Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2813
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
COACÇÃO MORAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
RECURSO DE REVISTA
Nº do Documento: SJ200310160028137
Data do Acordão: 10/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2117/02
Data: 02/20/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1. Nada existe na lei que obrigue (ou sequer aconselhe) a Relação a transcrever, totalmente ou em parte, as conclusões das alegações do apelante, apenas se lhe exigindo que enuncie brevemente as questões que importa decidir e que, acima de tudo, não deixe de tratar daquelas que foram suscitadas.
2. No recurso de revista só excepcionalmente, havendo ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, é que se admite que o STJ aprecie um eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido no acórdão da Relação de que se recorre (artºs. 729º, nº. 2 e 722º, nº. 2).
3. Ao firmar (ou recusar firmá-lo) um facto desconhecido por meio de ilações extraídas através do apelo a qualquer presunção judicial, a Relação não faz outra coisa senão julgamento da matéria de facto, estando, como tal, vedado ao Supremo Tribunal de Justiça o poder de sindicar essa actuação, dado que a respectiva cognoscibilidade está completamente à margem dos poderes que lhe são conferidos em matéria de julgamento da revista.
4. A falta de prova sobre os factos quesitados, determinante de respostas de "não provado", traduz apenas uma ausência de prova relevante e não uma insuficiência de quesitação, sendo consequentemente insusceptível de justificar que o Supremo, nos termos do artº. 729º, nº. 3, do C.Proc.Civil, ordene a ampliação da matéria de facto.
5. Não se verifica a coacção moral quando a declaração negocial é obtida pela ameaça do exercício normal de um direito, o que sucede, designadamente no caso em que o declaratário afirma vir a exercer o direito de queixa criminal.
6. Havendo causa justificativa da deslocação patrimonial do empobrecido para o enriquecido não há enriquecimento sem causa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" intentou, na 2ª Vara Cível do Tribunal de Lisboa, acção declarativa, com processo ordinário, contra B, pedindo que este seja condenado a restituir-lhe de imediato a quantia de 16.500.000$00, acrescida de juros à taxa legal.
Fundamentou a sua pretensão no facto de aquela quantia ter sido por si paga ao réu sob coacção.
O réu impugnou os factos articulados pelo autor, pedindo a sua condenação como litigante de má fé.
Respondeu o autor, invocando o abuso de direito por parte do réu.
Findos os articulados, exarado despacho saneador e condensados os autos, veio a realizar-se audiência de julgamento, com decisão acerca da matéria de facto (fls. 122 e 123), após o que foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente por não provada, absolvido o réu do pedido.
Inconformado apelou o autor, tendo sido convidado, nos termos do artigo 690º, nº. 4, do C.Proc.Civil, a apresentar as conclusões em forma sintética, sob pena de se não conhecer do recurso. Apresentadas embora novas conclusões, decidiu a Relação rejeitar o recurso por haver entendido que as conclusões iam além do quadro sintético que é exigido.
Agravou o autor desta decisão, tendo-a o STJ revogado e ordenado que fosse substituída por outra que admitisse o recurso de apelação para conhecimento do seu objecto.
Conhecendo, então, do recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 20 de Fevereiro de 2003, julgou-o improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Interpôs o autor, agora, recurso de revista, pretendendo:
- a reforma, in totum, do acórdão sob recurso, ordenando-se o regresso dos autos à 1ª instância para continuação do julgamento, com formulação de quesitos novos se necessário, a fim de explicitar de vez quer quais os precisos termos do acordo de mediação em causa, quer quais os montantes efectivamente recebidos como preço dos imóveis cuja venda directa ou indirectamente o autor mediou, uma e outra questões essenciais para uma boa e correcta apreciação do feito;
- ou, se assim se não entender - o que só por hipótese se aventa, sem conceder - deverá então o acórdão aqui sob recurso ser reformado, ordenando-se a reformulação das conclusões nos termos que abaixo se sugerem, por melhor sintetizarem a efectiva posição do Apelante neste pleito:
I. Tendo o Tribunal a quo considerado não provados os quesitos 7º, 9º, 15º 21º e 27º, não obstante o especificado nas alíneas "D", "F", "G" e "H", o dado como provado nos quesitos 6º e 34º e a prova documental constante nos autos, haveria então o tribunal de dar como "provado" algum ou alguns dos quesitos dados como "não provado", assim se explicitando as precisas condições do acordo de mediação em causa.
II - O pagamento pelo autor ao réu de 16.500.000$00, a título de sobre-preço pretensamente indevido e consequentes juros e danos morais, foi conseguido sob coação, representando o seu recebimento pelo réu manifesto enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia.
III - A força probatória das escrituras de fls. 60 a 77 no tocante ao que nelas consta quanto ao preço das vendas (115.000.000$00) é ilidível perante a prova produzida nos autos no sentido de que o preço efectivo dessas vendas foi 70.000.000$00.
- caso também assim se não entenda, deverá então ser concedida a revista, anulando-se o acórdão recorrido e, tudo visto, declarar procedente e provada a pretensão do autor, condenando-se o réu a restituir imediatamente ao autor a quantia de € 82.301,65 (16.500.000$00) dele ilícita e abusivamente recebida, acrescida de juros à taxa legal, e bem assim custas e procuradoria condigna, tudo conforme pedido.

Para a justificação de tal desiderato, formulou as seguintes conclusões:
1. As conclusões elaboradas pelo tribunal a quo para as alegações do autor na sua apelação, antes de a reapreciar, são demasiado sucintas, sem o alcance judicativo imposto pelo Acórdão de 12/02/2002 deste Supremo Tribunal, pelo que deverá ser revogado o acórdão recorrido e ordenado o regresso dos autos à 1ª instância para continuação do julgamento, com formulação de quesitos novos se necessário, a fim de explicitar de vez quer quais os precisos termos do acordo de mediação em causa, quer quais os montantes efectivamente recebidos como preço dos imóveis cuja venda directa ou indirectamente o autor mediou, uma e outra questões essenciais para uma boa e correcta apreciação do feito.
2. A ser mantido o acórdão recorrido por assim se não entender, deverão então ser redigidas novas conclusões, sem restrição do âmbito do recurso sub judice, para com base nelas serem reapreciadas as alegações anteriores e proferido novo acórdão.
3. Dos autos resulta que entre o autor e o réu foi celebrado um contrato informal de mediação imobiliária para venda de 10 imóveis pertencentes ao réu.
4. Autor e réu estabeleceram os preços básicos para a venda dos referidos imóveis e que aquele auferiria uma comissão de 5% sobre o valor das vendas até ao preço básico estipulado e revertendo para o mesmo, como sobre-preço (over price) quanto viesse eventualmente a obter do comprador acima desses preços.
5. O autor localizou um comprador para cinco desses dez prédios, por 70.000.000$00, fazendo contas com o réu na base do preço para eles estipulado (60.000.000$00) e fazendo seus os 10.000.000$00 restantes, como "overprice".
6. O acordo de mediação imobiliária sub judice constitui um todo que, não sendo por força de lei um contrato formal, resulta de documentos escritos, cuja interpretação tem de ser feita em obediência ao disposto nos termos dos artºs. 222º nº. 1, 224º, nº. 1, 236º e 238º do C.Civil, tendo em conta ainda o preceituado nos artºs. 373º, 374º e 376º do mesmo diploma.
7. Fixada a força probatória dos elementos trazidos ao processo na última disposição legal acima referida, a violação dessa norma abre caminho ao recurso de revista, nos termos do disposto no artº. 722º, nº. 2, parte final, do C.Proc.Civil.
8. Contrariamente ao entendido no acórdão recorrido, a fls. 6, a alínea b) do nº. 1 do artº. 712º do C.Proc.Civil consente a alteração da decisão da 1ª instância sobre matéria de facto face ao circunstancialismo perceptível, se não contrariado pela prova documental ou testemunhal produzida, isto é, se colidente apenas com a "não prova" de matéria quesitada.
9. A delicadeza da questão em apreço e a importância objectiva dos factores subjectivos que a caracterizam e condicionam, com as inerentes dificuldades de testemunho e prova impõem ao tribunal - chamado a fazer justiça - uma atenção especialmente cuidadosa e equânime no apreço da prova produzida, tanto mais cuidadosa essa atenção quanto mais difícil ou ténue esta prova.
10. Se entre as partes foi provadamente convencionada a concessão ao autor do diferencial entre o preço de venda estabelecido como base e o preço de venda por este obtido, não é credível que logo na única venda efectuada no âmbito desse contrato tal benefício fosse ignorado, com tantos sinais exteriores quanto à sua base de 60.000.000$00 e à sua venda por 70.000.000$00.
11. Limitando-se o valor de prova plena às declarações enunciadas pela entidade documentadora, mas não à sua sinceridade ou veracidade, nada impede a admissibilidade de prova testemunhal para infirmar o que se encontra atestado nos documentos autênticos sem necessidade de arguição da sua falsidade.
12. Uma vez provado o prestígio no mercado imobiliário quer do autor, quer da empresa de mediação de que é gerente (quesito 2º), não devia o Tribunal da Relação ter deixado de ponderar quanto - se não conseguida a absolvição - poderia a sua repercussão atingir negativamente as suas actividades; sabidamente baseadas numa imprescindível imagem de honorabilidade e confiança.
13. Qualquer indemnização a que por acordo ou por condenação vier a ser compelido - como já foi - constitui manifesto locupletamento à custa alheia, até por conclusão jurídica não carecida de mais prova.
Em contra-alegações defendeu o recorrido a manutenção do acórdão em crise, suscitando ainda a questão prévia de que o agravo interposto não deve ser admitido.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

Nas instâncias foi considerada fixada a seguinte factualidade:
i) - o autor é sócio gerente da "C, Lda.", sociedade de mediação imobiliária com sede na Avenida ..., nº. ..., em Lisboa;
ii) - em 1989, o réu encarregou o autor de promover a venda de 10 imóveis de sua propriedade, sitos em Lisboa e no concelho de Oeiras;
iii) - em 5 de Janeiro de 1990, o réu conferiu ao autor uma procuração com os poderes necessários para vender os referidos imóveis pelos preços e nas condições que entendesse;
iv) - o réu estabeleceu com o autor preços básicos para a aludida venda, em conjunto ou separadamente, recebendo o autor uma comissão de 5% sobre tais valores e revertendo também para este, como "sobre preço" (overprice), quanto viesse a obter do comprador acima desses preços;
v) - o autor, através do mediador imobiliário D, localizou E (Sócio da Firma "F, Lda.") como potencial comprador de cinco dos dez prédios de cuja venda fora encarregado pelo montante de 70.000.000$00;
vi) - em 1 de Março de 1990, o autor depositou numa conta bancária do réu, no "...", em Lisboa, a quantia de 56.000.000$00;
vii) - tal quantia resulta da diferença entre o preço de 60.000.000$00 e a comissão acordada de 5% (3.000.000$00), mais as rendas (277.157$00), ficando em poder do autor o saldo de 722.843$00, como provisão para contribuições e impostos;
viii) - o autor pagou, após a venda dos cinco prédios, ao referido mediador, D, a quantia de 3.300.000$00 de comissões (comissão inicial + 0,5%) através dos cheques nº. 497.429.59 e 497.446.08, mais a quantia de 561.000$00 de IVA sobre as comissões, através do cheque nº. 811.929.78, aqueles e este sobre o Banco ..., o que perfaz o total de 3.681.000$00, conforme recibo de 30/08/91 de fls. 20;
ix) - regressado do Brasil, o réu constatou pela escritura de compra e venda que os cinco prédios em causa teriam sido vendidos, como nela consta, por 115.000.000$00 e não pelos 70.000.000$00 que efectivamente autorizara;
x) - o réu apresentou no DIAP, em Lisboa, queixa-crime contra o autor, imputando-lhe os crimes de falsificação, burla e abuso de confiança, queixa-crime que deu origem ao processo nº. 25571/91 da 7ª Vara Criminal de Lisboa, 2ª secção, no qual o mesmo autor foi absolvido, por sentença de 28/02/1994, do crime de abuso de confiança por que fora acusado;
xi) - em 08/02/1994, o autor pagou ao réu a quantia de 16.500.000$00, através do cheque nº. ... sobre o Banco ...;
xii) - A "C, Lda." é uma empresa de mediação imobiliária que tem prestígio nesse ramo de actividade;
xiii) - o autor, para encontrar comprador para os imóveis, contactou outros mediadores imobiliários na disposição de lhes ceder a sua comissão;
xiv) - em 23/02/1990 foi concretizada a venda dos cinco imóveis pelos preços constantes das respectivas escrituras de fls. 60 a 77 dos autos;
xv) - o autor ficou afectado com a queixa-crime a que se alude em x);
xvi) - o autor pagou ao réu a quantia de 16.500.000$00 na pendência do processo crime a que se faz referência em x).

Como é sabido, os recursos têm por objecto as decisões de que se recorre e o seu âmbito é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artºs. 690º, nº. 1 e 684º, nº. 3, do C.Proc.Civil), não podendo o tribunal ad quem decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso.
Cumpre, todavia, e antes de mais, conhecer da questão prévia suscitada pelo recorrido nas contra-alegações.
Segundo este, é inadmissível o recurso de agravo, pelo que as alegações do mesmo (apresentadas pelo recorrente) não deveriam ter sido admitidas.
Cremos que se trata de uma deficiente interpretação das alegações do recorrente, advinda, sem dúvida, da forma pouco ortodoxa como aquelas se encontram elaboradas.
De facto, o recorrente apenas interpôs recurso de revista e, apenas como tal, o recurso foi recebido.

Acontece que, em conformidade com o disposto no artº. 722º, nº. 1, do C.Proc.Civil (1), "sendo o recurso de revista, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admissível recurso, nos termos do nº. 2 do artigo 754º, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso".
Consequentemente, quando o recorrente resolveu, nas alegações, referir distintamente o agravo e a revista, mais não fez do que exprimir o seu desejo de alegar também a violação, por parte do acórdão recorrido, de leis do processo.
Importa, todavia, verificar se dessa parte das alegações se pode conhecer.

A presente acção foi intentada em 18 de Janeiro de 1995, altura em que ainda não havia sido publicado o Dec.lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro, vigorando, assim, quanto ao recurso interposto, a anterior redacção dos artºs. 722º, nº. 1 e 754º, que não restringiam a admissibilidade do conhecimento da parte do recurso atinente à violação da lei de processo, desde que o valor da causa se situasse acima do valor da alçada da Relação.
Por isso, e não obstante o modo pouco feliz como o recorrente organizou as alegações do recurso - e as respectivas conclusões - nada obsta a que se conheça de todas as questões que suscitou.

Equacionaremos, então, as questões suscitadas pelo recorrente (difíceis de discernir no emaranhado conclusivo acima transcrito) e que este tribunal há-de apreciar:
I. As conclusões elaboradas pelo tribunal a quo para as alegações do autor na sua apelação, antes de a reapreciar, são demasiado sucintas, sem o alcance judicativo imposto pelo Acórdão de 12/02/2002 deste Supremo Tribunal.
II. Deve ser alterada a matéria de facto de forma a considerar-se assente que entre o autor e o réu foi celebrado um contrato de mediação com base no qual o autor vendeu os imóveis do réu por 70.000.000$00, fazendo seus, como fora convencionado, os 10.000.000$00 que excediam os 60.000.000$00 fixados como preço referência (o que releva, além do mais, da delimitação da força probatória das escritura de fls. 60 a 77).
III. Impõe-se o regresso dos autos à 1ª instância para continuação do julgamento, com formulação de quesitos novos a fim de explicitar de vez quer quais os precisos termos do acordo de mediação em causa, quer quais os montantes efectivamente recebidos como preço dos imóveis cuja venda directa ou indirectamente o autor mediou, uma e outra questões essenciais para uma boa e correcta apreciação do feito.
IV. Em todo o caso, deverá ser concedida a revista, anulando-se (revogando-se) o acórdão recorrido e declarar-se procedente e provada a pretensão do autor, condenando-se o réu a restituir-lhe imediatamente a quantia de € 82.301,65 (16.500.000$00) dele ilícita e abusivamente recebida, acrescida de juros à taxa legal, e bem assim custas e procuradoria condigna, tudo conforme pedido.

I- No acórdão em que o STJ revogou a decisão da Relação que rejeitara o recurso de apelação interposto pelo ora recorrente, afirmou-se, designadamente, que "através das conclusões pode concluir-se que o recorrente suscitou, pelo menos, a apreciação de três questões:
1. O facto de ter sido considerado que o pagamento dos 16.500.000$00 foi feito de acordo e sem coacção, quando o recorrente sustenta que tal acordo foi obtido por coacção.
2. A delimitação da força probatória das escrituras de fls. 60 a 77, por delas constar que o preço das vendas foi de 115.000.000$00, quando o recorrente defende estar antes provado que tais vendas foram feitas pelo preço de 70.000.000$00, sem assistir ao recorrido qualquer direito, quer ao montante de 10.000.000$00 (correspondente à diferença entre o preço base estipulado de 60.000.000$00 e o efectivamente recebido de 70.000.000$00), quer ao restante valor de 6.500.000$00.
3. A eventual necessidade de ampliação da matéria de facto" (fls. 238).
Já no acórdão recorrido, fez-se constar que "tendo em conta o decidido pelo STJ, e dada a impossibilidade de transcrever na íntegra as respectivas conclusões, procuraremos fazer uma síntese das mesmas (artigo 690º, nº. 1 CPC):
1º- Tendo o Tribunal a quo considerado não provados os quesitos 7, 9, 15, e 19 e prevalecente que é a matéria de facto especificada sobre a quesitada, haveria então o Tribunal de dar como "provado" algum ou alguns dos quesitos dados como "não provados".
2º- Se assim se não entender, deverá então ser ordenada a ampliação da matéria de facto para indagação de qual o preço-base efectivamente estabelecido entre autor e réu.
3º- O pagamento pelo autor ao réu da prestação de 16.500.000$00 foi conseguido sob coacção, e o seu recebimento pelo réu configura manifesto enriquecimento sem causa, ou locupletamento à custa alheia.
4º- A delimitação da força probatória das escrituras de fls. 60 a 77, por delas constar que o preço das vendas foi de 115.000.000$00, quando o recorrente defende antes estar provado que tais vendas foram feitas pelo preço de 70.000.000$00" (fls. 247).
Ora, o acórdão em que é apreciado o recurso de apelação, principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir, exporá de seguida os fundamentos e concluirá pela decisão, observando-se na parte aplicável, o preceituado nos artigos 659º a 665º (art. 713º, nº. 2).
O que significa, sobretudo, que nele deve ser identificado o objecto do litígio, com a fixação das questões que ao tribunal cumpre solucionar, seguindo-se os fundamentos, devendo ser discriminados os factos que se consideram provados, bem como interpretadas e aplicadas as normas jurídicas correspondentes (artº. 659º, nºs. 1 e 2).
E ainda que o tribunal deve conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo, no entanto, o tribunal ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (art. 660º, nº. 2).
Nada existe na lei que obrigue (ou sequer aconselhe) a Relação a transcrever as conclusões das alegações do apelante, totalmente ou em parte (designadamente nos casos em que, como o presente, a amálgama conclusiva, após convite ao aperfeiçoamento, pouco menos é do que incompreensível) apenas se lhe exigindo que enuncie brevemente as questões que importa decidir e que, acima de tudo, não deixe de tratar daquelas que foram suscitadas.
Foi precisamente o que se fez no acórdão recorrido: foram indicadas as questões que constituíam o objecto da apelação (através do enunciado dos quatro itens acima referenciados) e todas elas foram devidamente analisadas e solucionadas.
Mostrando-se, de todo, irrelevante o simples facto de não se verificar uma coincidência literal entre as questões equacionadas no acórdão recorrido e aquelas que o Supremo, no acórdão em que revogou a decisão de rejeição da apelação, por sua vez descortinou e apontou. É que o acórdão do STJ apenas apreciou e decidiu acerca da rejeição do recurso, limitando-se, de certa forma pedagogicamente, a explicar que, nas conclusões formuladas pelo apelante se podia vislumbrar terem sido suscitadas algumas questões. Por isso, e ademais pelo objecto do recurso de agravo sobre que incidiu, não goza aquele aresto de força de caso julgado no que concerne à fixação do âmbito da apelação. Assim, não era exigível que o acórdão recorrido se limitasse a copiar as questões que, a título de exemplo, aquele acórdão indicou como suscitadas (acrescentou, aliás, mais uma).
A verdade, e isso é que importa, é que no acórdão recorrido foram indicadas todas as questões de que se impunha conhecer, foram as mesmas tratadas com a devida clareza e profundidade, com fundamentação de facto e de direito, de forma a que nenhuma irregularidade (e muito menos nulidade por omissão de pronúncia) se possa detectar.
Em consequência, e nesta parte, não assiste qualquer razão ao recorrente.

II. Deve ser alterada a matéria de facto de forma a considerar-se assente que entre o autor e o réu foi celebrado um contrato de mediação com base no qual o autor vendeu os imóveis do réu por 70.000.000$00, fazendo seus, como fora convencionado, os 10.000.000$00 que excediam os 60.000.000$00 fixados como preço referência?
No âmbito desta questão, simplisticamente colocada, pretende o recorrente, retomando de forma alargada a posição que assumiu na apelação, essencialmente que a) "tendo o tribunal a quo considerado não provados os quesitos 7º, 9º, 15º, 19º, 21º e 27º, não obstante o especificado em D, F, G e H, o dado como provado nos quesitos 6º e 34º e a prova documental constante dos autos, haveria então o tribunal de dar como provados algum ou alguns dos quesitos dados como não provados, assim se explicitando as precisas condições do acordo de mediação em causa"; b) "a força probatória das escrituras de fls. 60 a 77, no tocante ao que nelas expressamente consta quanto ao preço declarado das vendas (115.000.000$00) é ilidível perante a prova produzida nos autos no sentido de que o preço efectivo dessas vendas foi de 70.000.000$00".
Antes de entrarmos propriamente na análise da questão, impõe-se-nos esclarecer que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (artº. 729º, nº. 1).
Aliás em termos explicitamente afirmados pelo artº. 26º da Lei nº. 3/99, de 13 de Janeiro (2): "fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito".
E mais recentemente ainda pelo art. 712º, nº. 6, segundo o qual "das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça" (3).

Por isso mesmo, só excepcionalmente, no recurso de revista, havendo ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, é que se admite que o STJ aprecie um eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido no acórdão da Relação de que se recorre (artºs. 729º, nº. 2 e 722º, nº. 2).
Que o mesmo é dizer que "o STJ só conhece da matéria de facto em dois casos: o primeiro, para a hipótese de o tribunal recorrido ter dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência; o segundo, quando se tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no nosso sistema judicial" (4).
Sendo que, nesta situação excepcional figura, como unanimemente vem sendo entendido (5), o inadequado uso pela Relação da faculdade que lhe é conferida pelo nº. 1 do artº. 712º de alterar as respostas aos quesitos dadas pelo tribunal colectivo.
Mas não já, porque claramente contido nos poderes de apreciação definitiva da matéria de facto pela Relação, o não uso daquela faculdade, salvo na medida em que esse não uso possa traduzir a ofensa de disposição de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artº. 722º, nº. 2) (6).
Elaborado este, a nosso ver, necessário intróito, porquanto a tónica do recurso se situa, nesta parte, na actividade da Relação quanto à decisão da matéria fáctica, parece possível, desde já, concluir que a Relação recusou usar da faculdade de alteração da matéria de facto ao abrigo do artº. 712º, nº. 1.
Discorda o recorrente dessa posição. Por um lado, chama à colação, além do mais, a matéria especificada nas alíneas D, F, G e H, o tido como assente nas respostas aos quesitos 6º e 34º e a prova documental constante dos autos.
Ora, é certo que, na elaboração da decisão, embora sujeita no domínio dos factos ao julgamento efectuado pela 1ª instância, deverá sempre a Relação tomar em linha de conta os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, fazendo, depois, o exame crítico das provas de que lhe compete conhecer, para proceder à fixação da matéria fáctica (artigo 659º, nº. 3).
Por isso, e antes de mais, se porventura houver contradição entre o conteúdo da especificação e as respostas dadas ao questionário pelo colectivo, deve, em princípio, dar prevalência à especificação, por assentar precisamente em confissão, acordo das partes ou documento, considerando não escritas as respostas do colectivo (artº. 646º, nº. 4) (7).
Só que, como bem se explica no acórdão impugnado, da resposta negativa a um quesito apenas resulta que se não provaram os factos quesitados, mas não que se demonstrasse o contrário. Tudo se passa como se aqueles factos não tivessem sido articulados. Ou seja, a resposta negativa a um quesito, precisamente porque afirma que nada da sua matéria se provou, não pode enfermar de qualquer vício, designadamente o de ser contraditório com a matéria especificada (8).
E nem mesmo a restrita resposta aos quesitos 6º e 34º revela qualquer contradição com os factos já assentes na especificação. Pela mesma razão essencialmente: não estando especificado o preço concreto sobre que incidiu (se é que foi estabelecido um preço-base) o acordo de mediação, nenhuma contradição pode advir do facto de se ter como provado que "o autor, para encontrar comprador para os imóveis, contactou outros mediadores imobiliários na disposição de lhes ceder a sua comissão" ou de que "o autor pagou ao réu a quantia de 16.500.000$00 na pendência do processo crime".

Por outro lado, constitui princípio geral do processo que, salvas as excepções que, em termos substantivos, determinam uma prova vinculada, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada fato (artº. 655º).
Ora, apesar da oposta opinião do recorrente - note-se que a decisão acerca da matéria de facto assentou também na prova testemunhal produzida, não reduzida a escrito - não existem nos autos elementos susceptíveis de impor decisão diversa sobre a matéria de facto controvertida, por um lado porque não há disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência dos factos, nem que, por outro, fixe a força probatória de qualquer dos meios de prova utilizados (artºs. 712º, nº. 1, al. b) e 722º, nº. 2).
É que, mesmo os documentos a que alude o recorrente apenas possuem a força probatória que lhes é atribuída por lei quanto ao respectivo teor. Nada contêm de afirmativo de factos concretos. E o que o recorrente pretende, afinal, é que do teor daqueles documentos - factos verdadeiros e conhecidos, se bem que susceptíveis de diversas interpretações em sede fáctica - se extraia a ilação de que existiu uma convenção entre ele e o réu mediante a qual o primeiro foi incumbido de proceder à venda dos imóveis do segundo, por um preço de 60.000.000$00, revertendo para aquele tudo o que, na venda a que procederia, excedesse tal quantia, factos esses que não resultam inequivocamente do conteúdo de tais documentos.
Por isso, toda a pretensão do recorrente (constante das conclusões das alegações) assenta na necessidade de recorrer a presunções judiciais para fixar a matéria de facto que quer ver tida como provada.
Ora, tal ilação fáctica, "inspirada nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana" (9) (cfr. artºs. 349º e 351º do C.Civil), não foi extraída pelas instâncias que, naturalmente face a toda a prova produzida, entenderam não ter justificação, já que a não consideraram em sede da matéria de facto fixada.
Ora, "ao firmar (ou recusar firmá-lo) um facto desconhecido por meio de ilações daquele tipo, o tribunal não faz outra coisa senão julgamento da matéria de facto", estando, como tal, vedado ao Supremo Tribunal de Justiça recorrer a presunções judiciais", ainda que invocadas no recurso (10).
Sendo certo, por isso mesmo, doutro passo - como sempre se tem entendido neste tribunal - que a questão de saber se houve ou não erro por parte da Relação ao usar (ou não usar) de uma presunção judicial é insindicável pelo STJ, dado que a respectiva cognoscibilidade está completamente à margem dos poderes que lhe são conferidos em matéria de julgamento da revista (11).

Por último (last but not the least) também não colhe o entendimento do recorrente segundo o qual estaríamos perante uma situação de interpretação da vontade das partes, que revestiria a natureza de questão de direito. O que se passa, apenas e tão só, é que a vontade das partes foi fixada pela Relação, com fundamento na prova produzida e na respectiva análise crítica. Trata-se, pois, e ainda, de mera questão de facto, cuja sindicância está vedada ao STJ.
Em consequência não pode ser atendido o que o recorrente pretende, havendo que manter a matéria de facto provada, tal como fixada pela Relação.

III. Certo é que, nos termos do artº. 729º, nº. 3, o processo volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.
É, pois, possível ao STJ, se entender que ocorre necessidade de ampliação da matéria de facto considerada pelas instâncias, mandar julgar novamente a causa, em harmonia com o regime jurídico que define, depois de aditados os factos que reputa indispensáveis ao julgamento (artº. 730º, nº. 1).
E é, no fundo, o que o recorrente pretende, designadamente quando afirma que é necessária a formulação de quesitos novos "a fim de explicitar de vez quer quais os precisos termos do acordo de mediação em causa, quer quais os montantes efectivamente recebidos como preço dos imóveis cuja venda directa ou indirectamente o autor mediou".
Adiantamos, no entanto, desde já, que o desiderato da recorrente se afigura, como veremos, manifestamente irrazoável (aliás, curiosamente, ele próprio não indica os concretos factos que entende deverem ser aditados à matéria de facto da causa).
Resulta, desde logo, do artº. 510º, nº. 1, al. b), que "findos os articulados... o juiz profere... despacho saneador destinado a... conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória".
Por sua vez, referindo-se à matéria de facto nos casos em que o processo prossiga, prescreve o artº. 511º, nº. 1, que "o juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida".
Ora, no caso em apreço é evidente que todos os factos alegados pelo recorrente (autor) na petição inicial (e até, na medida do necessário, pelo réu na contestação) foram levados à especificação e questionário. Designadamente os factos alegados com referência aos termos em que foi realizado o acordo de mediação, bem como os relativos aos montantes efectivamente recebidos como preço dos imóveis cuja venda directa ou indirectamente o autor mediou, foram expressamente consignados, sobretudo nas Alíneas B, C, D, E, F, G, H e I da especificação e nos quesitos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º e 14º.
Claro que os factos quesitados, na sua grande maioria, foram considerados como não provados. Só que essa situação não traduz uma insuficiência de quesitação, mas antes uma ausência de prova relevante. Teria, quando muito, a ver com a eventual alteração da matéria de facto, questão muito diferente daquela - e que já acima vimos se não justifica.
Consequentemente, não pode ter-se como adequado o uso da faculdade do artº. 729º, nºs. 2 e 3, do C.Proc.Civil, na medida em que, como se entendeu no acórdão impugnado, não ocorre qualquer razão que permita se ordene a ampliação da matéria de facto.
Também nesta parte, portanto, improcede o recurso de revista.

IV. Finalmente, e apesar do já exposto, entende ainda o recorrente que deve declarar-se procedente e provada a sua pretensão, condenando-se o réu a restituir-lhe imediatamente a quantia de € 82.301,65 (16.500.000$00) dele ilícita e abusivamente recebida, acrescida de juros à taxa legal, e bem assim custas e procuradoria condigna, tudo conforme pedido.
Não tem, todavia, a nosso ver, qualquer razão.
Sustenta, na verdade, o autor que o pagamento que fez ao réu da prestação de 16.500.000$00 foi conseguido sob coacção. E, ademais, que o seu recebimento pelo réu configura manifesto enriquecimento sem causa, ou locupletamento à custa alheia.
Os factos que se encontram demonstrados e relevam para a pretensão do recorrente (e de novo retomamos a factualidade acima descrita) são, no essencial, os seguintes:
- em 1989, o réu encarregou o autor de promover a venda de 10 imóveis de sua propriedade, sitos em Lisboa e no concelho de Oeiras, conferindo-lhe, em 5 de Janeiro de 1990, uma procuração com os poderes necessários para vender os referidos imóveis pelos preços e nas condições que entendesse;
- nessa altura foram estabelecidos com o autor preços básicos para a aludida venda, em conjunto ou separadamente, recebendo o autor uma comissão de 5% sobre tais valores e revertendo também para este, como over price, quanto viesse a obter do comprador acima desses preços;
- regressado do Brasil, o réu constatou pela escritura de compra e venda que os cinco prédios em causa teriam sido vendidos por 115.000.000$00 e não pelos 70.000.000$00 que efectivamente autorizara;
- o réu apresentou no DIAP, em Lisboa, queixa-crime contra o autor, imputando-lhe os crimes de falsificação, burla e abuso de confiança, queixa-crime que deu origem ao processo nº. 25571/91 da 7ª Vara Criminal de Lisboa, 2ª secção, no qual o mesmo autor foi absolvido, por sentença de 28/02/1994, do crime de abuso de confiança por que fora acusado;
- em 08/02/1994, o autor pagou ao réu a quantia de 16.500.000$00, através do cheque nº. ... sobre o Banco ..., na pendência do referido processo crime;
- em 23/02/1990, foi concretizada a venda dos cinco imóveis pelos preços constantes das respectivas escrituras de fls. 60 a 77 dos autos, ou seja, por 115.000.000$00;
- no dia 08.02.94, foi junta aos autos a declaração de fls. 19, na qual, para além do mais, o assistente (ora réu) desiste da queixa formulada contra o arguido (ora autor), declarando ter feito contas com este último, recebendo "tudo o que foi ajustado entre nós" e admite "ter havido um erro de comunicação ou de entendimento quanto à forma como o negócio da venda dos meus prédios foi acordado entre nós, erro que foi agora rectificado";
- o ora autor foi naquele processo crime absolvido da prática do crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artigo 300º, nºs. 1 e 2 CP, pelo qual se encontrava pronunciado.
Como bem se argumenta no acórdão recorrido infere-se daqueles factos que, no âmbito do processo crime, no qual o Ministério Público acusava o ora autor de um crime de abuso de confiança, sendo lesado o ora réu, por aquele se ter ilegitimamente apropriado de coisa móvel que lhe havia sido entregue por titulo não translativo de propriedade, traduzida na importância de 115.000.000$00 que havia sido entregue ao arguido e que este não entregara ao queixoso, como lhe competia, ocorreu um acordo entre o autor (aí arguido) e o réu (aí queixoso).
Tal acordo está, assim, relacionado com a venda dos cinco prédios e passou pela entrega de 16.500.000$00 pelo ora autor ao réu para que este subscrevesse a declaração que subscreveu, a fim de evitar a eventual condenação do arguido como autor de um crime de abuso de confiança.
Absolvido (além do mais em virtude da referida declaração) veio, então, o autor (ali arguido) pedir a repetição daquela quantia de 16.500.000$00 que alega lhe ter sido extorquida sob coacção.
Porém, e antes de mais, não se provou que o réu, sabendo que o autor seria sensível à ameaça de uma queixa-crime por abuso de confiança, lhe exigiu a quantia de 10.000.000$00 relativos ao over price e mais as quantias de 1.000.000$00 e 4.500.000$00 de danos morais sofridos e juros respectivamente (resposta negativa ao quesito 15º).
Doutro passo, segundo se infere do nº. 3 do artº. 255º do C.Civil, não é permitida a conclusão de que o declaratário agiu através de coacção moral, quando apenas ameaça o declarante com o exercício normal de um direito. Sendo que, como é óbvio, o direito de queixa constitui um direito legalmente estabelecido, não sujeito a restrições que não as advindas de eventual denúncia caluniosa (in casu não verificada, apesar da absolvição do autor, tanto mais quanto é certo que foi o próprio Estado, através do Ministério Público, quem promoveu a competente acção penal).
Não se descortina, assim, que a declaração do autor haja sido manifestada sob coacção moral, nos termos em que o artº. 255º, nº. 1, do C.Civil a define.
E, de igual modo, se não pode considerar que aquela entrega dos 16.500.000$00 ao réu pelo autor constitui enriquecimento sem causa.
O enriquecimento sem causa verifica-se quando o património de certa pessoa se valoriza ou deixa de desvalorizar, à custa de outra pessoa, e sem que para isso exista uma causa justificativa.
De facto, como dispõe o artº. 473º do C.Civil "aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou" (nº. 1).
Daí resulta que "a obrigação de restituir... pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: 1) que haja um enriquecimento de alguém; 2) que o enriquecimento careça de causa justificativa; 3) que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição" (12).
A que se junta o carácter subsidiário das acções baseadas nas regras do enriquecimento sem causa, já que só pode a ela recorrer-se quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção da acção (13).
Assim, "para que se constitua uma obrigação de restituir fundada num enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido vantagens económicas à custa de outra. É ainda necessário que não exista uma causa jurídica justificativa dessa deslocação patrimonial - ou porque nunca a houve ou porque, entretanto, desapareceu. (...) Quer dizer: reputa-se que o enriquecimento carece de causa, quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial" (14).
Donde, como lógico corolário, "havendo causa justificativa da deslocação patrimonial do empobrecido para o enriquecido não há enriquecimento sem causa" (15).
Certo que "o conceito de causa justificativa é muito controvertido e o artº. 473º, intencionalmente, não o define, limitando-se cautelosamente a facultar ao intérprete algumas indicações capazes de, como meros subsídios, auxiliarem a sua formulação. (...) O enriquecimento carece de causa justificativa porque, segundo a própria lei, deve pertencer a outra pessoa. E esta é a directriz que importa seguir... para saber se o enriquecimento criado por determinados factos assenta ou não numa causa justificativa. Trata-se de um problema de interpretação e integração da lei, tendente a fixar a correcta ordenação jurídica dos bens. Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa" (16).
"Não oferece dúvidas, à luz do princípio geral do artº. 342º - é àquele que invoca um direito que incumbe a prova dos seus factos constitutivos - que é aquele que pede a restituição do indevido que terá de alegar e provar a falta de causa da atribuição patrimonial" (17).
Por isso, "a falta de causa terá de ser não só alegada, como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artº. 342º, por quem pede a restituição. Não bastará, para esse efeito, segundo as regras gerais do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa" (18).
É, aliás, este o sentido prevalente da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça (19).

Ora, como vimos, a importância de 16.500.000$00 foi entregue pelo autor ao réu, já na iminência do julgamento crime, cuja queixa tivera origem no facto deste ter descoberto que o autor vendera os seus cinco prédios por 115.000.000$00 e não por 70.000.000$00, como lhe fizera crer, apropriando-se ilegitimamente de dinheiro que devia ter entregue ao réu.
Tendo ambas as partes acordado, como acordaram, na entrega e recebimento da referida quantia, surge a sua entrega ao réu como o resultado de um acordo, livremente celebrado (sendo certo que quem ia ser julgado era o ora recorrente).
Não houve, portanto, enriquecimento a favor do réu nem empobrecimento do autor (de facto era muito maior a quantia que o ora réu considerava ser-lhe devida), e muito menos se pode considerar que o enriquecimento não tem causa justificativa, porquanto a devolução patrimonial assenta precisamente no acordo efectuado entre as partes para porem termo ao litígio (criminal) que as separava.
Consequentemente, nada, em nosso entender, pode censurar-se ao acórdão recorrido, que deve ser confirmado.

Nestes termos, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelo autor A;
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar o recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 16 de Outubro de 2003
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
______________
(1) Diploma a que pertencem todas as disposições adiante citadas sem outra referência.
(2) Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
(3) Apesar de tal disposição, aditada pelo Dec.lei nº. 375-A/99, de 20 de Setembro, não ser in casu aplicável, já que a presente acção foi instaurada em 18 de Janeiro de 1995 (cfr. artº. 8º, nº. 2, daquele diploma).
(4) Ac. STJ de 03/03/98, no Processo 1008/97, da 2ª secção (relator Miranda Gusmão).
(5) Cfr. Acs. STJ de 22/11/90, no Processo 79631 (relator Cura Mariano); de 02/02/93, in CJSTJ Ano I, 1, pág. 117 (relator Fernando Fabião); de 15/03/94, in BMJ 435, pág. 750 (relator Fernando Fabião); e de 11/03/99, no Processo 89/99, da 1ª secção (relator Tomé de Carvalho).
(6) Acs. STJ de 29/02/2000, no Proc. 52/00 da 1ª secção (relator Machado Soares); de 11/10/2001, no Proc. 2492/01 da 7ª secção (relator Neves Ribeiro); e de 05/07/2001, no Proc. 1751/01 da 7ª secção (relator Miranda Gusmão).
(7) Acs. STJ de 05/12/91, no Proc. 80970 da 2ª secção (relator Pereira da Silva); de 23/03/95, no Proc. 86409 da 2ª secção relator Raúl Mateus); e de 10/02/99, no Proc. 289/98 da 4ª secção (relator Manuel Pereira).
(8) Acs. STJ de 23/06/94, no Proc. 85236 da 2ª secção (relator Miranda Gusmão); de 15/06/99, no Proc. 230/99 da 1ª secção (relator Pais de Sousa); e de 22/02/2002, no Proc. 1016/99 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos).
(9) Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, pág. 312.
(10) Ac. STJ de 19/03/2002, no Proc. 656/02 da 7ª secção (relator Quirino Soares).
(11) Ver, por todos, os Acs. STJ de 09/03/95, in BMJ nº. 445, pág. 423 (relator Raúl Mateus); de 11/02/99, no Proc. 13/99 da 2ª secção (relator Simões Freire); de 25/05/99, no Proc. 382/99 da 1ª secção (relator Aragão Seia); e de 30/09/99, no Proc. 506/99 da 2ª secção (relator Noronha Nascimento).
(12) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pág. 448.
(13) Acs STJ de 23/04/98, in BMJ nº. 476, pág. 370 (relator Almeida e Silva).
(14) Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 199, págs. 399 e 400.
(15) Ac. STJ de 24/04/2002, no Proc. 792/02 da 7ª secção (relator Oliveira Barros).
(16) Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, págs. 454-456.
(17) Ac. STJ de 04/04/2002, no Proc. 543/02 da 2ª secção (relator Duarte Soares).
(18) Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cits., pág. 456.
(19) Acs. STJ de 24/04/85, in BMJ nº. 346, pág. 254 (relator Campos Costa); de 24/02/99, no Proc. 5/99 da 1ª secção (relator Machado Soares); de 24/02/99, no Proc. 85/99 da 1ª secção (relator Lemos Triunfante); e de 20/06/2000, no Proc. 395/00 da 1ª secção (relator Silva Graça).