Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | ||||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | |||
Relator: | SANTOS CABRAL | |||
Descritores: | HOMICÍDIO QUALIFICADO ACORDÃO DA RELAÇÃO RECURSO PENAL COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MATÉRIA DE FACTO MATÉRIA DE DIREITO VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL CONHECIMENTO OFICIOSO OBJECTO DO RECURSO INTENÇÃO DE MATAR ACÇÃO CAUSAL DOLO EVENTUAL PROVA INDICIÁRIA REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM CAUSALIDADE ADEQUADA JUÍZO DE PROGNOSE DEVER DE GARANTE UNIÃO DE FACTO NEGLIGÊNCIA CONSCIENTE COMISSÃO POR OMISSÃO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA CULPA EXEMPLOS-PADRÃO ESPECIAL CENSURABILIDADE ESPECIAL PERVERSIDADE IMAGEM GLOBAL DO FACTO OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES HOMICÍDIO CONCURSO DE INFRACÇÕES CONCURSO APARENTE NON BIS IN IDEM MEDIDA CONCRETA DA PENA PREVENÇÃO GERAL PREVENÇÃO ESPECIAL BEM JURÍDICO PROTEGIDO ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA | |||
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Data do Acordão: | 11/27/2013 | |||
Votação: | UNANIMIDADE | |||
Texto Integral: | S | |||
Privacidade: | 1 | |||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | |||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | |||
Área Temática: | DIREITO PENAL - FACTO / PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA. DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS. | |||
Doutrina: | - ALBERTO DOS REIS, “Código de Processo Civil”, Anotado, Volume III, pp. 206 e 207. - AUGUSTO SILVA DIAS, Crimes contra a vida e a integridade física, pp. 20 e ss.. - EDUARDO CORREIA, Teoria do Concurso em Direito Criminal, p. 84 e ss.. - ENRIQUE GIMBERNAT ORDEIG, "Causalidad, omissión e imprudencia", in Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XLVII, Fasc. III, Setembro-Dezembro de 1994, desig. p. 60. - FERNANDO SILVA, Direito Penal Especial Crimes contra as pessoas, p. 60 e ss.. - FIGUEIREDO DIAS, A Doutrina Geral do Crime; As Consequências Jurídicas do Crime, 302; intervenção na Comissão Revisora (Acta n.º 8, 78-9); Direito Penal - Parte Geral - Tomo I - Questões Fundamentais, p.358; Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pp. 989 e 1015; Pressupostos da Punição, p. 55. - JESCHECK - HANS – HEINRICH, Tratado de Derecho Penal, Parte General, pp. 245, 256/257; vol. II , pp. 850 e ss.. - JOSÉ DE FARIA COSTA, "Omissão (reflexões em Redor da Omissão Imprópria)" , no Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXII , Coimbra, 1996 , pág. 391-402) . - LOURENÇO MARTINS, Medida da Pena, Finalidades e Escolha, p. 83 e ss.. - MARGARIDA SILVA PEREIRA, Os Homicídios, p. 40. - PAULO CUNHA, Lições de processo civil e comercial, Lisboa, 1936. - RAGUÉS I VALLÈS, Dolo Y Su Prueba En El Proceso Penal. - SCHONKE/SCHRODER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 21. Auf., § 13, Bem. 18-19, pp. 162-163. - TERESA SERRA, Homicídio Qualificado, p. 66. | |||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 410.º, N.º2, 434.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 10.º, N.º2, 73.º, 131.º, 132.º. | |||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 09/07/2003, DE 20/10/2010, DE 27/05/2010. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: - N.ºS 102/99 E 319/12. | |||
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Sumário : | I - A constatação da existência de qualquer um dos elementos em que se decompõe o dolo tem como pressuposto uma valoração que tem de arrancar dos indícios existentes, nomeadamente o perfil da actuação do arguido, e extrair dos mesmos as consequências que as regras da experiência, quando não as próprias leis científicas, permitem. II - O critério da adequação dever ser geral e objectivo o que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante, e não ex post, mais rigorosamente, segundo um juízo de prognose póstuma. Em tal juízo de prognose póstuma devem ser levados em consideração os conhecimentos correspondentes às regras da experiência comum, mas não só. Além destes, devem ser tidos em conta os especiais conhecimentos do agente, aqueles que o agente efectivamente detinha, apesar de a generalidade das pessoas deles não dispor. Tal consideração tem uma especial incidência quando a causalidade têm implícito o conhecimento pelo agente dum contexto factual que, em termos de normalidade, não seria acessível. III - Nos termos do art. 10.º do CP, se um comportamento omissivo provocar um certo resultado típico, é de considerá-lo, para efeitos penais, como se tivesse sido produzido por acção (ou seja, se não fosse a omissão o resultado não se teria produzido). A acção omitida encontra-se em conexão legal com o resultado produzido, ou seja, a afirmação de causalidade com a omissão do fazer positivo existe sempre que este acto hipotético tivesse impedido o resultado. Há que afirmar a causalidade quando não é possível imaginar a acção esperada sem que desapareça o resultado. IV - Dado que na omissão as conclusões da teoria de causalidade são menos fiáveis que no fazer positivo, somente quando se constate com probabilidade séria e segura que a acção esperada teria evitado o resultado, haverá que questionar da mesma forma que em relação ao fazer positivo, se a produção do resultado era manifestamente improvável atendendo ao escasso grau de perigosidade da omissão. V - Esta regra assume duas restrições. A primeira circunscreve-se à ideia de que a equiparação não se verificará se for outra a intenção da lei, o que sucede nos casos de crimes de execução vinculada ou em que o legislador relaciona a censurabilidade da acção com essa forma vinculada de execução (não é essa a hipótese do crime de homicídio no qual o tipo se limita a incluir a exigência de um resultado – a morte – sem lhe associar qualquer forma vinculada de execução). A segunda consagrada na lei está inscrita no n.º 2 do art. 10.º, ao pressupor que a omissão só é punível quando sobre o agente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado decorrente da sua omissão. VI - O dever de garante pelo fazer perigoso prévio responde à proibição de lesar outro. Quem ocasiona uma perturbação da ordem social estabelecida para impedir a lesão dos bens jurídicos deve preocupar-se que o perigo que criou não se transforme num resultado típico. Existem aqui três requisitos a assinalar: por um lado, o fazer prévio tem que ocasionar o perigo próximo (adequado) da produção do dano. Por outro, o comportamento tem que ser o objectivamente antijurídico. Por último, a infracção do dever consiste na vulneração de uma norma orientada precisamente para a protecção do correspondente bem jurídico. VII - A posição de garante tem de ser construída no domínio de uma responsabilização primitiva, no sentido de primeira, e analisada e integrada ainda pelas circunstâncias do caso e pela particular configuração da situação típica. O omitente tem de poder intervir em termos reais no nexo de causação/evitação do resultado desvalioso. Para ser susceptível de integrar a posição jurídica de garante, este tem de conhecer a situação típica, tem de possuir as forças próprias necessárias (força, conhecimento, capacidade intelectual e capacidade de realização das tarefas materiais exigidas), tem se representar a acção exigida como fim possível da sua vontade, e como elemento de natureza pessoal-objectiva têm de ocorrer pressupostos externos de proximidade especial e presença física, ou, dito de outro modo, monopólio de facto da situação. VIII - Na densificação da causa jurídica específica tem de estar, por outro lado, uma relação de dependência, no sentido de estreita relação vital, total e exclusiva, baseada num vínculo jurídico com refracção nos aludidos planos da lei, do contrato ou de ingerência. No domínio muito específico das relações intrafamiliares, a doutrina aceita a construção da posição típica de garante imediatamente na relação entre pais e filhos dependentes (não autónomos no sentido imediatamente físico), e entre cônjuges pelo plano da especificidade da relação conjugal e da comunhão de direito e deveres. IX - O dolo eventual integra-se pela vontade de realização concernente à acção típica (elemento volitivo), pela consideração séria do risco de produção resultado (factor intelectual), e, em terceiro lugar pela conformação do resultado típico como factor de culpa. X - O conceito de dolo eventual configura-se, também, por contraposição ao conceito de negligência consciente que o limita de forma directa. A negligência consciente significa que o autor reconheceu, na verdade, o perigo concreto, mas não o tomou seriamente em conta, porque em virtude de uma violação do cuidado devido em relação à valoração do grau de risco ou das suas próprias faculdades nega a concreta colocação em perigo do objecto da acção, ou, não obstante considerar seriamente tal possibilidade, confia também, de forma contrária ao dever, em que não se produzirá o resultado lesivo. XI - A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação. A verificação do exemplo-padrão do n.º 2 do art. 132.º do CP não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício não mais do que isso e tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. Assim, o julgador deverá subsumir à qualificação do artigo em causa apenas as condutas que, embora não abrangidas pelo perfil especificado, normativamente correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo-padrão. XII - A qualificação deve ser equacionada em relação ao processo causal donde resultou o homicídio e não em relação ao momento que antecedeu e que, em relação à morte, não tem uma relação de causalidade adequada. Aliás, mesmo que assim não fosse, não se vislumbra uma censura fora daquela que é própria do crime imputado, em relação à mulher que bate com o cabo de uma vassoura no companheiro que está embriagado. XIII - A punição do crime de homicídio cometido, no caso vertente, através da comissão por omissão, tem subjacente a posição de garante que impendia sobre a recorrente. Tal posição advinha duma dupla via, do nexo de comunhão e solidariedade consubstanciado numa relação análoga à dos cônjuges e da a circunstância de a recorrente ter criado a situação que colocou em risco a própria vida da vítima. Isto significa que em relação a um dos índices da qualificação do homicídio sucede uma dupla aferição, ou seja, a situação análoga à dos cônjuges constitui um elemento do tipo de homicídio, bem como constitui um factor de agravação do mesmo crime. Tal convergência não é admissível. XIV - O facto que lese ou afecte uma só vez um bem jurídico, não pode ser criminalmente valorado duas vezes, sob pena de violação do princípio in dubio pro reo. Assim, entende-se que a eventual qualificação do homicídio não pode ter como fundamento uma circunstância que assume a natureza de elemento do tipo de crime de homicídio. Consequentemente, e seja qual for a perspectiva e enquadramento, não se vislumbra razão, no caso dos autos, para a qualificação do crime de homicídio, pelo que estamos perante um crime de homicídio simples, p. p. pelo art. 131.º do CP. XV - E a consideração global do sentido social do comportamento da arguida imprime uma ideia firme sobre a existência duma unidade resolutiva; dum processo que se iniciou num determinado contexto e que progressivamente se foi agravando, densificando uma culpa que dedicada num primeiro momento a infligir ofensas corporais, ultrapassa a sua fronteira, assumindo uma outra confrontação com o valor da vida e da indiferença perante a sua violação. Trata-se, assim, duma única resolução criminosa e dum único crime de homicídio voluntário, não existindo uma situação de concurso real com as ofensas corporais previamente infligidas à vítima. XVI - No que se refere à determinação da medida concreta da pena, há que ter presente que, na sua essência, a pena é retribuição da culpa e, subsidiariamente, instrumento de intimidação da generalidade e, na medida possível, de ressocialização do agente. XVII - No entanto, existem dois momentos que são inultrapassáveis na análise do caso e que decorrem, necessariamente, da circunstância de nos encontrarmos perante uma forma circunscrita de culpa, que tem inscrita uma menor censura derivada da opção desvaliosa da arguida, a qual se revela através do dolo eventual. Por outro lado, a circunstância de nos encontrarmos perante um crime de comissão por omissão, situa-se num plano qualitativamente diferente da comissão por acção, pois que o nexo de ligação psicológica entre o agente e o facto é menos envolvente, ou seja, é menos intenso. Por tal facto o art. 10.º, n.º 2, do CP, refere que no caso previsto no número anterior (comissão por omissão) a pena pode ser especialmente atenuada. | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou a condenação, em sede de primeira instância, na pena de 16 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, dos art. 131º e 132, nº 1 e 2, al. b), do Código Penal. São as seguintes as razões aduzidas pela recorrente nas conclusões da respectiva motivação de recurso: • A ora recorrente foi condenada a 16 anos de prisão. • O recurso, atento a pena aplicada é possível nos termos dos artigos 400° e 432° ambos do CPP. • A arguida foi punida a título de dolo eventual. • O dolo eventual é matéria de direito. • Como tal pode ser analisado em sede de recurso e não está limitado pelos poderes de cognição dos Supremo Tribunal de Justiça. • O dolo enquanto elemento subjectivo do tipo penal, deve ser considerado como fazendo parte da questão de direito e como tal pode ser analisado pelo Supremo Tribunal de Justiça. • Da matéria da prova, bem como da matéria assente deriva que a vítima faleceu por choque hipovolémico. • Tal choque hipovolémico derivou de um sangramento dos ossos do nariz por ofensa do maciço facial. • O perito médico referiu que o mesmo foi uma pequena fractura. • O perito - autor do relatório da autópsia - referiu que não houve qualquer traumatismo craniano como se poderia inferir da matéria dada como provada na douta sentença. • O perito referiu que não é normal um homem médio ter um choque hipovolémico por uma pequena fractura com sangramento do nariz, feita por ofensa do maciço facial. • E que só devidamente contextualizado tal fractura pode levar ao resultado morte. • Referindo igualmente que a morte por este tipo de fractura e sangramento foi ocasional. • O relatório da autópsia refere que a vítima sofria de uma patologia esteto-hepática grave, a qual pode ter consequências na coagulação do sangue e na dificuldade de o mesmo estancar de forma normal. • O relatório e as explicações dadas pelo referido perito levantam a hipótese de que a falta de coagulação do sangue derivasse da patologia de que o mesmo sofria, não podendo porém assegurar tal situação. • Refere o perito igualmente, que tal patologia podia até nem ser conhecida da vítima, pois a mesma não se encontrava medicada para tal, havendo só indicações quanto a medicamentos do vulgarmente chamado Xanax, que é um ansiolítico. • Perante tais situações, não podia a arguida configurar aquilo que a vítima não sabia que padecia, por mais conhecimentos que tivesse. • E tal situação não é passível de ser conhecida de um homem médio pois a este não é exigível conhecer o que o próprio - vítima - pode não conhecer. • Em face de tal situação não podia a ora recorrente configurar o resultado morte quando o homem médio sabe que se qualquer patologia ninguém falece por choque hipovolémico devido a uma pequena fractura nasal com sangramento. • A contrário da sentença e da matéria confirmada pela Relação, houve auxílio, conforme ficou demonstrado pela ajuda da toalha que em situação normal permitiria o estancamento do sangue da hemorragia nasal. • Assim, a seguir a ideia de homicídio a recorrente nunca poderá ser punida a título de dolo eventual mas sim a título negligente. • Ao considerar, atenta a factualidade que a recorrente praticou um crime de homicídio doloso, o douto acórdão errou na aplicação do Direito, pois o mesmo a ser homicídio só o poderá ser por negligência, e tal negligência está prevista atento o preceituado no artigo 15° do CP e do artigo 137° do mesmo dispositivo. • A medida da pena, atento o circunstancialismo, mesmo que existisse homicídio não deveria ter avançado pela agravação por especial perversidade ou censurabilidade, através da valoração global do caso e podendo por aí verificar que não se verifica a razão de ser da agravação. • A considerar-se a tese do homicídio, o mesmo atento os factos supra descritos só o poderá ser por negligência e assim sendo deve a medida da pena ser adequada a tais factos. Termina pedindo que seja o presente recurso seja julgado procedente. Respondeu o Ministério Publico concluindo que: Num quadro fáctico como o descrito e em função da prova produzida (a desfilada em audiência e a constante dos autos) é de todo improcedente e inadequado sustentar que a conduta da Arguida não configura uma acção claramente dolosa, no mínimo sempre a título de dolo eventual conforme decisão das duas anteriores instâncias. É uma evidência que arguida representou a morte como possível resultado da sua conduta e conformou-se com essa possibilidade. Resulta da prova, designadamente do depoimento do médico Dr. BB, que a perda de sangue provocou um choque hipovolémico resultante de fractura dos ossos próprios do nariz que teve como consequência a morte da vítima. Termina pedindo que seja mantido integralmente o acórdão condenatório objecto de recurso. Nesta instância a Exª Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu proficiente parecer no qual se refere que: A arguida AA interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido em 3/7/2013 pelo Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou o acórdão condenatório proferido na 1ª instância, mantendo-o por autoria do crime de homicídio qualificado e a medida da pena que lhe havia sido aplicada. O Ministério Público através do Sr. Procurador-Geral Adjunto defende fundamentadamente o decidido no acórdão recorrido. Nas conclusões que delimitam o conhecimento do recurso a arguida/recorrente tenta novamente como realça, que pretende impugnar a sua condenação por autoria do homicídio qualificado com dolo eventual, porque não resultará da matéria de facto provada esse tipo de dolo mas negligência atendendo-se à matéria de facto provada e à prova gravada. Para sustentar o cometimento deste tipo de crime argumente que além de não saber do que é que a vítima padecia, também não podia configurar o resultado morte e ser punida por autoria de um crime de homicídio com dolo eventual, mas apenas a título negligente. Para a arguida/recorrente a matéria de facto e a prova gravada devia levar a considerar que houve erro na aplicação de direito não havendo enquadramento para o homicídio qualificado com dolo eventual mas apenas homicídio negligente. Vejamos 1- A arguida AA foi condenada por autoria de um crime de homicídio qualificado p.p. pelos artºs 131º e 132º nºs 1 e 2 b) do CP, na pena de 16 anos de prisão, sem referência concreta ao nº 3 do artº 14º do CP. A arguida/recorrente para continuar a questionar a autoria do homicídio cometido com dolo eventual volta a querer pôr em causa a matéria de facto provada que já havia impugnado e foi confirmada em recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra, quando já o não pode fazer. 1.1 Também não poderá ver reapreciada “a intenção” de matar e a fixação dos elementos subjetivos do dolo, por igualmente se incluírem no âmbito da matéria de facto (entre muitos, o Ac. do STJ de 22/3/09, p. 3781/08, 3ª sec.). A matéria de facto está por isso fixada por já não poder ser visada no recurso de revista que a arguida interpõe para o Supremo Tribunal de Justiça, conforme dispõe não só o artº 434º do CPP, mas também a doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal e do Tribunal Constitucional. Em recurso o S.T.J. só pode conhecer questões de direitos e só excepcional e oficiosamente conhecerá os vícios p. no art. 410.º, n.º 2 do CPP. A arguida/recorrente apenas poderia questionar se da matéria de facto provada resulta claramente que representou que em consequência da sua conduta, o seu companheiro poderia morrer, tal como veio a acontecer, e se se conformou com essa possibilidade ou então se a comissão do resultado só foi possível por omissão (artº 10º do CP) 2- Dolo eventual suscitada pela arguida. “Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização” (nº 3 do artº 14º do CP). Já na doutrina, “o dolo eventual é ainda uma forma de decisão de realização do facto típico, ou, em última análise, decisão pela lesão do bem jurídico, especificando-se que «na situação de dolo eventual o agente, ao aceitar o risco da verificação do resultado típico (“conformando-se” com ele, nos termos do nº 3 do artigo 14º do Código Penal), preferindo-o aos custos da não realização da sua conduta, inclui essa aceitação nos fundamentos da sua decisão e opta pela lesão do bem jurídico. Na perpectiva do desvalor da acção, do ilícito, não há qualquer razão para diferenciar qualitativamente o dolo eventual”.(Fernanda Palma, in Tentativa Possível em Direito Penal, 2006). Seguindo a jurisprudência do STJ nomeadamente o Acórdão de 20/10/2010, proc. 3554/02.3TDLSB.S2, relatado pelo agora o Exmo. Sr. Conselheiro Relator “ o dolo eventual significa que o autor considera como possível a realização do tipo legal e conforma-se com ela “. E “a negligência consciente significa que o autor reconheceu na verdade o perigo concreto, mas não o tomou seriamente em conta, porque, em virtude de uma violação do cuidado devido em relação à valoração do grau de risco ou das suas próprias faculdades, nega a concreta colocação em perigo do objeto da acção, ou, não obstante considerar seriamente tal possibilidade, confia, também de forma contrária ao dever, em que não se produzirá o resultado lesivo”. Daqui se conclui que na negligência consciente se encontra a imprudência temerária do agente e no dolo eventual a sua aceitação, pelo que entre uma e outra a diferença é muito ténue. 2.1 Para a arguida defender que atuou apenas negligentemente tinha de resultar dos factos provados que quando deixou a vítima no chão a sangrar, confiou que o mesmo se iria levantar para pedir ajuda e por isso evitaria a morrer ou então que da sua parte houve omissão ao não prestar ajuda. A arguida relativamente às ofensas ao seu companheiro representou os factos que preenchem o tipo de crime, atuando com a intenção de o realizar (artº 14º nº 1 do CP), como resulta da prova. 2.2 No resultado final das agressões, quanto à morte, não prestou qualquer cuidado que deveria ter prestado e admitiu ser possível que das lesões pudesse resultar a morte tendo-se conformado com essa possibilidade. O crime de ofensas à integridade física agraviado pelo resultado (artº 143º nº 1 b)) é que poderia estar mais próximo do dolo direto com negligência consciente, como eventual resultado da matéria de facto provada e não o crime de homicídio negligente (defendido pela arguida). Parece-nos por isso que a arguida/recorrente AA com dolo eventual cometeu o crime de homicídio qualificado. 3- Medida da pena. A determinação da pena que terá de ser encontrada entre o mínimo de 12 anos e o máximo de 25 anos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artº 30º nº 1 do CP). “Mas o conteúdo da culpa no dolo eventual é menor que o das outras classes de dolo, porque aqui o resultado não foi tido como adquirido nem tido como seguro. Permanecem no dolo eventual por um lado, a consciência da existência de um perigo concreto de que se realiza no tipo, e por outro, a consideração séria, por parte do agente, da existência deste risco” (acórdão atrás citado). E conjuntamente com a circunstância do homicídio qualificado se mostrar sob a forma de dolo eventual e por isso a culpa ser menos intensa, também deveria ser realçado que a arguida AA não tinha antecedentes criminais e já tinha 53 anos de idade, encontrava-se em Portugal há 10 anos com a vítima, agora ambos desempregados, embora ela esporadicamente trabalhasse e discutirem nomeadamente devido ao consumo de álcool por parte da vítima CC. Como as finalidades da pena, segundo a jurisprudência do STJ, residirem principalmente na tutela dos bens jurídicos e na reinserção do agente na comunidade, também não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa. 3.1 No caso concreto dos autos atendendo às circunstâncias referidas não nos parece que, sendo a arguida emigrante, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma jurídica seja elevada, que a prevenção geral não seja positiva e que a integração não poderá ocorrer na sua comunidade de origem (neste sentido na doutrina de Figueiredo Dias). Na determinação da pena de 16 anos de prisão que foi fixada na 1ª instância e mantida no Tribunal da Relação, segundo nos parece, não só não foram tidos em conta os fatores relevantes como também terá havido uma limitada aplicação dos princípios gerais, em especial a moldura da culpa, o que terá levado a uma desproporção no quanto da pena aplicado. Por isso achamos que se poderá defender que a medida da pena mais adequada a aplicar à arguida AA seja de 12 anos de prisão. Termina manifestando o entendimento de que o recurso da arguida AA deverá ser rejeitado quanto à matéria de facto, julgada improcedente relativamente às questões de direito e ser julgada procedente parcialmente quanto à medida da pena. Os autos tiveram os vistos legais. * Cumpre decidir Em sede de decisão recorrida encontram-se provados os seguintes factos: 1. A arguida e o falecido CC, também natural da Ucrânia, onde nasceu em 20.08.1962, viveram como se casados fossem, durante, pelo menos 15 anos, os primeiros cinco na Ucrânia e os restantes em Portugal, e isto por referência à data dos factos; 2. Pelo menos nos últimos dois anos a arguida e o falecido encontravam-se a viver nº 1º esquerdo do nº 108, na Rua do Arco, em Viseu; 3. Nos últimos tempos o relacionamento entre os mesmos, foi-se deteriorando e, por vezes, discutiam, nomeadamente devido ao consumo excessivo de álcool, por parte do CC; 4. No dia 21 de Janeiro, a hora não concretamente apurada, as testemunhas DD e EE, foram a casa do casal, sita no xº esquerdo do n.º xxx, da Rua do A…, na cidade de Viseu; 5. Nessa casa, o ofendido - CC - e as testemunhas - DD e EE - ingeriram vinho em grande quantidade até à altura em que estes se ausentaram para a residência que habitam, sita no sótão do mesmo edifício; 6. Durante esse período a arguida aparentava estar chateada; 7. Já depois do DD e do EE terem saído da residência do CC e da arguida, encontrando-se estes na cozinha, o CC começou a dizer que queria “mais vinho”, o que levou a que a arguida lhe servisse mais meio copo de vinho; 8. Contudo, já depois de ter bebido o meio copo de vinho, voltou a pedir mais vinho à arguida, o que levou a que entre os mesmos se iniciasse uma discussão; 9. No decurso da discussão a arguida pegou numa vassoura, que se encontrava entre o fogão e a parede da cozinha, e como o cabo da mesma, desferiu no CC, pelo menos, quatro pancadas, com bastante intensidade sobre a zona da cabeça e do rosto, atingindo-o também nos braços e mãos, quando este tentava proteger aquelas partes do corpo; 10. Tais pancadas foram desferidas pela arguida, de pé, de cima para baixo, quando o ofendido estava sentado numa cadeira; 11. A arguida, apesar de se aperceber da gravidade das lesões que provocara, nomeadamente de que o ofendido tinha ficado a sangrar do nariz, deslocou-se para o quarto, onde permaneceu cerca de 5 minutos, voltando, de novo, à cozinha, onde deixara o companheiro; 12. Como o companheiro se encontrava sem forças, em razão do excesso de álcool que havia ingerido e das agressões que tinha sofrido, a arguida, depois de com uma toalha ter limpo o sangue da boca e nariz da vítima, encaminhou-o para o quarto, arrastando-o pelo corredor que liga aquelas duas divisões da casa, tendo nesse percurso voltado a agredi-lo, com o cabo da vassoura, agora já partido; 13. Já no quarto onde ambos dormiam, a arguida voltou a agredir o companheiro, nomeadamente na zona da cabeça e da face, com, pelo menos, uma bofetada quando este se encontrava sentado no chão e encostado à parede e, posteriormente, já com o arguido deitado pelo menos, por mais duas vezes, com o cabo da referida vassoura, e isto, quando o mesmo lhe voltou a pedir mais vinho; 14. Aquando destas últimas pancadas com o cabo da vassoura o ofendido estava prostrado no chão do quarto, já sem qualquer reacção, entorpecido pelo álcool que havia ingerido – de tal modo que, no momento da sua morte, apresentava uma alcoolemia de 3,31g/l – e pelas agressões já sofridas, continuando a sangrar abundantemente, em consequências das lesões que tinha sofrido, sendo incapaz de pedir ajuda a quem quer que fosse; 15. Em razão da força e violência que usou ao desferir as referidas pancadas, a arguida provocou, para além do mais, várias feridas incisas no rosto do ofendido, bem como a fractura dos ossos do nariz, melhor descritas e localizadas no relatório de autópsia que aqui de dá por reproduzido e, consequentemente, abundante hemorragia; 16. A arguida, perfeitamente consciente desse estado e sabendo que a prestação de socorro médico ao ofendido era crucial para evitar o seu decesso, até porque tem conhecimentos de enfermagem, deitou-se numa das camas do referido quarto, por volta das 22 horas, acabando por adormecer, abandonando o companheiro à sua sorte, bem sabendo que em razão de toda a sua descrita conduta poderia morrer; 17. Acordou por volta das 00:15 horas do dia seguinte quando se aproximou do seu companheiro que continuava deitado no chão do quarto, verificando que o mesmo já havia falecido, uma vez que não apresentava qualquer sinal vital; 18. Com efeito, o ofendido acabou por falecer devido a choque hipovolémico, e isto, em consequência das lesões que a arguida lhe provocou, descritas no relatório de autópsia que se dá por reproduzido, e que provocaram continuada e abundante hemorragia, associado à falta de assistência médica; 19. Em toda a sua descrita conduta, a arguida agiu de forma livre e consciente, representando que em consequência da sua conduta o seu companheiro poderia morrer, o que veio a suceder, conformando-se com tal; 20. Sabia que tal conduta era proibida e punida por lei; 21. Do CRC da arguida não constam quaisquer antecedentes; 22. A arguida na data dos factos auferia um subsídio de desemprego de 244€/mês, trabalhando esporadicamente nas limpezas; 23. A vítima encontrava-se desempregada, auferindo um subsídio de cerca de 385€; 24. A arguida tem uma filha maior na Ucrânia; 25. No EP a arguida tem mantido um comportamento conforme as normas estabelecidas». E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente: - Que a vítima se tenha embriagado entre os dias 18 e 20 de Janeiro; - Que a vítima tivesse bebido 3 pacotes de vinho antes do DD e do EE terem ido a sua casa; - Que, já com estes, tivessem ingerido quatro pacotes de vinho (apenas se provou que beberam vinho, mas não se provaram as quantidades); - Que nessa altura a vítima tenha feito menção de agredir a arguida; - Que o amor e carinho entre arguida e vítima fosse forte; - Que tenham sido o DD e o EE a levarem o vinho para a casa da arguida; - Que a arguida tenha escondido qualquer quantidade de vinho no armário; - Que a vítima, o DD e o EE quando se viram confrontados com a falta de vinho tenham decidido que os dois últimos iriam comprar mais vinho; - Que os três (DD, EE e vítima) tenham discutido; - Que se tenham agredido e partido loiça; - Que a vítima tenha ido com o DD e o EE, no dia 21, e depois de estes terem estado em sua casa, para casa deles; - Que a arguida o tenha lá ido buscar; - Que o tenha encontrado na residência do DD e do EE com a cabeça poisada na mesa e a sangrar abundantemente; - Que na residência do DD e do EE existisse loiça partida e uma cadeira partida; - Que a arguida tenha pedido para a deixaram chamar a ambulância; - Que a vítima e os amigos a tenham impedido de tal; - Que tenha sido posta fora de casa dos DD e do EE ; - Que a arguida, após os factos, tenha dito às autoridades que tinha dificuldades em falar e entender o português; - Que a mesma não tenha abdicado de tradutor e advogado e que tenha solicitado aos Inspectores da PJ tradutor; - Que a reconstituição dos factos tenha sido imposta à arguida e que na altura da mesma ela tenha voltado a solicitar tradutor e advogado; - Que os inspectores da PJ lhe tenham dito: “tu és estrangeira, aqui não tens direito a nada” “é melhor fazeres como te dizemos se não vai ser bem pior para ti”, vamos te fechar na prisão da Guarda”; - Que tenham tido contactos físicos de carácter violento com a arguida; - Que quando fez a reconstituição se limitou a colocar-se nas posições que lhe eram indicadas pelos membros da polícia. * O argumentário recursivo expresso nas conclusões formuladas pela requerente suscita, em termos genéricos, questões relevantes que se configuram na intenção de matar; na relação de causalidade; o dolo eventual; a qualificação do crime, bem como na medida da pena. I Da intenção de matar No que toca àquele primeiro ponto refere a decisão recorrida que: 15. Em razão da força e violência que usou ao desferir as referidas pancadas, a arguida provocou, para além do mais, várias feridas incisas no rosto do ofendido, bem como a fractura dos ossos do nariz, melhor descritas e localizadas no relatório de autópsia que aqui de dá por reproduzido e, consequentemente, abundante hemorragia; 16. A arguida, perfeitamente consciente desse estado e sabendo que a prestação de socorro médico ao ofendido era crucial para evitar o seu decesso, até porque tem conhecimentos de enfermagem, deitou-se numa das camas do referido quarto, por volta das 22 horas, acabando por adormecer, abandonando o companheiro à sua sorte, bem sabendo que em razão de toda a sua descrita conduta poderia morrer; 17. Acordou por volta das 00:15 horas do dia seguinte quando se aproximou do seu companheiro que continuava deitado no chão do quarto, verificando que o mesmo já havia falecido, uma vez que não apresentava qualquer sinal vital; 18. Com efeito, o ofendido acabou por falecer devido a choque hipovolémico, e isto, em consequência das lesões que a arguida lhe provocou, descritas no relatório de autópsia que se dá por reproduzido, e que provocaram continuada e abundante hemorragia, associado à falta de assistência médica; 19. Em toda a sua descrita conduta, a arguida agiu de forma livre e consciente, representando que em consequência da sua conduta o seu companheiro poderia morrer, o que veio a suceder, conformando-se com tal A esta materialidade considerada provada contrapõe a recorrente que: A vítima sofria de uma patologia esteto-hepática grave, a qual pode ter consequências na coagulação do sangue e na dificuldade de o mesmo estancar de forma normal. • O relatório e as explicações dadas pelo referido perito levantam a hipótese de que a falta de coagulação do sangue derivasse da patologia de que o mesmo sofria, não podendo porém assegurar tal situação. • Refere o perito igualmente, que tal patologia podia até nem ser conhecida da vítima, pois a mesma não se encontrava medicada para tal, havendo só indicações quanto a medicamentos do vulgarmente chamado Xanax, que é um ansiolítico. • Perante tais situações, não podia a arguida configurar aquilo que a vítima não sabia que padecia, por mais conhecimentos que tivesse. • E tal situação não é passível de ser conhecida de um homem médio pois a este não é exigível conhecer o que o próprio - vítima - pode não conhecer. • Em face de tal situação não podia a ora recorrente configurar o resultado morte quando o homem médio sabe que se qualquer patologia ninguém falece por choque hipovolémico devido a uma pequena fractura nasal com sangramento.
A- Como questão prévia na análise do presente recurso, e especificamente sobre o elemento da culpa, importa sublinhar que o recurso para o Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame das questões de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP. Relativamente á impugnação da matéria de facto impõe-se a reafirmação do princípio de que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista por excelência - art. 434.º do Código de Processo Penal – saindo fora do âmbito dos seus poderes de cognição a apreciação da matéria de facto. Na verdade, se é certo que os vícios da matéria de facto - artigo 410.º, n.º 2, do mesmo Código - são de conhecimento oficioso, e podem sempre constituir objecto de recurso, tal só pode acontecer relativamente ao acórdão recorrido, ou seja, o Acórdão do Tribunal da Relação. A decisão deste Tribunal sobre a alegação da existência de vícios da matéria de facto ocorridos na decisão da primeira instância tem de tomar-se por definitivamente assente como é jurisprudência uniforme. Saliente-se, ainda, que o reexame pelo Supremo Tribunal de Justiça exige a prévia definição (pela Relação) dos factos provados. Partindo de tal pressuposto importa avançar na procura da definição de matéria de facto por contraposição à matéria de direito referindo que matéria de facto e matéria de direito são questões de alguma dificuldade de destrinça. Sem embargo o eixo diferenciador já foi por diversas vezes apreciado em sede doutrinária e de forma convergente. Assim, para o Prof. Paulo Cunha o critério geral para distinguir a matéria de facto da matéria de direito é o seguinte: há matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução há a necessidade de recorrer a uma disposição legal- ainda que se trate de uma simples palavra da lei; há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, por averiguação de factos cuja existência ou não existência não depende de nenhuma norma jurídica. Por outras palavras: deve afirmar-se que é de direito tudo aquilo- todos aqueles pontos- cuja averiguação dependa do entendimento a dar a normas legais seja qual for espécie destas. Sempre que se discuta ou possa discutir a observância ou violação duma disposição legal estaremos diante de matéria de direito; no caso contrário diante de matéria de facto. E em nota de pé de página conclui aquele Mestre que “Note-se que é preciso não confundir isto com o facto de que toda e qualquer averiguação de factos, por mais ajurídica que seja, se realiza por meio de processos regulados e prescritos na lei. Tal circunstância não interessa. Quando dizemos que há matéria de direito sempre que para se chegar a uma solução temos de recorrer a uma disposição legal, referimo-nos apenas às disposições legais que determinam a solução, e não às disposições legais que regulam a actividade por meio da qual se chega a uma solução.>>[1] Para o Professor Alberto dos Reis “é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior ; é questão de direito tudo o que respeita á interpretação e aplicação da lei. Reduzido o problema á sua maior simplicidade a fórmula é esta: a)-É questão de facto determinar o que aconteceu. b)-É questão de direito determinar o que quer a lei, ou seja a lei substantiva, ou seja a lei do processo. [2]
Aplicando o critério exposto ao caso vertente é manifesto que a pretensão da recorrente se situa na alteração da matéria de facto. A lógica da sua argumentação centra-se na circunstância da impossibilidade de afirmação duma relação de causalidade à face dos seus conhecimentos concretos sobre a lesão produzida e sobre as circunstâncias patológicas que afetavam o seu companheiro. Tal percepção contrapõe-se à da decisão recorrida que, duma forma sintética, refere que Em toda a sua descrita conduta, a arguida agiu de forma livre e consciente, representando que em consequência da sua conduta o seu companheiro poderia morrer, o que veio a suceder, conformando-se com tal. Assim sendo é manifesto que é sobre uma discordância sobre os factos de que fala a recorrente sendo certo que esta discordância assenta no conhecimento, ou não conhecimento, da possibilidade de a morte resultar dos ferimentos infligidos com a sequente afirmação duma conformidade com tal resultado Face a tal quadro sublinhe-se, mais uma vez, que não é permitido a este Supremo Tribunal alterar a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida. * B Sem embargo do exposto importa sublinhar que, na sua aparente linearidade, o caso vertente convoca algumas questões relevante que, em abstracto, têm suscitado a atenção da doutrina, e da jurisprudência, e não foram equacionadas nos autos. Como fundamento da lógica argumentativa a desenvolver importa que, desde já, se afirme que as decisões proferidas nas instâncias analisaram a o desenvolvimento da acção praticada pela recorrente sem descriminar a circunstância de a mesma se poder segmentar em dois momentos distintos com sérias implicações a nível da conclusões jurídico penais. Na verdade, a nosso ver existem dois momentos temporais que devem servir de polos de orientação na subsunção jurídica a elaborar: num primeiro momento existe uma conduta activa, uma comissão por acção, em que a arguida ofende voluntária e corporalmente o seu companheiro de longos anos, utilizando o cabo duma vassoura. As consequências de tal acção concretizaram-se em lesões que, em circunstância alguma, se encontram em relação de causalidade adequada com a morte da vítima. Aquela morte sobrevém na sequência da hemorragia nasal e do sequente choque hipovolémico. Para que este acontecesse terá sido fundamental a ausência de adequados cuidados médicos que, a existirem, teriam logrado evitar o decesso da vítima. A decisão recorrida reconhece tais circunstâncias, sem que da mesma extraia quaisquer conclusões, como é patente no segmento que se afirma que: Ora, é verdade que não se provou que a arguida, quando começou a agredir o companheiro, o queria matar. No entanto provou-se que a determinada altura ela previu a morte como possível e conformou-se com essa possibilidade, pois não tomou nenhuma das atitudes que poderiam tê-la evitado: prestar socorro, pedir auxílio atempado.
Momentos distintos, com importantes consequências a nível da subsunção jurídica, que não foram oportunamente ponderadas.
C Como se referiu a afirmação da intenção da intenção de matar pela recorrente encerra uma conclusão sobre um facto que, exceptuando a hipótese de erro nas premissa ou na lógica que a anima, não é susceptível de ser colocada em crise. Sem embargo da proclamação da intangibilidade de tal matéria não podemos deixar de salientar a especial sensibilidade que reveste a afirmação dum fenómeno de natureza psicológica em qualquer uma das suas vertentes (intelectual ou volitiva), nomeadamente face a uma conduta omissiva, o qual só é detectável através dos indícios que a exprimem. Na verdade a constatação da existência de qualquer um dos elementos em que se decompõe o dolo tem como pressuposto uma valoração que tem de arrancar dos indícios existentes, nomeadamente o perfil da actuação do arguido e extrair das mesmas as consequências que as regras da experiência quando não as próprias leis científicas permitem. Como refere Ragués i Vallès ao pronunciar-se sobre a prova do dolo em processo penal na prova indiciária intervêm dois tipos de enunciados distintos que se empregam num juízo de inferência: as chamadas regras da lógica formal e as regras da experiência. Para se poder afirmar que a conclusão obtida através da prova de indícios coincide com a realidade afirma o mesmo Autor que são necessários dois pressupostos básicos e irrenunciáveis: as regras da experiência que se apliquem em termos de premissa maior devem ser enunciados para que transmitam declarações seguras, e irrefutáveis, sobe o conteúdo da referida realidade e, em segundo lugar, é necessário também que os factos provados, que se conjugam em termos de premissa menor do silogismo judiciário correspondam inteiramente á realidade.[3] Dentro das regras da experiência que vigoram na nossa sociedade podem identificar-se dois grandes grupos: por um lado as leis científicas e, por outro, todas aquelas ilações que não são mais do que as regras de experiência quotidiana. As primeiras formam-se a partir dos resultados obtidos pelas investigações das ciências, a que se atribui o carácter de empíricas, enquanto que as outras assentam na denominada experiência quotidiana que surge através da observação, ainda que não exclusivamente cientifica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se podem estabelecer consenso. Na verdade, a máxima da experiência é uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos, mais precisamente é uma regra extraída de casos semelhantes. A experiência permite formular um juízo de relação entre factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos. Parte-se do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” e este relacionamento permite afirmar um facto histórico não com plena certeza mas, como afirma Tonini, como uma possibilidade mais ou menos ampla.
Tais referências, transponíveis, para toda e qualquer hipótese em que procure indagar uma afirmação de vontade subjacente à culpa, têm implícitas, na sua aplicação prática, a necessidade de afirmação que, face às concretas circunstâncias, a experiência comum, ou a experiência de vida do cidadão normal, permite a afirmação, sem qualquer dúvida, de que, quem assim actua, tem a intenção de matar. Tal afirmação é linear quando o processo causal é expresso no apontar dum percurso em que aquela acção do agente conduz necessariamente à morte (quem dispara uma arma de fogo à “queima roupa” na direcção do coração da vitima indubitavelmente que tem a intenção de matar).Porém, já se afigura mais complexa a afirmação de tal intenção quando a relação de causalidade foge à adequação normal entre o acto e o facto pois que, pelo meio, se interpõem circunstâncias concretas que, afectando aquela relação, só se podem afirmar em função dum conhecimento concreto da sua existência pelo agente que só caso a caso se pode verificar. Dito isto, e sem embargo do exposto sobre insindicabilidade da matéria de facto por este Supremo Tribunal, não podemos deixar de sublinhar a afirmação constante da decisão recorrida de que: 16. A arguida, perfeitamente consciente desse estado (abundante hemorragia) e sabendo que a prestação de socorro médico ao ofendido era crucial para evitar o seu decesso, até porque tem conhecimentos de enfermagem, deitou-se numa das camas do referido quarto, por volta das 22 horas, acabando por adormecer, abandonando o companheiro à sua sorte, bem sabendo que em razão de toda a sua descrita conduta poderia morrer. Assim, independentemente da forma como foi adquirido tal conhecimento o certo é que a consciência da possibilidade de morte em função de hemorragia e por virtude dos especiais conhecimentos da recorrente sublinha a existência duma intenção de matar que preenche o elemento subjectivo do tipo Sublinhe-se a assertividade, e a certeza da decisão recorrida, na afirmação da intenção no domínio dum fenómeno tão complexo como é a comissão por omissão. II Da relação de causalidade Como se afirmou não existe motivo para colocar em crise a afirmação da causalidade entre a conduta omissiva e o resultado de morte Na verdade, fazendo apelo às palavras de Figueiredo Dias o critério geral da teoria da adequação reside em que para a valoração jurídica da ilicitude serão relevantes não todas as condições, mas só aquelas que, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer - e portanto segundo o que é em geral previsível -, são idóneas para produzir o resultado. Consequências imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara serão pois juridicamente irrelevantes. Neste sentido deve interpretar-se o art. 10.°-1. A referência aí feita tanto à "acção adequada" a produzir um certo resultado, como à "omissão da acção adequada a evitá-lo" quer significar que o CP português adoptou, ao menos como critério básico da imputação objectiva, a teoria da adequação. [4] O critério da adequação dever ser geral e objectivo o que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante, e não ex post, mais rigorosamente, segundo um juízo de prognose póstuma. Tal significa que o juiz se deve deslocar mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais da experiência e o normal acontecer dos factos (o id quod plerumque accidit), a acção praticada teria como consequência a produção do resultado. Se entender que a produção do resultado era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar. Em tal juízo de prognose póstuma devem ser levados os já referidos conhecimentos correspondentes às regras da experiência comum, mas não só. Além destes, devem ser tidos em conta - o que, em lógica pura, representa já uma entorse no princípio geral da adequação, ainda que justificável- os especiais conhecimentos do agente, aqueles que o agente efectivamente detinha, apesar de a generalidade das pessoas deles não dispor. Tal consideração tem uma especial incidência quando a causalidade têm implícito o conhecimento pelo agente dum contexto factual que, em termos de normalidade, não seria acessível. No caso vertente o ponto crucial da afirmação de causalidade expressa-se nos especiais conhecimento atribuídos à recorrente qua a habilitariam a detectar o perigo de morte caso não fossem ministrados os necessários cuidados. Tal constatação da decisão recorrida torna inócua qualquer tentativa de procura duma lacuna no processo causal, considerado de forma abstracta, e, nomeadamente, uma referência ao critério da denominada "interrupção do nexo causal".
Reportando-nos ainda às palavras do citado Mestre a ideia-mestra que preside à teoria da adequação é a de limitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Pondo em especial evidência este perigo, situamo-nos mesmo no âmago das doutrinas actuais da conexão de risco: o resultado só deve ser imputável à acção quando esta tenha criado (ou aumentado, ou incrementado) um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. Por outras palavras, para esta teoria a imputação está dependente de um duplo factor: primeiro, que o agente, com a sua acção, tenha criado um risco não permitido ou tenha aumentado um risco já existente; e, depois, que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto. Quando se não verifique uma destas condições a imputação deve ter-se por excluída. Tendo em conta a materialidade considerada provada dúvidas não existem de que a omissão por parte da arguida de qualquer conduta no sentido de obviar ou colmatar o mal produzido se encontra exactamente ligada umbilicalmente ao risco que criou com as ofensas corporais que infligiu e as sequentes epistaxes que levaram ao choque hipovolémico.
III Da comissão por omissão Afirmada a relação de causalidade importa agora que se aprofunde a circunstância que singulariza o caso vertente, nomeadamente a comissão por omissão. Efectivamente é indubitável que, em relação aos ferimentos causados-fractura dos ossos da base do nariz, está fora de causa a afirmação duma causalidade que, ao invés, toda ela se centra na hemorragia da vítima e na omissão dos cuidados necessário para evitar um choque hipovolémico. De acordo com o artigo 10 do Código Penal a lei penal refere que, quando o tipo compreende o chamado evento ou resultado (como por exemplo acontece com a morte no homicídio), o facto abrange não só a acção como também a omissão adequadas à sua produção. Na génese do preceito citado é, por um lado, a equiparação da omissão à acção, e, por outro, que a ligação da conduta ao resultado tem que ser vista em termos de causalidade adequada, de harmonia com a qual a causa de determinado resultado é a que for adequada, ou idónea, para o produzir, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer. Dito por outra forma pode-se concluir que, se um comportamento omissivo provocar um certo resultado típico, é de considerá-lo, para efeitos penais, como se tivesse sido produzido por acção (ou seja, se não fosse a omissão o resultado não se teria produzido). A acção omitida encontra-se em conexão legal com o resultado produzido ou seja a afirmação de causalidade com a omissão do fazer positivo existe sempre que este acto hipotético tivesse impedido o resultado. Há que afirmar a causalidade quando não é possível imaginar a acção esperada sem que desapareça o resultado (duplex negatio est affirmatio) Para aproximar o mais possível o critério de constatação da causalidade que se emprega com o fazer positivo, a jurisprudência exige que a acção imaginada evitasse o resultado com uma probabilidade consistente. Sem dúvida que na omissão não é possível exigir, como no fazer positivo, uma certeza absoluta a respeito da causalidade, pois que a sua análise não pode fazer-se em relação a um acontecimento real, mas somente em relação a algo configurado como uma hipótese que se furta todo o cálculo seguro, ou seja, uma causalidade hipotética. Isto significa, que na omissão as conclusões da teoria de causalidade são menos fiáveis que no fazer positivo. Somente quando se constate com probabilidade séria e segura que a acção esperada teria evitado o resultado, haverá que questionar da mesma forma que em relação ao fazer positivo, se a produção do resultado era manifestamente improvável atendendo ao escasso grau de perigosidade da omissão. [5]
Esta regra assume duas restrições. A primeira circunscreve-se à ideia de que a equiparação não se verificará se for outra a intenção da lei o que sucede nos casos de crimes de execução vinculada ou em que o legislador relaciona a censurabilidade da acção com essa forma vinculada de execução.[6] Não é essa a hipótese do crime de homicídio no qual o tipo se limita a incluir a exigência de um resultado (a morte) sem lhe associar qualquer forma vinculada de execução. A segunda consagrada na lei está inscrita no n.º 2 do referenciado art.º 10º, ao pressupor que a omissão só é punível quando sobre o agente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado decorrente da sua omissão. Pronunciando-se sobre tal cláusula de exclusão refere o Prof. Figueiredo Dias que «A doutrina tradicional era, como se sabe, no sentido de que tal ocorreria quando a posição de garante derivasse da lei, de um contrato ou de uma situação de ingerência, é dizer, de perigo para bens jurídicos criados, ainda que não culposamente, pelo próprio omitente. Esta doutrina fortemente restritiva encontra-se de algum modo em crise e à qual não é estranha, decerto, uma muito mais afinada sensibilidade que hoje se possui para os valores e experiências de solidarismo e da comunidade de vida. Mas não deixa de ser certo também que um alargamento desmesurado das fontes donde deriva ou onde se ancora a posição de garante poria em sério risco as exigências de segurança das pessoas e de determinabilidade dos tipos incriminadores, que constitucionalmente se ligam ao princípio da legalidade em direito penal.». [7] É assim que o ponto de equilíbrio se deve encontrar numa leitura equilibrada dos deveres que especialmente oneram cada um dentro dos parâmetros impostos por uma sociedade de risco como é aquela em que vivemos. Ainda de acordo com o mesmo Autor «Uma coisa me parece certa: a lei, o contrato, a ingerência, não devem constituir fontes do dever de garantia, mas só planos em que aquele se deve reflectir, por homenagem às exigências que acabo de referir ... Vê-se, assim, que decisiva é uma relação prática de proximidade - digamos existencial - entre o omitente e determinados deveres jurídicos que ele tem o dever pessoal de proteger ou entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo controlo é pessoalmente responsável. Que com isto se alarga o catálogo das situações em que o dever de garantia se afirma, é indiscutível; sem que todavia se possam dizer postas irremediavelmente em causa as exigências decorrentes do Estado de Direito ...». [8] Como refere Jeschek nos delitos impróprios de omissão não basta o facto de se verificar que uma possível acção teria impedido o resultado para responsabilizar alguém com capacidade de acção pela violação do bem jurídico, mas é necessário que exista um dever de garante. O ordenamento jurídico impõe ao cidadão, o dever de omitir acções activas mediante as que possam ser violados bens jurídicos de terceiro, mas exige em todo caso a demostração de una "especial razão" para, excepcionalmente, fazer alguém responsável por ter omitido a actuação de modo positivo para proteger os bens jurídicos alheios. A equiparação da omissão com o fazer positivo pressupõe, assim, que o omitente tenha que agir como "garante" de se evitar o resultado. Todos os deveres de evitar o resultado fundamentam-se na ideia fundamental de que a protecção do bem jurídico em perigo depende duma prestação positiva duma determinada pessoa e os interessados confiam e podem confiar na intervenção activa da mesma. A questão é, então, determinar de que modo se podem determinar com segurança os deveres de garante decisivos para o direito penal. A classificação tradicional apoia-se na origem dos deveres jurídicos (teoria formal do dever jurídico).Em face da mesma admitem-se como genético de tal dever a lei, o contrato e o prévio fazer perigoso a que se junta a etreita relação vital. Em contrapartida os deveres de garante não podem resultar da situação típica de um delito próprio de omissão, porque neste caso se trata de deveres jurídicos que afectam todos. Uma vez que só se toma em consideração uma causa juridicamente reconhecida da obrigação de responder por evitar o resultado, os deveres morais estão excluídos como base da responsabilidade jurídico-penal. Refere Jeschek que os deveres de protecção em relação a determinados bens jurídicos podem provir da solidariedade natural com o titular do bem jurídico, das estreitas relações de comunhão ou da assunção do dever. Para a delimitação dos deveres de garante derivados destas três fontes precisa-se, além do mais, que exista uma relação de dependência entre os afectados, ou que o titular do bem jurídico ou a pessoa responsável pela sua protecção por outra relação tenham assumido maiores riscos, confiando na disposição de actuar por parte do garante, ou tenha renunciado a outras medidas de protecção.
A causa jurídica mais evidente de que podem inferir-se deveres de garante, é a solidariedade natural, se bem que para a mesma ter eficácia jurídico-penal, ter que se apoiar num vínculo jurídico. Assim, e sobretudo os familiares mais próximos encontram-se genericamente obrigados reciprocamente a esconjurar os perigos para a vida e a integridade física Fonte reconhecida de deveres de garante são, também, as estreitas relações de comunhão. O decisivo é igualmente que, em virtude razões de confiança recíproca, nasçam relações de dependência, e por tal motivo se corram-riscos mais altos ou se prescinda de outras medidas de segurança (comunidade de riscos convivência análoga á matrimonial e relações de assistência). Uma outra causa jurídica para fundamentar una posição de protecção é a assunção voluntaria face à pessoa em perigo, ou um terceiro, em proveito daquela Aqui importa especialmente que outros confiando na disposição de intervenção do garante, se exponham a maiores perigos que aqueles que assumiriam noutra circunstância ou prescindam de outra protecção, pois só então a assunção justifica a responsabilidade jurídico-penal. Um outro grupo de razões justificativas da equiparação da acção à omissão centra-se na responsabilidade relativa a determinadas fontes de perigo a qual pode assumir vertentes distintas nomeadamente através de um prévio comportamento perigoso que pode criar uma situação de risco para outras pessoas, impendendo sobre o garante a obrigação de eliminar tal perigo. [9] O dever de garante pelo fazer perigoso prévio responde à proibição de lesar outro ("neminem laede"). Quem ocasiona uma perturbação da ordem social estabelecido para impedir a lesão dos bens jurídicos deve preocupar-se que o perigo que criou não se transforme num resultado típico. Existem aqui três requisitos a assinalar : por um lado, o fazer prévio tem que ocasionar o perigo próximo (adequado) da produção do dano. Por outro, o comportamento tem que ser o objetivamente antijurídico Por último, a infracção do dever consiste na vulneração duma norma orientada precisamente para a protecção do correspondente bem jurídico.[10]
A equiparação da acção à omissão implica que se tenha em consideração que a ampliação dos limites da punibilidade exigir uma rigorosa aplicação de critérios sem a qual, como se refere em voto de vencido constante do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2003, criar-se-ia uma situação insuportavelmente lata, que escaparia ao domínio do princípio da tipicidade penal e da legalidade, com refracções negativas no âmbito constitucional do direito penal. Apelando para as palavras de Faria Costa «o carácter onto-antropológico que o faccere transporta» e «um potencial, um transporte de energia e uma realização que se cristalizam em alterações ao real verdadeiro e que determinam o valor ou desvalor» próprios do faccere, «ganham uma densidade que o omittere não pode beneficiar» ; o omittere jurídico-penalmente relevante é, diferentemente, «um real construído cuja relevância resulta da transferência do espaço axiológico tendo em conta a proibição dos resultados» [11] Assim, a posição de garante, mesmo dentro dos referidos planos onde se pode reflectir e que refractam o dever jurídico-pessoal tipicamente complexo, e partindo desses planos, tem de ser construída no domínio de uma responsabilização primitiva, no sentido de primeira, e analisada e integrada ainda pelas circunstâncias do caso e pela particular configuração da situação típica. A posição de garante, que se explica e se funda no cumprimento de uma certa expectativa juridicamente vinculada, encontra-se no espaço das situações que, partindo dos referidos planos, traduza uma contextualização das relações comunicacionais como uma espécie de monopólio de facto, da esfera do domínio positivo do omitente; este tem de poder intervir em termos reais no nexo de causação/evitação do resultado desvalioso[12] Reportando-nos àquele voto de vencido o agente tem de possuir pessoalmente as necessárias capacidades e qualidades. Se a acção exigida ao garante se traduzir numa prestação de auxílio primário, imperioso segundo as circunstâncias do caso, p. ex., de alimentação, alojamento, higiene, assistência, ser necessário, também, que exista efectiva capacidade individual de acção, pessoal, intelectual e de facto, adequada e necessária à posição de garante. A capacidade individual de acção - fazer o exigido de forma conveniente - pertence, pois, ainda e também ao tipo, e deve ser interpretada segundo as exigências de certeza inerentes ao respeito pelo princípio da tipicidade. Nesta definição e integração típica, para ser susceptível de integrar a posição jurídica de garante, este tem de conhecer a situação típica, tem de possuir as forças próprias necessárias (força, conhecimento, capacidade intelectual e capacidade de realização das tarefas materiais exigidas), tem se representar a acção exigida como fim possível da sua vontade, e como elemento de natureza pessoal-objectiva têm de ocorrer pressupostos externos de proximidade especial e presença física, ou, dito de outro modo, monopólio de facto da situação [13] Na densificação da causa jurídica específica tem de estar, por outro lado, uma relação de dependência, no sentido de estreita relação vital, total e exclusiva, baseada num vínculo jurídico com refracção nos aludidos planos da lei, do contrato ou de ingerência. No domínio muito específico das relações intrafamiliares, a doutrina aceita a construção da posição típica de garante imediatamente na relação entre pais e filhos dependentes (não autónomos no sentido imediatamente físico), e entre cônjuges pelo plano da especificidade da relação conjugal e da comunhão de direitos e deveres [14]
Assim, nuclear na questão em apreço nos presentes autos será a definição da posição de garante por parte da arguida e aqui é indubitável que esta, com a ofensa da integridade física que consumou, criou o risco para a vida da vítima. Porém, tal linearidade de raciocínio é por alguma forma afectada pela circunstância da criação de tal risco só poder ser aquele que resultou das ofensas corporais infligidas e estas só colocaram em risco a vida da vítima devido às particulares circunstâncias do caso concreto. Igualmente é evidente o facto de entre vítima e recorrente existir uma ligação afectiva análoga á dos cônjuges e genética de uma posição de garante.
No caso vertente pode-se afirmar que a posição de garante indispensável à tipificação do crime por omissão surge através duma construção dual em que convergem a relação existente entre arguida e vítima e a circunstância de ter sido aquela a criar o risco para a vida desta.
IV Do Dolo eventual Precisada a existência de um crime de comissão por omissão com genética numa relação de causalidade fundada num especial conhecimento pela arguida importa agora que nos debrucemos sobre a modalidade de dolo existente. Reportando-nos ao teor de Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça por nós subscrito em 20-10-2010, e retomando aquisições dogmáticas de décadas, importa acentuar que, como refere Jeschek, o dolo eventual significa que o autor considera seriamente como possível a realização do tipo legal e conforma-se com ela. O conteúdo da culpa no dolo eventual é menor que o das outras classes de dolo, porque aqui o resultado não foi tido como adquirido nem tido como seguro. Permanecem no dolo eventual, por um lado, a consciência da existência de um perigo concreto de que se realiza no tipo, e por outro, a consideração seria, por parte do agente, da existência deste risco. Considerar-se o perigo como sério significa que o agente calcula como relativamente alto o risco da realização do tipo. Deste modo obtém-se a referência á magnitude e proximidade do perigo, necessária para a comprovação do dolo eventual. Á representação da seriedade do perigo deve adicionar-se a exigência de que o autor se conforme com a realização do tipo. Significa o exposto que o agente, decidindo alcançar o objectivo que se propõe, assume a realização do tipo legal como possível, suportando o estado de incerteza existente na acção. Quem actua por tal forma perante o perigo de que se realize o tipo de acção punível denota uma postura especialmente reprovável em relação ao bem jurídico protegido, pelo que, no tocante, ao conteúdo da culpa equaciona-se a figura do dolo eventual com o dolo directo. Esta postura do agente, caracterizada como um conformar-se com a probabilidade de produção do resultado, não é um componente da vontade de acção, mas um factor de culpa: ao autor reprova-se num grau distinto da negligência consciente em virtude da sua deficiente atitude mental em relação á pretensão de respeito pelo bem jurídico protegido, e isto, porque naquela negligência é certo que reconhece o perigo, mas confia na não produção do resultado típico. O dolo eventual integra-se, assim, pela vontade de realização concernente á acção típica (elemento volitivo), pela consideração séria do risco de produção do resultado (factor intelectual), e, em terceiro lugar pela conformação com a produção do resultado típico como factor de culpa Fazendo apelo á lição do Professor Figueiredo Dias a concepção hoje largamente dominante em relação á conformação do dolo eventual é conhecida doutrinalmente como teoria da conformação; e é ela que consta expressamente do art. 14.°-3 (59): "Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização". Parte da ideia de que o dolo pressupõe algo mais do que o conhecimento do perigo de realização típica. O agente pode, apesar de um tal conhecimento, confiar, embora levianamente, em que o preenchimento do tipo se não verificará e age então só com negligência (consciente). Como refere o mesmo Autor essencial se revela na doutrina da "conformação que o agente tome a sério o risco de (possível) lesão do bem jurídico, que entre com ele em contas e que, não obstante, se decida pela realização do facto. De dolo eventual se fala, numa palavra, a propósito de todas as circunstâncias e consequências com que o agente, em vista da autêntica finalidade da sua acção, se conforma ou se resigna com a verificação das mesmas. [15] A partir daqui coloca-se a questão de determinar se o critério da conformação consegue manter-se estranho à questão da probabilidade da realização típica. O agente que revela uma absoluta indiferença pela violação do bem jurídico, apesar de ter representado a consequência como possível e a ter tomado a sério, sobrepõe de forma clara satisfação do seu interesse ao desvalor do ilícito e por isso decide-se (se bem que não sob a forma de uma "resolução ponderada", ainda que só 'implicitamente, mas nem por isso de forma menos segura) pelo sério risco contido na conduta e, nesta acepção, conforma-se com a realização. É exactamente esse posicionamento perante o risco que surge como critério separador entre figuras que detêm uma topografia próxima. Assim, o conceito de dolo eventual configura-se, também, por contraposição ao conceito de negligência consciente que o limita de forma directa. A negligência consciente significa que o autor reconheceu na verdade o perigo concreto, mas não o tomou seriamente em conta, porque em virtude de uma violação do cuidado devido em relação á valoração do grau de risco ou das suas próprias faculdades nega a concreta colocação em perigo do objecto da acção, ou, não obstante considerar seriamente tal possibilidade, confia, também de forma contrária ao dever, em que não se produzirá o resultado lesivo. Enquanto que no dolo eventual o agente "aceita", o característico da negligência consciente é a imprudência temerária. Como pedra de toque para a diferenciação, pode servir a fórmula de Frank: "Se o autor afirma: seja assim ou de outro modo, suceda isto ou aquilo, eu actuo em qualquer caso", deve considerar-se a existência de dolo eventual. Os limites das formas de culpa entre negligência consciente e dolo eventual situam-se, assim numa fronteira muito estreita que passa pela assunção ou indiferença pelo perigo contido na conduta.”
Assumido que integram o dolo a vontade de realização concernente á acção típica (elemento volitivo), a consideração seria do risco de produção do resultado (factor intelectual), e a conformação com a produção do resultado típico como factor de culpa importa agora enunciar a forma como é possível a sua afirmação no caso concreto. 19. Em toda a sua descrita conduta, a arguida agiu de forma livre e consciente, representando que em consequência da sua conduta o seu companheiro poderia morrer, o que veio a suceder, conformando-se com tal; Ao omitir os cuidados que podia, e devia, ministrar a arguida igualmente se conformou com o resultado da morte que poderia advir como resultado da sua omissão. Estamos pois perante uma hipótese de dolo eventual.
V Refere a decisão recorrida subscrevendo a tese da existência de homicídio qualificado que: Ora, trata-se sem dúvida, de comportamentos cuja incriminação em sede de homicídio qualificado se articula com a especial ilicitude, que o legislador reconhece aos crimes de maus-tratos e de violência doméstica (hoje vertidos no artigo 132.º com a epígrafe genérica de violência doméstica). Temos, assim, que a qualidade ou relação especial do autor com a vítima, que reconhecidamente agrava a ilicitude deste crime, repercute na nova alínea do artigo 132.º”. Na situação concreta esta alínea está preenchida porque a arguida, à data dos factos, tinha uma relação análoga à dos cônjuges com a vítima. … Contudo, para que o crime seja qualificado não basta que alguma das alíneas do artigo 132 se encontre preenchida, sendo, ainda, necessário a especial censurabilidade ou perversidade, a que alude o nº 1 do citado artigo. …………A culpa da arguida é gravíssima, tendo os factos sido praticados num contexto que demonstram a especial censurabilidade e perversidade. A arguida manifestou um total desrespeito pela vida humana, ao agredir a vítima várias vezes, quando a mesma se encontrava completamente embriagada o que limitava qualquer hipótese de reacção e revela especial censurabilidade. A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, atinente à personalidade do autor, sendo esta a situação dos autos traduzida, nomeadamente no número de agressões existentes e do espaço temporal existente entre as mesmas (cerca de 5 minutos entre as 1ªas agressões e as 2ªs), não se inibindo a arguida de agredir o seu companheiro não só na cozinha, como no corredor e no próprio quarto, apesar de, nesta altura já sangrar abundantemente, existindo um profundo desrespeito pelo bem jurídico protegido, o que demonstra não só especial perversidade como censurabilidade. Perante isto temos de concluir que se encontra verificada a qualificativa quer da alínea b), devendo a arguida ser condenado pelo homicídio qualificado».
Consignada a argumentação da decisão recorrida importa que se sublinhe que, como tivemos ocasião de afirmar em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010, a qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Refere Silva Dias a verificação do exemplo padrão do n° 2 do art. 132° não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício não mais do que isso e tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. [16] [17] Indubitavelmente que o apelo a exemplos padrão, como exemplificadores de uma intensidade qualitativa da culpa, reflecte uma técnica de tipos abertos que apenas pode ser compreendida dentro dos limites por alguma forma propostos pelo princípio da legalidade. Assim, o julgador deverá subsumir à qualificação do artigo em causa apenas as condutas que, embora não abrangidas pelo perfil especificado, normativamente correspondem á estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão. Outro entendimento não podia decorrer do pressuposto de que nos encontramos perante uma qualificação assente no tipo de culpa. O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível Nas palavras de Margarida Silva Pereira a caracterização do art. 132° do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso á analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 1321 do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. Como refere a Autora citada o que o legislador comanda não é que se considere uma culpa sem suporte de ilicitude aumentada, mas sim que de tal ilicitude maior não se retirem quaisquer efeitos a menos que se acompanhe de um acréscimo de culpa. A ilicitude superior é aqui um pressuposto de culpa.[18] [19] O artigo 132 do Código Penal define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação em relação ao tipo do artigo 131 do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131 funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão. O critério da qualificação está definido no nº1 do artigo 132 e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade, estão enumeradas no nº1 do mesmo normativo. A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contem elementos da culpa que integra factores relativos á actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento. O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputará especial censurabilidade àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e á especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação[20] * No caso vertente aponta-se como configurando uma especial censurabilidade ou seja o facto de a arguida manifestou um total desrespeito pela vida humana, ao agredir a vítima várias vezes, quando a mesma se encontrava completamente embriagada o que limitava qualquer hipótese de reacção e revela especial censurabilidade.
Existe manifesto lapso da decisão recorrida que considera, duma forma global e linear, um acontecimento, que se processou em diferentes fases, quer na sujeição ao critério da ilicitude, quer da culpa que relevam em termos de apreciação jurídico-penal. Na verdade, e como já se sublinhou, num primeiro momento temos as ofensas corporais infligidas com o cabo duma vassoura e que produziram a fractura dos ossos do nariz. Tais ferimentos só estão em relação de causalidade com a morte em virtude da existência dum acontecimento que não se encontra, de forma alguma, num nexo de normalidade causal. A epistaxe-hemorragia nasal- apenas em 6% dos casos necessita de intervenção médica e eclosão da morte apenas pode resultar da ausência de cuidados médicos nos casos limite.[21] A qualificação deve ser equacionada em relação ao processo causal donde resultou o homicídio e não em relação ao momento que antecedeu e que, em relação à morte, não tem uma relação de causalidade adequada. Aliás, mesmo que assim não fosse, não se vislumbra uma censura fora daquela que é própria do crime imputado, em relação à mulher que bate com o cabo duma vassoura no companheiro que está embriagado Assim sendo é evidente para nós que a especial censurabilidade que deve qualificar o crime de homicídio deve ser aferida em relação ao segundo momento no qual a arguida tendo conhecimento que a ausência de cuidados médicos poderia provocar a morte por choque hipovolémico foi indiferente a tal resultado. Porém, relação a tal omissão, e por mais que procuremos um ponto de convergência com a decisão recorrida, não se vislumbra onde é que existe uma censurabilidade que, em face do cidadão médio, revele uma desproporcionalidade entre o motivo que despoleta o itinerário criminoso, ou seja, entre o evento e a omissão praticada, indicando uma ausência de racionalidade, ou, dito por outras palavras, uma ausência de um processo compreensível que minimamente convoque a lógica como explicação da conduta do arguido. A arguida pura e simplesmente foi-se deitar e adormeceu indiferente à sorte do companheiro e à possibilidade da sua morte. Consequentemente, a qualificação do crime apenas se pode fundar na tipificação da alínea b) do artigo 132 do Código Penal, ou seja, situação análoga à dos cônjuges.
VI Do principio ne bis in idem Importa agora recordar a aquisição consumada em II de que a punição do crime de homicídio cometido no caso vertente através da comissão por omissão tem subjacente a posição de garante que impendia sobre a recorrente. Tal posição advinha duma dupla via, ou seja a circunstância de o especial dever de garante derivar dum nexo de comunhão e solidariedade consubstanciado numa relação análoga à dos cônjuges e a circunstância de a recorrente ter criado a situação que colocou em risco a própria vida da vítima. Significa o exposto que em relação a um dos índices da qualificação do homicídio sucede uma dupla aferição, ou seja, a situação análoga à dos cônjuges constitui um elemento do tipo de homicídio, bem como constitui um factor de agravação do mesmo crime. Tal convergência não é admissível. Como refere Figueiredo Dias «A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objetiva e/ou subjetiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (…) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global»[22] Recorrendo ao acórdão do Tribunal Constitucional de 31/03/2011 proferido no processo 319/12 a norma constitucional –“ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” – dá dignidade constitucional expressa ao clássico princípio de ne bis in idem. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Coimbra, 2007, p. 497), fazem notar que o referido princípio comporta duas dimensões: a dimensão de direito subjetivo, que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, e a dimensão de princípio objetivo, que obriga o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. Está aqui em causa a dimensão subjetiva do princípio, na vertente que proíbe a imposição plural de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infração. O Tribunal Constitucional tem afirmado que o referido princípio impede que o mesmo facto seja valorado duas vezes, isto é, que uma mesma conduta ilícita seja apreciada com vista à aplicação da sanção mais do que uma vez. A esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado. A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a violação dessa vertente substantiva do princípio de ne bis in idem nos casos de concurso de crimes é consitente. Para aferir da violação do referido princípio, o Tribunal tem partido do princípio de que o apuramento de tal violação pressupõe que as normas em concurso sancionem – de modo duplo ou múltiplo – substancialmente a mesma infração. Para aferir da identidade substancial das infrações, o Tribunal Constitucional tem adotado o critério enunciado no Acórdão n.º 102/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 1 de abril de 1999), seguido em posteriores arestos, consistente no seguinte: «Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a “prática do mesmo crime” ou perante um concurso efetivo de infrações, quer este concurso seja real, quer seja ideal (Sobre todos estes conceitos, cf. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infrações, Coimbra). É que, sendo o concurso de crimes efetivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem.» Em suma, o facto que lese ou afete uma só vez um bem jurídico, não pode ser criminalmente valorado duas vezes. Assim, entende-se que a eventual qualificação do homicídio não pode ter como fundamento uma circunstância que assume a natureza de elemento do tipo de crime de homicídio. Consequentemente, e seja qual for a perspectiva e enquadramento, não se vislumbra razão para a qualificação do crime de homicídio pelo que estamos perante um crime de homicídio simples previsto e punido nos termos do artigo 131 do Código Penal
VII Da Unidade de Infracção Adquirida a existência dos pressupostos de imputação dum crime de homicídio simples importa ainda equacionar a questão de saber se o mesmo não se encontra em concurso com as ofensas corporais previamente infligidas No que respeita chamamos á colação o que a propósito escreveu Eduardo Correia referindo que, de acordo com uma concepção normativista do conceito geral de crime,- a unidade ou pluralidade de crimes é revelada pelo "o número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. ( ... ). Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados. ( ... ) Pelo que, deste modo, chegamos à primeira determinação essencial de solução do nosso problema: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção" . No cerne do critério enunciado, e que constitui a trave mestra de toda a elaboração doutrinal que, a propósito, se escreveu no nosso país, estão princípios nucleares do direito penal uma vez que, seguindo a argumentação do mesmo Mestre, mais do que em nenhum outro campo da vida jurídica, se impõe no direito criminal o princípio da segurança do direito e a necessidade de assinalar um fundamento sólido à actividade jurisprudencial pois que a valoração jurídico-criminal não pode ser deixada ao arbítrio do juiz, mas deve ser formulada de maneira, tanto quanto possível, precisa. [23] Para dar realidade a este pensamento, adianta Eduardo Correia, possui a técnica legislativa um recurso, que consiste precisamente no «tipo legal de crime». Nele descreve o legislador aquelas expressões da vida humana que, em seu critério, encarnam a negação dos valores jurídico criminais que violam os bens ou interesses jurídico-criminais. Neles vasa a lei como em moldes os seus juízos valorativos, neles formula de maneira típica a antijuricidade, a ilicitude criminal. Depois, uma vez formulados esses tipos legais de crimes, impõe-nos ao juiz como quadros, a que este deve sempre subsumir os acontecimentos da vida para lhes poder atribuir a dignidade jurídico-criminal. O juiz não pode valorar á sua vontade as relações submetidas à sua apreciação, mas deve sempre, em cada caso, para que as possa considerar antijurídicas, verificar se elas são subsumíveis a um tipo legal de crime. O tipo legal é, pois, o portador, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados os tribunais e o intérprete. Se todos os juízos de valor jurídico-criminais hão-de ser fornecidos, através de tipos legais de crimes, é, por outro lado, certo que cada tipo legal há-de ser informado por um específico valor jurídico-criminal. Consequentemente, se diversos tipos legais de crime são preenchidos, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais, da mesma maneira que, se um só tipo é realizado, um só valor nega a actividade criminosa do agente Assim, conclui Eduardo Correia, que a possibilidade de subsunção duma relação da vida a um ou vários tipos legais de delito é a chave para determinar a unidade ou pluralidade a unidade ou pluralidade de crimes. Porém, Para que exista uma infracção não basta que uma conduta seja tipicamente antijurídica: é preciso, também, que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é, que seja culposa. Assim, ao lado daquele Juízo que refere o comportamento humano a bens ou valores jurídico-criminais, outro juízo de valor se requer como pressuposto do crime, o qual se analisa na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente. Assim, a consideração da «culpa», elemento essencial ao conceito de crime, constitui um limite do critério segundo o qual se determinaria a unidade ou pluralidade de infracções pela unidade ou pluralidade de tipos realizados. Na verdade, a unidade de tipo legal preenchido não importará definitivamente a unidade das condutas correspondentes, na medida em que, sendo vários os juízos de censura que as ligam à personalidade do seu agente, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável, e deverá por conseguinte considerar-se existente uma pluralidade de crimes.
O índice da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente A experiência, e as leis da psicologia, referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todo se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação. Igualmente Jeschek aponta no sentido de que, em algumas situações, a simples realização do tipo não é suficiente para a determinação da distinção entre a unidade e pluralidade de infracções e deverá fazer-se apelo a critérios como o da unidade natural de acção. Situação típica é a realização repetida do mesmo tipo legal de crime num curto espaço de tempo. O requisito para apreciar a unidade de acção nestes casos é a circunstância de que, com a repetição plural do tipo, a lesão do bem jurídico só experimenta uma progressão quantitativa e que o facto responda, além do mais, a uma situação motivacional unitária. Uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural. No mínimo, dir-se-ia que a autonomização tem como pressuposto um processo de renovação da vontade e não é incorrecto, á luz dos princípios, considerar uma renovação de propósito criminoso a sustentar uma renovação da formulação de um juízo de culpa. A construção dogmática desenhada constitui o prius lógico do artigo 30 do actual Código Penal que é o critério á luz do qual se deverá examinar o caso vertente.Na verdade, toda a actuação da arguida se processou num contínuo de desenvolvimento da vontade, numa única resolução criminosa que, todavia, foi adquirindo uma tonalidade qualitativa mais intensa à medida que a sua actuação se sucedia. Uma culpa pelo facto que se apresenta de forma unitária.
Estamos em crer que é incontestável a importância que o bem jurídico assume no que à tipicidade diz respeito. Contudo, tal relevo não justifica uma preclusão legítima dos restantes elementos típicos ou seja da consideração global do sentido social do comportamento que integra o tipo. Só pressupondo esta consideração se poderá, pois, aceder à compreensão do sentido jurídico-social do comportamento delituoso. [24]
É manifesto que, no caso vertente, a consideração global do sentido social do comportamento da arguida imprime uma ideia firme sobre a existência duma unidade resolutiva; dum processo que se iniciou num determinado contexto e que progressivamente se foi agravando densificando uma culpa que dedicada num primeiro momento a infligir ofensas corporais, ultrapassa a fronteira num assumindo uma outra confrontação com o valor da vida e da indiferença perante a sua violação. Tratamos, assim, duma única resolução criminosa e dum único crime de homicídio voluntário.
V III Da medida da pena Relativamente á questão da medida da pena, e como questão prévia da sua definição, importa que se reitere, no que concerne á finalidade, o entendimento, que já ficou expresso em decisões deste Supremo Tribunal de Justiça, da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial. Estamos em crer que é nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam á prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. Na verdade, as normas deveriam “ser reafirmadas na sua própria existência como um fim em si mesmas” enquanto o agente, pelo contrário, tem direito a esperar, e espera, sobretudo uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção. Sem embargo, a culpa e a prevenção residem em planos distintos. A culpa responde á pergunta de saber de se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção. Aqui há que decidir qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico. A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente a finalidade da mesma. Reafirmando o ensinamento de Jeschek, a culpa, se é o limite superior da pena, também deve ser co-decisiva para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira. Aliás, e fundamentalmente, ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção. Tal posicionamento, apontando para a pena justa, derivada da proporção entre a culpa e o castigo, como criador de consequência a nível de prevenção geral e especial não contende com nenhum dos postulados normativos consagrados na lei. Como refere Lourenço Martins Ora, se do n.º 1 do artigo 40 do Código Penal se extrai sem esforço a indicação de que as finalidades da prevenção geral e especial estão imersas na aplicação das penas já quanto à referência à culpa, embora a interpretação linear aponte para que nunca se imporá sem culpa - aspecto unilateral - não se extrairá a máxima de que se impõe sempre uma pena quando houver culpa (e obviamente de factos ilícitos e típicos). Mas se deixarmos de lado, neste ponto, a carga doutrinária que estava por detrás do principal mentor da revisão de 95, o Prof. o Dias, e se valorizarmos a declaração de que não se deseja resolver uma tão cortante questão dogmática, muito longe da estabilização então concluiremos sem dificuldade que o inovador preceito, e «emblemático», como lhe chama Sousa e Brito, pouco esclarece Tanto mais assim será quando o confrontarmos com o artigo 71.°, especificamente de «Determinação da medida da pena».[25] Resumindo o exposto, e por outras palavras, na sua essência a pena é retribuição da culpa e, subsidiariamente, instrumento de intimidação da generalidade e, na medida possível, de ressocialização do agente * Dentro deste quadro e com relevância para a decisão do caso vertente impõe-se a consideração de que a decisão recorrida imprime um carácter vincante, na medida da pena, às necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infracções em que estão em causa valores nucleares da vida em sociedade. Na verdade, não estão em causa bem jurídicos situados na periferia da personalidade, mas a própria Vida. É imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de interacção social sejam penalizadas com adequada punição e, por tal forma, se tenha a noção de que vida humana é um valor intocável. Igualmente relevantes os factores de medida da pena elencados na decisão recorrida sendo certo que a mesma desvaloriza uma menor inserção social da arguida portadora duma cultura e valores que não totalmente coincidentes com os de uma sociedade para a qual foi transplantada pela necessidade de ganhar a sua vida. Se é certo que tal não releva como fator da medida da pena não se deve omitir a circunstância duma dupla penalização de quem está longe da sua pátria; dos seus familiares e da sua cultura.
[1] Lições de processo civil e comercial / proferidas por Paulo Cunha ; Lisboa : [s.n.], 1936: [2] Código de Processo Civil Anotado Volume III pag 206 e 207 [3] Dolo Y Su Prueba En El Proceso Penal de Ragues I Valles [4] Direito Penal - Parte Geral - Tomo I - Questões Fundamentais; A Doutrina Geral do Crime [5] TRATADO DE DERECHO PENAL. PARTE GENERAL de : Jescheck - Hans - Heinrich [6] O que acontece com a coacção, com a generalidade dos crimes sexuais ou com a burla, em que há que verificar, autonomamente, se, no caso concreto, a omissão corresponde ou é equiparável à acção 7] Pressupostos da Punição, pag 55. [8] ibidem. [9] ibidem [10] Jesheck Tratado de Derecho Penal, parte General. pags. 256/257 [11] José de Faria Costa, "Omissão (reflexões em Redor da Omissão Imprópria)" , no Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXII , Coimbra, 1996 , pág. 391-402) . [12] cfr., FARIA COSTA, loc. cit.). [13] , H-H JESCHECK, "Tratado de Derecho Penal" , Parte General, vol. II , págs. 850 e segs.). [14] Citado voto de vencido apelando para os exemplos citados por ENRIQUE GIMBERNAT ORDEIG, "Causalidad, omissión e imprudencia" , in Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XLVII, Fasc. III, Setembro-Dezembro de 1994, desig. pág. 60) . Mas não já, em termos imediatos ou restritos, nas relações entre filhos e pais ou avós (cfr., v.g., SCHONKE/SCHRODER, Strafgesetzbuch, Kommentar, 21. Auf., § 13, Bem. 18-19, pág. 162-163). [15] Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pg. 358, [16] Confrontar Augusto Silva Dias "Crimes contra a vida e a integridade física" pág. 27 [18] Margarida Silva Pereira" Os Homicídios " pág. 40 [19] No mesmo sentido Fernando Silva Direito Penal Especial Crimes contra as pessoas pág 60 e seguintes; Augusto Silva Dias obra citada pág 20 e seg. Para Teresa Serra- Homicídio Qualificado pág 66- a verificação das circunstâncias previstas no n° 2 do art. 132° seja ela relativa ao facto ou à culpa do agente, significando um amento da culpa ou da ilicitude, só constitui um indício da existência de especial censurabilidade ou perversidade que fundamenta a moldura penal agravada do homicídio qualificado. [20] Regelbeispiele lhes chama Jeschek (tratado pag. 245) considerando que os exemplos padrão não constituem elementos qualificativos do tipo, mas regras de aplicação de pena. A particularidade dos exemplos regulados é dupla. Por um lado a concorrência dos elementos constantes do exemplo representa só um indício para a apreciação dum caso especialmente grave. 0 juiz pode recusar o efeito indiciário se uma valoração global do facto e do agente revela que o concreto conteúdo do ilícito e da culpa do facto, apesar da realização dos elementos constitutivos do exemplo regulado, não diferem essencialmente da média dos casos da correspondente classe de delito que se apresentam normalmente. [21] A hemorragia nasal é o extravasamento de sangue através das fossas nasais, que pode se originar das mesmas, dos seios paranasais, da nasofaringe, da tuba auditiva ou de sítios adjacentes. A epistaxe é definida como sangramento de origem da mucosa que recobre o sistema de vascularização do nariz devido à alteração da hemostasia, seja por perda da integridade vascular, anormalidades da mucosa nasal ou por alterações nos fatores de coagulação.Estima-se que 60% das pessoas apresentem algum tipo de sangramento nasal durante a vida. Apenas 5% destes merecem tratamento médico. As causas mais comuns incluem traumas digitais, infecções, droga ilícitas, medicamentos tópicos. Os episódios de epistaxe afetam todas as idades, sem predileção por gênero, apenas variando a incidência e a causa. Incide com mais frequência nos extremos da vida, sendo comum nas crianças, onde na maioria das vezes não apresenta gravidade e após 50 anos, onde deve-se ter atenção. São mais predominantes nos meses mais secos e no inverno, que favorecem à fragilidade da mucosa nasal. Confrontar Vol. 11 , Nº. 3 -Otorrinolaringologia Geriátrica.Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto- Abordagem atual das hemorragias nasais Roberto Campos Meirelles;Leonardo C. B de Sá;Guilherme Almeida [22] (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, páginas 989 e 1015). [23] Teoria do Concurso em Direito Criminal pag 84 e seg [24] Para Figueiredo Dias é o tipo de ilícito o verdadeiro portador da ilicitude material e, como tal, a este deve reconhecer-se uma estrutura complexa, integrada, como pacificamente reconhecido, pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito. Aquele primeiro é constituído, para além do bem jurídico, por outro elementos, como a necessária consideração das questões pertinentes ao "autor" e "conduta", devendo todos estes elementos ser conjugados com os elementos integrantes do tipo subjectivo. Resultarão daqui duas consequências: por um lado, permite-se, porventura ainda, «manter a problemática essencial do concurso ( ... ) dentro da categoria do tipo de ilícito e tomar dispensável, ao menos em princípio, o apelo à categoria da culpa»; por outro lado, só da aludida conjugação resultará «o sentido jurídico-social do conteúdo de ilicitude material do facto que o tipo abrange» . Uma vez mais, todos os referidos elementos - não só uma sua consideração "autónoma", mas a própria consideração conjunta da sua globalidade - importam na aferição da unidade ou pluralidade de tipos preenchidos [25] Medida da Pena; Finalidades e Escolha pag 83 e seguinte [26] Como refere Figueiredo Dias "Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo "normal" de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena" [Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 302. cfr. no mesmo sentido, a sua intervenção na Comissão Revisora (Acta n.º 8, 78-9): ora, o que na verdade aqui ocorre é uma visão integral do facto que leva o julgador a concluir por uma especial atenuação da culpa e das exigências da prevenção]. |