Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B777
Nº Convencional: JSTJ00039499
Relator: NORONHA NASCIMENTO
Descritores: SEGURO DE CRÉDITOS
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Nº do Documento: SJ20000120007772
Data do Acordão: 01/20/2000
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1503/98
Data: 02/11/1999
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: JURISPRUDÊNCIA CORRENTE.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 289 ARTIGO 424 N1 ARTIGO 432 ARTIGO 443 N1 ARTIGO 444 N1 ARTIGO 595 N2 ARTIGO 801 N2 ARTIGO 809.
Sumário : I - Independentemente da natureza jurídica do seguro-caução, apenas haveria cessão da posição contratual ou, no mínimo, assunção de dívida pela seguradora, se o credor beneficiário nela interviesse, pelo que o credor pode accionar o caucionado e a seguradora.
II - O seguro-caução é uma garantia autónoma e não está condicionada pelo destino da obrigação garantida.
III - Como contrato a favor de terceiro faculta ao credor beneficiário uma garantia suplementar que acresce aos direitos legais de que é titular e que emergem do incumprimento pelo segurado do contrato garantido.
Decisão Texto Integral: A Autora A propôs acção com processo ordinário contra as Rés B e C pedindo a resolução do contrato de locação financeira outorgado com a B e consequente condenação desta a entregar-lhe o equipamento locado e a pagar-lhe a quantia de 1442130 escudos acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa de 15% sobre 1294105 escudos e pedindo a condenação da Ré C a pagar-lhe, solidariamente com a co-Ré, a quantia de 1319860 escudos acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa de 15% a partir de 2 de Dezembro até integral pagamento.
A final, e na sequência da normal tramitação processual, foi proferida sentença que declarou resolvido o contrato de locação financeira e, condenou a B a restituir o equipamento locado e a pagar à Autora a quantia de 1442130 escudos e juros de mora à taxa de 15% sobre 1294105 escudos desde 12 de Outubro de 1995 até efectivo pagamento (tal como vinha pedido) e condenou ainda a C a pagar à Autora solidariamente com a co-Ré, o montante de 1211645 escudos acrescido de juros de mora à taxa de 15% desde 2 de Dezembro de 1994.
Inconformadas, apelaram ambas as Rés mas os recursos interpostos foram julgados improcedentes.
De novo inconformada, recorre agora de revista apenas a Ré B que conclui as suas alegações da forma seguinte:
1) a recorrente celebrou com a C um seguro-caução directo, à 1ª interpelação, para "garantir" a locação financeira contratada com a Autora.;
2) daí que as rendas da locação estivessem autonomamente garantidas por aquele seguro-caução que não é uma fiança, com a natureza acessória desta, mas é uma garantia autónoma, directamente exigível ao garante e que não depende da obrigação garantida;
3) daí que com tal garantia autónoma o tomador do seguro - aqui, a recorrente B - tenha transferido a sua responsabilidade civil resultante do incumprimento contratual para a seguradora-caucionante;
4) assim sendo, a Autora não pode exigir à recorrente o pagamento das rendas em dívida já que quem responde por elas é a Seguradora, assim como não pode peticionar a resolução do contrato de locação financeira com a consequente restituição do equipamento locado;
5) na verdade, o que a Autora devia fazer era tão só exigir directamente à Ré-seguradora o pagamento das rendas em dívida - já que esta é a única responsável por elas - com base no seguro-caução;
6) e uma vez satisfeitas essas rendas estaria a Autora totalmente ressarcida;
7) de qualquer modo, nunca a Autora poderia opor à recorrente a resolução do contrato de locação financeira porque esta transferiu a responsabilidade pelo seu incumprimento contratual para a Seguradora através daquele referido seguro-caução;
8) a não ser assim há evidente enriquecimento sem causa da Autora à custa da recorrente;
9) o pedido reconvencional da recorrente devia ter sido admitido até porque os seus prejuízos foram enormes;
10) o acórdão recorrido violou os artigos 236 a 238, 334,398, 405, 406 e 805 do C. Civil, 426 e 427 do C. Comercial e 668 alíneas b,c,d, e e) do C.P.Civil e ainda o DL 183/88 de 24 de Maio.
Pede, assim, a revogação do acórdão referido, absolvendo-se a Ré "B" do pedido.
Contra-alegou a co-Ré C defendendo a bondade da decisão.
Dá-se por reproduzida a matéria de facto provada no acórdão em apreciação, nos termos dos artigos 713 n. 6 e 726 do C.P.Civil.
1) A questão basilar à volta da qual gira o recurso da B centra-se na questão de saber se ela deve ser condenada conjuntamente com a Seguradora quando afinal celebrou um contrato de seguro-caução destinado a salvaguardar e garantir o seu incumprimento.
Na verdade, o raciocínio da B é linearmente o seguinte: outorgou um contrato de locação financeira com a A; para garantir o cumprimento / incumprimento desse contrato celebrou um seguro-caução com a C; este seguro-caução é uma garantia autónoma e não acessória da obrigação garantida, sendo independente dela; daí que com o seguro-caução, a própria B se tenha desresponsabilizado perante a A já que transferiu a sua responsabilidade para a Seguradora; esta é que é a verdadeira devedora e não a B.
Este é, no fundo, todo o esquema da defesa jurídica da B.
E adiantamos, ab initio, que não tem esse esquema qualquer viabilidade jurídica para singrar.
2) Pouco importa saber qual é verdadeiramente a natureza jurídica do seguro-caução para se inferir qual a solução jurídica do pleito; porque mesmo aceitando toda a tese defendida pela B acerca da natureza e tipologia do seguro-caução, as conclusões a extrair a final para a decisão deste recurso são muito diversas daquelas que a recorrente pretende.
Sublinhe-se à partida que a B pretende viabilizar uma cessão de posição contratual - com o seguro-caução como pano de fundo - sem que nada a autorize.
Na verdade, ao defender que, com o seguro, transferiu a sua responsabilidade civil contratual para a Seguradora, a B está a dizer que cedeu a esta a sua posição contratual ou, no mínimo, que ocorreu uma assunção de dívida pela Seguradora.
A cessão de posição contratual só é eficaz se o credor (aqui, a A) nela consentir (artigo 424 n. 1 do C.Civil como todos os que se citarem sem indicação de diploma); ora, nada nos autos nos indica, superficialmente que seja, que a credora manifestou alguma aquiescência à eventual desoneração da B.
A assunção de dívida, a existir, não nos levaria a caminho diverso.
Á uma, seria sempre essencial a intervenção da A, ou para ratificar o contrato translativo entre o antigo e o novo devedores ou para intervir directamente nele (conforme se infere do artigo 595).
Em segundo lugar, o antigo devedor (aqui, a B) não ficaria desonerado da dívida, mesmo transmitindo-a, a menos que houvesse declaração expressa da A a desonerá-lo; é o que se infere do n. 2 do artigo 595.
Ora, dos autos não consta prova alguma que nos comprove quer a ratificação do credor quer a declaração desonerativa da B. Daí que, a haver qualquer transmissão de dívida, a B - antiga devedora - responderia solidariamente com o novo devedor perante o credor (cfr. n. 2 do artigo 595).
Pretender, por conseguinte, que no caso houve uma transferência da responsabilidade civil da B para a Seguradora - como a B defende - não nos leva a grande saída.
3) O seguro-caução é, na verdade uma garantia autónoma, permitida pelo princípio da liberdade contratual que não está condicionada pelo destino da obrigação garantida.
O seguro-caução é, pois, directamente exigível ao garante, ficando desta forma o beneficiário dela especialmente protegido no tocante à satisfação dos seus interesses.
Simplesmente nada disto significa que a A - credora beneficiária do seguro-caução - fique desligada contratualmente da parte com quem negociou e não lhe possa opor o exercício dos seus direito, que lhe advêm precisamente do incumprimento contratual dessa parte; admitir o contrário - como defende a B - era "mandar às urtigas" as regras que tipificam o quadro legal do incumprimento negocial.
Repare-se que, no caso em apreciação temos dois contratos diferentes com contraentes diferentes, mas que se interconexionam nos seus efeitos recíprocos.
Há, em primeiro lugar, um contrato de locação financeira e há, a seguir, um contrato de seguro-caução.
A locação financeira tem como partes contratantes a A como locadora e a B como locatária; o seguro-caução tem como partes contratantes a B como tomadora do seguro e a C como seguradora que aceita cobrir o risco contratado.
Como se vê no seguro-caução a A não é contraente; é, sim, beneficiária do seguro o que nos demonstra que, quanto a este negócio, estamos perante um contrato a favor de terceiro nos termos previstos nos artigos 443 e seguintes da Lei civil.
A A é pois, o promissário, ou seja, o terceiro estranho ao contrato que é celebrado sem a sua intervenção mas que se torna o credor da prestação assumida pelo devedor independentemente de a ter aceite (artigos 443 n. 1 e 444 n. 1).
O contrato a favor de terceiro - aqui, o seguro-caução - não vai influenciar minimamente o regime legal da locação financeira, até porque - como se viu - são diferentes as partes contratantes; e não é o facto de a A ser promissária do seguro-caução que altera esse princípio.
Como se diz no acórdão recorrido - e bem - o contrato a favor de terceiro faculta à A uma garantia suplementar (por isso mesmo ela é a promissária-credora) que acresce aos direitos legais de que é titular e que emergem do incumprimento pela B do contrato de locação financeira.
Como se sabe, nos contratos bilaterais - com prestações sinalagmáticas interconexionadas - o incumprimento culposo de um contraente confere ao outro o direito de optar ou pela resolução do contrato com a consequente indemnização pelo interesse contratual negativo ou pelo cumprimento em sucedâneo do contrato fazendo-se indemnizar pelo interesse contratual positivo (só nos casos do contrato-promessa é que o credor pode exigir o cumprimento contratual em espécie, ou seja, a execução específica).
Este conjunto de direitos potestativos legais forma o quadro legal que emerge do incumprimento contratual e são irrenunciáveis antecipadamente sendo nulas todas as cláusulas nesse sentido (artigo 809).
No caso concreto dos autos, a Autora resolveu o contrato incumprido pela B. Podia fazê-lo cumulando (como fez) com a indemnização respectiva, tudo de acordo com os artigos 432 e seguintes 289, 801 n. 2; qualquer acordo (invocado pela B mas não provado nos autos) que implicasse a renúncia prévia da A a estes direitos só porque era promissária noutro contrato, era nulo por força daquele artigo 809.
Só assim não seria se houvesse norma legal especial a permitir, nestes casos, uma alteração ao regime legal, como sucede, aliás, no seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Do exposto resulta, por conseguinte, a sem razão das alegações da recorrente: o seguro-caução não elimina a sua responsabilidade contratual por incumprimento da locação financeira; o seguro-caução reforça as garantias da Autora-credora que, aos direitos advindos daquele incumprimento e que são irrenunciáveis, adiciona o crédito a uma nova prestação (a da Seguradora).
4) A resolução contratual operada pela Autora tem pleno assento legal e convencional. Na verdade, incumprido o contrato pela B, a Autora podia operar a resolução nos termos em que o fez.
Não se vê, consequentemente, onde se localiza o enriquecimento sem causa invocado e, também, um eventual abuso de direito; o direito foi exercido pela Autora no quadro legal tipificado.
Por último, uma pequena referência para o pedido reconvencional a que a B alude.
Pequena referência para fazermos nossa a estranheza do acórdão recorrido; nunca a recorrente deduziu reconvenção alguma que lhe permita , agora, fazer a alusão que fez.
Improcedem, portanto, as conclusões das alegações da recorrente.
Termos em que se nega a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2000.
Noronha Nascimento,
Ferreira Vidigal,
Moura Cruz.