Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7507/06.4TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
MORTE
CADUCIDADE
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
COMUNICAÇÃO AO SENHORIO
APLICAÇÃO DE LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 05/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVA - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / ARRENDAMENTO URBANO - DIREITOS REAIS / POSSE / DIREITO DA PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Abílio Neto, “Lei do Inquilinato”, 6ª ed., p. 250.
- Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pp. 529 a 545, 590/591.
- Aragão Seia, “Arrendamento Urbano”, 7ª ed., pp. 598/599 .
- Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, pp.39, 137, 327, 359.
- Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 1996, pp. 239/240.
- Cunha de Sá, “Caducidade do Contrato de Arrendamento”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, vol. I, pág. 274
- Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, pp. 65/73, 98.
- Januário Gomes, Arrendamentos Para Habitação, 2ª ed., p.187; na Tribuna da Justiça, nº 24, Dezembro de 1986, pp 1 a 4.
- Manuel Rodrigues, A Posse, 3ª edição, p.181 e segs.; A reivindicação no direito civil português, RLJ, ano 57º, p. 144, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 113, 114, 115.
- Menezes Cordeiro, Direitos Reais, vol. I, pp. 551/566; A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., pp. 54 a 65; “O dever de comunicar a morte do arrendatário: o artigo 1111.º, nº 5 do Código Civil”, Tribuna da Justiça, nº 1 (Dezembro de 1989), pp. 29/38.
- Moitinho de Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 1976, p. 58.
- Mota Pinto, Direitos Reais, pp. 187/191, 238/ 239.
- Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5ª ed., pp. 84 a 88.
- Orlando de Carvalho, na RLJ, Ano 122.º, p. 65 e segs., sobretudo 68 e 105, e
- Pais de Sousa, Cardona Ferreira e Lemos Jorge, Arrendamento Urbano – Notas Práticas, p. 124.
- Pereira Coelho, Arrendamento, 1988, pp. 221/225; na RLJ, Ano 131.º, pp. 262, 360 e 363.
- Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 1996, p. 456.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, vol. II, 3ª ed, p. 631, 4ª ed., pp. 660/661, nota 3; vol. III, 2.ª ed., pp.5 e 8, nota 2, nota 4 a págs. 10/11, 930.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, N.ºS 1 E 2, 342.º, N.º1, 1107.º, 1111.º, N.º1 (COM A REDACÇÃO CONFERIDA PELO DL N.º 328/81, DE 04-12), 1251.º, 1252.º, N.º2, 1253.º, AL. C), 1263.º, AL. D), 1265.º, 1287.º, 1290.º, 1305.º, 1311.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 713.º, N.º5, 726.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 7.º.
DEC.-LEI N.º 303/2007 DE 24/08: - ARTIGOS 11.º E 12.º.
DL N.º 391-B/90, DE 15-10 (RAU): - ARTIGO 85.º.
LEI N.º 6/2006, DE 27-02 (NRAU): - ARTIGO 3.º, 26.º, 28.º, 57.º, 59.º.
LEI Nº 41/2013 DE 26/06: - ARTIGO 7.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº 410/97 DE 23/5/97, PUBLICADO NO DR, I SÉRIE-A, DE 8/7/1997, E NO BMJ 467.º-229.
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 08/09/09 NO PROCESSO N.º 1127/05.8TBCBR.C1.S1, 27/01/10 NO PROCESSO N.º 353/1998.L1.S1, 09/02/10 NO PROCESSO N.º 1448/07.5TVLSB.L1.S1, 14/09/10 NO PROCESSO N.º 699/04.9TBMGR.C1.S1, 16/03/11 NO PROCESSO Nº 366/03.0TBALB.C1.S1, 7/04/11 NO PROCESSO Nº 268003/08.5YPRT.L1.S1, 6/07711, NO PROCESSO Nº 204/07.5TBSVV.C1.S1, E DE 6/09/11, NO PROCESSO Nº 3579/06.0TBGDM.P1.S1.
-DE 01/10/09 NO PROCESSO N.º 1284/06.6TBVCT.S1 - 2.ª SECÇÃO, DE 08/10/09 NO PROCESSO N.º 3721/08 - 2.ª SECÇÃO, DE 11/03/10 NO PROCESSO N.º 6560/05.2TBLRA.C1.S1 - 2.ª SECÇÃO, E DE 23/09/10 NO PROCESSO N.º 4178/06.1TBBCL.G1.S1- 2ª SECÇÃO.
-E, AINDA, DE 9/09/08, PROC. Nº 08A1988, 26/04/10, PROC. Nº 106/06.2TBFCR.C1.S1 E DE 12/07/11, PROC. Nº 899/04.1TBSTB.E1.S1 EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião tem de conter os dois elementos definidores do conceito de posse, acolhido no art. 1251.º do CC: o corpus e o animus.

II - Os meros detentores ou possuidores precários são aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não praticam sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente, pelo que não podem adquirir por usucapião para si próprios; só através de demonstração expressa da inversão do título de posse, só praticando actos com o significado de que, doravante, quer possuir por si e deixar de possuir em nome de outrem, será possível ao possuidor precário adquirir por usucapião.

III - É à luz da lei em vigor ao tempo em que ocorreram os factos fundamentadores da caducidade, isto é, da morte do arrendatário, e não, em face da lei vigente ao tempo da celebração do contrato, ou daquela que se mostre em vigor, quando não coincida com aquela outra, que deve ser apreciada a causa se extinção invocada.

IV - O art. 57.º do NRAU estabelece um efeito de direito (a transmissão do arrendamento) cujo pressuposto legal de produção (morte do arrendatário) já se tinha verificado aquando da entrada em vigor da lei nova – DL n.º 391-B/90, de 15-10 [RAU] e Lei n.º 6/2006, de 27-02 [NRAU] – pelo que, enquanto lei nova, e na falta de cláusula de retroactividade, não pode regressar ou agir sobre o passado, atingindo efeitos no passado pela situação jurídica contratual já produzidos.

V - In casu, à data da morte do (primitivo) arrendatário estava em vigor o art. 1111.º, n.º 1, do CC, com a redacção conferida pelo DL n.º 328/81, de 04-12, operando a transmissão do arrendamento plenamente no momento da morte do transmitente, não estando dependente, quanto à sua efectivação ou eficácia, de alguma comunicação ao senhorio.

VI - Aquele preceito não exige essa comunicação, só a determinando no caso de o beneficiário renunciar à transmissão.
Decisão Texto Integral:

          Recurso de Revista nº 7507/06.4TBCSC.L1.S1[1]

   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



        I – RELATÓRIO


AA, BB, CC e DD, EE e FF, GG e HH, intentaram acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra II e JJ e KK, todos devidamente identificados nos autos, pedindo que sejam declarados donos e legítimos proprietários do imóvel identificado na petição inicial, e os réus condenados a restituírem-lhes o aludido imóvel que indevidamente ocupam, livre de pessoas e bens.

Para tanto, alegaram, em síntese, serem proprietários do referido prédio urbano, que adquiriram por sucessão por morte de LL e sua mulher MM, e que os réus ocupam sem consentimento dos autores e sem qualquer título que os legitime.

Valem-se os réus de um contrato de arrendamento outorgado em 19/12/1970 entre aquela MM, na qualidade de senhoria, e KK de JJ, pai da ré-mulher, na qualidade de arrendatário, não tendo os réus dado conhecimento aos autores do falecimento do primitivo arrendatário e da mulher do mesmo, tendo permanecido no prédio arrendado fazendo-se passar por aqueles, criando nos autores a convicção de se tratarem dos primitivos arrendatários, aproveitando o facto de saberem que nenhum deles saberia identificar fisicamente o primitivo arrendatário.

Mais alegam que só vieram a ter conhecimento da verdadeira identidade dos réus através da contestação apresentada pela aqui ré II em acção de despejo que anteriormente interpuseram contra o primitivo arrendatário, na qual a mesma se defendeu com a aquisição por usucapião do prédio arrendado. 

Regularmente citados, os réus contestaram excepcionando existir erro na forma de processo, e no demais impugnaram a versão dos factos apresentada pelos autores, sustentando que por desinteresse dos autores não procedem ao pagamento das rendas há mais de vinte anos, habitam o imóvel como seus verdadeiros donos, sem a menor oposição de quem quer que seja, suportando todos os encargos relativos a despesas de conservação, melhoramentos, e obrigações fiscais, o que têm feito ininterrupta e ostensivamente, à vista de toda gente, pelo que o prédio urbano em questão foi por eles adquirido por usucapião, e, em reconvenção, pedem o consequente reconhecimento do direito de propriedade, ou, a improceder este pedido, pugnam, a título subsidiário, pelo reconhecimento da existência e manutenção da vigência do contrato de arrendamento.

Os autores replicaram, pugnando pela improcedência da excepção e dos pedidos reconvencionais, pedindo a condenação dos réus em multa e indemnização por litigância de má fé, e, no demais, concluíram como na petição inicial.

Teve lugar a realização de audiência preliminar no decurso da qual foram admitidos os pedidos reconvencionais e julgada improcedente a excepção de erro na forma de processo. Proferido despacho saneador, procedeu-se à selecção da matéria de facto que não motivou alguma reclamação.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, e decidida a matéria de facto controvertida pelo despacho de fls. 770/777, não visado por reclamação, foi proferida sentença que, não encontrando indícios de actuação processual por parte dos réus passível de se subsumir a litigância de má fé, julgou a acção procedente, declarando os autores proprietários do prédio urbano em causa, condenando os réus a desocupá-lo e a entregá-lo devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação, e o pedido reconvencional improcedente dele absolvendo os autores.

Inconformados, apelaram os réus tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por unanimidade, no seu Acórdão de 8/03/12, decidido “julgar parcialmente procedente a apelação, revogar a sentença recorrida, reconhecer a existência e a vigência do contrato de arrendamento e, em consequência, julgar improcedente a acção, absolvendo os RR. do pedido” (fls. 1125 a 1162).

Os autores EE e FF e os réus recorrem desta decisão para este Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentam formulam as seguintes conclusões:

Os autores

1. Estabelece o artigo 1107. º do Código Civil que a transmissão do arrendamento deve nos três meses a contar da ocorrência da morte do arrendatário ser comunicada ao senhorio.

2. A eliminação da referência " não prejudica a transmissão do contrato" tem por fim a flexibilização do texto legislativo face à imperatividade de outros preceitos.

3. No fundo a questão na nossa modesta opinião reside no momento em que se pode considerar que operou a transmissão.

4. É que se por um lado existe um vácuo entre o momento da morte e o da eficácia da comunicação por outro lado a transmissão automática não gera menos problemas, designadamente desconfigura a sua natureza intuitus personae do contrato de locação.

5. Cremos que a orientação que se nos afigura mais adequada é a da caducidade do contrato do arrendamento.

6. A outra questão é a aplicação do NRAU ao contrato cuja existência e vigência foi reconhecida.

7. O NRAU e o presente regime aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, quanto aos contratos celebrados anteriormente, o art. 57° da Lei 6/2006 estabeleceu o regime transitório na transmissão por morte no arrendamento para habitação aplicável aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU.

8. No entanto ao contrário do que possa parecer, o dever de comunicação, previsto agora no art. 1107° do Código Civil é aplicável por força dos artigos 59°, 26° e 28° da Lei 6/2006.

9. Posto isto, o acórdão em equação violou o disposto nos artigos 1107.° do Código Civil, 59.°, 26.° e 28.° da Lei 6/2006.

Os réus

1 - A factualidade dada como provada pelo tribunal de primeira instância e mantida pela Relação de Lisboa permitia decidir positivamente quanto à pretensão dos recorrentes no que respeita á satisfação das exigências legais de lapso temporal e dos caracteres da posse que estão na base de uma aquisição por usucapião, designadamente:

36. Desde a data do início do contrato, em 1 de Dezembro de 1970, que, efectivamente, os réus lá começaram a viver.

37. Os réus habitam e continuam a habitar o locado, o que fazem desde 1 de Dezembro de 1970.

38. A partir de inícios da década de 90 do século passado, os réus passaram a ocupar a área de terreno baldio que, pelo contraio de arrendamento, não lhes pertencia fruir.

39. Cultivaram o terreno, enxertando árvores e colhendo os frutos desta e construíram um galinheiro e uma coelheira.

40. Os factos referidos em 38. e 39. foram levados à prática pelos réus, sem qualquer pedido de autorização aos autores nesse sentido.

41. Por volta do ano de 1992, os réus actuaram solve a vivenda, introduzindo-lhe melhorias, para assegurar o seu conforto, construíram um telheiro e uma garagem, alteraram a estrutura interna das divisões da vivenda] compondo-as de acordo com o seu gosto e necessidades.

42. Para o efeito, derrubaram paredes, o que alterou a estrutura interna do imóvel, tendo pintado o imóvel externa e internamente, substituíram o pino e promoveram obras que conferiram maior conforto à casa.

43. Não foi dado conhecimento, nem pedida autorização aos autores, para a feitura de quaisquer obras. " (...)

"47. Os réus cumpriram algumas obrigações fiscais derivadas da propriedade do imóvel, designadamente o pagamento da contribuição autárquica relativa aos anos de 1993, 1994, 1996 e 2000. " (...)

"50. Os réus habitam a vivenda, há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, e suportando todos os encargos relativos a despesas de conservação e melhoramentos, o que têm feito ininterrupta e ostensivamente, à vista de toda a gente." (negrito da peça).

2 - A factualidade dada como provada no ponto 50 da matéria de facto constitui um exemplo de escola de verificação de usucapião.

3 - Porém, mal andou a Relação de Lisboa ao entender que toda a actuação material dos apelantes sobre o imóvel não terá sido uma verdadeira posse, uma posse boa para usucapir.

4 - A posse é constituída por dois elementos: o corpus e o animus.

5 - Há mais de vinte anos que os recorrentes vêm praticando, sobre o prédio urbano em análise, actos integradores do elemento objectivo da posse.

6 - Porém, mal andou a decisão ao entender que a posse dos apelantes é desprovida de animus, assim violando o disposto no art. 1251.º do CC pois "Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real."

7 - Não colhe a orientação da Relação de Lisboa segundo a qual "apesar de sempre se ter entendido, à boa maneira subjectivista que, para que haja posse, é necessário algo mais do que o simples poder de facto, sendo necessário que haja por parte do detentor a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela, a verdade é que, na situação dos autos, a opção por uma teoria mais ou menos objectivista ou subjectivista se torna irrelevante, pois que aquelas teorias não recusam construções "objectivas do "animus" como as que resultam da "teoria da causa" e esta será suficiente para rebater a tese dos apelantes".

8 - Efectivamente, a boa lição é a que "em caso nenhum o animus poderia ser confundido com a convicção de ser titular do direito. Não há que excluir como possuidor quem age de má fé; todavia, ele sabe que está lesando o direito de outrem. (JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENÇÃO, Direito Civil - Reais, Coimbra Editora, 5." Edição, 1993, pág. 85).

9 - Como é óbvio, quem inverte o título da posse sobre determinado bem sabe que o mesmo não lhe pertence. Tal não significa que não seja possuidor. Será é um possuidor de má-fé, carácter da posse com relevância ao nível do prazo relevante para efeitos da usucapião (cfr. arts. 1260.°, n.° 1 e 1296.°, ambos do CC).

10 - O animus é, pois, a intenção de agir como titular do direito a que o exercício efectivo do poder de facto se refere. E, reitere-se, a actuação dos recorrentes que foi dada como provada é esta: "50. Os réus habitam a vivenda, há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, e suportando todos os encargos relativos a despesas de conservação e melhoramentos, o que têm feito ininterrupta e ostensivamente, á vista de toda a gente." (negrito da peça).

11 - O exercício de poderes sobre a coisa, não havendo título ou declaração que esclareça o significado desse exercício, permite concluir que há posse, porque há corpus, sem que seja necessário deslindar o elemento animus.

12 - Com isto, o art. 1253.°, a) é compatível com uma posição objectivista. Basta que subentendamos que a intenção que refere é a intenção declarada, elemento objectivo que retira ao corpus a sua consequência normal." (JOSE DE OLIVEIRA ASCENÇÃO, Ob. cit., pág. 88).

13 - A concepção objectivista do instituto é a concepção dominante pois "Verificado o corpus no sentido atrás fixado, há, em princípio, posse, ou, como a lei também a designa, mera posse. (...) Como primeiro ponto a salientar, podemos invocar a noção legal do art. 1251.°, onde não se faz referência ao animus, como elemento do conceito, sendo antes marcadamente objectivista a forma como o instituto nele é configurado. E o mesmo se pode dizer da generalidade das normas que, no Código, se relacionam com este problema. Em boa verdade, só na al. a) do art. 1253. ° se encontra uma referência à "intenção de agir como beneficiário do direito ", na caracterização dos vários casos de detenção. (...) Ao entra no debater gerado em redor da interpretação deste preceito, começamos por excluir a possibilidade de nele se consagrar uma mera intenção interna ou psicológica, pelas razões já antes ditas. Ela tem de, por alguma forma, se tornar perceptível.

14 - Só pode, pois, relevar aqui uma intenção por qualquer forma exteriorizada por quem exerce os poderes de facto, ou seja, apurada por recurso a elementos apreensíveis por terceiros, e estes só podem ser de cariz objectivista. Mas isto conduz a afirmar que, havendo corpus, em princípio há posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade segundo a qual ele age sem aniusm possidendi. E este elemento negativo que desvaloriza ou descaracteriza o corpus.

15 - Vale, a este respeito, tanto uma manifestação expressa como tácita da vontade, desde que quanto a esta segunda modalidade, o comportamento do possuidor a permita deduzir, com toda a probabilidade (n.° 1 do art. 217 (do CC) (parêntesis da peça) (LUÍS a. CARVALHO FERNANDES, Ob. cit, págs. 264 a 266).

16 - Significa isto que, bem ao arrepio do que foi decidido no acórdão recorrido, onde há corpus - como foi reconhecido pelo julgador - há, em princípio, animus, logo há posse juridicamente relevante para efeitos de usucapião.

17 - Desta forma, a sentença proferida, com a interpretação efectuada, viola o disposto nos arts. 1251.°, 1253.º, alínea a) e art. 1296.°, todos do CC.

18 - Impõe-se, pois, a substituição desta por uma outra que reconheça a usucapião do imóvel por parte dos recorrentes.

Foram oferecidas contra-alegações.

Entretanto, por falecimento do réu KK, foi suspensa a instância tendo vindo a ser habilitados como seus sucessores a ré II e JJ e NN, filho daquele.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


ª

As conclusões dos recorrentes – balizas delimitadoras do objecto dos recursos (arts. 684.º, nº 3 e 690.º, nº 1 do Código de Processo Civil – CPC [2]) – consubstanciam as seguintes questões, por precedência lógica:

a) se os réus adquiriram o prédio por usucapião;

b) se ocorreu a caducidade do contrato do arrendamento.

     ª


II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Vem dada por assente a seguinte factualidade:

1. O prédio urbano denominado “Vivenda ...”, Estrada Nacional 247-5, Km 12.600, na localidade de ..., entre ... e ..., freguesia de ..., concelho de Cascais, encontra-se descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º …, a favor de AA, CC, EE e GG, por sucessão por morte de LL e mulher MM, e inscrito na matriz predial urbana da 2.ª Repartição de Finanças de Cascais, sob o artigo urbano n.º …, a favor de EE, GG, CC e AA.

2. Os autores adquiriram o imóvel, sem determinação de parte ou direito, na qualidade de herdeiros, por sucessão por morte de LL e sua mulher MM.

3. Em 19 de Dezembro de 1970, foi celebrado um contrato de arrendamento entre a referida MM e KK de JJ, nos termos do qual aquela lhe deu de arrendamento para habitação o prédio supra identificado, nos termos e condições ali consignados.

4. O ora autor GG interveio na celebração do contrato de arrendamento como procurador da senhoria MM, que também era conhecida por OO.

5. O autor GG conheceu física e fisionomicamente o falecido KK de JJ, pois foi quem, como procurador da primitiva senhoria, outorgou no contrato de arrendamento. 

6. Em momento posterior à outorga do contrato de arrendamento, referido em 3., o autor GG emigrou para o Canadá, daí se tendo deslocado para o Dubai, onde actualmente se encontra radicado.

7. A primitiva senhoria, MM, veio a falecer em 16 de Agosto de 1972, cerca de ano e meio após a celebração do contrato de arrendamento.

8. Após o falecimento da primitiva senhoria, MM, foi a autora CC quem passou a receber as rendas.

9. Entre 1974 e 1979, a autora CC emigrou para o Canadá, onde ainda reside.

10. Algumas rendas foram pagas em dinheiro, contra a entrega dos respectivos recibos.

11. Os recibos sempre foram passados em nome de KK de JJ.

12. Existiu um período em que foi acordado com o arrendatário, que sempre se identificou como KK de JJ, que as rendas passariam a ser pagas a uma amiga da senhoria MM, de nome PP, sendo esta casada com um individuo de nome QQ, tendo tal situação terminado em meados da década de setenta do século passado.

13. Desde a altura em que, em meados da década de setenta do século passado, as rendas deixaram de ser pagas à D. PP, era o réu que se deslocava a um estabelecimento comercial de restauração, de que o autor EE era proprietário, e aí procedia ao pagamento das rendas, tendo esta prática perdurado, sensivelmente, até ao ano de 1989.

14. Tais rendas eram usualmente pagas de seis em seis meses, sendo o autor EE, ou o filho deste, que preenchiam os recibos correspondentes.

15. A partir de 1989, e até 1994, foi o autor EE quem passou receber as rendas, deslocando-se ao imóvel, muitas vezes acompanhado pelo seu filho NN, para aí receber as rendas do arrendatário, que julgava tratar-se efectivamente do primitivo arrendatário KK de JJ.

16. Este sempre assim se identificou e assim era chamado pelo autor EE, quando na realidade, a pessoa a quem directamente se dirigiam e chamavam de “Senhor NN”, era, afinal, o ora réu marido, genro de KK de JJ.

17. O autor EE deslocava-se ao imóvel, para esse fim, uma ou duas vezes por ano, dado o diminuto valor das rendas.

18. A partir de determinada altura, que não se logrou apurar com inteiro rigor, mas situada entre o mês de Abril de 1994 e finais do ano de 1999, e em resultado da oposição dos autores em face de obras não autorizadas no prédio e ao pedido da sua demolição, o ora réu marido começou a revelar um comportamento agreste e de alguma hostilidade para com os autores, concretamente para com o autor EE e para com o seu filho NN, deixando os réus de pagar as rendas, apesar de interpelados pelos autores para o efeito.

19. As ameaças dirigidas pelo réu marido a AA, filho dos autores EE e FF, inviabilizou, desde então, qualquer contacto dos autores com aqueles que julgavam ser o primitivo arrendatário e mulher, afinal os ora réus.

20. Tendo os ora autores vindo a suceder à referida MM, na qualidade de herdeiros legais, nos direitos e obrigações de que era titular, adquirindo a posição contratual que aquela detinha no aludido contrato, os ora autores intentaram uma acção de despejo, com fundamento na falta de pagamento da renda e, ainda, na realização de obras não autorizadas pelo arrendatário, que correu termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e da Comarca de Cascais.

21. A referida acção de despejo foi proposta contra o arrendatário KK de JJ e mulher, que os ora autores vieram posteriormente a identificar como II

JJ, ora ré mulher, cujo nome obtiveram através de informação prestada por uma vizinha dos ora réus.

22. Na sequência da citação efectuada, a ora ré mulher, não se considerando parte naquela acção, apresentou, porém, “Impugnação” à referida acção.

23. Com aquela acção de despejo, pretendiam os autores a resolução do já aludido contrato de arrendamento e, consequentemente, a condenação dos ali réus (o primitivo arrendatário e a sua mulher) na entrega do locado, devoluto de pessoas e bens, além do pagamento das rendas vencidas e não pagas, e respectivos juros.

24. Os autores tiveram conhecimento do falecimento do arrendatário KK de JJ no decurso do ano de 1989 ou de 1990, em data anterior à propositura da acção de despejo.

25. A ré mulher, filha do arrendatário, nunca deu conhecimento aos autores do falecimento do seu progenitor, ocorrido em 1981, nem do falecimento da sua progenitora, bem sabendo que os autores ignoravam que aqueles tinham falecido.

26. Os réus nunca esclareceram os autores da sua verdadeira identidade.

27. Pelo contrário, o réu marido assumiu perante os autores a identidade de KK de JJ, criando naqueles a convicção de que se tratava do primitivo arrendatário.

28. Os réus aproveitaram-se do facto de saberem que nenhum dos autores, pelo menos os que ainda residiam em Portugal, saberia identificar fisicamente o primitivo arrendatário, KK de JJ.

29. Apesar de omitir aos ora autores a morte do seu pai, primitivo arrendatário, a ora ré mulher continuou a pagar a renda, pelo menos até à referente ao mês de Abril de 1994, inclusive.

30. A ora ré mulher não renunciou ao direito de transmissão do arrendamento.

31. E porque não pretendia, nem pretendeu, renunciar à transmissão do arrendamento, continuou a habitar o locado até hoje.

32. Por volta de 1993/1994, os autores, concretamente o autor EE e o seu filho NN (este, entretanto, por razões de disponibilidade, constituído procurador dos herdeiros no tratamento de algumas questões relacionadas com o processo sucessório), e o ora réu marido, que, sabe-se agora, se fazia passar pelo primitivo arrendatário, chegaram a discutir a transmissão da propriedade do imóvel para este último.

33. Aquando da discussão da transmissão da propriedade do imóvel para o réu marido, a que é feita referência em 32., a proposta deste foi a de adquirir o imóvel pelo valor da matriz.

34. O que não foi, obviamente, aceite pelos autores.

35. Os réus sabem, por isso, que o prédio não lhes pertence e que é propriedade dos autores.

36. Desde a data do início do contrato, em 1 de Dezembro de 1970, que, efectivamente, os réus lá começaram a viver.

37. Os réus habitam e continuam a habitar o locado, o que fazem desde 1 de Dezembro de 1970.

38. A partir de inícios da década de 90 do século passado, os réus passaram a ocupar a área de terreno baldio que, pelo contrato de arrendamento, não lhes pertencia fruir.

39. Cultivaram o terreno, enxertando árvores e colhendo os frutos destas e construíram um galinheiro e uma coelheira.

40. Os factos referidos em 38. e 39. foram levados à prática pelos réus, sem qualquer pedido de autorização aos autores nesse sentido.

41. Por volta do ano de 1992, os réus actuaram sobre a vivenda, introduzindo-lhe melhorias, para assegurar o seu conforto, construíram um telheiro e uma garagem, alteraram a estrutura interna das divisões da vivenda, compondo-as de acordo com o seu gosto e necessidades.

42. Para o efeito, derrubaram paredes, o que alterou a estrutura interna do imóvel, tendo pintado o imóvel externa e internamente, substituíram o piso e promoveram obras que conferiram maior conforto à casa.

43. Não foi dado conhecimento, nem pedida autorização aos autores, para a feitura de quaisquer obras.

44. As obras, quer a demolição de uma parede interna, quer a construção de uma garagem, de um telheiro e de um galinheiro, não são contemporâneas da celebração do contrato de arrendamento.

45. As referidas obras foram realizadas por volta do ano de 1992, tendo-se o autor EE e o seu filho, numa das deslocações que efectuaram ao local, deparado com tais obras já concluídas.

46. A construção da garagem, do telheiro e do galinheiro foi, de facto, verificada pelo autor EE e pelo seu filho, aquando uma das suas deslocações ao local, para receber a renda, além de que é visível do exterior.

47. Os réus cumpriram algumas obrigações fiscais derivadas da propriedade do imóvel, designadamente o pagamento da contribuição autárquica relativa aos anos de 1993, 1994, 1996 e 2000.

48. Os montantes referidos em 47., foram deduzidos no pagamento das rendas.

49. Os autores cumpriram algumas obrigações fiscais derivadas da propriedade do imóvel, a saber, a taxa de conservação de esgotos, relativa ao ano de 1986, a contribuição autárquica relativa aos anos de 1988, 1989, 1997, 1998, 1999, 2001 e 2002, e o imposto municipal sobre imóveis, relativo aos anos de 2004, 2005, 2006, 2007 e 2008.

50. Os réus habitam a vivenda, há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, e suportando todos os encargos relativos a despesas de conservação e melhoramentos, o que têm feito ininterrupta e ostensivamente, à vista de toda a gente.

DE DIREITO

A) Se os réus adquiriram o prédio por usucapião

Sustentam os recorrentes/réus que a factualidade dada como provada permitia decidir positivamente quanto à sua pretensão no que respeita à satisfação das exigências legais de lapso temporal e dos caracteres da posse que estão na base de uma aquisição por usucapião.

Nesse sentido, argumentam, em síntese, que a factualidade dada como provada no ponto 50 da matéria de facto constitui um exemplo de escola de verificação de usucapião, pois há mais de vinte anos que vêm praticando sobre o prédio urbano em causa actos integradores do elemento objectivo da posse, e onde há corpus - como foi reconhecido pelo julgador - há, em princípio, animus, logo há posse juridicamente relevante para efeitos de usucapião.

Apreciando.

À parte o pormenor de ligeiríssimas adaptações, que em nada inovam e alteram o argumentário anterior, as alegações apresentadas pelos recorrentes relativamente a esta questão reproduzem, em alguns trechos ipsis verbis, as alegações da apelação, repetindo as razões jurídicas que apresentaram na apelação e formulando as conclusões acima transcritas que, igualmente, mais não são que a reprodução das apresentadas na Relação.

Isto é, os recorrentes insistem na revista na posição e argumentação jurídica que assumiram e defenderam na apelação e que o acórdão recorrido não acolheu com resposta esclarecedora.

Ora, neste Supremo Tribunal vem-se sedimentando de há vários anos a esta parte corrente jurisprudencial no sentido de “que sempre que a alegação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça seja mera reprodução da que foi apresentada perante a Relação se justifica plenamente o uso da faculdade de remissão para os fundamentos do acórdão recorrido, ao abrigo do n.º 5 do artigo 713.º, ex vi artigo 726.º, ambos do CPC[3].

O acórdão impugnado deu resposta detalhada e bem generosa à questão suscitada pelos ali apelantes, de molde a merecer a nossa total concordância, razão pela qual se justificaria plenamente o uso daquela faculdade de remissão. Todavia, em reforço do que nessa decisão se deliberou, dir-se-á o seguinte:

A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251.º do Código Civil (a que pertencerão todos os normativos doravante citados sem menção expressa de origem) tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja, a relação material com a coisa, e o “animus”, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.

Neste quadro conceptual se acolheu o acórdão impugnado[4], contra ele se insurgindo os recorrentes/réus preconizando a conceptualização da posse caracterizada pela teoria objectivista, que prescinde do chamado elemento subjectivo, o “animus”, defendendo que à luz dessa teoria a matéria de facto adveniente do ponto 50 dos factos provados constitui um “exemplo de escola da verificação da usucapião”.

Mas, ao invés do que sustentam os recorrentes, a doutrina dominante sustenta que o conceito de posse acolhido nos arts. 1251.º e segs. deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa exigência de “corpus” e “animus possidendi[5].

De opinião contrária pronunciam-se Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, vol. I, pág. 551/566 e in “A Posse; Perspectivas Dogmáticas Actuais”, 2ª ed., págs. 54 a 65 onde revendo a sua posição anterior considera que o sistema português da posse é de natureza mista; Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 5ª ed., págs. 84 a 88, Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 1996, págs. 239/240, e KK Alberto Vieira, in “Direitos Reais”, 2008, págs. 529 a 545.

Então, no alinhamento da opinião dominante, o acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade.

Controvertem os recorrentes, procurando suporte na lição de Oliveira Ascensão que citam e transcrevem, que o exercício de poderes sobre a coisa, não havendo título ou declaração que esclareça o significado desse exercício, permite concluir que há posse, porque há corpus, sem que seja necessário deslindar o elemento animus.

Mas a assim se entender, como refere precisamente Oliveira Ascensão, “é pela própria relação jurídica que está na base da posse que se verifica qual o animus do possuidor[6]. Ora, acontece que os recorrentes iniciaram o poder de facto sobre o prédio em causa, adquiriram a sua posse, através do contrato de arrendamento celebrado por KK de JJ, seu pai e sogro. Deste modo, se o animus é determinado antes de mais pela relação subjacente, qualquer que seja o concreto intuito de quem possui, se é pelo título que se afere da relação do possuidor com a coisa, então, no caso concreto há título, advém ele do contrato de arrendamento celebrado. E esse título, qualificativo da posse, confere-lhes a qualidade de possuidores em nome alheio.

Se faltasse o título, em tal caso a lei dispõe que “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto...” (nº 2 do art. 1252.º), visando facilitar a prova do animus possidendi no reconhecimento de que se traduzindo o mesmo num elemento de natureza psicológica é evidente a grave dificuldade da sua prova[7]. Contudo, esta presunção iuris tantum para o caso não tem relevância, por não ocorrer alguma situação de dúvida quanto ao modo como se iniciou o poder de facto dos recorrentes sobre o imóvel.

Deste modo, mesmo seguindo a perspectiva objectivista tão cara aos recorrentes, de acordo com a “teoria da causa” apresentam-se eles relativamente ao imóvel como arrendatários, como detentores ou possuidores precários, e não como proprietários.                                                                                                                                                                                                                    

     ª

Essa circunstância, incontroversa nos autos, faz deles, como se disse, “possuidores em nome de outrem (cfr. al. c) do art 1253.º), incompatível com uma posse animo domini já que a faculdade de gozo do prédio foi-lhes proporcionada por um contrato de arrendamento. O inquilino de um prédio “em nome próprio exerce apenas o direito obrigacional de arrendatário, direito que não se confunde com o direito de propriedade no corpus, isto é, na detenção e no uso do prédio[8].

Os meros detentores ou possuidores precários são aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não praticam sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente, pelo que não podem adquirir por usucapião para si próprios. Tanto assim que, como dispõe o art. 1290.º, “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”.

Face à aludida concepção subjectivista da posse plasmada no ordenamento jurídico nacional, integrada pelos seus dois elementos estruturais, o “corpus” e o “animus possidendi[9], o acto de aquisição relevante para efeitos de usucapião deve consubstanciar esses dois elementos, pelo que só através de demonstração expressa da inversão do título de posse, só praticando actos com o significado de que, doravante, quer possuir por si e deixar de possuir em nome de outrem, será possível ao possuidor precário adquirir por usucapião.

Daí que os recorrentes, detentores precários, só poderiam ter adquirido a posse do imóvel em nome próprio, para a partir desse momento contar em seu beneficio o prazo destinado à sua aquisição por usucapião, por inversão do titulo de posse (interversio possessionis), nos termos da al. d) do art 1263.º.

Com efeito, a inversão do título de posse supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. A uma situação sem relevo jurídico especial vem substituir-se uma posse com todos os seus requisitos e com todas as suas consequências legais, também a via da usucapião definida pelo artigo 1287.º [10].

A inversão do título da posse conforme estabelece o art 1265.º pode dar-se por dois meios: “por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome se possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. Referem Pires de Lima e Antunes Varela, com bastante a propósito para o caso em apreço, que “ O caso mais corrente é o do arrendatário que, em certo momento, se recusa a pagar as rendas com o fundamento de que o prédio é seu.

Torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía... Não basta sequer que a detenção se prolongue para além do termo do título (depósito, mandato, usufruto a termo, etc.) que lhe servia de base. O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extra-judicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito[11].

Não satisfaz, assim, a mera constatação de que houve a intenção por parte dos detentores precários de inverter o título de posse. Os factos expoentes da “contraditio”, para este efeito da inversão do título de posse, obtêm-se com a prática de actos materiais, positivos e inequívocos, reveladores de que se pretende actuar como titular do direito real que, até então, se considerou pertencente a outrem, na presença ou com o conhecimento daquele a quem se opõe[12].

Sendo este o quadro normativo do instituto, é inquestionável que no caso em apreço não se mostra provado algum circunstancialismo integrante de uma inversão do título de posse. Como acertadamente se releva na decisão impugnada “não há nos autos quaisquer factos de que decorra que em determinado momento os RR. se opuseram a qualquer um dos AA., ou a um seu representante, no sentido de deixarem de pagar rendas tornando directamente conhecido deles, por qualquer meio, a sua intenção de passarem a actuar relativamente ao prédio urbano que detinham como titulares do direito de propriedade.

De facto, em virtude da posse em nome próprio não lhes ter sido originariamente conferida, essa inversão teria que passar pela oposição dos recorrentes/réus aos recorridos/senhorios/autores, oposição que teria de se consubstanciar, como já referido, em actos inequivocamente reveladores de que se passaram a comportar como proprietários do prédio e levados ao conhecimento daqueles ou por eles reconhecíveis.

Bem pelo contrário, quando um dos autores se apresentou e comportou perante eles como senhorio, os recorrentes não contradisseram essa sua qualidade e comportaram-se como arrendatários. Veja-se que por volta de 1993/1994 o autor EE e o seu filho negociaram com o recorrente marido a transmissão da propriedade do imóvel, e que este fez uma proposta de aquisição, pelo valor da matriz, porém, não aceite (factos provados 32 a 34).

Por outro lado, pese embora se tenha considerado provado que os recorrentes a partir de inícios da década de 90 do século passado passaram a ocupar a área de terreno baldio, que pelo contrato de arrendamento não lhes pertencia fruir, cultivaram o terreno, enxertaram árvores, colheram frutos, construíram um galinheiro e uma coelheira, tudo sem qualquer pedido de autorização aos autores nesse sentido (38 a 40 dos factos provados), e que por volta do ano de 1992 executaram na vivenda melhorias para assegurar o seu conforto (41 a 43 dos factos provados), tal conduta em nada é incompatível com a sua condição de arrendatários, se mostra irrelevante para operar a inversão do título da posse pois que tais actos podem ser tão só manifestação de abusos e violações do contrato de arrendamento que não alteram a situação jurídica do detentor, sobretudo se se atentar que essas intervenções ocorreram ainda em data anterior à já citada negociação de 1993/1994 para venda do imóvel (32 e 33 dos factos provados).

Do mesmo modo se patenteia irrelevante, não exprime uma posse exercida contra os reivindicantes/autores em nome de quem possuíam, o facto de os recorrentes haverem suportado algumas despesas com o pagamento da contribuição autárquica relativa aos anos de 1993, 1994, 1996 e 2000, uma vez que esses montantes não só foram deduzidos no pagamento das rendas (48 dos factos provados) como dos respectivos títulos dessa contribuição constava a identidade de outro devedor, precisamente LL de quem os autores herdaram o imóvel (cfr. docs. de fls. 565, 566, 569, 570, 571 e 572 em que se alicerçou a convicção do decisor para responder aos correspondentes quesitos nºs 70.º, 85.º e 86.º, e nº 2 dos factos provados). Acresce que os autores cumpriram, e têm vindo a cumprir, obrigações fiscais derivadas da propriedade do imóvel, como a taxa de conservação de esgotos relativa ao ano de 1986, a contribuição autárquica relativa aos anos de 1988, 1989, 1997, 1998, 1999, 2001 e 2002, e o imposto municipal sobre imóveis, relativo aos anos de 2004, 2005, 2006, 2007 e 2008 (49 dos factos provados).

Se tudo isto não satisfaz, diga-se, então, que os factos provados nos pontos 30, 31 e 35, pela sua eloquência, bastam para resultar excluída, de forma peremptória e definitiva, a posse em nome próprio dos recorrentes. Posse esta que alegaram mas não lograram demonstrar, como igualmente resulta das respostas negativas dadas aos quesitos 63.º, 64.º, 76.º, 77.º e 79.º e das omissivas, por prejudicadas, dadas aos quesitos 80.º e 81.º da base instrutória.

Como refere KK Alberto Vieira, “ …o comportamento de oposição deve ser exteriormente reconhecível pelo possuidor quando a oposição não lhe é comunicada e significar, inequivocamente, a afirmação de um direito próprio pelo detentor, diverso naturalmente do até aí exteriorizado por ele. A não entrega da coisa no final do prazo contratual, o incumprimento de obrigações, como é o caso do não pagamento das rendas pelo senhorio, a controvérsia sobre a validade do contrato ou sobre as obrigações das partes, por exemplo, não têm por si só o significado correspondente a uma inversão do título da posse se não forem acompanhados da afirmação inequívoca de um direito próprio sobre a coisa (…).”[13].

Sabendo os recorrentes/réus que o prédio em causa é propriedade dos autores, como vem assente no ponto 35, não podem, sem dúvida, ter exercido os poderes de facto apurados com o animus correspondente ao exercício do direito de propriedade, ou de qualquer outro direito real sobre o mesmo. Portanto, não está demonstrada a inversão do título da posse precária em que estavam investidos, demonstração que a eles incumbia em conformidade com o disposto no nº 1 do art. 342.º.

Por tudo isto, não pode ser lido como pretendem os recorrentes, nem tem a primordial relevância que lhe apontam, o facto nº 50.º, segundo o qual ” Os réus habitam a vivenda, há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, e suportando todos os encargos relativos a despesas de conservação e melhoramentos, o que têm feito ininterrupta e ostensivamente, à vista de toda a gente “. Tudo isso é certo, e perfeitamente inteligível no âmbito do contrato de arrendamento. Não constituem circunstâncias excepcionais que exorbitem da qualidade de arrendatários, nem constitui base factual suficiente para a inversão do título da posse.

Deste modo, os recorrentes/réus apenas se podem considerar meros detentores, exercendo posse em nome de outrem, pelo que não tendo exercido poderes de facto em termos de direito de propriedade, por falta do correspondente animus, não adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o aludido imóvel.

Improcedem as conclusões da alegação recursória dos recorrentes/réus, pelo que não merece censura o pendor decisório do acórdão revidendo.

B) Se ocorreu a caducidade do contrato do arrendamento

Improcedendo o pedido principal reconvencional, vejamos agora, passando à revista dos autores, se deve proceder o pedido reconvencional subsidiário formulado sob al. d) da contestação/reconvenção.

Estamos perante uma típica acção de reivindicação (cfr. art. 1311.º). O pedido principal dos autores visa o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio urbano denominado “Vivenda ...”, Estrada Nacional 247-5, Km 12.600, na localidade de ..., freguesia de ..., concelho de …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º …, a favor de AA, CC, EE e GG, por sucessão por morte de LL e mulher MM, e inscrito na matriz predial urbana da 2.ª Repartição de Finanças de Cascais, sob o artigo urbano n.º 785, a favor de EE, GG, CC e AA.

Prescreve o art. 1305.º que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

Por sua vez, a defesa judicial do direito de propriedade efectua-se através da acção de reivindicação, que o artigo 1311.º, no seu nº 1, concretiza, ao dispor que “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.

Na acção de reivindicação há, assim, “um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide.”[14].

São, pois, dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o pedido principal, de efectivo reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa (pronuntiatio), e o consequente pedido de restituição da coisa (condemnatio), apesar deste ser a consequência lógica daquele reconhecimento[15].

Incumbe, por isso, ao autor a prova do seu direito de propriedade e, se invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade (ocupação, usucapião ou acessão), apenas precisará de provar os factos de que emerge esse seu direito.

Mas, se a aquisição é derivada, não basta que exiba um título translativo, havendo ainda necessidade de demonstrar que o direito já existia no transmitente. Na verdade, não basta invocar, v.g., um contrato de compra e venda, a sucessão por morte, ou uma doação, que não são constitutivos do direito de propriedade, mas tão-só translativos do mesmo, sendo antes obrigatório demonstrar que esse direito já existia no transmitente, prova que em muitos casos é difícil de conseguir, tornando de excepcional importância as presunções legais resultantes da posse e do registo (arts. 1268.º e 7.º do Código do Registo Predial - CRP)[16].

No caso em apreço, recorde-se que, como titulares da inscrição de aquisição, os autores gozavam e gozam da presunção do direito de propriedade sobre o prédio reivindicado, acima descrito (art. 7.º do CRP). Presunção que não foi ilidida, restando, pois, saber se, tal como subsidiariamente formularam em termos reconvencionais, os réus têm sobre o imóvel direito de arrendamento que obstaculize à procedência da acção, implicando que o prédio não possa ser restituído aos autores.

A Relação não sufragou o entendimento seguido na sentença da 1ª instância de que o não cumprimento do dever de comunicação, ou o seu intempestivo exercício, da morte do arrendatário fosse sancionado com a caducidade da transmissão do arrendamento, tendo-a revogado e concluído ter a ré direito ao arrendamento, que se lhe transmitiu, pese embora o silêncio desta a respeito da morte do pai junto dos autores.

Dissentindo, os autores vêm defender que o NRAU e o presente regime aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, mas o art. 57.° da Lei 6/2006 estabeleceu o regime transitório na transmissão por morte no arrendamento para habitação aplicável aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU.

Defendem que o dever de comunicação, previsto agora no art. 1107.°, é aplicável por força dos artigos 59.°, 26.° e 28.° da Lei 6/2006, de acordo com o mesmo a transmissão do arrendamento deve ser comunicada ao senhorio nos três meses a contar da ocorrência da morte do arrendatário, e daí a caducidade do contrato do arrendamento.

Vejamos.

Quanto a este ponto, essencial para a solução do litígio, afirma-se no acórdão recorrido que “É a lei em vigor ao tempo da conclusão do contrato que regula as condições da sua validade formal e substancial e o potencial dos seus efeitos, como resulta do princípio geral de aplicação das leis constante do art 12º CC.  Mas, alterando-se essa lei,  e regendo a mesma a respeito do conteúdo do contrato sem olhar aos factos de que o mesmo nasceu, passarão a aplicar-se-lhe as disposições da lei nova, como resulta do nº 2 desse art 12º, desde que aquele se mostre subsistente à data do início da vigência dessa lei.

O que significa que ao contrato dos autos, concluído ao tempo em que a disciplina do contrato de arrendamento se continha no CC de 1966, desde que o mesmo se mostre subsistente, haver-se-lhe-ia de aplicar a lei actualmente em vigor a respeito do (conteúdo do) arrendamento, ou o específico regime transitório nela contido.

Saber, porém, se o contrato subsiste em função da morte do arrendatário e, em caso afirmativo, para quem, e como se transmite, é questão que haverá de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico morte, cujos efeitos estão em causa determinar “.

Assim é na realidade, a decisão recorrida socorreu-se de bom critério na definição da lei aplicável. O NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006[17], veio estabelecer no artigo 59.º, n.º 1, a sua aplicação aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistiam nessa data, “sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”. Normas transitórias que constam do Título II da referida Lei, de entre as quais importa o artigo 28.º [18] a estabelecer que relativamente aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, aprovado pelo DL nº 321-B/90, de 15/10, que é a situação versada nos autos posto que o contrato em causa teve a sua celebração em 19/12/70, se aplica o previsto no art. 26.º (regime transitório aplicável aos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU), cujo nº 2 determina a aplicação à transmissão por morte do disposto no artigo 57.º.

Todavia, a morte do (primitivo) arrendatário ocorreu em 23/3/1982 (nº 3 dos factos provados e assento de óbito de fls.62[19]).

A sucessão de leis – Código Civil (art.1111.º com a redacção que o DL 328/81 de 4/12 lhe conferira), RAU (art. 85.º) e NRAU (art. 57.º) - destinadas a regular a mesma situação de transmissão do arrendamento por morte do arrendatário dá lugar ao suscitado problema da sua aplicação no tempo, a resolver à luz do regime geral de direito transitório formal estabelecido no art. 12.º do Código Civil.

No seu n.º 1 é consagrado o tradicional princípio da não retroactividade das leis. A lei nova só dispõe para o futuro, não se aplicando, pois, em princípio, a factos passados e aos seus efeitos, e, assim, às relações jurídicas já constituídas à data da sua entrada em vigor.

Princípio da não retroactividade que sofre um desvio na 2.ª parte do n.º 2 ao consagrar a regra de aplicação imediata da lei nova ao conteúdo ou aos efeitos futuros das situações jurídicas constituídas sob o império da lei antiga que subsistam à data da entrada em vigor da lei nova.

O que, por força do princípio da não retroactividade, importa evitar é a valoração ex novo de factos passados, cujos efeitos de direito se fixaram ou cristalizaram duma vez por todas.

Quando a lei nova dispõe sobre os efeitos decorrentes da prática de quaisquer factos, a mesma visa apenas aqueles que se verifiquem após o início da sua vigência, como emanação do princípio à mesma inerente da sua não retroactividade, sendo, portanto, a lei vigente ao tempo da ocorrência dos factos a judiciar, a aplicável. Mas “a um mesmo facto concreto podem ser aplicáveis várias leis conforme o ângulo sob o qual esse facto seja encarado - conforme a questão jurídica que se trate de resolver[20].

Ainda acontece que “o conteúdo duma situação jurídica[21] se vai «actualizando» ou precipitando na constituição de novas situações jurídicas ou na produção de efeitos de direito determinados, mediante a verificação de certos factos que actuam como com-causas da constituição daquelas situações ou da modelação destes efeitos. O momento a atender, para fins de direito transitório, é aquele em que se produz o facto que desencadeia ou precipita o efeito de direito ”.

Ora, “…na lógica do n.º 2 do art.º 12.º está que os efeitos que se vão destacando do conteúdo duma situação jurídica por força da verificação de certos factos devem ser olhados como «efeitos» destes factos. De resto, como esses efeitos se vão traduzir na constituição, modificação ou extinção duma situação jurídica, as normas que se lhes referem seriam sempre abrangidas pela regra da 1.ª parte do n.º 2 do art.º 12.º [22].

Dos nºs 1 e 2 do art. 12.º resulta que os efeitos de direito já produzidos sob o domínio da lei antiga são respeitados na vigência da lei nova. Nessa perspectiva, cabendo na previsão da 1.ª parte daquele n.º 2 do art. 12.º, o art. 57.º do NRAU estabelece efeito de direito (a transmissão do arrendamento) cujo pressuposto legal de produção (morte do arrendatário) já se tinha verificado aquando da entrada em vigor da lei nova (DL nº321-B/90, de 15/10 do RAU e Lei n.º 6/2006 de 27/02 do NRAU), pelo que, enquanto lei nova, e na falta de cláusula de retroactividade, não pode regressar ou agir sobre o passado, atingindo efeitos no passado pela situação jurídica contratual já produzidos.

Socorrendo-nos ainda de Baptista Machado, a lei nova não se aplica "quando a sua aplicação envolva retroactividade no sentido preciso de "retroconexão (isto é, de apreciação ex novo de factos passados, da qual resulte a atribuição a esses factos de efeitos que eles não produziam ou a recusa de efeitos que eles produziam segundo a lei do tempo da sua verificação – e isto quer se trate de efeitos autónomos quer de efeitos decorrentes da «actualização» do conteúdo de uma situação jurídica) ou implique o não reconhecimento – para futuro – das situações jurídicas concretas constituídas sob a lei antiga e subsistentes à data da entrada em vigor da lei nova[23].

Esse, a todas as luzes, o caso dos autos. Aplicável, embora, aos contratos anteriores, o regime do art. 57.º do NRAU, transmissão por morte no arrendamento para habitação, não é aplicável ao problema da caducidade no caso vertente tendo em conta a data da morte do arrendatário. E, consequentemente, o previsto agora no art. 1107.°, a comunicação da morte ao senhorio, reposto pelo art. 3.º do NRAU.

Tal como na decisão impugnada se considerou, é à luz da lei em vigor ao tempo em que ocorreram os factos fundamentadores da caducidade, isto é, da morte do arrendatário, e, não, em face da lei vigente ao tempo da celebração do contrato, ou daquela que se mostre em vigor, quando não coincida com aquela outra, que deve ser apreciada a causa de extinção invocada[24].  

Ora, em 23/3/82, data da morte do (primitivo) arrendatário, estava em vigor o art. 1111.º do Código Civil, com a redacção conferida pelo DL nº 328/81, de 4/12, e em cujo nº 1 se preceituava que: “O arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha recta, com menos de 1 ano ou que com ele vivessem pelo menos há 1 ano, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de 30 dias.

Tendo por referência o regime decorrente deste normativo há que concluir que a ré mulher, filha do primitivo arrendatário e com ele convivente desde a data do início do contrato, 1/12/1970 (factos 25, 36 e 37) deve ser tida como transmissária do direito ao arrendamento.

Coloca-se, então, a questão de saber se a circunstância de a mesma não ter dado conhecimento aos autores da morte do pai[25] terá implicado a caducidade do direito ao arrendamento.

A nosso ver, de acordo com os termos daquele nº 1 do art. 1111.º, a transmissão do arrendamento opera plenamente no momento da morte do transmitente, não estando dependente, quanto à sua efectivação ou eficácia, de alguma comunicação ao senhorio. O preceito não exige essa comunicação, só a determina no caso de o beneficiário renunciar à transmissão, e sem imposição expressa nesse sentido a ineficácia de transmissão assumiria uma sanção de feição particularmente grave, quando se sabe que era preocupação do legislador assegurar a continuidade e estabilidade do núcleo familiar no locado após a morte do arrendatário.

A transmissão do arrendamento tem carácter automático, opera “ope legis”, como a nossa doutrina dominante de há muito vem sustentando, uma vez que esta questão em torno das consequências da falta de comunicação do falecimento não é nova, tendo-se tornado polémica no âmbito do nº 5 do art. 1111.º, introduzido pelo art. 40.º da Lei nº 46/85, de 20/09, com os seguintes termos: “A morte do primitivo inquilino ou do cônjuge sobrevivo deve ser comunicada ao senhorio no prazo de 180 dias, por meio de carta registada com aviso de recepção, pela pessoa ou pessoas a quem o arrendamento se transmitir, acompanhada dos documentos autênticos que comprovem esses direitos”.

Posteriormente, o RAU, no art. 89.º, nº 1, manteve o dever de comunicação do óbito[26], e veio no seu nº 3 consagrar a solução que a doutrina e a jurisprudência dominantes preconizavam, explicitando que, “a inobservância do disposto nos números anteriores não prejudica a transmissão do contrato mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão[27].

Pereira Coelho, a propósito deste nº 3, ainda aqui com total cabimento, depois de afirmar que a lei não exige a aceitação do transmissário, que nem é obrigado a comunicar ao senhorio que aceita a posição de arrendatário, mas que o poderá fazer, e que se não lhe comunicar no prazo de 30 dias subsequentes à morte do arrendatário que renuncia ao direito à transmissão “consolida-se a sua posição de arrendatário pela não verificação da condição resolutiva de que dependia a perda dessa posição”, escreveu que “ A aquisição do direito de arrendamento dá-se ipsa vi legis, em favor do titular da designação prevalente (usando linguagem de direito sucessório), ou seja, do sucessível que ocupe o primeiro lugar na hierarquia do nº 1 do artigo 85.º do R.A.U.; decorridos trinta dias sobre a data da morte do arrendatário sem que ele comunique ao senhorio que renuncia ao direito à transmissão, consolida-se a aquisição verificada (art. 88.º)”, para concluir mais adiante: “Assim, está hoje assente que o incumprimento ou o cumprimento retardado ou defeituoso do dever de comunicação ao senhorio do falecimento do arrendatário ou do seu cônjuge não prejudica a transmissão do contrato, apenas obrigando o transmissário a indemnizar os danos causados[28].

Concordante neste sentido se pronunciou Januário Gomes, primeiramente na “Tribuna da Justiça” antes mencionada, pág. 3, expondo que “a transmissão da posição do arrendatário opera-se plenamente no momento da morte do transmitente, nos termos do nº 1 do art 1111º, não estando dependente, quanto à sua efectivação ou eficácia, da comunicação a que se refere o nº 5 do artigo. E uma vez que a lei não faz acompanhar a exigência da comunicação (regular e atempada) da previsão de uma sanção específica, para o caso de não cumprimento, a sanção não pode deixar de ser a sanção genérica da indemnização por perdas e danos“, para depois na sua obra “Arrendamentos Para Habitação”, 2ª ed., págs.187, sustentar que “a comunicação não se destinava a exercer o direito à transmissão, mas a comunicar ao senhorio a “assumida” posição de arrendatário, automaticamente transmitida aquando da morte do “transmitente””.

 No mesmo sentido se pronunciaram Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. cit., vol. II, 3ª ed, pág. 631, ainda a propósito do nº 5 do art 1111º, bem como na 4ª ed., págs. 660/661, nota 3, Cunha de Sá, na “Caducidade do Contrato de Arrendamento”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, vol. I, pág. 274 debruçando-se sobre a anterior redacção do mesmo art. 1111.º, mas igualmente com total pertinência, Pinto Furtado, no “Manual do Arrendamento Urbano”, 1996, pág. 456 e Aragão Seia, no “Arrendamento Urbano”, 7ª ed., págs. 598/599 se identificam com esta posição.

Defenderam sentido contrário, o da caducidade do direito à transmissão, Abílio Neto, na “Lei do Inquilinato”, 6ª ed., pág. 250 e Menezes Cordeiro, em “O dever de comunicar a morte do arrendatário: o artigo 1111.º, nº 5 do Código Civil”, na “Tribuna da Justiça”, nº 1 (Dezembro de 1989), págs. 29/38.

Em suma, no caso vertente acompanhamos a tese da maioria. A norma em apreço não só diz que “O arrendamento não caduca”, como não exige qualquer comunicação atempada como novo requisito para a transmissão da posição de arrendatário, e só a determina no caso de o beneficiário renunciar à transmissão.

Do que tudo resulta o desacerto das conclusões da alegação dos recorrentes/autores e a necessária improcedência do seu recurso, pelo que é de manter a decisão recorrida.


III – DECISÃO


Nestes termos e pelos fundamentos apontados negam-se as revistas, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas nas revistas pelos recorrentes, e nas instâncias por autores e réus em partes iguais.



                 Lisboa, 7/05/14    

Gregório Silva Jesus (Relator)

Martins de Sousa

Gabriel Catarino

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[1]  Relator: Gregório Silva Jesus — Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.

[2] No regime anterior ao estabelecido pelo Dec. Lei nº 303/2007 de 24/08 ainda aqui aplicável (cfr. arts. 11º e 12º deste diploma e art. 7.º, nº 1 da Lei nº 41/2013 de 26/06), tal como os demais normativos deste diploma por diante citados, uma vez que a acção foi intentada em 13/02/06 e o acórdão recorrido data de 8/03/12.
[3] Cfr., entre muitos outros, v.g., os Acs. de 08/09/09 na revista n.º 1127/05.8TBCBR.C1.S1, 27/01/10 na revista n.º 353/1998.L1.S1, 09/02/10 na revista n.º 1448/07.5TVLSB.L1.S1, 14/09/10 na revista n.º 699/04.9TBMGR.C1.S1, 16/03/11 na revista nº 366/03.0TBALB.C1.S1, 7/04/11 na revista nº 268003/08.5YPRT.L1.S1, 6/07711, na revista nº 204/07.5TBSVV.C1.S1, e de 6/09/11, na revista nº 3579/06.0TBGDM.P1.S1 – estes quatro últimos subscritos por este relator e por cada um dos adjuntos Uma outra corrente de pensamento mais radical neste Supremo Tribunal entende inclusivamente “que esta prática de reprodução alegatória equivale à deserção do recurso, por falta de alegações, pois que, embora se possa dizer que, formalmente, foi cumprido o ónus de formular conclusões, já em termos substanciais é legítimo inferir que terá faltado uma verdadeira e própria oposição conclusiva à decisão recorrida, nomeadamente porque a repetição não atingiu apenas as conclusões, afectando também o corpo das alegações.”. Vejam-se os Acs. de 01/10/09 na revista n.º 1284/06.6TBVCT.S1 - 2.ª Secção, de 08/10/09 na revista n.º 3721/08 - 2.ª Secção, de 11/03/10 na revista n.º 6560/05.2TBLRA.C1.S1 - 2.ª Secção, e de 23/09/10 na revista n.º 4178/06.1TBBCL.G1.S1- 2ª Secção.  
[4] Não obstante ter levado a cabo um trabalho de exegese tendente a demonstrar que mesmo numa perspectiva objectivista não assistia razão aos recorrentes.
[5] Cfr., entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2.ª ed., pág.5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, pág. 187/191; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 1967, pág. 65/73; Orlando de Carvalho, na RLJ, Ano 122.º, pág. 65 e segs., sobretudo 68 e 105, e Moitinho de Almeida, “Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis”, 1976, pág. 58.
[6] In ob. cit., pág. 86.
[7] Sobre as razões desta presunção veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, na ob. cit., pág. 8, nota 2.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 9, ainda nota 4 a págs. 10/11.
[9] Manuel Rodrigues, “A Posse”, 3ª edição, 181 e segs.; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 5 e segs.; Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 65 e segs..
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit.., pág. 30.
[11] In ob. cit., pág. 30.
[12] Cfr. Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 98, e ainda os Acs. deste STJ de 9/09/08, Proc. nº 08A1988, 26/04/10, Proc. nº 106/06.2TBFCR.C1.S1 e de 12/07/11, Proc. nº 899/04.1TBSTB.E1.S1 no IGFEJ; Pelo Código de 1867 era ainda necessário que esses actos da “contraditio” não fossem repelidos pelo possuidor em nome próprio, exigência que o Código actual abandonou.
[13] In ob. cit., págs. 590/591.
[14] Segundo Manuel Rodrigues, A reivindicação no direito civil português, RLJ, ano 57º, pág. 144, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 114; cfr. ainda Mota Pinto,ob. cit., págs. 238/ 239.
[15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 113.
[16] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 115.
[17] Publicada em 27/02/06, com ressalva do disposto nos arts. 63.º e 64.º, entrou em vigor em 27/06/06, 120 dias após a publicação (cfr. art 65º, nº 2)
[18] Esclareça-se que se está a ter em conta a redacção anterior à conferida pela Lei nº 31/2012 de 14/08. O mesmo sucede com os demais normativos do NRAU por diante citados. 
[19] Deve-se a manifesto lapso a inserção do ano de 1981 no facto descrito sob o nº 25.
[20] Cfr. Baptista Machado, “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, 1968, pág. 327, que nesta matéria seguiremos de muito perto.
[21] O autor emprega no texto da sua obra a abreviatura “SJ” para esta expressão, que, não obstante, aqui mantemos nas transcrições para mais clara leitura e entendimento.
[22] Baptista Machado, ob. cit., respectivamente, págs. 137 e 359.
[23] In ob. cit., pág. 39.
[24] Cfr. ainda neste sentido, Pais de Sousa, Cardona Ferreira e Lemos Jorge, “Arrendamento Urbano – Notas Práticas”, pág. 124.
[25] Na realidade o que se passou foi bem para além disso, dissimulou esse decesso uma vez que o marido da mesma, aqui réu, se fez passar como correspondendo ao primitivo arrendatário, KK de JJ (cfr. nº s 16 e 25 a 29 dos factos provados).
[26] Os nºs 1 e 2 deste art. 89.º correspondiam ao que estabelecia o nº 5 do art. 1111.º introduzido pela Lei nº 46/85, de 20/09.
[27] Posteriormente, este nº 3 veio a ser suprimido pelo DL nº 278/93 de 10/8 que, ao mesmo tempo, inseriu no RAU, entre outros, um novo artigo, o 89º-D, em que estabeleceu que o não cumprimento dos prazos fixados na secção em que o art 89.º se integra importava a caducidade do arrendamento.
Esta solução foi objecto de imediatas críticas, com particular relevo para a de Januário Gomes na “Tribuna da Justiça”, nº 24, Dezembro de 1986, págs 1 a 4, e o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 410/97 de 23/5/97, publicado no DR, I Série-A, de 8/7/1997, e no BMJ 467.º-229, veio declarar inconstitucional com força obrigatória geral a norma do art 1º do DL 278/93 na parte em que eliminava o nº 3 do art 89.º do RAU, por inconstitucionalidade orgânica, o que implicou a repristinação daquele nº 3 do art 89.º RAU (art 282.º, nº 1 da CRP), ficando ressalvados os casos julgados (nº 3) até à revogação do RAU.
[28] Na RLJ, Ano 131.º, págs. 262, 360 e 363; Também in “Arrendamento”, 1988, págs. 221/225.