Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3128/07.2TVPRT-A.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: RECURSO
DESISTÊNCIA DE RECURSO
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - Não importando a interposição do recurso a constituição ou renovação de uma nova instância, a parte que desiste do mesmo apenas renuncia a um determinado acto do processo, que consiste no acto de impugnação da decisão proferida pelo tribunal.

II - A desistência do recurso tem como consequência a consolidação da decisão recorrida, ou seja, o seu trânsito em julgado, equivalendo à aceitação da decisão proferida, com a única diferença quanto ao momento da prática do acto pela parte que, no caso de aceitação, tem lugar antes da interposição do recurso e, na hipótese de desistência, depois dela.

III - Não aproveitando o recurso interposto por uma parte à parte contrária, a desistência do mesmo não está sujeita a limitações, pois não depende do assentimento do recorrido.

IV - Mantendo-se a instância depois da prolação do acórdão da Relação e até ao respectivo trânsito em julgado que lhe ponha termo, a desistência do recurso pode ser, validamente, formulada, durante esse lapso temporal, pois só com o julgamento aquela se extingue, e este pressupõe o respectivo trânsito.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

Nos presentes autos de providência cautelar de arresto instaurados por AA e BB contra os requeridos CC, DD, EE e FF, foi por estes interposto recurso de agravo do despacho que indeferiu o seu pedido de notificação da «Caixa Económica Montepio Geral» para juntar aos autos os elementos indicados, a final, na oposição ao arresto, tendo o Tribunal da Relação do Porto, dando provimento ao agravo, revogado a decisão recorrida, para ser substituída por outra que determine a notificação da dependência bancária em causa no sentido de fornecer os elementos documentais referidos no requerimento de prova da oposição.
Entretanto, os requeridos, invocando que, posteriormente à interposição do recurso, requereram os aludidos documentos, no Processo n°1.484/08.4TJPRT, do 3° Juízo Cível, 2a Secção, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em que as partes são as mesmas, pedido esse que lhes foi deferido e por força do qual tiveram acesso aos documentos em causa, designadamente, aos extractos bancários e cópia dos respectivos cheques do Montepio Geral, que já foram, inclusivamente, juntos, em sede de audiência preliminar, na acção principal da providência dos autos, que aguarda marcação de data para a audiência de discussão e julgamento, sustentam que o recurso de agravo se tornou, supervenientemente, inútil.
Além de que, tendo em conta que a procedência do recurso dos requerentes, tal como foi decidido no douto acórdão, determina a anulação de todo o processado posterior, deverão ser efectuadas novas diligências no procedimento cautelar, o que conduzirá a que a respectiva decisão a proferir seja posterior à decisão de fundo, dada a fase actual em que se encontra a acção principal.
Sendo certo, continuam os requeridos, que a inutilidade superveniente da lide resulta, também, do facto de a decisão proferida na providência cautelar ter decretado o levantamento do arresto, sem prejuízo de os requerentes "não deverem ser impedidos de exercer o seu direito de fazer prova de que o crédito dos arrestantes não existe”.
Os requerentes, pronunciando-se sobre o pedido de desistência, entendem que, julgado o recurso, fica esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à matéria da causa, sendo, por isso, intempestiva a desistência e inconstitucional a interpretação que lhe dê cobertura.
Em novo acórdão, a Relação do Porto confirmou o despacho da Exª Relatora, que julgou válida a desistência do recurso apresentada pelos arrestados.
Deste acórdão, os requerentes interpuseram recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e substituição por outro que não admita a desistência do recurso apresentada pelos requeridos, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – Proferida decisão final, no caso, acórdão do competente Tribunal da Relação do Porto, esgotou-se o poder jurisdicional do Tribunal "a quo" nos termos do art° 666º n° 1 do CPC, ex vi art° 716º n° 1 do mesmo Código.
2ª - Daí que, tendo o Tribunal da Relação julgado o recurso, não possa de novo, pronunciar-se sobre ele, e muito menos aceitar desistência do recurso que lhe deu origem.
3ª - Só pode haver desistência do recurso interposto até este ser concluso ao relator.
4ª - No âmbito dos presentes autos, foram interpostos dois recursos - um pelos requeridos, recorrentes, na pendência da audiência de julgamento; e outro pelos requerentes da decisão final.
5ª - A decisão que se pretende colocar em crise - o Acórdão da Relação do Porto de fls. - versou sobre ambos os recursos.
6ª - Simplesmente, decidiu as questões colocadas pela ordem que a Lei manda e daí que, face à decisão proferida, considerasse precludida a necessidade/interesse/conveniência de proceder à apreciação das restantes questões.
7ª - E daqui resulta não estar na disponibilidade dos recorrentes desencadear um mecanismo de desistência (a posteriori) que destrua tal decisão.
8ª - Porquanto ela não é do seu exclusivo interesse, é também do interesse dos recorridos.
9ª - Assim a desistência do recurso, com os efeitos que pretendem os requerentes sempre resultaria num acto de disposição de interesses pelos recorrentes, de que não podem dispor, e que não são exclusivamente seus.
10ª - Violou assim, o douto Acórdão recorrido, por erro de interpretação os art°s 2º, 3º, 3º-A, 291º, 293º, 300º, 666º, 716º, do CPC, 1249º do Cod. Civil, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º, 20º, 202º, 204º e 205º da CRC.
Nas suas contra-alegações, os requeridos concluem que o presente recurso não deve merecer provimento, confirmando-se o acórdão recorrido.
*
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir, no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se é válida e operante a desistência do recurso depois de proferido o acórdão que o decidiu e antes do respectivo trânsito em julgado.

DA DESISTÊNCIA DO RECURSO ANTES DO TRÂNSITO DA DECISÃO JÁ PROFERIDA

Preceitua o artigo 681º, nº 5, do CPC, que “o recorrente pode, por simples requerimento, desistir livremente do recurso interposto”.
Porém, após a prolação da decisão [sentença ou acórdão], que é o modo normal de extinção da instância, poderão ainda as partes desistir do recurso, oportunamente, admitido e já objecto de decisão, enquanto a mesma, naturalmente, não houver transitado em julgado?
A desistência é uma das causas de extinção da instância, em conformidade com o disposto pelo artigo 287º, d), do CPC.
E, aliás, uma causa anormal de extinção da instância, em que a relação jurídica substancial não pode continuar a subsistir, improcedendo o pedido formulado, por factos supervenientes.
Porém, não se confunde a desistência do pedido ou da instância, a que aludem os artigos 37º, nº 2 e 293º a 301º, todos do CPC, com a desistência do recurso, porquanto aquela é um acto do autor e esta um acto do recorrente, que tanto pode ser o autor como o réu, além de que a parte que desiste do recurso apenas renuncia a um determinado acto do processo, que consiste no acto de impugnação da decisão proferida pelo Tribunal «a quo» (1) , e não à acção ou à instância, propriamente dita, porquanto a interposição do recurso não importa a constituição de uma nova instância (2), ou a sua renovação.
Enquanto que a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer, a desistência da instância apenas faz cessar o processo em que se instaurara, nos termos do disposto pelo artigo 295º, nºs 1 e 2, do CPC, já a desistência do recurso tem como consequência a consolidação da decisão recorrida, ou seja, o seu trânsito em julgado, equivalendo à aceitação da decisão proferida, com a única diferença quanto ao momento da pratica do acto pela parte que, no caso de aceitação, tem lugar antes da interposição do recurso e, na hipótese de desistência, depois dela.
A instância de recurso é uma relação quadrangular em cadeia que liga entre si cada uma das partes a cada um dos tribunais envolvidos, ou seja, o Tribunal «a quo» e o Tribunal «ad quem».
Efectivamente, sendo a desistência do pedido um acto unilateral de auto-composição da lide da iniciativa do autor, que extingue o direito que se pretendia fazer valer, é admissível, em qualquer estado da causa, podendo, portanto, ter lugar já depois de julgada a acção, em 2ª instância, contanto que a decisão não haja ainda transitado em julgado (3) .
A desistência do pedido deve, porém, ser objecto de decisão do Juiz, que se pronunciará sobre a sua validade, nomeadamente, quanto à não afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis, por forma a fazer extinguir o direito que se pretendia fazer valer, em conformidade com o estipulado pelos artigos 293º, nº 1, 295º, nº 1, 296º, nº 2, 299º, nº 1, 300º, nºs 1, 2 e 3 e 301º, todos do CPC.
Já é diverso e bem mais simplificado o regime da desistência do recurso, porquanto, consoante decorre do disposto pelo artigo 681º, nº 5, do CPC, o recorrente pode desistir, livremente, do mesmo, mediante simples requerimento.
Assim sendo, a desistência do recurso não está sujeita a limitações, pois não depende do assentimento do recorrido, uma vez que o recurso interposto por uma parte não aproveita à parte contrária, em conformidade com o preceituado pelo artigo 682º, nº 1, do CPC, segundo o qual “se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável,…”.
Quer isto dizer que o recorrente pode exercer, livremente, o direito de desistir do recurso, sem carecer da anuência, nem da contra-parte, nem do recorrente, subordinado ou adesivo, eventualmente, existente.
Por outro lado, a lei não estabelece qualquer exigência de forma para a desistência do recurso, que pode exprimir-se, através de simples requerimento, ou por qualquer outro modo, processualmente, admissível (4).
Embora seja diverso o regime da desistência do pedido e da desistência do recurso, existe uma manifesta similitude nestas duas situações, porquanto em ambas o desistente abdica do exercício de um direito a que se arrogou, aquele a que visava o pedido formulado ou o recurso interposto (5) .
O direito de recorrer como faculdade de submeter as decisões judiciais a uma nova apreciação, por um outro Tribunal (6), que, eventualmente, as revogue ou altere, não se esgota no acto de interposição e de apresentação de alegações, mas, igualmente, no de abdicar a essa pretensão a uma nova reapreciação judicial, já porque, entretanto, se conformou com o decidido, já porque veio a obter, por outra via, o efeito que pretendia alcançar com o recurso, conforme vem alegado pelos recorridos.
Sendo certo, de acordo com o disposto pelo artigo 666º, nº 1, do CPC, que proferida a sentença, fica, em princípio, imediatamente, esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, que já não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu, ainda que adquira a convicção que errou (7) , ou seja, se já se extinguiu o «tempo do Tribunal», outrotanto ainda não aconteceu com o «tempo das partes», porquanto, para estas, a sentença ou acórdão só adquirem força obrigatória, dentro e fora do processo, com o respectivo trânsito em julgado, nos termos das disposições combinadas dos artigos 671º, nº 1 e 677º, do CPC, nada impedindo que, até então, o recorrente possa, por via de regra, exercer o seu direito de desistir do recurso que interpôs.
E, sendo a desistência livre, em qualquer altura, tal significa que a mesma pode ser formulada, em qualquer estado da causa, enquanto não houver sentença com trânsito que ponha termo à instância (8), subentendendo-se no conceito de julgamento o trânsito em julgado da decisão que pelo mesmo se atinge, pois que só com a decisão com trânsito em julgado se extingue a instância, atento o preceituado pelos artigos 671º, nº 1 e 677º (9), que se mantém, mesmo depois da prolação do acórdão da Relação, de acordo com o disposto pelos artigos 666º e 716º, todos do CPC.
Confirmando a Relação a decisão de indeferimento proferida pelo Tribunal de 1ª instância, no que respeita ao requerimento de produção de prova apresentado pelos requeridos, não colheu, naturalmente, a pretensão destes.
Assim sendo, vindo os requeridos, posteriormente, a desistir do recurso do acórdão da Relação que desatendeu o seu requerimento e o agravo que interpuseram, mantém-se, de igual modo, aquela decisão da 1ª instância que, então, transita, vencendo a posição assumida pelos requerentes.
Ora, porque o julgamento constante do acórdão da Relação não transitou em julgado, é válida e operante a desistência do recurso formulada pelos requeridos, após aquele ter sido lavrado, mas, anteriormente, à data do seu trânsito em julgado.
Aliás, não subsistiria qualquer dúvida em como seria válida a desistência do eventual recurso de agravo continuado para este Supremo Tribunal de Justiça, mesmo depois de interposto ou admitido, pelo que mal se compreende que os requeridos não possam formular a desistência do recurso que já foi objecto de decisão pela Relação e que ainda não transitou.
Improcedem, portanto, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações dos requerentes, não se mostrando violadas as disposições legais aludidas nas suas alegações ou outras de que, oficiosamente, cumpra conhecer.

CONCLUSÕES:

I - Não importando a interposição do recurso a constituição ou renovação de uma nova instância, a parte que desiste do mesmo apenas renuncia a um determinado acto do processo, que consiste no acto de impugnação da decisão proferida pelo Tribunal.
II - A desistência do recurso tem como consequência a consolidação da decisão recorrida, ou seja, o seu trânsito em julgado, equivalendo à aceitação da decisão proferida, com a única diferença quanto ao momento da pratica do acto pela parte que, no caso de aceitação, tem lugar antes da interposição do recurso e, na hipótese de desistência, depois dela.
III - Não aproveitando o recurso interposto por uma parte à parte contrária, a desistência do mesmo não está sujeita a limitações, pois não depende do assentimento do recorrido.
IV – Mantendo-se a instância depois da prolação do acórdão da Relação e até ao respectivo trânsito em julgado que lhe ponha termo, a desistência do recurso pode ser, validamente, formulada, durante esse lapso temporal, pois que só com o julgamento aquela se extingue, e este pressupõe o respectivo trânsito.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao agravo e, em consequência, em confirmar, inteiramente, o douto acórdão recorrido.
*
Custas pelos requerentes.
*

Notifique.
Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Fevereiro de 2010

Helder Roque (Relator) *
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
_______________
(1) Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, volume 3º, 1946, 510.

(2) Barbosa de Magalhães, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, 271.

(3) STJ, de 4-7-1996, CJ (STJ), Ano IV (1996), T3, 7; Luís Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Iuris, 2009, 168.

(4) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, 1981, 283 e 284.

(5) STJ, de 4-7-1996, CJ (STJ), Ano IV (1996), T3, 7.
(6) Palma Carlos, Direito Processual Civil, Dos Recursos, Edição da AAFDL, 1963, 3.

(7) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, 1981, 126.
(8) STJ, de 17-6-87, BMJ nº 368, 508; e STJ, de 23-7-74, BMJ nº 239, 158.
(9)Castro Mendes, Manual de Processo Civil,145.