Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
156/1999.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: ALÇADA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
SEGREDO PROFISSIONAL
DIVÓRCIO LITIGIOSO
CONJUGE ÚNICO
PRINCIPAL CULPADO
PERDA DE BENEFICIOS
DOAÇÃO PARA CASAMENTO
VENDA DE BENS ALHEIOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1. A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (art. 24º da LOFTJ).

2. Provada a autoria da letra e da assinatura de um documento particular tem-se por plenamente provado que o autor do documento fez as declarações que neste lhe são atribuídas, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento; e os factos referidos nessas declarações têm-se por provados – plenamemente provados – na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.

3. Apenas o declaratário pode invocar o documento, como prova plena, contra o declarante que emitiu uma declaração contrária aos seus interesses; nas relações com terceiros, essa declaração só vale como elemento de prova, a apreciar livremente pelo Tribunal.

4. Um recibo de quitação, elaborado por procurador e advogado de um contraente e por ele entregue à contraparte, referindo o recebimento de determinada quantia para pagamento parcial do preço da venda de um imóvel feita pelo mandante ao recebedor do documento, pode ser por este último usado como meio de prova em acção em que ambas as partes discutem a validade do negócio e a propriedade do imóvel, não estando condicionado o seu uso por qualquer segredo profissional.

5. A norma do n.º 1 do art. 1791º do CC – que estatui que o cônjuge declarado único ou principal culpado no divórcio perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento – abrange, entre outros benefícios, as doações feitas a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário.

6. As doações para casamento – ou seja, as doações feitas a um dos esposados ou a ambos, em vista do seu casamento – caducam se ocorrer divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado; e se a doação tiver sido feita por terceiro a ambos os esposados ou os bens doados tiverem entrado na comunhão, a caducidade atinge apenas a parte do cônjuge que for declarado único ou principal culpado.

7. A perda dos benefícios a que alude o n.º 1 do art. 1791º, verifica-se por força da lei, isto é, opera-se ipso jure, sem necessidade de qualquer declaração de revogação por parte do autor da liberalidade, e os bens doados ao cônjuge culpado revertem automaticamente ao património do doador.

8. A venda da nua propriedade de um imóvel, doada a ambos os cônjuges, em consideração do seu estado de casados, pelos pais do cônjuge mulher, e por esta efectuada depois de decretado o divórcio dos donatários, com culpa exclusiva do cônjuge marido, é nula, por não poder a vendedora arrogar-se a qualidade de dona exclusiva da coisa vendida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA intentou, no já longínquo ano de 1998, no Tribunal Judicial de Paços de Ferreira, contra
BB,
CC,
DD,
EE,
FF,
GG,
HH
II, e
JJ e mulher LL,
a presente acção com processo ordinário, pedindo
a) se declare que é dono e legítimo proprietário do prédio identificado no art. 1º da petição inicial, condenando-se os réus a tal reconhecer;
b) se decrete a validade da escritura pública de compra e venda por via da qual adquiriu esse prédio e a nulidade das aquisições levadas a efeito por via da adjudicação e da venda referidas nos arts. 54º e 66º da petição inicial, respectivamente;
c) se ordene o cancelamento dos registos de aquisição lavrados com base nessas aquisições inválidas.
Subsidiariamente, para o caso de improcederem os pedidos principais, pede:
d) se condenem os réus solidariamente a pagarem-lhe a quantia de 25.000.000$00 (equivalente a € 124.699,47), acrescida de juros à taxa legal a contar da citação até efectivo reembolso.
Subsidiariamente ainda, para o caso de improceder igualmente este pedido, o autor pede:
e) se condenem os réus solidariamente a pagarem-lhe a quantia de 2.358.109$00 (equivalente a € 11.762,20), acrescida de juros à taxa legal sobre o montante de 1.700.000$00 (equivalente a € 8.479,56), desde 15.09.1998 até efectivo embolso.
Alegou para tal que em 1979, os pais da 1ª ré fizeram, a esta e ao marido, MM – casados sob o regime de comunhão geral – doação, com reserva de usufruto, do imóvel identificado no art. 1º da petição inicial. Tendo este casamento sido dissolvido por divórcio, com culpa exclusiva do cônjuge marido, por sentença de 22.05.84, de um tribunal francês, confirmada por acórdão da Relação do Porto de 03.10.85, que transitou em julgado, suscitou-se, em sede de inventário para separação de meações, a questão de o ex-cônjuge varão não poder quinhoar nesse bem, tendo sido aí decidido, por despacho judicial, excluir o prédio da relação de bens, “por se não mostrar claramente que se trata de bem comum”.
Por escritura pública de 06.03.87, a 1ª ré vendeu ao autor – dando logo conhecimento da venda aos 2º a 8º réus, seus filhos – a raiz ou nua propriedade do imóvel referido, pelo preço real de 3.500.000$00, do qual o autor pagou 500.000$00, ficando de pagar o restante até Agosto do ano seguinte (período durante o qual foi entregando vários montantes por conta, restando pagar 1.300.000$00 em meados de 1988), tendo aquela subscrito uma declaração onde se responsabilizava por eventuais prejuízos que o autor viesse a sofrer, caso o seu ex-cônjuge, que teve conhecimento da venda imediatamente após a sua realização, viesse, apesar disso, a reclamar judicialmente o seu direito a metade do imóvel.
Em 1989, quando faleceram os pais da 1ª ré e se extinguiu o usufruto, o autor ocupou o prédio, efectuou nele várias reparações, providenciou pela poda e sulfatação da vinha nele existente e colheu as uvas, que transformou em vinho, inscreveu o prédio em seu nome na matriz e celebrou contrato de seguro contra incêndio, apenas não tendo conseguido registá-lo a seu favor, por a última inscrição datar de 1856 e não conseguir fazer o trato sucessivo.
Entretanto a 1ª ré passou a afirmar que a venda que tinha efectuado ao autor nada valia e que não pretendia receber dele a parte do preço ainda em dívida; e, para evitar que o autor invocasse o seu direito de propriedade sobre o imóvel, congeminou um plano com os seus filhos, demais réus, de acordo com o qual o 2º réu propôs contra a mãe, em 1990, uma acção judicial para ver declarado que a raiz daquele prédio era bem comum do casal – acção que esta não contestou, pelo que foi proferida sentença a condená-la no pedido.
De seguida, a 1ª ré requereu inventário para partilha da herança por óbito do seu ex-marido, relacionando o imóvel em causa como verba única, no âmbito do qual aquela e os seus filhos fizeram adjudicar a propriedade do bem a todos os filhos, em comum e partes iguais, não obstante saberem que o mesmo fora vendido ao autor, sendo que na pendência do inventário o ora 2º réu requereu o arrolamento do bem, que foi decretado, e contra o qual o autor e a sua mulher deduziram embargos de terceiro, que foram julgados improcedentes.
Ainda na sequência do plano que tinham arquitectado, os 2º a 7º réus intentaram uma acção de justificação judicial, com a qual puderam obter o trato sucessivo e registar o imóvel a seu favor, após o que venderam o prédio aos réus JJ e mulher, seus tios, em 1997, os quais, embora sabedores de toda a situação, pretendiam adquirir o imóvel e aguardavam que a situação criada o propiciasse.
O prédio em questão vale “actualmente” (a petição inicial deu entrada em 16.09.98), 25.000.000$00 (equivalente a € 124.699,47).

Os réus JJ e mulher, LL, contestaram, impugnando os factos alegados pelo autor, alegando ainda que a venda efectuada pela 1ª ré ao autor foi simulada, visando apenas fugir à partilha do prédio com o seu ex-marido, sem dar conhecimento dessa situação aos seus filhos, e de todo o modo sempre constitui venda de bem alheio, por a 1ª ré ter vendido como próprio um bem que era comum do casal, e que são eles os proprietários do prédio em causa actualmente, por o terem adquirido aos verdadeiros proprietários, tendo a aquisição registada a seu favor, sendo que sempre teriam adquirido a propriedade por usucapião.

Também contestaram os restantes réus, invocando a excepção de ilegitimidade passiva por não ter sido demandada NN, cônjuge do réu FF, bem como a nulidade da compra e venda celebrada entre a 1ª ré e o autor, por se tratar de venda de bem alheio, e a prescrição dos juros vencidos há mais de 5 anos a contar da data da citação dos réus.
Alegaram ainda que foram o autor e sua mulher que convenceram a 1ª ré a vender-lhes o imóvel e foi o autor que tratou de todos os documentos necessários, que esta ré se limitou a assinar, sem se aperceber do seu conteúdo e confiando na palavra dos seus cunhado e irmã. Os 7º e 8º réus, tão jovens que eram, nem se aperceberam da venda, de que os restantes filhos da 1ª ré só mais tarde souberam. Os 9.os réus desinteressaram-se do imóvel, porque não conseguiam pagar o remanescente do preço e porque não conseguiam registar o prédio a seu favor, o que disseram à 1ª ré, pedindo a devolução do montante de 500.000$00 que já haviam pago, ao que esta acedeu, tendo devolvido efectivamente tal quantia, convencida de que iria ser feita a escritura de compra e venda a seu favor, o que nunca chegou a suceder.
Alegaram ainda que existe abuso de direito por parte do autor ao arrogar-se a propriedade do imóvel mais de 10 anos depois da devolução da quantia de 500.000$00 e sem nunca ter feito qualquer utilização daquele.
Finalmente pedem a condenação deste como litigante de má fé.
Estes réus requereram ainda a intervenção principal de OO, cônjuge do autor, com vista à dedução de pedido reconvencional contra ambos, por força de litisconsórcio necessário passivo.
E, em reconvenção, deduzida contra o autor e a chamada, sua mulher, pedem se declare a nulidade da compra e venda efectuada por intermédio da escritura pública de 06.03.1987, celebrada no 1º Cartório Notarial de Viana do Castelo, ou, subsidiariamente, para o caso de improcedência desse pedido, que se declare a resolução desse mesmo contrato. Subsidiariamente ainda, para o caso de improceder também o anterior pedido subsidiário e de ser considerado válido o mesmo contrato, pedem a condenação dos reconvindos a pagarem-lhes o preço combinado de 3.500.000$00, equivalente a € 17.457,93, acrescido de juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, até integral e efectivo pagamento, encontrando-se vencidos juros no montante de € 32.463,63 à data da dedução do pedido reconvencional.

O autor replicou, nos termos constantes de fls. 197 a 202, mantendo a posição assumida na petição inicial e impugnando os factos alegados pelos réus nas suas respectivas contestações, defendendo não se verificar qualquer nulidade do contrato de compra e venda em causa, bem como não existir a prescrição de juros, pois não peticionou juros para além do período temporal de 5 anos, nem abuso de direito ou litigância de má fé da sua parte.
Relativamente à reconvenção, impugnou os factos consubstanciadores dos pedidos reconvencionais, e declarou ter pago à 1ª ré o preço constante da escritura, não deixando de invocar a prescrição dos juros vencidos há mais de 5 anos e de defender não ser correcto o valor dos juros vencidos liquidado pelos reconvintes. Finalmente, atendendo ao que fora alegado quanto ao estado civil do réu FF, requereu a intervenção principal da mulher deste, NN.

Seguiu-se a tréplica dos réus (1º a 8º), após o que foi proferido despacho judicial admitindo ambos os chamamentos – o de OO como associada do autor e o de NN como associada dos réus.
Ambas citadas, veio OO deduzir a sua intervenção, declarando fazer seus os articulados do autor.

Por entender que a acção estava sujeita a registo, o Ex.mo Juiz proferiu despacho nesse sentido, vindo o autor a fazer a respectiva prova. Já os réus/reconvintes, notificados para, “no prazo máximo e improrrogável de 20 dias”, comprovarem o registo da reconvenção, “sob pena de o autor ser absolvido da instância respectiva”, optaram por interpor recurso dessa decisão, o qual foi admitido, como agravo, com subida diferida e efeito devolutivo (despacho de fls. 300).

No despacho saneador, além do mais, o Ex.mo Juiz, considerando não terem os réus demonstrado a inscrição da reconvenção no registo nem sequer requerido a prática desse acto junto da Conservatória respectiva, absolveu os reconvindos AA e OO da instância reconvencional.
Outrossim relegou para final o conhecimento da nulidade do contrato de compra e venda – seja a arguida pelos réus Orlando Leal Martins e mulher, seja a invocada pelos demais réus – bem como da existência do alegado abuso do direito por parte do autor.
Julgou ainda parcialmente procedente a excepção de prescrição da obrigação de juros, no que respeita ao segundo pedido subsidiário formulado pelo autor, e, consequentemente, se absolveram a 1ª ré e os 2º a 8º réus da obrigação de pagar, sobre o capital referido no 2º pedido subsidiário, os juros vencidos para além dos cinco anos anteriores ao momento em que foram citados para a presente acção.
Foi, do mesmo passo, efectuada a selecção da matéria de facto (factos assentes e base instrutória).
Do despacho saneador, na parte em que absolveu os reconvindos da instância reconvencional, interpuseram os réus (os oito primeiros) novo recurso de agravo, admitido, tal como o anterior, com subida diferida e efeito devolutivo.

Seguindo o processo a subsequente tramitação processual, veio a proceder-se a julgamento e a ser proferida sentença.
Nesta, depois de apreciadas as várias questões a que cumpria dar resposta, foi decidido julgar improcedente a acção, absolvendo os réus do pedido.

Recorreram o autor e a interveniente, sua mulher.
A Relação do Porto, em acórdão oportunamente proferido, negou provimento aos dois agravos interpostos pelos réus, e julgou parcialmente procedente o recurso de apelação, alterando a resposta dada ao art. 11º da base instrutória, e condenando a ré BB a restituir ao autor a quantia de € 8.479,56 (oito mil quatrocentos e setenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos), correspondente a 1.700.000$00 à taxa de conversão para euros de 200,482, acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde cinco anos anteriores ao momento em que foi citada para a presente acção até integral e efectivo pagamento. No mais, confirmou a sentença recorrida.

Recorrem agora, do acórdão da Relação, para este Supremo Tribunal, pedindo revista, o autor e sua mulher, e a aludida ré BB.

Os primeiros concluem a sua alegação com a enunciação das seguintes conclusões:
1ª – A circunstância de a raiz do imóvel ter sido doada à 1ª ré e ao então seu marido pelos pais daquela e de este ter sido considerado único culpado do divórcio implica ipso facto a perda, por ele, desse benefício, pela caducidade da doação no que a ele respeita, face ao disposto nos arts. 1791º, n.º 1 e 1760º, n.º 2 do Cód. Civil (CC);
2ª – Trata-se de questão diversa da relativa a dever proceder-se à partilha como se o regime de bens fosse o da comunhão de adquiridos, antes suscitada nos autos – mas de que o STJ pode conhecer (art. 729º/1 do CPC);
3ª – Daí resulta que a 1ª ré era efectivamente a proprietária da raiz do imóvel quando a vendeu aos autores, não se colocando sequer a questão suscitada da necessidade do consentimento do seu ex-cônjuge para o efeito;
Sem prescindir,
4ª – A entender-se que a raiz ou nua propriedade do imóvel era um bem comum do casal da ré, nos termos do art. 1.682º-A, n.º 1, al. a) do CC carecia tal venda do consentimento do ex-marido daquela;
5ª – O acórdão recorrido defendeu e decretou que o art. 1687º do CC só teria aplicação na constância do matrimónio;
6ª – É que uma vez dissolvido este – sempre na perspectiva do acórdão – a venda de bens imóveis ou de quaisquer bens certos e determinados que integrem o património comum do casal já haveria de ser tratada como venda de bem certo e determinado da herança por apenas um herdeiro, ou seja, como «venda de bem alheio»;
7ª – O acórdão entendeu, por isso, haver uma «comunhão conjugal» de bens na pendência do casamento e uma «comunhão pós-conjugal» após a respectiva dissolução, – e que cada uma teria um regime diferente, na perspectiva de este segundo ter os mesmos regime e tratamento de uma herança indivisa no que respeita a alienação de bens;
8ª – Contudo, a lei não estatui uma tal distinção, fixando regimes diferentes para a comunhão de bens na pendência do casamento e após a respectiva dissolução quanto à respectiva alienação – e é certo que «ubi lex non distinguit …»;
9ª – A lei estabelece que o divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as excepções consagradas na lei (CC, art. 1.788º), e que para a partilha dos bens do casal a tramitação é rigorosamente a mesma que a da partilha de bens mortis causa (CPC, art. 1404º/1);
10ª – Mas em parte alguma a lei diz que de entre aqueles efeitos se contam os que o acórdão refere como equiparando-se num caso e noutro no que respeita a alienação não consentida de bens concretos que integrem o património indiviso;
11ª – Tal equiparação não pode fazer-se, face à patente diferença das situações: enquanto que antes de um decesso os potenciais herdeiros não têm direito algum sobre o património do potencial «de cujus», que dispõe de poderes para (se assim o quiser) consumir, destruir ou dissipar os bens que compõem esse mesmo património,
12ª – Já na comunhão conjugal (assim como, se se quiser, na pós-conjugal), a situação do direito de cada cônjuge sobre o património comum, ao invés do que sucede no caso do acervo hereditário, existe, quer antes quer depois da dissolução do casamento;
13ª – A única diferença é que, na pendência do vínculo, ele não é partilhável, sendo-o depois – pelo que não é correcta a perspectiva do acórdão citada na conclusão 5ª;
14ª – Nos termos do art. 1687º/1 do CC a venda feita por um cônjuge sem o consentimento do outro é anulável a requerimento do outro cônjuge ou dos seus herdeiros;
15ª – Direito esse que pode ser exercido, sob pena de caducidade, nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos três anos sobre a venda;
16ª – No caso concreto, esse direito não foi exercido, pelo que a venda do prédio em causa, feita pela 1ª ré ao autor, não padece de qualquer invalidade e, como tal, é plenamente válida e eficaz;
17ª – Em consequência, quer a adjudicação no processo de inventário, quer a compra pelos réus JJ e mulher, incidiram sobre bem alheio, daí retirando, elas sim, a sua nulidade (CC, art. 892º);
18ª – Sendo que, tendo a presente acção sido proposta e registada dentro dos três anos posteriores a essa compra, ainda que eles estivessem de boa fé – que não estavam – não poderia ela por isso prevalecer sobre a feita pelo autor (CC, art. 291º/2);
19ª – Afigura-se, pois, que a acção deverá proceder, concretamente o primeiro pedido formulado pelos autores, ou seja, que estes são os donos e legítimos proprietários do imóvel identificado nos autos, que em consequência lhes deve ser restituído;
20ª – O acórdão recorrido violou os normativos citados nas conclusões 1ª, 4ª, 5ª, 9ª, 14ª, 15ª, 17ª e 18ª.

Os réus JJ e mulher contra-alegaram.
Pugnam pela improcedência do recurso e pela confirmação, relativamente a eles, recorridos, do acórdão sob censura. Mas, para o caso de assim se não entender, pedem que subsidiariamente, nos termos do n.º 1 do art. 864º do CPC (ex vi do art. 724º/1), sejam apreciados os fundamentos que ora indicam, já por eles deduzidos na sua contestação, e não apreciados na sentença por terem sido considerados prejudicados, e, consequentemente,
- se considere nula, nos termos do art. 242º/2 do CC, a compra e venda celebrada em 06.03.87 (e não 06.07.97, como por lapso referem) na Secretaria Notarial de Viana do Castelo; ou
- se assim se não entender, se declare que eles, recorridos, são proprietários do prédio urbano identificado no art. 1º da petição inicial, quer por o terem adquirido por usucapião, nos termos do art. 1294º do CC, quer por beneficiarem da presunção, não elidida, de propriedade derivada do registo a seu favor, nos termos do art. 7º do Cód. do Registo Predial, com todas as consequências legais.

Por seu turno, a ré BB formula, no remate da sua alegação, com interesse, as seguintes conclusões:
1ª – Nos termos do art. 722º/2 do CPC, o erro na apreciação das provas pode ser objecto de recurso de revista no caso de ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
2ª – O acórdão recorrido alterou a resposta da 1ª instância ao ponto 11º da base instrutória para “Provado apenas que o autor foi pagando à ré BB vários montantes por conta dessa dívida e, em 6 de Setembro de 1988 restava-lhe pagar a quantia de Esc. 300.000$00”;
3ª – Tal alteração foi sustentada, fundamentalmente, no teor do documento de fls. 701;
4ª – Trata-se de um documento particular e, independentemente da sua genuinidade, quanto à sua força probatória a sua apreciação está sujeita às regras do art. 376º do CC, ou seja,
- Faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, e
- Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante;
5ª – Atento o seu teor e a sua força probatória, nada dele se pode concluir quanto a ter sido a quantia nele referida entregue à recorrente;
6ª – O documento não o diz; e, mesmo que o dissesse, tal não caberia nos limites da previsão do citado art. 376º;
7ª – Não existe nos autos o mais pequeno elemento que aponte no sentido de que a recorrente tenha conferido poderes ao então ilustre advogado para receber quaisquer quantias, nem tal foi sequer alegado;
8ª – Foi, pois, dada como provada matéria a que o teor do documento nem sequer alude e, se tal sucedesse, sê-lo-ia sem a virtualidade de produzir qualquer prova acerca do facto de a recorrente ter ou não recebido a dita importância;
9ª – Ocorre, pois, ofensa do disposto no aludido art. 376º, que, expressamente, fixa a força de meio de prova, neste caso a do documento particular;
10ª – Se o autor do escrito em causa tivesse sido advogado da aqui recorrente (o que esta nunca admitiu), sempre estaria sujeito a segredo profissional o facto de o causídico ter entregue à recorrente aquela quantia;
11ª – Nunca, portanto, poderia tal documento, nessa parte, fazer prova em juízo;
12ª – Tudo resulta das normas do art. 81º, n.os 1, al. a), 4 e 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor à data da emissão da declaração, ou das do art. 87º, n.os 1, al. a), 4 e 5 do Estatuto actualmente em vigor, e vigentes à data da junção do documento;
13ª – Também aqui, portanto, haveria ofensa de norma que fixa força probatória, neste caso inibindo-a até, pelo que tal meio de prova seria inadmissível;
14ª – Consequentemente, também aqui a situação é subsumível ao disposto no art. 722º/2 do CPC;
15ª – Deve, assim, ser revogado o acórdão na parte em que altera a resposta ao ponto 11º da base instrutória, com a consequência da absolvição da recorrente, em confirmação da sentença da 1ª instância;
Sem conceder,
16ª – Existe lapso na redacção dada à resposta ao mencionado ponto 11º, como foi aduzido através de requerimento formulado à Relação, ao abrigo do disposto no art. 667º/1 do CPC;
17ª – Independentemente do mais já referido, a quantia que deveria constar da resposta é a de Esc. 1.300.000$00 – a que consta daquele quesito, pelo facto de o autor assim o ter alegado no art. 19º da petição;
18ª – Os Esc. 1.000.000$00 que o acórdão recorrido entende terem sido pagos, caberiam amplamente no intervalo entre o preço que o autor alega ter sido o da venda (Esc. 3.500.000$00) e aquele que o mesmo autor disse faltar pagar;
19ª – Trata-se de manifesto erro de cálculo; e, mesmo que assim não seja, nunca poderia decidir-se por condenação em quantidade superior ao pedido, sob pena de violação do disposto no art. 661º/1 do CPC,
20ª – Devendo, pois, soçobrar a argumentação do acórdão quando nele se diz que o autor “demonstrou ter pago quantia superior àquela que indicou no seu pedido”;
21ª – O acórdão recorrido violou as normas dos arts. 376º do CC, 661º, 667º/1 e 716º/1, do CPC, 81º, n.os 1, al. a), 4 e 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Dec-lei 84/84, de 16 de Março, e 87º, n.os 1, al. a), 4 e 5 do Estatuto aprovado pela Lei 15/2005, de 26 de Janeiro.

O autor apresentou contra-alegações, sustentando dever ser negado provimento ao recurso da ré, que, na sua opinião, nem sequer é admissível, por o valor da sucumbência (que refere ser de € 13.567,29) não atingir metade do valor da alçada da Relação (€ 30.000,00).

Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.

2.

É o seguinte o acervo fáctico que vem dado como provado:
1) Por escritura pública de 19 de Julho de 1979, lavrada de fls. 59-v. a 62 do Livro de Escrituras Diversas n.º A-125 do Cartório Notarial de Paços de Ferreira, os pais da ré BB, PP e QQ, efectuaram uma série de doações por conta da quota disponível, sendo que àquela ré, e ao marido dela, foi por eles doado o seguinte bem:
“Uma casa sobradada com quintal, quinteiro com ramadas, sita no Lugar de B...., freguesia de R..., a confinar do norte com caminho e RR, do sul com os próprios, do nascente com caminho público e do poente com Eng. SS, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira como fazendo parte do n.º 4389 do Livro B-9, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 303°, anteriormente no art. 87º [A) dos factos assentes e resposta ao ponto 1º da base instrutória];

2) Tal doação foi-o com reserva de usufruto para eles doadores [B) dos factos assentes];

3) Nessa escritura, o autor e sua mulher, cunhado e irmã da Ré BB, outorgaram na qualidade de procuradores desta e de seu marido e em representação destes [C) dos factos assentes];

4) Era então a ré BB casada com MM, sob o regime da comunhão geral de bens, conforme ficou a constar da mesma escritura [D) dos factos assentes];

5) Por sentença proferida em 22 de Maio de 1984, pelo Tribunal de Grande Instância de Macon, Departamento de Saône et Loire, França, que transitou em julgado, foi decretado o divórcio entre a ré BB e seu mencionado marido, sentença essa que veio a ser confirmada em Portugal por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3 de Outubro de 1985, que igualmente transitou em julgado [E) dos factos assentes];

6) Nessas mesmas decisões, o ex-cônjuge da ré BB foi declarado «exclusivo culpado» do divórcio [F) dos factos assentes];

7) Em processo de inventário para separação de meações que correu os seus termos sob o n.º 14/86, pela 1ª Secção do 1º Juízo do Tribunal da Comarca de Paços de Ferreira, o ex-marido da ré BB, que nele desempenhou as funções de cabeça-de-casal, relacionou como bem a partilhar a raiz ou nua propriedade do imóvel atrás identificado, como verba nº 6 [G) dos factos assentes];

8) Porém, uma vez que o prédio fora, como se disse, objecto de doação, e que o regime de bens do casamento da ré BB era o da comunhão geral de bens, pôs-se a questão de o ex-cônjuge desta não poder quinhoar nesse bem, face ao preceituado nos arts. 1790° e 1791°, nº 1, do Código Civil [H) dos factos assentes];

9) Porque essa dúvida se suscitava, o M.mo Juiz, por despacho de 24 de Abril de 1986, que transitou em julgado, decretou a exclusão de tal bem do inventário, sentenciando «(…) sem curar da resolução da questão da propriedade do bem em causa, óbvio se torna concluir pela necessidade de exclusão da relação de bens apresentada de tal bem, por se não mostrar claramente que se trata de bem comum, e, consequentemente, se imponha partilhar, antes pelo contrário. Concluindo, face ao exposto, decide-se que seja excluído da relação de bens o prédio relacionado sob a verba n.º 6.» [I) dos factos assentes];

10) A ré BB propôs-se vender ao autor a raiz ou nua propriedade do identificado prédio, pelo preço de 3.500.000$00, o que o autor aceitou [respostas aos pontos 2º e 3º da base instrutória];

11) Por escritura pública lavrada no dia 6 de Março de 1987, de fls. 50 a 52 do Livro n.º 45-F do 1º Cartório Notarial de Viana do Castelo, o autor declarou comprar e a ré BB declarou vender, pelo preço de 500.000$00, a raiz ou nua propriedade do prédio identificado no ponto 1 [J) dos factos assentes e certidão notarial de fls. 29 a 35];

12) Na escritura referida na alínea anterior, o Notário consignou que, de entre os documentos que instruíram essa escritura, arquivava, nomeadamente, «uma certidão emitida pela Primeira Secção do Primeiro Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Paços de Ferreira, dos autos de inventário facultativo nº 14 barra 86, nos quais é requerente a primeira outorgante [a ré BB] e da qual consta que por o divórcio dela primeira outorgante com o seu ex-marido MM, ter sido decretado por culpa exclusiva deste, o imóvel aqui referido deve considerar-se bem próprio dela primeira outorgante» [L) dos factos assentes];

13) Pese embora na escritura referida nos pontos 11 e 12 ter ficado a constar o preço de 500.000$00 como sendo o da venda, na realidade ele foi de 3.500.000$00 [resposta ao ponto 4º da base instrutória];
14) Essa disparidade entre o preço real e o que ficou a constar da escritura foi exarada em declaração então emitida pelo ora autor, na mesma data da escritura, na qual igualmente declarava ter entregue no acto da escritura a quantia que dela ficara a constar como preço e, confessando-se devedor do remanescente (3.000.000$00), ficou de o pagar até Agosto do ano seguinte (1988) [resposta ao ponto 5º da base instrutória];

15) Na mesma data da escritura, a ré BB igualmente emitiu uma declaração, nos termos da qual declarou ter vendido ao ora autor o prédio em questão, nesse dia, que tal prédio lhe fora doado por seu pais, usufrutuários do mesmo, conjuntamente a seu ex-marido, de quem se encontrava divorciada, «com declaração de culpado daquele», acrescentando nessa declaração que no caso de esse seu ex-marido intentar qualquer eventual acção judicial, na tentativa de lhe ser reconhecido o direito a metade da casa objecto da venda a seu cunhado AA, «a declarante obriga-se a nesse eventual processo a tomar toda a defesa, no caso de ser chamada aos autos, responsabilizando-se por eventuais prejuízos que a perda da demanda poderia originar, ao comprador» [M) dos factos assentes];

16) O autor e o seu cônjuge tinham conhecimento da questão que dividia a ré BB e o seu ex-marido respeitante à definição da propriedade do prédio em causa [resposta ao ponto 33º da base instrutória];

17) Foi o então advogado, Dr. L... G..., quem redigiu os termos da declaração referida no ponto 15, na sequência de solicitação do autor para a elaboração de tal declaração [resposta ao ponto 35º da base instrutória];

18) Após a outorga de tal escritura, o autor inscreveu o prédio a seu favor na respectiva matriz e celebrou contrato de seguro contra incêndio do mesmo [N) dos factos assentes];

19) O autor foi pagando à ré BB vários montantes por conta dessa dívida e, em 6 de Setembro de 1988, restava-lhe pagar a quantia de Esc. 300.000$00 [resposta ao ponto 11º da base instrutória, após alteração efectuada pela Relação à resposta provinda da 1ª instância];

20) O autor procedeu a pelo menos uma reparação de portas e janelas no prédio em questão, providenciou a poda e sulfatação da vinha da sua parte rústica e colheu as uvas que transformou em vinho, factos que ocorreram por uma vez, num único ano, em data anterior a 13.11.1989 [respostas aos pontos 6º, 7º, 8º e 9º da base instrutória];

21) Os pais da ré BB vieram a falecer, a mãe em 27 de Julho de 1987 e o pai em 13 de Novembro de 1989 [O) dos factos assentes];

22) No dia 20 de Junho de 1988 faleceu o ex-marido da ré BB [P) dos factos assentes e certidão do assento de óbito de fls. 43];

23) Em finais de 1988, a ré BB manifestou ao autor a sua pretensão de reaver o prédio em questão, comprando-o de volta ao autor [resposta aos pontos 12º e 13º da base instrutória];

24) O autor chegou a prometer vender o prédio novamente à ré BB, em Fevereiro de 1989 [respostas aos pontos 14º e 37º da base instrutória];
25) Com essa perspectiva, a ré BB entregou ao autor, através do cheque nº ...., datado de 09.02.1989, sacado sobre a conta nº ...., do Banco Pinto & Sotto Mayor, a quantia de 500.000$00 [resposta ao ponto 38º da base instrutória];

26) O réu CC propôs contra a ré BB, em 25 de Setembro de 1990, uma acção com processo comum sumário, que sob o nº ... correu os seus termos pelo 2° Juízo deste Tribunal, no sentido de ver declarar que a raiz do prédio atrás referido era bem comum do casal desta ré [Q) dos factos assentes];

27) Essa acção não foi contestada, tendo a ré sido condenada, no pedido, de preceito [R) dos factos assentes];

28) Em seguida a essa acção, a ré BB requereu a abertura de inventário para partilha da herança aberta por óbito do seu ex-marido [S) dos factos assentes];

29) Em tal inventário (que, sob o nº 8/91, correu os seus termos pela 2ª Secção do Tribunal de Paços de Ferreira) a ré BB relacionou o prédio em questão como verba única, tendo sido acordado adjudicar o mesmo, em comum e em partes iguais, a todos os seus filhos, a saber, os réus CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, na proporção de 1/7 a cada um, sendo a partilha homologada por sentença de 9 de Fevereiro de 1993, transitada em julgado [T) dos factos assentes e certidão judicial de fls. 50 a 56];

30) Em 16 de Junho de 1994, os réus CC, DD, EE, FF, GG e HH propuseram em juízo uma acção de justificação judicial, que correu termos pelo 2° Juízo deste Tribunal (processo nº 169/94), no sentido de ficarem habilitados a fazer o trato sucessivo do prédio até à aquisição deles, invocando a partilha atrás mencionada como forma da aquisição [U) dos factos assentes];

31) O autor e o seu cônjuge, OO, tiveram conhecimento, ainda no decurso do respectivo prazo para contestar, da propositura e pendência da acção referida no ponto anterior, não tendo nela deduzido qualquer oposição [respostas aos pontos 39º e 40º da base instrutória];

32) Obtida sentença nesse processo, [aqueles réus] procederam ao trato sucessivo e ao registo do prédio a favor deles (e também da ré II), na respectiva Conservatória, onde aquele se encontra actualmente descrito na ficha nº ..., aí constando, por força de alteração à descrição, como “prédio misto”, inscrito na matriz sob os arts. 303-urbano e 194-rústico [V) dos factos assentes e certidão da Conservatória do Registo Predial de fls. 88 a 91];

33) Em seguida, e por escritura pública de 31 de Outubro de 1997, declararam vender a seu tio, o réu JJ, casado com a sua tia, a ré LL, sob o regime de comunhão de adquiridos, o prédio em questão, facto que foi objecto de inscrição registral [X) dos factos assentes e certidão notarial de fls. 92 a 94];

34) Os réus JJ e LL sabiam que tinha sido outorgada a escritura pública aludida no ponto 11 [resposta ao ponto 22º da base instrutória];

35) O prédio valia, à data de 1999, € 72.000,00 [resposta aos pontos 23º e 42º da base instrutória];
36) Os réus JJ e LL, sendo por si desde a data referida no ponto 33 e por imediatos antecessores desde meados de 1991, fazem obras no prédio identificado no ponto 1 e limpam silvas e mato e cuidam das videiras existentes no terreno desse mesmo prédio, à vista de todos, inclusive do autor e do cônjuge deste, convictos de que tal prédio lhes pertence, ininterruptamente e sem oposição de ninguém [respostas aos pontos 28º, 30º e 30º-A da base instrutória];

37) O ex-marido da ré BB tinha conhecimento da realização da venda referida no ponto 11 pelo menos no mês de Maio de 1987 [resposta ao ponto 43º da base instrutória];

38) Sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira sob o nº ...., da freguesia de Raimonda, encontra-se inscrita sob a cota F-1 uma penhora a favor da Fazenda Nacional, efectuada em 24.09.1992, para garantia da quantia exequenda de 11.505.876$00, constando como executada OO, casada com AA [Z) dos factos assentes];

39) A presente acção foi registada sobre o mesmo prédio referido no ponto anterior, mediante a cota G-7, pela Ap. 12/090204 [fotocópia certificada do registo predial de fls. 287 a 290].

3.

Estão, como vimos, interpostos e admitidos dois recursos: um pelo autor e pela interveniente, sua mulher, e outro pela ré BB.
Como é sabido, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões da respectiva alegação, de tal modo que só das questões suscitadas em tais conclusões pode conhecer o tribunal ad quem (para além, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso).
Sendo certo que o recurso da ré contende com a fixação dos factos materiais da causa, deverá o seu conhecimento preceder o do autor, já que a aplicação do direito pressupõe fixada, logicamente, a matéria de facto.
Começaremos, pois, pelo recurso da ré.

3.1. Apesar de questionada pelo autor, a admissibilidade deste recurso não suscita dúvidas.
Na verdade, o n.º 1 do art. 678º do CPC faz depender a admissibilidade do recurso ordinário de dois requisitos: o valor da causa e o valor da sucumbência, estabelecendo, quanto ao segundo, que o recurso só é admissível se a decisão impugnada for desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal de que se recorre, atendendo-se, no caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.
Em matéria das alçadas, o art. 24º da LOFTJ, quer na actual redacção, quer na redacção anterior, dispõe no seu n.º 3 que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção.
Ao tempo da instauração da presente acção, o valor da alçada da Relação era de Esc. 2.000.000$00, alterado pelo Dec-lei 323/2001, de 17 de Dezembro, para € 14.963,94 e pelo Dec-lei 303/2007, de 24 de Agosto, para os actuais € 30.000,00.
Ora, no entender do autor – a quem se suscitam “as mais sérias dúvidas sobre se, para efeitos de alçadas são os respectivos valores vigentes à data da propositura da acção que relevam” – a inadmissibilidade do recurso decorreria do facto de o valor da sucumbência da ré (capital+juros) ser inferior a € 15.000,00 (metade do valor actual da alçada), não excedendo € 13.567,29.
Mas, como resulta da lei, as dúvidas do autor não têm fundamento, sendo que, face ao valor da alçada da Relação ao tempo da propositura da acção, o valor da sucumbência da ré, mesmo sem serem contados os juros moratórios, é claramente superior a metade do valor da alçada.

3.2. Esclarecido este ponto, avancemos para a análise das razões invocadas pela recorrente.
3.2.1. Pretende ela, essencialmente, que este Supremo Tribunal, escudado no disposto no art. 722º/2 do CPC, revogue o acórdão da Relação na parte em que este alterou a resposta ao ponto 11º da base instrutória.
Não ignorando que o Supremo só conhece, em regra, de questões de direito, e que, salvo casos excepcionais, não controla a matéria de facto nem revoga por erro no seu apuramento, como flui da 1ª parte do n.º 2 do citado art. 722º, a recorrente convoca a 2ª parte do mesmo normativo para tentar demonstrar o bem fundado da sua pretensão.
E, na verdade, depois de estatuir que «(o) erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista», o preceito aludido introduz a esta regra duas excepções, por força das quais o Supremo conhece da matéria de facto, i) quando o tribunal recorrido tenha dado como provado um facto com ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência desse facto, ou ii) quando tenha havido desrespeito de norma(s) que fixe(m) a força probatória de determinado meio de prova.
Na tese da recorrente, é esta segunda excepção que ocorre no caso em apreço.
Sustentando que a alteração, pela Relação, da resposta ao aludido ponto 11º da base instrutória, se fundou fundamentalmente no teor do documento de fls. 701, a recorrente conclui que ocorreu violação do disposto no art. 376º do CC, que fixa a força probatória dos documentos particulares.
Vejamos.
O art. 11º da base instrutória está assim formulado:
O autor foi pagando à ré BB vários montantes por conta dessa dívida e, em meados de 1988, restava-lhe pagar a quantia de Esc. 1.300.000$00, tendo a credora aceitado uma prorrogação do prazo para esse pagamento?
A 1ª instância respondeu:
Provado apenas que o autor entregou ao então advogado, Dr. L... G..., a quantia de 1.000.000$00, que este declarou, no recibo de fls. 701, datado de 05.09.1988, ter recebido na qualidade de “procurador e advogado de BB”, “como reforço da quantia já entregue para pagamento parcial do prédio urbano sito na freguesia de R..., Paços de Ferreira e por escritura de venda outorgada na Secretaria Notarial de Viana do Castelo vendido pela aludida BB ao sr. AA”.
E tal resposta resultou – lê-se na respectiva fundamentação – “do teor do documento de fls. 701, que constitui o recibo a que se alude nessa resposta”.
O documento em causa é do teor seguinte:
RECIBO – 1 000 000$00
O abaixo assinado, L... G... de F..., na qualidade de bastante procurador e advogado de BB, declaro ter recebido do sr. PP, digo, do sr. AA, industrial, da freguesia de Paços de Ferreira, a quantia de 1 000 000$00 – um milhão de escudos – entregue como reforço da quantia já entregue para pagamento parcial do prédio urbano sito na freguesia de Raimonde, Paços de Ferreira e por escritura de venda outorgada na Secretaria Notarial de Viana do Castelo vendido pela aludida BB ao sr. AA.
Viana do Castelo, 5 de Setembro de 1988
[segue-se uma assinatura ilegível e um carimbo com as menções L... G... – Advogado – Praça da República 49 – 1º 4900 VIANA DO CASTELO telef. (ilegível)].
A Relação considerou que aquela resposta era excessiva – continha muito mais do que se perguntava. Mas não deixou de ter em atenção o dito recibo, valorando-o como genuíno e como indicador de que o autor pagou à ré 1.000.000$00. Só que, para além dele, ponderou, na resposta ao dito ponto 11º, outros meios probatórios, designadamente os depoimentos do autor e do seu filho, a par de “outros elementos dos autos, nomeadamente com o que sobre o negócio foi informado por TT e pela cunhada da ré OO”, concluindo, “da conjugação da prova sobre esta matéria”, que se impunha alterar a resposta, fixando-a nos termos constantes do n.º 19) da matéria de facto supra, ou seja:
Provado apenas que o autor foi pagando à ré BB vários montantes por conta dessa dívida e, em 6 de Setembro de 1988, restava-lhe pagar a quantia de Esc. 300.000$00.
Flui do exposto que não ocorreu, na actuação da Relação, agressão ao disposto no art. 376º do CC.
Se bem se percebe o arrazoado da recorrente, a violação de tal preceito – que fixa a força probatória dos documentos particulares – decorreria do facto de a Relação ter considerado que, entre as quantias que o autor foi entregando à recorrente, por conta do preço, e que esta foi recebendo, se contar o montante aludido no documento em apreço, facto que este documento não refere e que dele não se pode concluir, sendo, ademais, certo que, mesmo que o dissesse, tal afirmação não estaria coberta pela força probatória que a tal documento atribui o citado art. 376º.
É, porém, patente, o equívoco em que a recorrente se enreda.
Do art. 376º colhe-se que uma vez provada a autoria da letra e da assinatura, ou só desta, se tem por plenamente provado que o autor do documento fez as declarações que neste lhe são atribuídas, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade deste (n.º 1 do cit. art.); e ainda que os factos referidos nessas declarações se têm por provados – plenamente provados – na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (n.º 2).
Nisto consiste a eficácia da declaração documentada. Os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte, nos termos da confissão, sendo também aqui aplicável o princípio da indivisibilidade da confissão.
Assim, «enquanto os documentos autênticos fazem prova plena, qualquer que seja o facto representado (art. 371º, nº 1), o documento particular, cuja veracidade esteja reconhecida, só tem essa força probatória quanto aos factos, nele referidos, que sejam contrários ao interesse do declarante, o que se exprime pela enunciação da regra de que o documento autêntico prova plenamente erga omnes e o documento particular apenas prova inter partes».
Daí que «apenas o declaratário pode invocar o documento, como prova plena, contra o declarante que emitiu uma declaração contrária aos seus interesses; nas relações com terceiros, essa declaração somente valerá como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal» (1).
Dito de outra forma: a força probatória de um documento particular, tal como flui do art. 376º, citado, só se verifica quando o documento é apresentado pelo declaratário contra o declarante, autor do documento e/ou das declarações dele constantes – não já quando o documento é da lavra de um terceiro, como no caso vertente.
Não se coloca, pois, aqui, a questão da força probatória do documento particular (repete-se, um recibo emitido e assinado por terceiro), sendo tal documento um elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal, como o fez a Relação, valorando-o, aliás, em conjugação com outros elementos de prova.
Não se verifica, por conseguinte, a segunda das excepções enunciadas no n.º 2 do art. 722º do CPC, invocada pela recorrente.
Cumpre, por isso, ao Supremo acatar a decisão da Relação sobre a matéria de facto, já que vedado lhe está exercer censura sobre o julgamento por esta operado. O erro porventura cometido pelos tribunais de instância na apreciação das provas e na consequente fixação dos factos materiais da causa é pura questão de facto. (2)
Também irreleva tudo quanto a recorrente aduz acerca de uma pretensa violação do segredo profissional e das consequências dessa violação (supra, conclusões 10ª a 14ª).
A ré não interpôs recurso do despacho judicial de admissão do documento, proferido em audiência (cfr. acta de fls. 702), tendo-se, pois, conformado com tal despacho.
Para além disso, o documento em causa é um recibo de quitação elaborado e assinado pelo então procurador e advogado da ré BB e entregue ao autor AA. É, pois, um documento a este pertencente, que prova o recebimento, pelo auto-intitulado procurador e advogado da ré, de uma determinada quantia para pagamento parcial do preço da venda de um imóvel feito pela dita ré ao autor, e cuja junção aos autos – tratando-se de um meio de prova de que o autor pode legitimamente valer-se – não está condicionada por qualquer sigilo profissional.

O segredo profissional é uma obrigação do advogado – este é que está obrigado, ética e juridicamente, a guardar segredo de todos os factos e documentos de que tome conhecimento no exercício da sua actividade profissional (art. 87º/1 do EAO).
A dispensa de sigilo justificar-se-ia apenas (e apenas para isso foi pedida à Ordem dos Advogados) para permitir o depoimento do autor do documento sobre a genuinidade do mesmo e sobre o destino da quantia recebida. É, pois, uma questão que se colocava em relação a esse intitulado autor do documento – que, repete-se, aí refere ter actuado na qualidade de bastante procurador e advogado de BB – mas que não obstava a que o legítimo dono do documento se pudesse valer dele como meio de prova no processo. Daí que, só poderia falar-se de violação do segredo profissional se tal depoimento tivesse sido prestado sem prévia autorização da Ordem (recte, do presidente do conselho distrital respectivo), e só esse depoimento ficaria (se não autorizado) sob a alçada do n.º 5 do art. 87º do EOA, segundo o qual «os actos praticados pelo advogado com violação do segredo profissional não podem fazer prova em juízo».
Mas não é isto que está em causa, pelo que carece de suporte a alegada violação dos preceitos estatutários supra aludidos.
E, de todo o modo, ainda que assim não fosse, nunca tal violação consubstanciaria “ofensa de norma que fixa força probatória”, e não se trataria, pois, ao contrário do que, erradamente, assevera a recorrente, de situação subsumível ao disposto no art. 722º/2 do CPC.

3.2.2. Sustenta ainda a recorrente que a resposta ao mencionado ponto 11º, tal como concretizada no acórdão recorrido, contém um lapso – reclamado oportunamente, mas não reparado pela Relação – pois que dela deveria constar, não o montante de 300.000$00, mas o de 1.300.000$00.
Será assim?
É exacto ter a ora recorrente, após a notificação do acórdão, ter requerido a correcção do que lhe pareceu «um lapso manifesto», protestando que “a quantia que deveria constar da resposta, e só por lapso assim não sucede, é a de esc. 1.300.000$00”, sendo esse o montante que consta do apontado ponto 11º da base instrutória, “o qual provém do alegado no art. 19º da petição”.
Todavia, a Relação, em novo acórdão, adrede proferido, refutou a existência de tal lapso, esclarecendo:
Como se explicou na parte decisória, entende-se que o autor demonstrou ter pago à ré uma quantia superior àquela que indicou no seu pedido como sendo o valor a devolver e, apenas por esta limitação do pedido não foi a condenação além deste.
Ora, afastada a existência de lapso de escrita, o que está em causa é apenas uma questão de facto – a decisão de um ponto da matéria de facto – relativamente à qual, repete-se, este Supremo Tribunal não pode exercer censura.
E, diferentemente do que afirma a recorrente, da resposta ao apontado ponto 11º não resultou qualquer violação, pela Relação, da regra do n.º 1 do art. 661º do CPC, isto é, não se verificou condenação em quantidade superior ao pedido.
A leitura atenta do acórdão recorrido pouparia a recorrente a esta inconsistente e irrelevante afirmação.
Nele se escreveu o seguinte:
Assim, por ausência de qualquer causa legítima que justifique que a ré retenha as quantias que recebeu do autor em consequência do negócio nulo que com ele celebrou, ao abrigo do disposto no art. 289º do Código Civil deve a mesma restituir a quantia peticionada de 1.700.000$00.
O montante acabado de referir decorre não do que se mostra provado mas do que foi pedido uma vez que se mostra provado o pagamento de uma quantia superior cuja última entrega ocorreu em 5 de Setembro de 1998 (sublinhado nosso).
Improcede, pois, in totum, o recurso da ré BB.

3.3. Curemos agora do recurso do autor e da interveniente sua mulher.
Como resulta das três primeiras conclusões da sua alegação, acima exaradas, os recorrentes defendem agora a validade da compra e venda celebrada com a ré, com este fundamento: a declaração de cônjuge único culpado no divórcio fez, só por si, caducar, relativamente ao ex-marido daquela, a doação da raiz do prédio, por força do disposto nos arts. 1791º, n.º 1 e 1760º, n.º 2, do Cód. Civil. Por isso, quando a vendeu ao autor, a ré era a proprietária da raiz, não sendo necessário o consentimento do seu ex-cônjuge para a venda.
Estamos perante argumentação nova, não colocada à apreciação do tribunal a quo.
Trata-se mesmo de uma posição que vem ao arrepio daquilo que os ora recorrentes defenderam ao longo do processo, desde a petição inicial (cfr. arts. 20º e seguintes, e, mais expressivamente, arts. 24º, 26º e 27º) até ao recurso para a Relação (cfr. as primeiras 19 conclusões da respectiva alegação, e, mais assertivamente, as 1ª, 2ª, 3ª e 4ª).
Na verdade, a tese do autor e seu cônjuge foi, até à presente revista, a de que a declaração do cônjuge da ré BB como único culpado no divórcio “não tinha a virtualidade de fazê-lo excluir ipso facto na comunhão desse bem (doado), por ele também ter sido donatário na escritura”, sendo “patente que a perda desse benefício não poderia operar ipso jure, antes carecendo de sentença que o decretasse – pelo que até então sempre o bem se consideraria como sendo do casal”, do que resultaria carecer a venda do prédio, pela ré ao autor, do consentimento do ex-marido dela, por via do disposto no art. 1682º-A, n.º 1, al. a) do Cód. Civil, sendo anulável, a requerimento deste, faltando esse consentimento; como, porém, a acção de anulação não foi, pelo ex-cônjuge, intentada no prazo legal previsto no n.º 2 do art. 1687º, a venda é plenamente válida e eficaz.
Todavia, apesar da novidade, não é caso para este Supremo Tribunal enjeitar a sua apreciação, já que estamos, não perante uma questão nova, mas apenas face a uma nova perspectiva jurídica de enfoque da questão da validade ou nulidade do contrato celebrado entre a ré e o autor, ou seja, diante de matéria de direito.
Certo é, porém que, em nosso entender, a posição ora assumida pelo autor não encontra cobertura legal no disposto nos normativos em que busca arrimo.
De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 1791º do Cód. Civil,
O cônjuge declarado único ou principal culpado perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.
Reportando-se aos “benefícios” abrangidos pela norma, entendem FRANCISCO PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA (3) que esta abrange, entre outros, as doações feitas a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário, exemplo também apresentado por P. LIMA/A. VARELA (4).
O art. 1760º, por seu turno, dispõe no seu n.º 1, al. b), que as doações para casamento – ou seja, as doações feitas a um dos esposados ou a ambos, em vista do seu casamento (art. 1753º/1) – caducam se ocorrer divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado; e o n.º 2 estatui que se a doação tiver sido feita por terceiro a ambos os esposados ou os bens doados tiverem entrado na comunhão, e um dos cônjuges for declarado único ou principal culpado no divórcio ou separação, a caducidade atinge apenas a parte deste.
Pois bem!
Sendo certo que a perda dos benefícios a que alude o n.º 1 do art. 1791º se verifica por força da lei, isto é, opera-se ipso jure, como convêm os Mestres conimbricenses citados, sem necessidade, pois, de qualquer declaração de revogação por parte do autor da liberalidade, importa considerar qual o destino ulterior desses benefícios.
E, a tal respeito, são de impressiva clareza os já citados PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA:
“Com o trânsito em julgado da sentença proferida na acção de divórcio litigioso que declarou um dos cônjuges único ou principal culpado, (…) os bens que lhe tenham sido doados pelo outro cônjuge ou por terceiro em vista do casamento ou em consideração do estado de casado revertem automaticamente ao património do doador, sem que se torne necessário um acto de revogação da liberalidade (…)” [nosso o sublinhado].
O que está em sintonia com outras disposições legais.
Assim, às doações para casamento são subsidiariamente aplicáveis as disposições dos artigos 940º a 979º do CC (cfr. 1753º/2).
Ora, nos termos do n.º 1 do art. 944º, «(a) doação feita a várias pessoas conjuntamente considera-se feita por partes iguais, sem que haja direito de acrescer entre os donatários, salvo se o doador houver declarado o contrário» [nosso o sublinhado].
De tudo resulta o desvalimento da conclusão dos recorrentes, quando sustentam que, na ocasião da venda que celebrou com o autor, a ré era a (única) proprietária do bem vendido, da raiz ou nua propriedade do prédio em causa, e que, portanto, vendeu coisa sua. O jogo dialéctico da lei com a realidade concreta aniquila inexoravelmente tal conclusão.
Por outro lado, a aplicação ao caso concreto das normas citadas – os arts. 1791º/1 e 1760º, de par com os arts. 1753º/2 e 944º – determinando a reversão automática, ao património do doador, da parte da doação de que fora beneficiário o ex-cônjuge da ré, único culpado no divórcio, deixa sem sentido útil, como fácil é intuir, todo o constante das demais conclusões (4ª a 20ª) dos recorrentes, cujo conhecimento resulta prejudicado por tudo quanto acima se deixou expresso.
Consequentemente, o recurso improcede, mantendo-se o acórdão recorrido, visto que a venda efectuada é nula (venda de coisa alheia), embora por razões não inteiramente coincidentes com as avançadas naquele acórdão.

4.

Face a tudo quanto fica exposto, negam-se ambas as revistas.
As custas de cada um dos recursos ficam a cargo do(s) respectivo(s) recorrente(s).


Lisboa, 12 de Novembro de 2009

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
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1- Ac. do STJ de 06.03.80, na Rev. Leg. Jur., ano 114º, pág. 278 e ss., e anotação de VAZ SERRA, (pág. 287)
2- Prof. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, (reimpressão), pág. 32.
3- Curso de Direito da Família, vol. I, 3ª ed., págs. 735/736.
4- Código Civil anotado, vol. IV, 2ª ed., pág. 563.