Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2178/07.3TTLSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: MÉDICO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : 1.  Estando em causa uma relação contratual iniciada em 28 de Julho de 1995 e que cessou em 1 de Janeiro de 2007 e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, a partir de 1 de Dezembro de 2003, os termos da relação jurídica entre eles firmada, à qualificação dessa relação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto‑Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969, não tendo aplicação a presunção estatuída no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2003, na redacção da Lei n.º 9/2006, de 20 de Março.

2.  Não tendo a autora demonstrado, com a necessária segurança, que estivesse sob as ordens, direcção e fiscalização da ré, nomeadamente, o dever de obediência, o controlo da pontualidade e a possibilidade da ré exercer o poder disciplinar sobre si, e provando-se a variabilidade da remuneração, a qual era fixada em função do resultado do trabalho, num esquema de metade para autora e metade para a ré, por cada tratamento ou consulta efectuados, sistema remuneratório incompatível com a existência de um contrato de trabalho, tudo aponta no sentido de que à ré apenas interessava o resultado da actividade prestada.

3.  Neste contexto, atento o conjunto dos factos provados, é de concluir que a autora não logrou provar, como lhe competia, que a relação contratual que vigorou entre as partes revestiu a natureza de contrato de trabalho.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 1 de Junho de 2007, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, 1.º Juízo, 1.ª Secção, AA intentou a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra CLÍNICA BB, Lda., pedindo que fosse declarada a nulidade do respectivo despedimento e a condenação daquela ré a pagar-lhe (i) as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial, (ii) indemnização de antiguidade, nos termos do artigo 439.º do Código de Trabalho, correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade decorrido desde a data do início do contrato até trânsito em julgado da decisão judicial, no valor de € 89.967,48, à data da propositura da acção, acrescido de juros legais, vencidos e vincendos, desde a data da citação até integral pagamento, (iii) € 269.902,44, a título de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de 1995 a 2006, acrescidos dos respectivos juros legais, devidos desde o vencimento de cada um dos créditos laborais e vincendos até efectivo e integral pagamento, (iv) € 1.500, respeitantes a indemnização por danos não patrimoniais.

Em suma, alegou que foi admitida ao serviço da ré, em 28 de Julho de 1995, para, sob a autoridade e direcção daquela, exercer as funções de médica dentista, desempenhando tarefas clínicas e não clínicas, e que, em 12 de Dezembro de 2006, mediante comunicação escrita, foi despedida, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2007, sem precedência de processo disciplinar, pelo que o despedimento foi ilícito.

A ré contestou, alegando que o vínculo estabelecido com a autora, por nunca ter existido subordinação jurídica, não configura um contrato de trabalho mas, antes, um contrato de prestação de serviço, pelo que não existiu qualquer despedimento.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, consequentemente, absolveu a ré dos pedidos.

2. Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa que, após ter reapreciado a matéria de facto, julgou a apelação improcedente, sendo contra esta decisão que a autora, agora, se insurge, mediante recurso de revista, em que formula as conclusões que se passam a transcrever:

                «A. O acórdão recorrido faz uma errada apreciação da prova e errada aplicação do direito.
                    B. A recorrente é médica dentista o que, por natureza, implica uma elevada autonomia técnica. Salvaguardando a autonomia técnica que se traduz no acto médico em concreto, há todo um contexto de intervenção, direcção e conformação da recorrida quanto prestação desenvolvida pela recorrente que não pode, a coberto da autonomia técnica, qualificar o trabalho desenvolvido como independente.
                    C. A recorrida definia que tratamentos podiam ser feitos pela recorrente (alínea MM) dos factos assentes e factos provados 6.º, 7.º, 24.º e 25.º).
                    D. Havia uma definição da clínica quanto ao âmbito do trabalho a desenvolver e quanto ao modo como esse trabalho devia ser executado, absolutamente incompatível com a autonomia e independência que caracteriza o trabalho independente.
                    E.  A clínica possuía software próprio para o desenvolvimento da sua actividade clínica e a recorrida foi formada e instruída a trabalhar com esses instrumentos. O software e os procedimentos de facturação integram a organização da recorrida tendo sido concebidos, implementados e mantidos pela sua gestão sendo exigido à recorrente plena integração e ficando demonstrado que esta desenvolvia o seu trabalho como elemento da cadeia produtiva (alínea[s] S e T dos factos assentes).
                    F.  A recorrente recebeu instruções, orientações, informações e indicações clínicas e não clínicas por parte da recorrida devendo orientar a sua actuação em conformidade com as mesmas. Foi o caso, nomeadamente, da instrução recebida para preparar o curso ministrado às assistentes dentárias (alínea 3 dos factos assentes), as instruções quanto à venda cruzada (factos provados 15.°), o trabalho desenvolvido no grupo dos consumíveis (alínea L dos factos assentes), a análise dos inquéritos de satisfação dos clientes (alínea O e 33 dos factos assentes e factos provados 11.°) e muitos outros exemplos constantes dos factos provados e da matéria assente (v.g. factos provados 19.°).
                    G. A recorrente tomava decisões directamente aplicadas na estrutura da clínica (factos provados 9.°).
                    H. A recorrente via o seu desempenho fiscalizado pela organização. A avaliação do desempenho constitui uma forma de fiscalização do trabalho da recorrente pela clínica o que constitui paradigma da subordinação jurídica (factos provados 16.°).
                    I.   A recorrente apenas tinha autonomia técnica nos tratamentos que lhe eram consentidos realizar pela clínica, nos pacientes da clínica, marcados pela clínica, nos horários definidos pela clínica, nos estabelecimentos da clínica, com os materiais e equipamentos da clínica e segundo a organização definida pela clínica.
                    J.   Segundo Monteiro Fernandes: “O elemento chave de identificação do trabalho subordinado há-de, pois, encontrar-se no facto de o trabalhador não agir no seio de uma organização própria — antes se integrar no seio de uma organização de trabalho alheia, dirigida à obtenção de fins igualmente alheios — que tanto pode ser uma empresa como um lar de família — o que implica, da sua parte, a submissão às regras que exprimem o poder de organização do empregador — à autoridade deste, em suma, derivada da sua posição na mesma organização” (Direito do Trabalho, pp. 140, 14ª Edição, Ed. Almedina, 2009).
                    L.  O erro do tribunal a quo consistiu na qualificação da prestação da recorrente como trabalho independente em vez de trabalho dependente[.]
                    M.          Ao não qualificar a relação entre recorrente e recorrida como relação de trabalho dependente, [o acórdão] viola o disposto no art. 1152.º do Código Civil, art. 10.º do C.T. de 2003 (ou o art. 1.º da LCT caso se considere aplicável) e todo o regime de protecção do trabalhador previsto na legislação laboral em particular a proibição de despedimentos ad nutum — art. 53.º da CRP e art. 382.º do C.T. de 2003 [por lapso manifesto, a sequência das conclusões passa da alínea M) para a alínea O)];
                    O. O art. 12.º do C.T., com a redacção dada pela Lei n.º 9/2006 de 20 de Março, consagra uma presunção legal de existência de contrato de trabalho que os factos apurados preenchem e que não é possível afastar.
                    P.  JOANA NUNES VICENTE realça a importância da menção legal aos efeitos de factos totalmente passados anteriormente àquele momento, que deve ser interpretado sob a égide do artigo 12.º, n.º 2, do CC: “Da leitura do artigo 12.º, n.º 2, é possível extrair a distinção entre dois tipos contrapostos de regimes transitórios que, por sua vez, pressupõe uma distinção entre dois tipos contrapostos de normas. Assim, se estiverem em causa normas que dispõem sobre requisitos de validade formal e substancial de uma situação jurídica ou sobre o conteúdo e efeitos de determinada situação jurídica sem se abstraírem do facto que lhes deu origem, as normas da lei nova apenas se aplicam às situações jurídicas novas, isto é, constituídas depois do início da vigência da lei nova. Quer isto dizer que, nesse caso, o conteúdo das situações jurídicas deve entender-se como um efeito de um facto passado. Pelo contrário, se se tratar de normas que dispõem sobre o conteúdo de uma situação jurídica, abstraindo-se do facto que lhes deu origem, aplicar-se-ão quer a situações jurídicas novas quer a situações jurídicas constituídas antes mas subsistentes à data da entrada em vigor da lei nova” (sublinhado nosso).
                    Q. Ao não aplicar a presunção de laboralidade, [o acórdão] viola o disposto no art. 12.º com a redacção dada pela Lei n.º 9/2006 de 20 de Março.»

A ré contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto concluiu não estar demonstrada a subordinação jurídica, característica essencial do contrato de trabalho, devendo, por isso, improceder o recurso de revista, parecer que, notificado às partes, suscitou resposta da autora para discordar daquela posição.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:

                Se é aplicável a presunção legal estabelecida no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2003, com a redacção introduzida pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março [conclusões O) a Q) da alegação do recurso de revista];
                Se a relação jurídica que vigorou entre as partes deve ser qualificada como contrato de trabalho [conclusões A) a M) da alegação do recurso de revista].

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

                                              II

1. Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, e não se verifica qualquer das situações que permitem a este Supremo Tribunal alterá-los ou promover a sua ampliação (artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil).

Por conseguinte, face ao disposto nos artigos 713.º, n.º 6, e 726.º do Código de Processo Civil, dá-se aqui por inteiramente reproduzida essa factualidade, sem embargo de serem discriminados, pontualmente, aqueles factos que se afigurem relevantes para a decisão do objecto do recurso.

2. Antes de mais, importa definir qual o regime jurídico aplicável ao caso.

Está em causa a qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes, desde 28 de Julho de 1995 até 1 de Janeiro de 2007, portanto, constituída antes da entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003 e que subsistiu após o início da vigência deste Código (dia 1 de Dezembro de 2003 — n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto), cessando depois da entrada em vigor da Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, que alterou a redacção de vários preceitos do mencionado Código.

As dúvidas sobre a norma aplicável em caso de alteração de um particular regime jurídico encontram solução no próprio ordenamento jurídico.

Como refere BAPTISTA MACHADO (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 229-231), «os problemas de sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma LN [lei nova] podem, pelo menos em parte, ser directamente resolvidos por esta mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas “disposições transitórias”».

«Estas disposições transitórias podem ter carácter formal ou material. Dizem-se de direito transitório formal aquelas disposições que se limitam a determinar qual das leis, a LA [lei antiga] ou a LN, é aplicável a determinadas situações. São de direito transitório material aquelas que estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a LA nem com a LN, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis.»

A Lei n.º 99/2003 contém normas transitórias que delimitam a vigência do Código do Trabalho quanto às relações jurídicas subsistentes à data da respectiva entrada em vigor, pelo que, para fixar a eficácia temporal daquele Código, há que recorrer aos critérios sobre aplicação da lei no tempo enunciados naquelas normas.

No que agora releva, estipulava o n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 99/2003 que, «[s]em prejuízo do disposto nos artigos seguintes, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento».

A norma transcrita corresponde ao artigo 9.º do Decreto‑Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969, que aprovou o regime jurídico do contrato individual de trabalho, abreviadamente designado por LCT, e acolhe o regime comum de aplicação das leis no tempo contido no n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil.

O n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, segundo BAPTISTA MACHADO (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, obra citada, p. 233), trata-se de norma que ainda exprime o princípio da não retroactividade nos termos da teoria do facto passado, nele se distinguindo «dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas relações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (melhor: Ss Js [situações jurídicas]) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data do seu IV [início de vigência]».

Sobre essa mesma norma, OLIVEIRA ASCENSÃO (O Direito, Introdução e Teoria Geral, Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 10.ª edição revista, Almedina, Coimbra, 1997, p. 489) pronuncia-se em termos que se afiguram impressivos, estabelecendo a seguinte distinção: «1) A lei pode regular efeitos como expressão duma valoração dos factos que lhes deram origem: nesse caso aplica-se só aos novos factos. Assim, a lei que delimita a obrigação de indemnizar exprime uma valoração sobre o facto gerador de responsabilidade civil; a lei que estabelece poderes e vinculações dos que casam com menos de 18 anos exprime uma valoração sobre o casamento nessas condições; 2) pelo contrário, pode a lei atender directamente à situação, seja qual for o facto que a tiver originado. Se a lei estabelece os poderes vinculações do proprietário, pouco lhe interessa que a propriedade tenha sido adquirida por contrato, ocupação ou usucapião: pretende abranger todas as propriedades que subsistam. Aplica-se, então, imediatamente a lei nova.»

Acompanha-se tal entendimento, aliás já contido no acórdão deste Supremo Tribunal, de 2 de Maio de 2007, proferido no Processo n.º 4368/06, da 4.ª Secção, daí que, não estando em causa qualquer das situações especificamente previstas nos artigos subsequentes ao artigo 8.º da Lei n.º 99/2003 e tendo em atenção que a relação jurídica em apreciação se iniciou em 28 de Julho de 1995 e cessou em 1 de Janeiro de 2007, aplica-se, no caso, o regime instituído no Código do Trabalho de 2003, na redacção conferida pela Lei n.º 9/2006, salvo quanto às condições de validade do contrato ou efeitos de factos ou situações totalmente passados antes da entrada em vigor do Código do Trabalho.

Por isso, quando o Código do Trabalho de 2003 regula os efeitos de certos factos, como expressão duma valoração dos factos que lhes deram origem, deve entender-se que só se aplica aos factos novos.

O artigo 12.º do sobredito Código, na redacção editada pela Lei n.º 9/2006, acolhe a presunção de que «existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realiza a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição», o que traduz uma valoração dos factos que importam o reconhecimento dessa presunção, por conseguinte, só se aplica aos factos novos, às relações jurídicas constituídas após o início da sua vigência, que ocorreu em 1 de Dezembro de 2003 (cf., neste sentido, para além do já citado acórdão de 2 de Maio de 2007, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 13 de Fevereiro de 2008, Processo n.º 356/07, e de 10 de Julho de 2008, Processo n.º 1426/08, ambos da 4.ª Secção).

Ora, não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, a partir de 1 de Dezembro de 2003, os termos essenciais da relação jurídica entre eles estabelecida, à qualificação dessa relação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto‑Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969 (LCT), não tendo aqui aplicação a presunção do artigo 12.º citado.

Improcedem, pois, as conclusões O) a Q) da alegação do recurso de revista.

3. O acórdão recorrido, em consonância com a sentença do tribunal de primeira instância, decidiu que a autora não logrou provar factos que permitissem afirmar a natureza laboral do vínculo que a uniu à ré, sendo certo que, como facto constitutivo do seu direito, à autora competia alegar e provar os factos de onde se retirasse a existência de subordinação jurídica.

A autora sustenta, porém, que o tribunal recorrido errou ao qualificar a sua prestação «como trabalho independente em vez de trabalho dependente», porquanto «apenas tinha autonomia técnica nos tratamentos que lhe eram consentidos realizar pela clínica, nos pacientes da clínica, marcados pela clínica, nos horários definidos pela clínica, nos estabelecimentos da clínica, com os materiais e equipamentos da clínica e segundo a organização definida pela clínica», concretizando que a ré definia que tratamentos podiam ser feitos pela autora, o âmbito do trabalho a desenvolver e o modo como devia ser executado e que recebeu «instruções, orientações, informações e indicações clínicas e não clínicas por parte da recorrida, devendo orientar a sua actuação em conformidade com as mesmas».

3.1. Os contratos referidos têm a sua definição na lei.

Segundo o artigo 1152.º do Código Civil, cuja expressão literal viria a ser reproduzida no artigo 1.º da LCT, contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.

Por seu lado, o artigo 1154.º do Código Civil estabelece que contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

Ora, a prestação de serviço é uma figura próxima do contrato de trabalho, não sendo sempre fácil distingui-los com nitidez; porém, duma maneira geral, tem-se entendido que é na existência ou inexistência da subordinação jurídica que se deve encontrar o critério de distinção.

Assim, o contrato de trabalho caracteriza-se, essencialmente, pelo estado de dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade patronal, sendo que o laço de subordinação jurídica resulta da circunstância do trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direcção do empregador que lhe dá ordens, e na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da actividade.

A subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho decorre precisamente daquele poder de direcção que a lei confere à entidade empregadora (n.º 1 do artigo 39.º da LCT) a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador [alínea c) do n.º 1 do artigo 20.º da LCT].

Todavia, como vem sendo repetidamente afirmado, a extrema variabilidade das situações concretas dificulta muitas vezes a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado, implicando a necessidade de, frequentemente, se recorrer a métodos aproximativos, baseados na interpretação de indícios.

É o que acontece nos casos em que o trabalho é prestado com grande autonomia técnica e científica do trabalhador, nomeadamente quando se trate de actividades que tradicionalmente são prestadas em regime de profissão liberal.

Nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a actividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da actividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da actividade, existência de controlo externo do modo de prestação da actividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e indícios negociais externos (o número de beneficiários a quem a actividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a inscrição do prestador da actividade na Segurança Social e a sua sindicalização).
           
Cada um daqueles indícios tem naturalmente um valor muito relativo e, por isso, o juízo a fazer é sempre um juízo de globalidade (MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 145), a ser formulado com base na totalidade dos elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo.

Sublinhe-se que incumbe ao trabalhador, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, fazer a prova dos elementos constitutivos do contrato de trabalho, nomeadamente, que desenvolve uma actividade remunerada para outrem, sob a autoridade e direcção do beneficiário da actividade, demonstrando que se integrou na estrutura empresarial do empregador.

3.2. No caso vertente, provou-se que «[a] autora é médica dentista», «foi admitida ao serviço da ré em 28 de Julho de 1995» e «desenvolveu a sua actividade, numa primeira fase, nos seguintes estabelecimentos explorados pela ré, (a) Clínica de BB de Lisboa, sita na Rua .., ….º, ...º, em Lisboa, (b) Clínica de BB de Sintra, sita na Av. Dr. …, …, ... em Sintra, [e] (c) Clínica de BB do …., sita no ..., núcleo central, … em …», sendo que, «[n]os últimos anos, a autora trabalhava na Clínica BB de Lisboa e Clínica BB do …» [factos provados 2.1.1. e 2.1.3. a 2.1.5.].

Mais se apurou que:

              «2.1.6. A autora exercia a sua actividade nos estabelecimentos explorados pela ré nos seguintes dias e do seguinte modo: a. Clínica de BB de Lisboa, à terça-feira, quinta-feira e sexta-feira; b. Clínica de BB de …, à quarta-feira e sábado;
              2.1.17. A Autora utilizava equipamentos propriedade da ré;
              2.1.18. Os consumíveis necessários para a prestação dos cuidados médicos aos pacientes eram fornecidos pela ré;
              2.1.19. A assistente médica que faz equipa com o médico na execução do acto médico é contratada pela ré;
              2.1.20. A autora, por indicação da ré, preparou e ministrou, em 27 de Outubro de 2006, um curso pós-laboral, das 19.00 às 23.30 horas, para assistentes dentárias da Clínica de BB, subordinado ao tema “Endodontia”;
              2.1.21. A autora integrou com outras colegas o “Grupo de Trabalho de Consumíveis” criado pela ré e destinado a prestar opinião sobre os materiais consumíveis adquiridos pela clínica e a prestar opinião na aquisição de material para todas as clínicas, conforme documento junto a fls. 45, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;
              2.1.22. A ré solicitava análises e pesquisas de materiais para obter alternativas que, do ponto de vista técnico e económico-financeiro, constituíssem melhores opções na qualidade/preço, conforme documento junto a fls. 46 a 48, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;
              2.1.23. A autora participava nas reuniões onde a direcção da ré a consultava em relação aos mais variados temas da actividade quotidiana e estratégica da clínica;
              2.1.24. Foi o caso do resultado dos inquéritos de satisfação de clientes de 2005, relativamente à clínica de Lisboa, que analisavam a actividade da ré [de] uma forma global;
              2.1.25. A autora participou na votação para a escolha do modelo de fardas a adoptar uniformemente pelos médicos nas clínicas da ré;
              2.1.26. A partir de 2006, por questões de qualidade e higiene, a limpeza das fardas passou a ser feita em empresa especializada, a expensas da ré;
              2.1.28. Na área da informática, foram apresentados à autora o Infoservice e o programa software Dentoral;
              2.1.29. Foi apresentado à autora na área da facturação a forma como funcionam as tabelas de facturação dos acordos, convenções e protocolos com a[s] diversas entidades;
              2.1.30. No âmbito das reuniões realizadas, a autora foi convocada, em 22 de Junho de 2006, para uma reunião com a seguinte ordem de trabalhos: 1.º Presente e futuro da Clínica de BB; 2.º Política de Recursos Humanos; 3.º Sumário dos resultados do inquérito dos colaboradores, conforme o documento junto a fls. 68;
              2.1.31. A ré pedia à autora e restantes médicos, para indicar o período em que pretendiam gozar férias;
              2.1.32. A autora auferia metade do montante liquidado a cada paciente, num esquema de 50/50;
              2.1.33. A autora nunca auferiu qualquer montante a título de férias, subsídio de férias ou de Natal;
              2.1.34. A ré, em carta datada de 12 de Dezembro de 2006, sob o assunto, “cessação do contrato de prestação de serviços”, junta a fls. 69 destes autos, comunicou à autora que “Recentemente tem vindo V. Exa. a adoptar comportamentos que se traduziram na quebra de confiança que deve existir numa relação de prestação de serviços. Consequentemente, vimos comunicar-lhe a cessação da prestação de serviços que tem a Clínica BB, com efeito a partir de 1 de Janeiro de 2007, de modo a poder concluir os tratamentos em curso”;
              2.1.35. A autora respondeu através da aposição na carta da seguinte declaração: “Recebi e tomei conhecimento a 12.12.2006. Esclarecimento: A relação que mantenho com a clínica BB é uma relação de trabalho e não uma relação de prestação de serviços como por lapso consta da carta” (cf. documento de fls. 70);
              2.1.36. No período compreendido entre Janeiro a Dezembro de 2006, a autora auferiu na sua actividade nos estabelecimentos da ré as seguintes quantias:
                            Recibo        Data           Montante       Documento
                            774931  10-02-2006       9.896,16               42
                            774933  10-03-2006       6.407,52               43
                            774936  10-04-2006       9.053,71               44
                            774937  07-05-2006       9.430,14               45
                            774939  10-06-2006       5.201,87               46
                            774940  09-07-2006       7.977,03               47
                            774942  16-08-2006       7.052,07               48
                            774943  10-09-2006       6.123,41               49
                            774945  03-10-2006       4.167,64               50
                            774947  01-11-2006       6.983,38               51
                            774949  25-12-2006       7.135,49               52
                            820351  30-12-2006     10.539,13               53
              2.1.37. A autora não gozou as férias respeitantes aos anos 1995 a 2007, nem recebeu o respectivo subsídio de férias nem de Natal;
              2.1.38. A autora sempre usou farda instituída pela clínica;
              2.1.42. O inquérito de satisfação de clientes, junto a fls. 56 destes autos, foi fornecido a todos os médicos;
              2.1.43. Como resulta do documento junto a fls. 56, do inquérito feito aos pacientes constam matérias como a apreciação destes relativamente a marcações, pontualidade, médico e eficácia do tratamento, higiene e preço;
              2.1.44. A ré forneceu o relatório e pediu aos médicos que fizessem uma análise e sugerissem alterações para melhorar a qualidade da clínica;
              2.1.45. A ré encaminhava os casos mais complicados para os médicos mais experientes em detrimento dos médicos menos experientes;
              2.1.46. Quando um médico é contratado, a ré dá-lhe a informação necessária e durante o período necessário à obtenção dessa informação, nomeadamente quanto aos padrões de qualidade e remuneratórios;
              2.1.47. A autora durante pelo menos onze anos desempenhou nos estabelecimentos da ré as funções de médica dentista;
              2.1.48. Tendo ainda desempenhado funções não clínicas;
              2.1.49. A Clínica de BB constitui o local onde a autora trabalhava mais horas;
              2.1.50. Nos dias e estabelecimentos assentes na alínea F) [correspondente ao facto provado 2.1.6.], a autora exercia a sua actividade no seguinte horário: a. [t]erça-feira – Das 10.00 às 20.00 horas; b. [q]uarta-feira — pelo menos das 09.30 às 20.00 horas; c. [q]uinta-feira — pelo menos das 09.30 às 20.00 horas; d. [s]exta-feira — pelo menos das 09.30 às 13.30 horas; e. [s]ábado ― pelo menos das 09.30 às 14.00 horas, com o esclarecimento que a última consulta do período da manhã e a primeira do período da tarde eram separadas por um período de duas horas;
              2.1.51. A autora assegurava o atendimento dos doentes que eram marcados pela ré, com o esclarecimento que o fazia de acordo com o horário em que a autora se encontrava nas clínicas daquela;
              2.1.52. A escala dos médicos e das assistentes na clínica era definida pela ré, decidindo que assistentes e que médicos faziam equipa em determinado dia ou semana;
              2.1.53. A autora, em 2006, desempenhou o cargo de responsável clínica de Lisboa, com o esclarecimento que o fez por período não concretamente apurado e após a saída do Director Clínico CC;
              2.1.54. O grupo de trabalho de consumíveis reunia lavrando-se acta dessas reuniões, tomava algumas decisões aplicadas na estrutura da ré e fazia propostas para serem discutidas;
              2.1.55. A autora era consultada sobre a contratação de novos clínicos pela ré;
              2.1.56. Foi indicado à autora que fizesse a análise dos resultados e a partilha da informação com outros colaboradores, tendo-lhe sido dito que fizesse sugestões de alterações para melhoria da eficiência e qualidade clínica;
              2.1.57. A ré comparticipava a aquisição da farda em 50%;
              2.1.58. A ré convocava a autora e os outros médicos que exerciam funções na clínica para reuniões onde a direcção da clínica e/ou os directores clínicos transmitiam informações/indicações de matéria relativa à organização da clínica e questões comerciais e aspectos relacionados com opções de tratamento [redacção dada pelo Tribunal da Relação];
              2.1.59. A ré procurava que os clínicos que integravam os seus quadros angariassem pacientes para realização de implantes dentários;
              2.1.60. Na área dos recursos humanos é apresentado pela ré ao médico documentação, normas de funcionamento da clínica, fardas utilizadas, esquemas de pagamento, formas de avaliação de desempenho do médico;
              2.1.61. A autora, enquanto médica da Clínica de BB, recebeu instruções para ler e se inteirar dos novos conteúdos na pasta que se encontrava alojada no servidor da ré e cumprir as directrizes constantes da mesma, que consistiam em: a. [p]olítica de qualidade da empresa; b. [o]bjectivos da qualidade; c. [o] manual da qualidade; d. [p]rocedimentos que se prendem, inclusive, com a prática do acto médico, como sejam o controlo preventivo da infecção cruzada; e. [r]esultados dos inquéritos de satisfação; f. [c]ódigo deontológico da OMD; g. [e]statutos da OMD;
              2.1.62. Na reunião de médicos realizada a 21 de Novembro de 2006 foram abordados os assuntos referidos a fls. 108 e s.;
              2.1.63. As instruções clínicas traduziram-se: a. [n]a solicitação da utilização mais frequente de “consentimentos informados”; b. [n]o acentuar a importância da realização da radiografia panorâmica e de uma correcta anamnése na primeira consulta;            c. [n]a necessidade de se elaborar um plano de tratamento e respectiva transmissão ao doente; d. [d]ar conhecimento de materiais existentes, nomeadamente para a prótese fixa;
              2.1.64. As instruções de gestão traduziram-se: a. [n]a utilização racional dos materiais fornecidos pela ré; b. [o]s directores clínicos debateram com os colegas necessidades de reforço dos quadros clínicos da ré; c. [o] coordenador clínico apresentou as suas funções na estrutura da ré;        d. [o] coordenador clínico apontou o caminho gradual para a especialização do trabalho clínico;
              2.1.65. As férias da autora, bem como dos demais trabalhadores clínicos e não clínicos, eram afixadas num quadro;
              2.1.66. A prótese dentária decorrente do acto médico executado pela autora era obrigatoriamente executada no laboratório ... ― que é gerido pelo mesmo grupo societário que gere a Clínica de BB ― por imposição da ré, sem que a autora pudesse escolher outros laboratórios de prótese com os quais trabalhar;
              2.1.67. A autora especializou-se em prótese fixa e estética, o que pressupõe uma constante colaboração com um ou vários laboratórios;
              2.1.68. O montante correspondente à prótese executada no laboratório ... era abatido ao valor devido pela ré à autora;
              2.1.71. A autora durante os anos em que prestou serviço na ré nunca reclamou o pagamento de férias, subsídio de férias e de Natal;
              2.1.72. A ré durante todos estes anos nunca incluiu a autora nas folhas de retribuição para a segurança social, nem procedeu ao pagamento da segurança social da autora nem a sujeitou ao regime de tributação dos titulares de contrato de trabalho;
              2.1.73. Durante mais de dois anos, a autora e a Sr.ª Dr.ª DD, por acordo entre elas, partilharam pacientes tratados nas clínicas da ré e partilharam os resultados obtidos com esses tratamentos e consultas na proporção de 50% para cada, com o esclarecimento que tal sucedeu no início da relação da autora DD com a ré;
              2.1.74. O acordo referido no artigo anterior ocorreu por iniciativa das duas intervenientes e no interesse destas e cessou igualmente por sua iniciativa e no interesse destas.»

3.3. A propósito da temática em análise, o acórdão recorrido explicitou as considerações que se passam a transcrever:

                    «Passando ao caso concreto, temos que a Autora não logrou demonstrar, com aquelas referidas e necessárias segurança e certeza, que estivesse sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré e, muito menos, em que termos concretos é que as mesmas se terão verificado. Antes pelo contrário, os elementos disponíveis nos autos aproximam-se mais no sentido da existência de um contrato de prestação de [serviço].
                      Vejamos, então, da relevância de cada um dos índices disponíveis nos autos:
                      Ficou provado que a Autora exercia a sua actividade nos horários descritos no ponto 50, de harmonia com a escala de médicos e assistentes definidos pela Ré.
                      O horário de trabalho é um dos factores que mais apontam, em termos gerais, para a existência de um vínculo laboral. Todavia, no caso que nos ocupa, essa primazia aparece significativamente esbatida, tendo em conta a natureza da actividade desenvolvida pela Ré: era perfeitamente curial que esta, tendo em conta o modelo da sua organização empresarial e aquilo que considerava [como] sendo a melhor forma de orientar o atendimento dos seus doentes, elaborasse essa escala entre médicos e assistentes. Seria, no mínimo, caótico, logo impensável, para o regular funcionamento da clínica, que fossem estes profissionais, trabalhadores subordinados ou prestadores de serviços, que definissem o horário em que cada um exercesse as respectivas tarefas.
                      E, isto também é decisivo, não provou a Autora que a Ré exercesse qualquer tipo de controle sobre esse horário ― sendo certo que, mesmo na prestação de serviços, o contraente que recebe a prestação há-de poder verificar e confirmar se o resultado pretendido teve lugar ―, sobre a sua entrada e saída e que sancionasse, de alguma forma, qualquer incumprimento do mesmo horário e/ou qualquer tipo de falta ao serviço, ou qualquer desmarcação de consultas.
                      Por outro lado, temos que a Autora utilizava, na sua actividade, os consumíveis necessários fornecidos pela Ré, bem como a farda instituída pela Ré, e fazia-o dentro das instalações desta. Isto, como é bom de ver, também não é decisivo. Estamos perante um caso de uma clínica dentária, devidamente apetrechada para o curial atendimento aos doentes, sendo, no mínimo, caricato que aquela obrigasse os médicos dentistas a trazer o que quer que fosse de sua propriedade, arcando com custos injustificáveis, do estrito ponto de vista do prestador da actividade, e sendo o mais normal que as consultas tivessem lugar dentro das suas instalações e utilizando todo o seu equipamento e consumíveis. Quanto à farda, que, aliás, era comparticipada pela Autora em 50%, também é perfeitamente compreensível que a Ré procurasse uma uniformização do vestuário usado pelos seus profissionais.
                      E dentro de uma normal e proficiente gestão da sua estrutura empresarial, que a clínica em questão normal e compreensivelmente constituía, também aparecem como perfeitamente adequadas as normas e instruções ― dirigidas [a] todos os profissionais que aí exerciam a sua actividade, independentemente da natureza do vínculo ― descritas nos pontos 28, 29, 30, 44, 60, 61, 63 e 64 da factualidade provada, bem como a imposição do laboratório referida no ponto 66. Essa gestão não se compadeceria com a ausência desse tipo de directivas. Como tal, também este índice está longe de ser determinante no sentido da existência do contrato de trabalho.
                      O mesmo se passa com as férias: embora quer as da Autora quer as dos restantes profissionais fossem afixadas num quadro, a Ré sempre pedia à Autora e restantes médicos que indicassem o período em que pretendiam gozar férias. E não se provou que a Ré em alguma vez tenha deixado de atender a essa pretensão, no que toca à Autora.
                      E se por aqui já se percebe a fragilidade da pretensão da Autora em ver reconhecida a verificação de uma relação jurídico-laboral, ela mais se acentua se tivermos em conta outro tipo de factores, que apontam, inelutavelmente, para a existência de um contrato de prestação de [serviço].
                      Desde logo a circunstância de a Ré nunca ter pago à Autora retribuição de férias, subsídio de férias ou de Natal.  Embora muitos vezes fruto de incumprimento contratual por parte do beneficiário da actividade, é factor que não pode ser desprezado, quando é certo que a Autora, enquanto médica dentista, embora não tendo formação jurídica era possuidora de um nível cultural superior à média, devendo ter a perfeita noção da obrigatoriedade do pagamento dessas prestações no âmbito de um vínculo laboral subordinado. Todavia, nunca as reclamou, o que induz que a Autora tinha conhecimento da situação em que se encontrava perante a Ré e, não obstante, conformou-se com a mesma e aceitou a configuração dessa situação como prestação de [serviço].
                      Por outro lado, e isto é deveras significativo, a Autora não recebia uma prestação mensal regular e periódica, que é típica do contrato de trabalho, já que a Ré lhe pagava metade do montante liquidado a cada paciente, num esquema de 50/50; o montante correspondente à prótese executada no laboratório ... era abatido ao valor devido pela Ré à Autora; durante mais de dois anos, a Autora e a Dr.ª DD, por acordo entre elas, partilharam pacientes tratados nas clínicas da Ré e partilharam os resultados obtidos com esses tratamentos e consultas na proporção de 50% para cada. Ou seja, a remuneração da Autora variava na razão directa do número de pacientes consultados, o que aliás bem resulta da análise do quadro plasmado no ponto 36 da factualidade provada. E o facto de receber prémios mais vem acentuar esta forma de remuneração.
                      Acresce que a Autora também não provou que, por qualquer forma, estivesse sujeita ao poder disciplinar da Ré, por inobservância de quaisquer das directivas da clínica, por ausência a consultas, por atrasos às mesmas ou por outro motivo qualquer.
                      Em suma: tudo circunstâncias que indiciam a existência de um contrato de prestação de [serviço], que denotam que a Autora no desempenho das suas funções não estava sujeito ao poder de controlo da Ré, e que a sua assiduidade não era objecto de controlo, não estando abrangida em múltiplos aspectos pela disciplina que a empresa impunha aos seus trabalhadores subordinados, não estando sujeita a essa disciplina.
                      A Autora não provou o dever de obediência, o controlo da pontualidade e a possibilidade da Ré exercer poder disciplinar sobre a mesma, sendo certo que a prova de tais factos a ela incumbia.
                      E não é pela simples e isolada circunstância de perdurar durante muito tempo uma determinada situação que ela se converte em contrato de trabalho, já que nada obsta a que um contrato de prestação de [serviço] possa perdurar ao longo dos anos e que, a determinado momento, ao destinatário do serviço deixe de interessar essa prestação.
                      À laia de conclusão, há que considerar que sobre a forma como se processaria eventualmente a orientação da Ré da actividade laboral em si mesma a Autora nada provou. Não sendo minimamente indício do contrário a factualidade descrita nos pontos 20, 21, 23, 25, 55, 56, 58 e 59, já que aí se faz menção a meras indicações ou informações, ou participação da Autora em actos de gestão da Ré, sem que deles resultasse um carácter de obrigatoriedade para a Autora, em termos de desencadear uma reacção disciplinar por parte da Ré. Nem o exercício das funções não clínicas, tão enfatizado pela Autora, de forma alguma contraria esta asserção.
                      Não sendo o contrato celebrado de natureza formal, seria indispensável que a Autora demonstrasse em que termos estava subordinada juridicamente à Ré, quais as ordens e orientações a que, de acordo com a inerente autonomia das suas funções, estava concretamente sujeita.
                      Como facto constitutivo do seu direito, à Autora competia alegar e provar os factos de onde se retirasse a conclusão da subordinação jurídica ― art. 342.º, n.º 1, do Cod. Civil.
                      Pelo que improcedem as conclusões do recurso.»

Tudo ponderado, subscrevem-se, no essencial, as considerações transcritas e, bem assim, o juízo decisório enunciado.

Na verdade, apreciando globalmente os indícios que emergem da relação contratual estabelecida entre as partes, impõe-se concluir que não se apuraram factos bastantes para caracterizar tal relação como contrato de trabalho, sendo que o ónus da prova relativo aos factos de que se pudesse concluir no sentido da existência daquele contrato impendia sobre a autora (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).

Neste plano de consideração, assume especial relevância a variabilidade da remuneração, que era fixada em função do resultado do trabalho, num esquema de metade para autora e metade para a ré, por cada tratamento ou consulta efectuados [facto provado 2.1.32.], o que se extrai dos valores auferidos no ano de 2006 [facto provado 2.1.36.], e a circunstância do montante correspondente à prótese executada no laboratório ... ser «abatido ao valor devido pela ré à autora» [facto provado 2.1.68.], sistema remuneratório que é incompatível com a existência de um contrato de trabalho e que evidencia que à ré apenas interessava o resultado da actividade.

Tal como salienta o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, não se provou «que da parte da Autora existisse qualquer dependência relativamente à Ré, nem que aquela exercesse a sua actividade sob a orientação da Ré ou que esta fiscalizasse, quer a quantidade de intervenções médicas que efectuava, quer a forma como o fazia».
Não se verifica, pois, a pretendida violação do preceituado no artigo 1152.º do Código Civil, no artigo 1.º da LCT e, bem assim, do «regime de protecção do trabalhador previsto na legislação laboral em particular a proibição de despedimentos ad nutum — artigo 53.º da CRP e artigo 382.º do C.T. de 2003», termos em que improcedem as conclusões A) a M) da alegação do recurso de revista.

                                                    III

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2012

Pinto Hespanhol (Relator)

Fernandes da Silva

Gonçalves Rocha