal convite surge na sequência do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça e mostra-se, naturalmente, conforme à Lei. Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça declarou nulo o acórdão da Relação, pelo que, o processo regrediu precisamente à fase do exame preliminar [artigo 417.°, n.° 5, do código de Processo Penal]. Com o que improcede também esta segunda questão prévia suscitada pelos assistentes.»

Razões por que improcede a pretensão dos recorrentes/assistentes de que, no momento em que as recorrentes/arguidas foram convidadas a corrigir as conclusões, já estava ultrapassado o momento processual adequado ao cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 417.º do CPP, com a consequência de, então, já não ser admissível a formulação de convite às recorrentes para aperfeiçoarem as conclusões.

3.7. Sustentam os recorrentes/assistentes que as recorrentes/arguidas, na sequência do convite formulado nos termos do n.º 3 do artigo 417.º do CPP, persistiram na apresentação de conclusões que não observam o preceituado nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, motivo que devia ter conduzido à rejeição do recurso.

Manifestamente não têm razão, neste ponto, sendo, até, dificilmente compatível com esta pretensão a alegação de que as recorrentes/arguidas se serviram, para o aperfeiçoamento das conclusões, da própria fundamentação do acórdão da relação que veio a ser anulado, alegação que os recorrentes produziram a propósito da questão de não ser admissível o convite à correcção das conclusões no momento processual em que foi feito.

A leitura das conclusões “corrigidas”, já antes transcritas, demonstra que elas contêm a enumeração especificada dos concretos pontos de facto que as recorrentes/arguidas têm por incorrectamente julgados e a referência individualizada às concretas provas que, se adequadamente valoradas, levariam a que o tribunal não pudesse atingir uma convicção de certeza sobre esses pontos de facto. As razões por que a convicção do tribunal, expressa nos factos que as recorrentes/arguidas têm por incorrectamente julgados, se apresenta como subjectiva e arbitrária mostram-se suficientemente esclarecidas com a indicação do conteúdo específico das provas produzidas e examinadas em audiência e o sentido em que, se apreciadas pelas regras da lógica e da experiência comum, podiam ter relevado para a prova dos factos da acusação.

Em suma, as conclusões corrigidas contêm um grau de concretização suficiente do conteúdo dos meios de prova produzidos e examinados em audiência que imporiam decisão diversa da recorrida relativamente aos factos individualizados que as recorrentes/arguidas consideram incorrectamente julgados. Como tal, não só definem o objecto da impugnação da decisão sobre matéria de facto como asseguram, plenamente, um adequado exercício do contraditório.

Razão por que não pode proceder a pretensão de que as conclusões corrigidas incumprem os ónus que decorrem das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP.

Questão diferente é a da procedência da impugnação de facto, mas essa é questão cujo conhecimento nos está vedado.

3.8. Suscitam, ainda, os recorrentes/assistentes a questão de as conclusões corrigidas excederem o âmbito do admissível em sede de aperfeiçoamento, por conterem a indicação dos factos das alíneas q) e t) como incorrectamente julgados quando esses factos não estão compreendidos na motivação.

Dispõe, com efeito, o n.º 4 do artigo 417.º do CPP que “o aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação”.

Do que resulta claro que o convite ao aperfeiçoamento não pode constituir uma ocasião para o recorrente modificar o âmbito do recurso, tal como ele se encontra fixado na motivação. Portanto, as conclusões formuladas na sequência do convite estão vinculadas ao âmbito dos fundamentos do recurso já apresentado e não podem dele divergir (7) .

É indiscutível que as recorrentes/arguidas, na motivação, não fizeram constar do elenco dos factos provados, que têm por incorrectamente julgados, os constantes das alíneas q) e t) da matéria de facto dada por provada na 1.ª instância. Só os incluindo nas conclusões corrigidas. Devendo-se essa discrepância, certamente, ao facto de abundantemente se terem servido da fundamentação do acórdão da relação anulado para aprimorarem as suas conclusões, tal como os recorrentes/assistentes assinalaram.

Só que a alteração da decisão em matéria de facto, quanto a essas alíneas, não decorre do alargamento da matéria de facto impugnada efectuado na oportunidade da correcção das conclusões, mas de estrita iniciativa da relação, que entendeu alterar a decisão da 1.ª instância também quanto a esses precisos pontos de facto.

O acórdão da relação demonstra que só foi considerada como compreendida no âmbito do objecto do recurso, a impugnação da matéria de facto, relativamente às alíneas e), f), g), h), i), j), q), r), e s):

Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto

«11. As recorrentes [arguidas] impugnam a decisão que deu como provados os factos constantes das alíneas e), f), g), h), i), j), p), r) e s) do acórdão recorrido. (…)»]

E que foi por razões de coerência intrínseca da decisão que, não obstante, a relação decidiu modificar a decisão da 1.ª instância em matéria de facto também quanto às alíneas q) e t):

25. De acordo com as observações feitas, as contradições evidenciadas impõem uma ampla modificação da decisão da 1.ª instância, que envolve não só as alíneas referidas pelas recorrentes mas também, como consequência directa e necessária daquelas e com vista à harmonização da decisão, as alíneas q) e t).»]

Ou seja, em rigor, a relação desprezou o facto de as recorrentes/arguidas terem incluído nas conclusões corrigidas a impugnação de matéria de facto não contida na motivação, acabando por conhecer da matéria de facto relativa às alíneas q) e t), não por elas constarem das conclusões corrigidas mas, isso sim, em razão do dever de retirar da procedência do recurso, em relação à parte impugnada da matéria de facto, as consequências impostas relativamente à decisão proferida sobre matéria de facto, na parte afectada.

Com o que resulta prejudicada a tese dos recorrentes/assistentes de que a relação admitiu o aperfeiçoamento das conclusões em violação do disposto no n.º 4 do artigo 417.º do CPP.


III

Termos em que, por não se verificar qualquer obstáculo legal a que a relação exercesse os seus poderes de cognição em matéria de facto, nos moldes em que o fez, se acorda em negar provimento ao recurso.

Por terem decaído, cada um dos recorrentes/assistentes é condenado no pagamento de 8 UC de taxa de justiça (artigos 515.º, n.º 1, alínea b), do CPP, e 87.º, n.os 1, alínea a), e 3, do CCJ).

Supremo Tribunal de Justiça, 19/05/2010


Isabel Pais Martins (relatora)
Manuel Braz
______________________________
(1) Tal como na numeração original.

(2) Cfr. Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, 1981, p. 359.

(3) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2000, p. 335.

(4) Introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.

(5) Germano Marques da Silva, «A aplicação das alterações ao Código de Processo Penal», Forum Iustitiae, Maio de 1999, p. 21.

(6) Cfr., v.g., neste ponto, as sumariadas por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, em anotação ao artigo 417.º do CPP.

(7) Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 1142.