Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12515/16.4T8LSB-D.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
LEGITIMIDADE PASSIVA
ESTADO ESTRANGEIRO
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário :

I- As embaixadas, enquanto representações dos estados soberanos, embora não tenham personalidade jurídica, podem ser demandadas nos termos previstos no art.º 13.º do CPC;


II- Demandada uma embaixada, que não tem personalidade jurídica própria distinta do Estado, a acção deve considerar-se proposta contra o Estado respectivo;


III- Esse Estado dispõe de legitimidade passiva para deduzir embargos de executado.

Decisão Texto Integral:

Processo 12515/16.4T8LSB-D.L1.S1


Revista


133/23


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


AA intentou contra a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal execução para pagamento de quantia certa, com fundamento na sentença de 5.09.2016, proferida no processo n.º 12515/16.4T8LSB, e na sentença do incidente de liquidação de 5.03.2018, proferida no apenso C).


Os Estados Unidos da América, em nome da sua Embaixada em Portugal1, vieram deduzir embargos de executado (apenso D).


Os embargos foram admitidos liminarmente.


O Embargado contestou.


Por despacho de 7.03.2022, foi determinada a notificação das partes para se pronunciarem quanto à legitimidade do Estado Soberano Estados Unidos da América para deduzir os embargos, bem como relativamente às excepções de caso julgado invocadas.


O Embargado e o Embargante pronunciaram-se por requerimentos de 25.03.2022 e 31.03.2022, respectivamente.


Por sentença de 12.09.2022, o Tribunal de 1.ª Instância julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva da Embargante Estados Unidos da América e, em consequência, absolveu o Embargado da instância.


O Embargante Estados Unidos da América interpôs recurso de apelação.


Por acórdão de 13.09.2023, o Tribunal da Relação negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.


O Embargante Estados Unidos da América veio interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:


II. OBJETO E ENQUADRAMENTO DO PRESENTE RECURSO

4§. O presente recurso tem por objeto o acórdão proferido, neste processo, em

instância de recurso de apelação, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 13.09.2023, no âmbito do qual se decidiu que a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal beneficia de personalidade judiciária, bem como que os Estados Unidos da América teriam alegadamente tido a oportunidade de fazer valer os seus direitos e interesses relativamente ao litígio em questão, pelo que não teria havido violação do seu direito constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da CRP. O referido recurso de apelação foi interposto de decisão proferida em primeira instância, no âmbito de embargos de executado, onde o Recorrente invocou, entre o mais, a falta de personalidade judiciária da Embaixada, bem como a falta de citação dos Estados Unidos da América para a instância declarativa.


(...)

IV. DAFALTA DE PERSONALIDADE JUDICIÁRIA DAEMBAIXADADOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA EM PORTUGAL

8§. Se é inequívoco (no plano interno, bem como, aliás, de acordo com o regime

vigente na generalidade dos países) que só pode figurar em juízo como parte quem beneficie de personalidade judiciária, questão distinta é já a de saber se a Embaixada dos Estados Unidos em Portugal tem personalidade judiciária perante os tribunais portugueses. Questão que o acórdão ora recorrido resolveu de forma incorreta, quer porque não decidiu com base no regime jurídico aplicável, quer porque, simetricamente, o resolveu à luz de regime jurídico inaplicável.

IV.1. DO ERRO DE JULGAMENTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO POR NÃO APLICAÇÃO

DO REGIME JURÍDICO APLICÁVEL

IV.1.1. DO ERRO DE JULGAMENTO POR NÃO APLICAÇÃO DE REGIME DE

DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO (ONDE SE ESTABELECE A INEXISTÊNCIA DE PERSONALIDADE JUDICIÁRIA DAS EMBAIXADAS)

9§. Na ordem jurídica portuguesa, o direito internacional (onde, a par de outras

fontes, o costume se integra) beneficia de receção automática na ordem jurídica interna e assume prioridade aplicativa relativamente ao direito interno (cf. artigos 8.º, 7.º e 16.º da CRP), independentemente de dizer respeito a matéria substantiva ou processual. Os tribunais portugueses, sujeitos que estão à Constituição e à lei, encontram-se vinculados a aplicar regras e princípios de direito internacional público (incluindo os que resultem de costume internacional), pois aqueles fazem parte integrante do direito português.

10§. Existe um regime de direito internacional precisamente relativo à questão

em apreço (carência ou não de personalidade jurídica e judiciária pelas Embaixadas). O princípio segundo o qual as embaixadas carecem de personalidade jurídica e judiciária resulta de um costume de direito internacional público que foi, aliás, confirmado inequivocamente, inter alia, (i) pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas (que declara, entre o mais, que: “e]mbaixadas são órgãos subsidiários do Estado, fazendo parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros [ou de gabinete equivalente, tal como o Departamento de Estado dos EUA] do Estado de envio. O seu estatuto é regido pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas” e “um processo contra o Governo eo nomine [por exemplo, através de uma das suas embaixadas localizadas num Estado recetor] não se distingue de uma ação direta contra o Estado”), (ii) por decisões de diversos tribunais (a título de exemplo, o Supremo Tribunal da República Popular da Croácia declarou que “[e]mbaixadas e outras agências diplomáticas são apenas representantes de Estados estrangeiros e apenas esses Estados estrangeiros (não os seus representantes) podem ser partes em processos judiciais”, bem como que “o verdadeiroréunãoéaembaixadadoEstadoestrangeiro,éoEstadoestrangeiro que a embaixada representa”, concluindo que “a queixa foi erradamente apresentada contra a embaixada do Estado estrangeiro, e não contra o próprio Estado estrangeiro””, e (iii) por declarações oficiais do Conselho da Europa, do qual Portugal é Estado membro (aquele declarou, por exemplo, que“uma missão diplomática (ou permanente), sendo um órgão do Estado de envio, não tem personalidade jurídica distinta da do Estado em questão, e daí decorre que as dívidas contraídas por uma missão diplomática são dívidas do Estado de envio).

11§. Outras manifestações inequívocas corroboram esse mesmo costume: assim,

por exemplo, com o PROJETO DE ARTIGOS DE RESPONSABILIDADE DO ESTADO (“Draft Articles on State Responsibility”) que fixa que “[a] conduta de qualquer órgão do Estado [como uma embaixada] será considerada um acto desse Estado ao abrigo do direito internacional”, bem como com a DECISÃO DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, no caso da Convenção sobre o Genocídio em que se reafirmou como “uma das pedras angulares da lei da responsabilidade do Estado” (“one of the cornerstones of the law of State responsibility”) o princípio de que as ações de um órgão subordinado do Estado são imputáveis ao próprio Estado e, se for caso disso, é o Estado que deve ser julgado.

12§. Também nesse sentido se pronuncia a doutrina (designadamente LADY HAZEL MARY FOX, uma das maiores autoridades do direito internacional).

13§. Está em causa, em síntese, costume de Direito Internacional Público perfeitamente consolidado que, enquanto fonte de direito vigente (com caráter prioritário relativamente ao direito de fonte interna) na ordem jurídica portuguesa, o Tribunal recorrido (bem como o tribunal de 1.ª instância) deveria ter aplicado, decidindo no sentido da ausência de personalidade judiciária da Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal, absolvendo, em consequência, esta da instância por falta de verificação desse elementar (e imprescindível) pressuposto processual.

IV.1.2. DO ERRO DE JULGAMENTO POR NÃO APLICAÇÃO DE REGIME DECORRENTE DA QUALIDADE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA ENQUANTO ESTADO SOBERANO E DO DIREITO INTERNO POR ESTE

ESTABELECIDO

14§. Ainda que, porém, tal costume não existisse (no que de nenhum modo se

concede), a circunstância de os Estados Unidos da Américaserem um Estado soberano sempre imporia, por si só (atento o estatuto que a esses sujeitos de direito internacional público é indiscutivelmente reconhecido), concluir que apenas a esse Estado incumbe, no exercício dos seus poderes soberanos, determinar quem o pode representar junto de outros Estados para os mais diversos efeitos, designadamente para a sua representação em juízo, incluindo perante um tribunal estrangeiro (ou seja, definir as competências e poderes dos seus serviços e dos seus próprios órgãos de governo para representação do Estado).

15§. Admitir que possa ser outrem (que não os próprios Estados Unidos da

América), designadamente outro Estado (no caso, o Estado português, através da sua legislação interna ou de decisão dos seus tribunais), a decidir quem tem poderes para representar os EUA em juízo, consubstanciaria uma inadmissível violação, de forma direta, da soberania dos EUA ― este é, naturalmente, o único que pode decidir quem o representará em juízo seja interna como externamente.

16§. De acordo com o princípio da igualdade soberana (consagrado no artigo 2.º, n.º 1 da Carta das Nações Unidas e acolhida também no artigo 7.º, n.º 1 da CRP) todos os Estados são iguais perante o direito internacional, o que se reflete, inter alia, no reconhecido princípio de direito internacional consuetudinário par in parem not habet imperium, em que um igual não tem soberania sobre outro. Donde não cabe a um Estado soberano ditar a organização interna de qualquer outro Estado soberano, como o Tribunal Internacional de Justiça confirma.

17§. Não só é aos EUA, enquanto Estado soberano, que incumbe determinar quem o representa em juízo, interna ou externamente, como este efetivamente procedeu a essa determinação de forma inequívoca e categórica, no âmbito do seu direito interno, estatuindo, de modo expresso, que essa competência “está reservada a agentes do Departamento de Justiça, sob a direção do Procurador-Geral” (secção 516 título 28 do United States Code – Conduct of litigation reserved to Department of Justice) e que a Divisão Civil do Departamento de Justiça dos Estados Unidos está autorizada, nos termos da secção 0.46 título 28 do Code of Federal Regulations, a “dirigir todos os litígios civis, incluindo ações por ou contra os Estados Unidos, uma das suas agências ou um dos oficiais, em tribunais nacionais ou estrangeiros” (tradução livre). Também a secção 519 do título 28 do Código dos Estados Unidos da América o confirma. De notar que não existe nenhuma norma legal nos EUA que, confira neste caso a qualquer outra agência autoridade de representação dos EUA em juízo (como seja ao Departamento de Estado dos EUA, ou a qualquer uma das suas subdivisões, incluindo as embaixadas dos EUA no estrangeiro), além do Departamento de Justiça dos EUA.

18§. Assim, é o Departamento de Justiça dos EUA que tem competência

estatutária para representar os EUA em litígios perante tribunais nacionais e estrangeiros, não se verificando nenhuma das raras exceções previstas pela lei dos EUA, que permitem que outros departamentos e agências representem os EUA em juízo.

19§. Ou seja, apenas o próprio Estado soberano dos EUA, e não qualquer agência, serviço ou departamento governamental que não tenha sido expressamente autorizado pelo Congresso dos EUA (69), pode ser parte num litígio, sendo certo que o Departamento de Estado, no qual se integra a Embaixada dos EUA, não recebeu tal autorização.

20§. Torna-se, pois, claro que, de acordo com o direito interno dos EUA (o único a quem cabe definir quem dispõe de poderes para representar esse Estado em juízo), as embaixadas não beneficiam de personalidade judiciária, não lhes sendo, assim, reconhecidos poderes para intervirem como partes em juízo. As embaixadas dos EUA em todo o mundo carecem, assim, de autoridade para contratar advogados para representação em juízo ou para tomar decisões quanto à estratégia de um litígio judicial.

21§. As ações devem, em suma, ser propostas contra o próprio Estado (EUA), ou

pelo próprio Estado. Sendo, porém, o Estado uma pessoa jurídica e sendo-lhe, assim, impossível comparecer, enquanto sujeito físico, em juízo, os atos a praticar no processo serão assegurados por intermédio do órgão interno que para o efeito designou (Department of Justice).

22§. Aliás, foi precisamente por assim ser que a procuração forense que se juntou aos presentes autos e que confere o mandato forense aos aqui signatários foi emitida pelo Departamento de Justiça dos EUA, de acordo com o Direito norte-americano.

23§. Tendo os Estados Unidos, enquanto Estado soberano, procederam a essa designação, o desrespeito pelo regime assim estabelecido representaria violação inadmissível da sua soberania por parte do Estado português.

24§. Os Estados Unidos, enquanto Estado soberano (beneficiário que, assim, é de

poderes de autodeterminação, autonormação e hierarquia), procederam a essa designação, pelo que o desrespeito pelo regime assim estabelecido representaria violação inadmissível da sua soberania por parte do Estado português.

25§. Tanto determina, por sisó, a necessidade imperiosa de revogação do acórdão

de que ora se recorre, absolvendo a Embaixada da instância por carência de personalidade judiciária.

IV.1.3. DAS EFETIVAS FUNÇÕES DAS EMBAIXADAS E DA SUA CAPACIDADE PARA

PRATICAR ATOS

26§. O que vem de se explicitar não significa que as embaixadas sejam órgãos

vazios de funções ou de relevo jurídico, pois que não retira que beneficiem de outras competências (designadamente no estrito âmbito da missão diplomática que lhes está adstrita e nos termos em que o está).

27§. Importa não confundir entre duas dimensões: o poder para a prática de atos dentro da sua esfera de atuação e fora de um processo judicial (nos termos que foram estabelecidos pelo Estado em que se enquadra), com o poder para serparte num processojudicial (poderque lhesnão foi atribuído pelomesmo Estado, em exercício pleno da sua soberana capacidade decisória).

28§. A Embaixada dos EUA em Portugal pode, assim, despedir um trabalhador

que aí exerça funções, mas não pode ser parte num litígio que esse trabalhador eventualmente espolete. De resto, a realidade jurídica portuguesa demonstra que essa circunstância também aqui se replica: um Ministério pode despedir um trabalhador que aí exerça funções, mas não pode ser parte num litígio em que se discuta a validade desse despedimento. Aliás, para efeitos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, representar o Estado em juízo não é umdos propósitos típicos de umamissão diplomática.

29§. Em suma, quando não atribui às Embaixadas poderes para o representarem juízo, os EUA não só exercem uma prerrogativa que decorre do seu poder soberano (prerrogativa de se fazerem representar em juízo por quem livremente designarem), como, adicionalmente, a exercem em termos totalmente harmónicos com os vigentes de acordo com o referido costume de direito internacional público (segundo o qual, como acima referido, as embaixadas não dispõem de personalidade jurídica, nem judiciária).

30§. A Embaixada dos EUA em Portugal não tem, assim, personalidade jurídica,

nem personalidade judiciária, à luz do direito internacional público e do direito interno, sendo o Estado soberano dos EUA a única pessoa coletiva contra a qual deviam ter sido propostas as ações judiciais.

31§. Determinar que a parte no presente litígio é a Embaixada dos EUA em

Portugal, quando esta não tem autoridade para o ser à luz da lei que a rege (i.e., a lei dos EUA), a decisão interferiria de forma inadmissível na autoridade soberana de um Estado independente, pelo que, o tribunal a quo, ao decidir nos termos em que decidiu, não só não aplicou (contrariamente ao que se lhe impunha) o regime jurídico de direito internacional público vigente a este propósito, como violou o poder soberano dos EUA. Incorreu, assim, em simultâneo, na violação do dever de respeitar o princípio geral da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados soberanos –cf. artigo 7.º, n.º 1 da CRP.

32§. Assim sendo, a única forma de garantir o respeito pelo direito internacional

e pelo direito interno dos EUA será reconhecer a falta de personalidade judiciária da Embaixada.

IV.1.4. DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE SOBERANA E DO PARALELISMO COM A

ORDEM JURÍDICA INTERNA PORTUGUESA

33§. Como já acima explicitado, vigora, no âmbito do Direito Internacional

Público, o princípio da igualdade soberana, também designado por princípio da igual dignidade soberana, de que decorrem vários corolários, designadamente: o princípio da não ingerência (segundo o qual os Estados se devem abster de interferir na vida interna, ou nos assuntos domésticos, uns dos outros) e o princípio da igualdade nas relações entre os Estados.

34§. Seria incoerente e contrário ao referido princípio e seu mencionado corolário, tratar um Estado estrangeiro em termos diferentes daqueles segundo os quais o Estado português exigiria ser tratado por um Estado terceiro.

35§. O Estado português também consideraria ser inadmissível interferência na sua soberania que fossem os Tribunais ou o legislador de um outro Estado (e não ele próprio, enquanto Estado soberano) a decidir quem o representa em juízo, sendo certo que, a vários propósitos, o Estado português estabelece, no seu direito interno, quem dispõe de personalidade judiciária.

36§. Distingue, para esse efeito, de um lado, a pessoa jurídica coletiva de Direito Público que é o Estado português e, de outro lado, os serviços e os órgãos que o integram, sendo que as ações judiciais apenas podem ser propostas por ou contra aquele, que não por ou contra estes (não obstante estes, enquanto serviços e órgãos daquele, exercerem funções que, naturalmente, desempenham em nome do Estado). Assim, se um qualquer particular se vir lesado por um determinado ato do Governo português ― v.g. um despacho ministerial ― não poderá apresentar uma ação contra o Governo, nem regra geral, contra o Ministério que emitiu a decisão. Antes contra o Estado Português, porque o Governo e os Ministérios que o compõem não gozam de personalidade jurídica própria. Assim o confirmam, designadamente, a doutrina e a jurisprudência (cf. autores e decisões citados no corpo das alegações).

37§. Assim, os serviços e órgãos do Estado português não beneficiam de

personalidade judiciária ativa, nem passiva. Apenas o Estado português pode assumir essa qualidade (de parte) em juízo. Ora, de acordo com o regime interno português (e à semelhança do que sucede no quadro do regime interno dos Estados Unidos da América), as embaixadas são serviços periféricos externos que integram a administração direta do Estado (como expressamente se prevê no n.º 2 do artigo 4.º da Lei Orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros e na alínea b), do n.º 4, do artigo 11.º, da Lei n.º 4/2004, de 15 de janeiro). Asembaixadas encontram-se, portanto, destituídas de personalidade jurídica e judiciária, também de acordo com o direito interno português.

38§. Coerentemente, em diversa jurisprudência portuguesa, os Tribunais portugueses (em sintonia com tudo o que vem de se explicitar neste ponto, bem como nos dois pontos anteriores)adotaram entendimento integralmente coincidente com aquele que os EUA ora evidenciam (por sua vez coincidente com a adotada no plano do direito internacional público vigente, como acima ficou sublinhado) – cf. jurisprudência citada no corpo das alegações.

39§. Afigura-se, então, adequado, afirmar que a jurisprudência portuguesa

acolhe o entendimento dos EUA nos presentes autos quanto à falta de personalidade jurídica e judiciária das embaixadas. Donde o princípio da igualdade soberana, com os associados deveres (seus corolários) de não ingerência e de respeito pela igualdade (ligando-se, esta, à relação de reciprocidade) determinam que o Estado português (no caso, através do exercício da função jurisdicional) respeite a soberania dos Estados Unidos da América, não declarando ter personalidade judiciária a um dos seus serviços (a sua Embaixada em Portugal) quando estes (em sintonia, aliás, com costume internacional) a recusam, à semelhança do que o Estado português exigiria dos Estados Unidos da América, caso estes pretendessem atribuir personalidade judiciária à Embaixada de Portugal nos Estados Unidos da América, quando é certo que o Estado português lha não reconhece.

IV.2. DO ERRO DE JULGAMENTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO EM VIRTUDE DE

APLICAÇÃO DE REGIME JURÍDICO INAPLICÁVEL

IV.2.1. DA NÃO ABRANGÊNCIA DO PRESENTE CASO PELO ÂMBITO APLICATIVO

DO ARTIGO 13.º DO CPC

40§. Para além de o tribunal recorrido não ter aplicado o (acima referido) regime jurídico, decorrente do direito internacional, que diretamente responde à questão em apreço, o Tribunal a quo aplicou uma norma de direito interno (artigo 13.º do CPC) cujo âmbito aplicativo não abrange pessoas coletivas de Direito Público correspondentes a Estados soberanos.

41§. O erro decisório verifica-se, neste plano, a vários níveis.

42§. Em primeiro lugar, porque o artigo 13.º do CPC contém várias normas, em particular a que se encontra prevista no n.º 1 desse preceito e a (diferente) norma constante do n.º 2 do mesmo artigo, sendo que cada uma dessas normas respeita a hipóteses diversas e prevê consequências diferentes, assim aí se estabelecendo regimes distintos.

43§. Refere o Tribunal a quo, em termos genéricos e abstratos, que aplica esse artigo por entender que a Embaixada é representação de um Estado. Contudo, em ambas as normas se inclui a menção a representações (embora não de um Estado, como veremos), pelo que não se percebe qual dos normativos foi em concreto convocado pelo tribunal recorrido, pelo que, sem essa explicitação não há uma verdadeira aplicação do direito aos factos, assim se comprometendo não só o devido exercício da atividade jurisdicional, como também o adequado exercício do direito a interpor recurso.

44§. Acresce que, ante a referida ausência da informação quanto à norma em concreto aplicada, a pronúncia que ora se exerce assume caráter provisório, não precludindo, assim, pronúncia posterior.

45§. A Embaixada dos EUA não se subsume conceito de “representações”

constante do mencionado artigo, por várias razões: (i) o elemento literal, associado ao elemento sistemático e à ratio legis da lei (que também deles se depreende); (ii) a soberania dos EUA e a impossibilidade de a lei nacional atribuir poderes e capacidades a entidades que um próprio Estado soberano não permite (em concordância com o princípio par in parem) e (iii) a superioridade hierárquica do direito internacional face ao direito nacional.

46§. Os termos “delegações ou representações”, quando incluídos no texto

normativo do artigo 13.º do CPC, visavam tratar essencialmente casos de sociedades comerciais, como bem se depreende da epígrafe do artigo: “Personalidade judiciária das sucursais”. Ora, quanto a um Estado não faz sentido falar em administração principal, nem em sede, nem em domicílio do (sendo certo que o legislador faz uso destes conceitos no artigo 14.º do CPC, que se encontra umbilicalmente, ou seja, sistematicamente ligado ao artigo 13.º do mesmo diploma). Aliás, o n.º 2 do artigo 13.º do CPC ao referir que “se a administração principal tiver a sede ou domicílio em país estrangeiro” aponta precisamente no sentido de que a lei não se pretende referir a casos em que a pessoa coletiva é o próprio pais estrangeiro! Tudo o que clara e diretamente evidencia que, quando concebeu e fez entrar em vigor o artigo em apreço, o legislador português não quis incluir no seu âmbito aplicativo a pessoa coletiva de Direito Público Estado.

47§. O mesmo se retira do previsto no artigo 9.º do Código Civil, para efeitos de

interpretação normativa, onde se estabelece que o legislador é razoável, não podendo, assim, admitir-se, em sede de interpretação, que o legislador tenha querido aplicar o artigo 13.º do CPC aos Estados. Com efeito, na medida em que, enquanto pessoas coletivas de direito internacional público (e atendendo, assim, às suas especiais características, nomeadamente a sua soberania, que deve ser respeitada por força do princípio fundamental da igualdade soberana – uma das pedras angulares das relações entre Estados), beneficiam do especial poder de, soberanamente, com caráter exclusivo e oponível a terceiros, determinar a sua estrutura orgânica, bem como quem a representa em juízo, não faria sentido aplicar-lhes um preceito que não é compatível com esse autónomo e soberano poder de autodeterminação e autonormação intrínseco.

48§. Não se pode, assim, conceder que no leque das pessoas coletivas diversas de

sociedades comerciais, abrangidas pelo âmbito aplicativo do artigo 13.º do CPC, se possam incluir os Estados. Da ratio legis da norma constante do artigo 13.º do CPC não decorre, pois, a possibilidade de atribuição de personalidade judiciária às Embaixadas, porque não era esse o propósito do legislador (vertente subjetiva), nem pode ser esse o espírito da lei em face dos restantes comandos jurídicos que se têm de harmonizar (vertente objetiva).

49§. De outra parte, conforme se explicitou com maior detalhe supra, a autoridade e os poderes de cada uma das missões diplomáticas dos EUA ― maxime, a Embaixada dos EUA em Portugal ― regem-se pela lei norte-americana e pelo direito internacional público, o que significa que a Embaixada dos EUA, enquanto missão diplomática, representa uma evidente manifestação do poder de soberania do Estado, sendo certo que, no âmbito dos poderes de soberania do Estado cabe a este, entre o mais, a definição das competências e poderes dos seus serviços e dos seus próprios órgãos de governo para representação do Estado (como vimos já supra em detalhe).

50§. Nestes termos, adotar uma interpretação que insira a Embaixada dos EUA nos conceitos de “delegações ou representações” na aceção do artigo 13.º do CPC, seria assumir que é legitimo ao direito interno português definir formas admissíveis de representação do Estado soberano dos EUA junto dos tribunais portugueses, o que de imediato manifesta a insustentabilidade dessa interpretação.

51§. No âmbito aplicativo do artigo 13.º do CPC estão, assim, em causa unidades delimitadas, com estrutura empresarial ou similar, adstrita ao cumprimento de um escopo bem circunscrito e definido, aí não se incluindo, em suma, os Estados.

52§. E cumpre notar que, se estes não estão aí incluídos quando a norma se

aplique por via direta (sendo certo que, como vimos, nem essa aplicação efetiva o tribunal faz), muito menos se pode almejar que essa solução decorra, quanto aos Estados, de aplicação por via analógica. Por duas razões: quer porque o tribunal não recorre à analogia (não encetando sequer qualquer percurso lógico nesse sentido), querporque, em qualquercaso, esse putativo ensaio de caminho não seria bem sucedido [por três motivos -porque, estando em causa um artigo que contém normas que consagram um regime excecional, estas não são aplicáveis por via analógica (cf. artigo 11.º do Código Civil); porque não se identifica qualquer lacuna e porque, em qualquer caso, ainda que a norma não fosse excecional e existisse lacuna (no que se não concede), não existe entre os dois sujeitos (Estados e pessoas coletivas que não sejam Estados) identidade de estatuto e, assim, de situações, ou seja, estatuto análogo, que justifiquem a aplicação, a ambos, do mesmo regime].

53§. Nem se pode admitir que se possa operar uma interpretação extensiva do artigo 13.º do CPC, pois, como refere KARL LARENZ, nos casos de interpretação das normas excecionais “tem de evitar-se […] que, mediante uma interpretação excessivamente lata das disposições excepcionais, […], o propósito de regulação do legislador se transmute afinal no seu contrário”,

54§. Pelo contrário, a diversidade de natureza determina a aplicação, a cada um

desses tipos de sujeitos, de regimes diferenciados e, consequentemente, a não aplicação do artigo 13.º do CPC quanto a embaixadas, ou seja, a situações que são reguladas pelo direito internacional público, fora do controlo material e formal do legislador português.

55§. De notar, aliás, que, mesmo no que diz respeito à noção de “representação”

aplicável,noâmbitodoartigo13.ºdo CPC, às pessoas coletivas empresariais , essa noção há-de ser lida em conjugação com o previsto no artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais, de onde resulta, com caráter manifesto, que aí se não incluem as embaixadas.

56§. De sublinhar, por fim, que no mesmo sentido depõe jurisprudência portuguesa (cf. decisões explicitadas no corpo das alegações), sendo certo, por outro lado, que não se podem tomar como precedentes adequados acórdãos que nunca chegaram sequer a tratar o thema decidendi e que se limitaram a apreciar as questões diversas daquela que é objeto de recurso.

57§. Afigura-se adequado afirmar que a jurisprudência portuguesa acolhe o

entendimento dos EUA nos presentes autos quanto à falta de personalidade jurídica e judiciária das embaixadas.

58§. Por outro lado, o vertido no acórdão do Tribunal de Justiça da União

Europeia ― Grande Secção, de 19 de julho de 2012, não altera a interpretação que deve ser feita do artigo 13.º do CPC.

59§. A norma resultante da interpretação, isolada ou conjugada, do disposto nos artigos 11.º, 12.º e 13.º do CPC, no sentido de conferir personalidade judiciária a uma embaixada de um Estado estrangeiro, é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 7.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, da CRP, o que se deixa, também, invocado para os devidos efeitos legais.

IV.2.2. DA INADMISSÍVEL E INSUSTENTÁVEL FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO

PROFERIDA

60§. Para além de, como explicitado no ponto precedente, o tribunal a quo não

fazer uma efetiva aplicação do preceito em causa aos factos (nem identificando a concreta norma que estaria em causa) e de a imprópria aplicação que faz ser indevida (na medida em que o âmbito aplicativo do preceito, qualquer que seja a norma em causa, não inclui a situação em apreço), a fundamentação que o tribunal recorrido apresenta para essa sua decisão se revela, a vários títulos, desconforme com a lei e, assim, com o direito fundamental a um processo equitativo (due process of law), consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da CRP.

61§. Em escassíssimos parágrafos, decidiu o tribunal recorrido que a Embaixada

teria personalidade judiciária, relegando a fundamentação dessa decisão para ilegítima remissão jurisprudencial.

62§. São diversas as irregularidades (desconformidades com a lei) que a estenível se observam.

63§. Em primeiro lugar, o acórdão recorrido remete, quanto à forma de fundamentação, para o artigo 665.º, n.º 5 do CPC (presume que o tribunal recorrido o faça por lapso, querendo, antes, reportar-se ao artigo 663.º, n.º 5 do CPC).

64§. Em segundo lugar, cumpre notar que não estão reunidos os três pressupostos de que o legislador faz depender a licitude da fundamentação per relationem (isto é, fundamentação por remissão para acórdãos precedentes).

65§. Desde logo, não está em causa uma questão cuja decisão seja simples para efeitos de aplicação da norma em apreço. Por outro lado, nos termos do referido preceito, o legislador impõe que, quando assim (per relationem) fundamente a sua decisão, o tribunal junte, ao acórdão, cópia da jurisprudência para que remeta, com o que visa assegurar que quem leia o acórdão (designadamente, mas não exclusivamente, as partes e o tribunal de recurso)disponha,de forma direta e imediatamenteacessível, da informação necessária para aferir da aptidão dessa jurisprudência (objeto de remissão) enquanto base suscetível de servir de suporte à decisão em causa, o que não se logra com a conduta que o tribunal recorrido adota quando substitui a junção de cópia por remissão do leitor para consulta da publicação online das várias decisões que refere ou para consulta dos autos (a que, segundo refere, tais decisões teriam sido juntas). Irregularidade que, no presente caso, se afigura especialmente grave, na medida em que, por outro lado, a jurisprudência para que o tribunal recorrido remete não representa, na verdade, base que legitime a decisão proferida (ora recorrida). Com efeito, a remissão jurisprudencial a que o tribunal recorrido procede ou corresponde a jurisprudência em que não se debate e decide a questão ora em apreço (antes questão distinta) ou corresponde a jurisprudência que, tendo por objeto a questão aqui em apreço, a decide em sentido coincidente com aquele que o Recorrente ora propugna, que não no sentido sustentado pelo tribunal recorrido (não podendo, por isso, servir de suporte à decisão deste último).

66§. Em síntese: o respaldo jurisprudencial que o acórdão recorrido diz ter na

jurisprudência simplesmente não corresponde à realidade, pois bem analisados os acórdãos referidos pelo Tribunal a quo, das duas uma: ou não trataram da questão controvertida ― falta de personalidade jurídica e judiciária de uma embaixada de um Estado estrangeiro ― ou vão em sentido completamente inverso àquele que é defendido pelo tribunal recorrido (cf. explicitação do conteúdo dessa jurisprudência, constante do corpo das alegações).

67§. Assim, outra não pode ser a conclusão senão a de que, contrariamente ao defendido peloTribunala quo,não existemdecisões que suportem o decidido no acórdão em crise, pelo que mal andou o Tribunal a quo quando disse que:

“Não vemos razão para nos desviarmos dessas decisões, cujos fundamentos

subscrevemos, dando-se as mesmas aqui por reproduzidas, nos termos do art.º 665.º n.º 5 do CPC (dispensando-se a junção de cópias por tais decisões se encontrarem publicadas e inseridas nos autos)” (sic).

68§. Emsuma,tambémpelasrazõesacabadasdeexplicitar(quesesomamatodas

as anteriormente invocadas) se impõe, assim, a revogação da decisão recorrida.

IV.3. DA VIOLAÇÃO DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA E A TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

69§. Atribuindo-se personalidade judiciária à Embaixada quando, na verdade,

esta dela não beneficia (antes a mesma assistindo ao Estado em que a Embaixada se integra, os Estados Unidos da América, o verdadeiro afetado pela ação), cerceia-se o direito fundamental, que assiste a este Estado, de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da CRP e, assim, o direito de fazer valer os seus direitos e interesses na ação.

70§. O tribunal recorrido sustentou que tal direito dos EUA não tinha sido objeto

de ofensa, pronunciando-se, a este propósito, nos seguintes termos:

“Ora, uma vez que a Embaixada corresponde a uma missão diplomática do Embargante noutro país, neste caso em Portugal, tendo a mesma sido demandada, acabou aquele por ter tido a oportunidade de fazer valer os seus direitos e interesses (relativamente ao litígio em questão), o que podia ter ocorrido mediante a apresentação da contestação, dedução de recurso da sentença condenatória nele proferida e da oposição à execução – o que optou por não fazer.

Tendo sido esta a posição assumida nos autos, não se pode logicamente

concluir pela invocada inconstitucionalidade. Improcedendo, assim, a presente questão”.

71§. O Tribunal afirma, assim, entre o mais, que, porque os Estados Unidos da América não deduziram oposição à execução, podendo tê-lo feito (sendo, assim, a não dedução de embargos à execução uma opção desse Estado), não haveria qualquer ofensa do seu direito fundamental de acesso à justiça e a tutela jurisdicional efetiva. Sucede, porém, que tanto não corresponde à verdade: uma vez penhorados bens seus, os Estados Unidos da América deduziram oposição à execução. E, como (entre o mais) os Estados Unidos da América referem nesses embargos, só não apresentaram contestação na ação declarativa porque para esta não foram citados, sendo que a Embaixada (aquela que, indevidamente, figura como parte passiva nas ações, apesar de, juridicamente, não beneficiar de personalidade judiciária) não praticou qualquer ato processual por, em virtude dessa ausência de poderes para representar os Estados Unidos da América em juízo, não se encontrar autorizada a fazê-lo.

72§. Contudo, sendo os Estados Unidos da América quem beneficia de personalidade judiciária nas ações em apreço e, para o que ora mais imediatamente interessa, na ação executiva, dela deve sair a Embaixada (por carecer de personalidade judiciária), não se afigurando possível que na mesma continue presente enquanto parte, para o que deve ser revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo, substituindo-se a decisão por este prolatada, por outra em que se declare que a Embaixada carece de personalidade judiciária, sendo, em consequência, a mesma absolvida da instância, extinguindo-se a ação executiva.

73§. Note-se que esta é uma questão de conhecimento oficioso, suscetível de ser

apreciada, como acima referido, pelos tribunais, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados. (cf. artigos 577.º, alínea c), e 578.º, do CPC). Por outro lado, dispõe o artigo 726.º, n.º 2, alínea b), do CPC, que “[o] juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando: b) Ocorram exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso”.

74§. Quer isto dizer que, num primeiro momento, altura em que foi proferido

despacho a 30 de novembro de 2017, o tribunal de primeira instância deveria, desde logo, ter conhecido da referida exceção dilatória e indeferido liminarmente o requerimento executivo apresentado pelo Exequente. Mais: o tribunal de primeira instância deveria ainda, num segundo momento, coincidente com a prolação da Sentença a 14 de setembro de 2022, ter conhecido da referida exceção dilatória, desde logo, e como vimos, porque expressamente invocada pelo ora Recorrente, por via de embargos de executado.

75§. E, se é certo que a legitimidade para deduzir oposição à execução assiste ao executado, certo é também que executado só poderá ser quem beneficie da suscetibilidade de ser parte (quem tenha personalidade judiciária), pelo que, antes de aferir se quem figura como executado tem legitimidade para tanto e, nessa medida, setem legitimidade para deduzirembargos, importa avaliar o pressuposto de base, indagando se quem figura como executado tem personalidade judiciária.

76§. Ora, concluindo-se que (como efetivamente sucede) a Embaixada não beneficia de personalidade judiciária, não pode a mesma figurar sequer como parte em qualquer ação, designadamente na ação executiva, o que, necessariamente, prejudica a sua possibilidade de ser parte legítima na ação executiva. E, não podendo figurar como parte, deve ser absolvida da instância, o que, desde logo, conduziria à extinção da instância por falta de uma das partes.

77§. Cumulativamente, deixando de poder ser parte, também o título executivo

passa a inexistir enquantobaseparaa ação executiva (por nele figurar, como credor, quem não pode ser parte), o que, por sua vez, representa também causa de extinção da instância executiva.

78§. Ante esta realidade, deixa, portanto, de proceder o argumento de que os

Estados Unidos da América não beneficiavam de legitimidade para deduzir embargos em virtude de esse direito assistir à Embaixada. Ao invés, reconhecendo-se ser o Estado soberano dos EUA (e não a Embaixada) o único sujeito passivo que beneficia de personalidade judiciária e de ser aquele o sujeito na verdade afetado pelos atos executivos, havia necessariamente de se lhe reconhecer legitimidade para deduzir embargos de executado, aí invocando todas as razões juridicamente invocáveis para tutela da sua esfera jurídica.

79§. A não concessão desse direito aos Estados Unidos da América representaria, pois, contrariamente ao que afirma o tribunal recorrido, efetiva violação do direito fundamental de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º da Lei Fundamental.

80§. Conhecimento a que, em todo o caso, sempre deveria haver lugar por se

tratar de uma questão de conhecimento oficioso que, a final, resultaria na necessária e consequente absolvição da Embaixada da instância, tudo nos termos conjugados dos artigos 278.º, n.º 1, alínea c), 577.º, alínea c), 578.º e 608.º, todos do CPC.

81§. Quando o Tribunal da Relação conheceu dessa questão (no acórdão ora

recorrido), fê-lo, contudo, em sentido incorreto (pelas razões acima expostas), no sentido, juridicamente infundado (como se viu) de que a mesma beneficiaria de personalidade judiciária, pelo que, para compatibilidade do acórdão com o Direito Internacional Público, a Constituição e a lei, importa a substituição dessa decisão por outra de sentido inverso, o que ora se requer.

82§. Em qualquer caso, e à cautela, deixa-se também invocado o seguinte, para

todos os efeitos legais, que: a norma resultante da interpretação, isolada ou conjugada, do disposto nos artigos 11.º, 12.º, 13.º, 53.º e 728.º, todos do CPC, no sentido de que é vedado a um Estado soberano deduzir embargos de executado quando uma embaixada sua é executada no âmbito de um processo executivo, é materialmente inconstitucional por violação do direito de tutela jurisdicional efetiva, em geral, e do direito de acesso ao direito e aos tribunais, nos termos do disposto nos artigos 8.º, n.º 1, 12.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, todos da CRP, o que se deixa, também, invocado para os devidos efeitos legais.

Por despacho do relator, não impugnado, o recurso foi admitido como revista em termos gerais.


O Exmº PGA emitiu parecer no sentido de ser concedida a revista.


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Temos, como questões a decidir:


a) se os Estados Unidos da América têm legitimidade para deduzir embargos de executado numa execução em que é executada a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal e que foi intentada com base em sentença proferida em acção em que foi Ré a referida Embaixada, por:


1. de acordo com o direito internacional público, a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal não ter personalidade judiciária;


2. o direito interno dos Estados Unidos da América não atribuir às Embaixadas poderes de representação em juízo;


3. não ser aplicável o disposto no artigo 13.º do Código de Processo Civil;


b) se ao considerar os Estados Unidos da América como parte ilegítima, o acórdão recorrido violou o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º da Constituição;


c) se a interpretação dos artigos 11.º, 12.º, 13.º, 53.º e 728.º, todos do Código de Processo Civil, de que é vedado a um Estado soberano deduzir embargos de executado quando uma embaixada sua é executada no âmbito de um processo executivo viola os artigos 8.º, n.º 1, 12.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1 da Constituição.


x


É a seguinte a factualidade a ter em conta (para além da constante do relatório deste acórdão):


1. O Embargado (Trabalhador no processo principal) intentou contra a Embaixada dos Estados Unidos da América, uma Acção de Impugnação da Regularidade e Licitude do Despedimento (processo principal), com fundamento na decisão de despedimento proferida pela mesma (fls.3 do processo principal) num processo disciplinar consta aquele instaurado.


2. Nesse processo foi decidido (fls. 65 e 66 do processo principal): "1) considerar que a Ré/Empregadora foi regular e pessoalmente citada; 2) considerar que a Ré/Empregadora foi validamente notificada quer a fls. 17, quer a fls. 51, quer a fls. 64; 3) e considerar que não foram válida e tempestivamente arguidas quaisquer vícios processuais pela Ré/Empregadora nos presentes autos."


3. E foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (fls. 66 a 68 do processo principal: "Face ao exposto, julga-se procedente a presente acção intentada pela Autor/Trabalhador AA contra a Ré/Empregadora Embaixada dos Estados Unidos da América e, consequentemente, decide-se:


1) Declarar ilícito o despedimento; dente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de trabalho ou fracção de antiguidade desde o despedimento até ao trânsito em julgado da presente sentença, a qual não pode ser de valor inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades;

3. Condenar a Ré/Empregadora a pagar ao Autor/Trabalhador as retribuições que este deixou de auferir desde a data do despedimento até à data do trânsito em julgado da presente sentença;

4. E ordenar a notificação do Autor/Trabalhador para, querendo, no prazo de 15 dias, apresentar articulado no qual peticione créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, nos termos do disposto na alínea c) do n.°3 do art. 98° J do C.P.Trabalho, devendo, neste caso, apresentar a devida petição inicial por apenso aos presentes autos.(...)"


4. Do despacho e sentença supra referidos foram as partes notificadas, a 8 de setembro de 2016, sendo a Embaixada mediante registo postar n.° RE077778675PT (fls. 69 a 71 do processo principal).


5. Não foi interposto recurso dos referidos despacho e sentença.


6. O Embargado/Trabalhador intentou contra a Embaixada dos Estados Unidos da América a ação comum, de condenação no pagamento de créditos laborais ao abrigo do disposto no artigo 98.°J, n° 3 alínea c) do CPT (Apenso A).


7. Na ação comum foi proferido despacho decidindo-se (fls.82 do apenso A):

1. considerar que a Ré foi regularmente notificada para contestar;

2. considerar que não foram válida e tempestivamente arguidos quaisquer vícios processuais pela Ré nos presentes autos.


8. E foi proferida sentença com o seguinte dispositivo ( fls.82 a 84 do apenso A): "Face ao exposto julga-se improcedente a presente acção intentada pelo Autor AA contra a Ré Embaixada dos Estados Unidos da América e, consequentemente, mais se decide absolver a Ré do pedido contra si formulado pelo Autor."


9. Não foi interposto recurso dos referidos despacho e sentença.


10. O Embargado/Trabalhador intentou contra a Embaixada dos Estados Unidos da América, a 15 de janeiro de 2017, um incidente de liquidação de sentença (Apenso C).


11. Neste incidente veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo (fls.39 a 43 do apenso C):


"Face ao exposto, julga-se parcialmente procedente o presente incidente de liquidação deduzido pelo Autor/Trabalhador AA contra a Ré/Empregadora EMBAIXADA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA e, consequentemente, decide-se:


1) Liquidar a indemnização por antiguidade a pagar pela Ré/Empregadora ao Autor/Trabalhador por força da sentença proferida nos autos principais no montante total de € 70.618,22 (setenta mil seiscentos

• dezoito euros e vinte e dois cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos desde a presente data até integral e efectivo pagamento, calculados à taxa legal de 4% ou a outra que vier a ser legalmente fixada;


2) Liquidar as retribuições intercalares a pagar pela Ré/Empregadora ao Autor/Trabalhador por força da sentença proferida nos autos principais no montante total de € 25.275,62 (vinte e cinco mil duzentos

• setenta e cinco euros e sessenta e dois cêntimos), quantia esta que fica sujeita aos respectivos descontos para IRS quer para TSU, acrescida de juros de mora vincendos desde a presente data até integral e efectivo pagamento, calculados à taxa legal de 4% ou a outra que vier a ser contra si petionado pelo Autor/Trabalhador"


12. No referido incidente foi ainda proferido o seguinte despacho (fls. 63 do apenso C): "I — Fls. 47 a 53 (Ministério dos Negócios Estrangeiros) Como resulta expressamente do teor da comunicação remetida pela Embaixada dos EUA ao MNE, a Ré tem conhecimento de todos os actos praticados nos autos (neste apenso e em todos os outros apensos e mesmos nos principais), e como tem sido sempre a sua opção, tem optado sistematicamente por nunca apresentar qualquer arguição de nulidade de forma tempestiva, legal, válida e eficaz, opção essa que apenas cabe à própria Ré mas que, como resulta da Lei, tem as respectivas consequências legais processuais. Acresce que, ao contrário do que a Ré alega perante o MNE, como resulta expressamente do teor da procuração junta a fls. 44 dos autos que constituem o apenso B, aquela está representada por mandatário judicial a quem concedeu poderes forenses gerais e concretos poderes especiais (incluindo os para transigir, desistir e confessar), não estando os mesmos limitados a qualquer acto concreto, sendo até certo que tal procuração embora tenha consignado o proc. n°12515/16.4T8LSB.1, que corresponde à execução, até foi apresentada nos autos de embargos (apenso B), sendo certo que tal mandatário formulou pretensão (relativa a custas de parte) nos autos que constituem o apenso C, donde resulta que o mandato forense concedido pela Ré não está limitada a qualquer «impugnação de penhora ilegal» (aliás, notificado da comunicação em causa, nem o próprio mandatário veio confirmar tal limitação), acrescendo que, como resulta do disposto no art. 44° do C.P.Civil de 2013, a atribuição de tal mandatado abrange quer Os autos principais, quer os autos apensos. Logo, estando efectiva e devidamente patrocinada por mandatário forense, o qual foi, aliás, notificado de todos os actos praticados nestes autos, qualquer arguição de nulidade processual teria quer ser realizada pelo mesmo, o que não sucedeu, sendo certo que já se encontram decorridos todos os respectivos prazos legais para o efeito. Face ao exposto, e sem necessidade de outras considerações, uma vez que não consubstancia a arguição de qualquer nulidade de forma legal, válida, eficaz e tempestiva e nem sequer está dirigida a este Tribunal, determina-se o desentranhamento dos autos do expediente de fls. 47 a 59 e a sua devolução ao MNE. Notifique-se e DN."


13. Deste despacho e da sentença proferidos no referido incidente de liquidação não foi interposto recurso.


14. A 30 de maio de 2017 o Embargado/Exequente instaurou ação executiva para pagamento da o pagamento da quantia de € 104 078,09 acrescida de juros de mora à taxa anual legal de 4%, até integral pagamento contra a Embaixada dos estados Unidos da América (apenso 1).


15. Nesses autos foi alcançada penhora dos depósitos bancários da Executada no montante global de € 58.697,24 (fls. 23 e 24 do Apenso 1)


16. De tal penhora foi a Executada notificada, nos termos constantes de fls. 26 do apenso 1.


17. A 30 de novembro de 2017 foi proferido despacho no processo executivo com o seguinte dispositivo:


DECISÃO: "Face ao exposto e nos termos dos preceitos legais supra citados, decide-se:


1) rejeitar oficiosa e parcialmente o requerimento executivo, por falta de título executivo, no que respeita a todos os pedidos executivos formulados;


2) e determinar o levantamento imediato de todas as penhoras efectivadas nos presentes autos. Custas pelo Exequente."


18. Do referido despacho não foi interposto recurso.


19. A 13 de julho de 2017 foram apresentados embargos de Executado pelos Estados Unidos da América" em nome da sua EMBAIXADA EM PORTUGAL" (apenso B).


20. Para o efeito juntou a procuração forense que se encontra junta a fls. 44 do referido apenso.


21. Juntou ainda cópia do cartão de identificação de "Entidade Equiparada a Pessoa Coletiva" com o n.° .......06 (fls. 56 do dito apenso).


22. Bem como documento de abertura de conta bancária, no Millennium BCP em nome da Embaixada dos Estádios Unidos da América (fls. 57 a 59 do referido apenso)


23. O Embargado contestou os Embargos (fls. 247 a 259 do apenso B)


24. A 5 de março de 2018 foi proferido despacho nos seguintes termos:


"III - Extinção da Instância por Impossibilidade Superveniente da Lide A extinção da instância executiva decretada pelo despacho que rejeitou oficiosamente a execução (cfr fls. 54 a 58 dos autos principais), em momento posterior à dedução da presente oposição à execução, constitui fundamento determinante da impossibilidade superveniente desta lide. Na verdade, se através da presente oposição a Executada pretendia que discutir a validade formal e substantiva daquela execução, a extinção da instância executiva, por decisão já transitada em julgado, implica o não prosseguimento da execução e, por via disso, toma absolutamente impossível o prosseguimento da presente oposição que é totalmente dependente daquele processo de execução. Face ao exposto e nos termos do art. 287°/e) do C.P.Civil, declara-se a extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, na presente oposição à execução. Custas pelo Exequente, unia vez que foi o próprio que deu causa à rejeição oficiosa da execução e, por via disso, à presente impossibilidade superveniente (art. 536°/4 do C.P.Civil de 2013, aplicável ex vi do art. 1°/2a) do C.P.Trabalho) . Notifique-se e registe-se"


25. A 7 de junho Embargado /Exequente instaurou a ação executiva , que correu como apenso 2, para pagamento da quantia de € 97.154,49, acrescida de juro de mora e compulsórios.


26. Apresenta como titulo executivo a sentença proferida no incidente de liquidação supra mencionada.


27. A 5 de julho de 2018 foi proferido despacho de indeferimento liminar, que consta de fls.18 a 20 do apenso 2, com o seguinte dispositivo:


"Face ao exposto e nos termos preceitos legais supra indicados, indefere-se liminarmente a presente execução instaurada pelo Exequente contra a Executada, em razão de se reconhecer a esta a imunidade de execução, o que conduz à verificação da excepção de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para preparar e julgar a presente execução"


28. Deste despacho foi interposto recurso pelo Exequente aqui Embargado, recurso esse cujo acórdão consta de fls.118 a 129 concedendo provimento ao mesmo e revogando-se "decisão da 1.° Instancia que reconheceu a imunidade jurisdicional da Embaixada dos Estados Unidos da América em ..., determinando-se a prossecução dos presentes autos de execução instaurados pelo recorrente AA"


29. A 12 de abril de 2019 foi alcançada penhora do saldo bancário da Embaixada dos Estados Unidos da América em ... no banco Millenium BCP, no montante de € 111.337,20. (fls. 145 e 146 do Apenso 2)


30. A Embaixada dos Estados Unidos da América em ... foi notificada de tal penhora por carta registada com aviso de receção (fls. 147 a 150).


31. A 5 de julho de 2019 foi proferido despacho no processo executivo com o seguinte teor: I —Requerimento de Fls. 165 (Agente de Execução) Atento o expressamente declarado, nos termos dos arts. 6º, 7°, 417°/1, e 736° do C.P.Civil de 2013, aplicáveis ex vi do art. 551° do C.P.Civil de 2013 e do art. 98°A do C.P.Trabalho, determina-se a notificação do Sr. Agente de execução para, no prazo de 3 dias, comprovar nos autos que já procedeu ao levantamento da penhora e, no caso de tal ainda não ter sucedido, efetuar o imediato levantamento da mesma e comprovar tal levantamento, advertindo-se expressamente de que, não o fazendo, para além do mais, será condenado em multa. Dê-se conhecimento quer do requerimento quer do presente despacho ao Exequente


32. Desse despacho foi interposto recurso que subiu em separado ( apenso E)


33. Tal recurso obteve provimento pelo que pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa foi revogado o despacho proferido e ordenado que " caso nada diverso do ora apreciado tal impeça, determinar que o M.° Juiz a quo ordene o regular prosseguimento da execução".


34. A 8 de julho de 2019 foi pelo Solicitador de execução ordenado o levantamento da penhora (fls .174, verso apenso 2).


x

• o direito:


-a primeira questão:


Escreveu-se, a este propósito, no acórdão recorrido:


“4.2. Da falta de personalidade jurídica, de personalidade e capacidade judiciária da Executada


Reitera o Embargante, no seu essencial, a argumentação que tem apresentado ao longo dos autos apensos, pretendendo concluir pela inexistência da personalidade jurídica, da personalidade e da capacidade judiciárias da Executada — Embaixada dos Estados Unidos da América.


Salvo o devido respeito, também quanto a esta questão lhe falece razão.


No presente caso, a acção principal foi deduzida por AA, contra a Embaixada dos Estados Unidos da América em ..., em virtude de ter sido esta, na qualidade de empregadora, a proceder ao seu despedimento.


Proferida decisão, como já dito, foi a aludida Embaixada condenada a pagar ao trabalhador a título de indemnização e retribuições intercalares a quantia liquidada de € 70.618,22.


Essa decisão transitou em julgado. E foi com base nela interposta execução, de acordo com os artigos 703.° n.° 1 alínea a) e 53.° do CPC.


Acresce que a jurisprudência tem considerado que a Embaixada, enquanto representação de um Estado, nos termos do art.° 13.° do CPC tem personalidade judiciária (e capacidade judiciária —susceptibilidade de estar por si em juízo — art.° 15.° do CPC).


Na verdade, como tem vindo a ser entendido, as missões diplomáticas permanentes, nomeadamente as embaixadas, detêm funções de representação de um Estado estrangeiro acreditado noutro país, muito embora não sejam dotadas de autonomia jurídica em relação ao estado acreditado, traduzindo-se em entidades representativas do respectivo Estado soberano para os efeitos do disposto no artigo 13.° do CPC. Assim o entenderam, entre outros, os Acórdão do STJ de 29-05-2012, proc. 137/06.2TVLSB.L1. S1, de 04-06-2014, proc. 20175/12.0TTLSB.L1.S1, e foi aceite no Acórdão de 18-02-2006, proc. 05S3279, todos in www.dgsi.pt, bem como nos Acórdãos desta Relação de 17-05-2011, proc. 137/06.2TVLSB.L1, 16-01-2019, proc. 12515/16.4T8LSB.L1-4 e de 10-01-2022, proc. 12515/16.4T8LSB.E-L1, ambos proferidos nos autos de execução apensos, tal como já foi referido).


Não vemos razão para nos desviarmos dessas decisões, cujos fundamentos subscrevemos, dando-se as mesmas aqui por reproduzidas, nos termos do art.° 665.° n.° 5 do CPC (dispensando-se a junção de cópias por tais decisões se encontrarem publicadas e inseridas nos autos).


Pelo exposto, e sem necessidade de outros considerandos, julga-se improcedente a presente questão.


O Recorrente entende, em síntese, que a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal não tem personalidade judiciária, ocorrendo violação do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva dos Estados Unidos da América.


Vejamos:


A jurisprudência deste STJ, e não só, tem entendido que as embaixadas, enquanto representações dos estados soberanos, embora não tenham personalidade jurídica, podem ser demandadas nos termos previstos no artº 13º do CPC.


A propósito do artº 7º do Velho CPC, mas com argumentação que se mantém válida em face do artº 13º do actual CPC, entendeu-se no Ac. da Relação de Lisboa de 17/05/2011, processo 137/06.2TVLSB.L1.S1:


“Como é sabido, nos termos do artigo 5.º do CPC, a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte em juízo e afere-se, em regra, pelo princípio da coincidência em relação à personalidade jurídica.
Porém, casos há em que a lei estende o manto da personalidade judiciária a determinadas entidades ou entes que, embora carecidos de personalidade jurídica, apresentem determinado tipo de substrato patrimonial, de organização ou de relação em termos de justificar, analogamente, a atribuição da qualidade de parte processual.


De entre tais situações, contam-se as previstas no artigo 7.º, n.º 1, do CPC, na redacção dada pelos Dec.-Leis n.º 329-A/95, 12-12, e n.º 180/96, de 25-9, segundo o qual as sucursais, agências, filiais, delegações ou representações podem demandar e ser demandadas quando a acção proceda de facto por elas praticado.
Trata-se de uma atribuição de personalidade judiciária activa e passiva estribada no que a doutrina designa por “critério da afectação do facto” Vide Prof. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pag. 139. .


E o n.º 2 do citado normativo explicita que:


Se a administração principal tiver a sede ou domicílio em país estrangeiro, as sucursais, agências, filiais, delegações ou representações estabelecidas em Portugal podem demandar e ser demandadas, ainda que a acção derive de facto praticado por aquela, quando a obrigação tenha sido contraída com um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal.


Embora, a maior parte das hipóteses previstas digam respeito a extensões das sociedades comerciais, o certo é que a referência a delegações ou representações feita no normativo em foco não se restringe a estas, podendo, pois, abranger quaisquer pessoas colectivas de direito privado ou público.


Como é sabido, as missões diplomáticas permanentes, nomeadamente as embaixadas, detêm funções de representação de um Estado estrangeiro acreditado noutro país, muito embora não sejam dotadas de autonomia jurídica em relação ao estado acreditado.


Não sofre dúvida que o Estado da República X é uma pessoa colectiva de direito público, segundo a respectiva ordem jurídica e na ordem jurídica internacional e como tal é recebido pela ordem jurídica portuguesa (art. 8.º, n.º 1, da CRP e art. 26.º, n.º 1, do CC).


Assim, a Embaixada da República X em Portugal traduz-se numa entidade representativa daquele Estado soberano para os efeitos do disposto no artigo 7.º do CPC.


Por isso, uma vez que os fundamentos da causa se consubstanciam na alegada falta de cumprimento de um contrato de prestação de serviço celebrado, em Portugal, entre a referida Embaixada e uma sociedade comercial portuguesa, o HM, não sofre dúvida de que a R. é dotada de personalidade judiciária passiva”.


No acórdão do STJ de 29/05/2012 (mesmo processo) escreveu-se:


De acordo com Philippe Cahier, in Le Droit Diplomatique, Ed. Libraire Droz, Paris, 1964, p. 55, a missão diplomática permanente é um serviço público do Estado de envio instalado de forma permanente no território do Estado receptor, com o objectivo de assegurar as relações diplomáticas entre os dois sujeitos de Direito Internacional.


Em bom rigor, do ponto de vista formal, a acção devia ter sido proposta contra o Estado e não contra a sua Embaixada em Portugal.


Todavia, sendo uma das funções primaciais de uma missão diplomática, qualificada geralmente de embaixada, a de “representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador” (cfr. art. 3, al. a) da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 18 de Abril de 1961), Aprovada internamente pelo DL n.º 48.295, de 27 de Março de 1968, parece-nos dever entender-se que, no caso concreto, o demandado é o próprio Estado da República Democrática de S. Tomé e Príncipe”.


E em nota de rodapé:


Entendeu-se no Ac. do STJ, de 17-11-1998, CJ/STJ, 1998, 3.º-121, que “Demandada a câmara municipal em vez do município, que aquela representa, terá de improceder a excepção de falta de personalidade judiciária, por tal motivo arguida, por a propositura da acção contra a câmara municipal dever ser entendida como um erro técnico, devendo valer o mesmo que accionar o município (ponto I do respectivo Sumário).


No mesmo sentido, considerou-se no Ac. do STA de 3-11-2005, in ADSTA, ano XLV, n.º 53, p. 267, citado por Francisco Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, volume I, p. 396 que: “É irrelevante que numa acção de condenação figure expressamente como ré a câmara municipal e não o respectivo município, se a petição inicial for de interpretar no sentido de que a referência àquele órgão constitui um mero modus dicendi que seguramente pretendia significar o ente municipal”.


No acórdão do STJ de 19 de janeiro de 2023, Processo nº 25603/ 21.6.T8.LSB.L1.S1, considerou-se, sem margem para dúvidas que “Em rigor, uma Embaixada não tem personalidade jurídica distinta do Estado – a acção deve considerar-se proposta conta o Estado angolano”.


Dito isto, também merece a nossa concordância a conclusão a que chega o MºPº, no seu Parecer, baseado na legislação e jurisprudência aí citados.


Dispõe o art. 8.º, n.º 4, da CRP que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.


O Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12, contém um conjunto de regras aplicáveis às relações entre diferentes Estados-Membros, bem como às relações entre um Estado-Membro e um Estado terceiro.


Com efeito, e nos termos do artº 20º, nº 2, desse Regulamento (UE) “se um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio num Estado-Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num Estado-Membro, considera-se, quanto aos litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado-Membro”.


Sendo que, por força do artº 21º, nº 1, al. a) do mesmo regulamento, “uma entidade patronal domiciliada num Estado-Membro pode ser demandada: a) Nos tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio;”.


O TJUE, por acórdão de 19-07-2012, proc. n.º C-154/11 (Mahamdia) (https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=BBAE5B3B1980E242401AF1D0543FAAA0?text=&docid=125230&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4771761), a respeito do artº 18º, nº 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, substituído entretanto pelo referido artº 20º, nº 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, com redacção similar, entendeu que essa norma deve ser interpretada “no sentido de que uma embaixada de um Estado terceiro situada no território de um Estado-Membro constitui um “estabelecimento” na aceção desta disposição, num litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado por esta em nome do Estado acreditante.».


E no acórdão do STJ de 25-11-2014, Proc. n.º 1298/13.0TTLSB.L1.S1- 4.ª Secção, decidiu-se, sem margem para dúvidas, que uma embaixada deve considerar-se um “estabelecimento”, para efeitos do disposto no artº 18º, nº 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, quando as funções dos trabalhadores estejam ligadas à actividade de gestão levada a cabo pela mesma.


Conclusão baseada na seguinte argumentação:


“Ao interpretar os referidos conceitos de «sucursal» [«filial»], de «agência» e de «outro estabelecimento», o Tribunal de Justiça identificou dois critérios que determinam se uma ação judicial relativa à exploração de uma dessas categorias de estabelecimento tem ligação com um Estado-Membro. Em primeiro lugar, o conceito de «sucursal» [«filial»], de «agência» e de «outro estabelecimento» pressupõe a existência de um centro de operações que se manifesta de forma durável face ao exterior, como prolongamento de uma casa-mãe. Esse centro deve ter uma direção e estar materialmente equipado para poder negociar com terceiros, os quais são assim dispensados de se dirigir diretamente à casa-mãe (...). Em segundo lugar, o litígio deve dizer respeito seja a atos relativos à exploração dessas entidades seja a obrigações assumidas por estas em nome da casa-‑mãe, quando estas últimas devem ser executadas no Estado em que estão situadas (...).


No processo principal, importa recordar, a título preliminar, que as funções de uma embaixada, como resulta do artigo 3.º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, consistem essencialmente em representar o Estado acreditante, proteger os interesses desse Estado e promover as relações com o Estado acreditador. No exercício dessas funções, a embaixada, como qualquer outra entidade pública, pode agir iure gestionis e tornar-se titular de direitos e obrigações de caráter civil, na sequência, nomeadamente, da celebração de contratos de direito privado. É esse o caso quando celebra contratos de trabalho com pessoas que não cumprem funções que se enquadram no exercício do poder público.


No que respeita ao primeiro critério evocado (...), importa salientar que uma embaixada pode ser equiparada a um centro de operações que se manifesta de forma durável face ao exterior e que contribui para a identificação e a representação do Estado do qual emana.


Quanto ao segundo critério enunciado (…), é manifesto que o objeto do litígio (...), isto é, uma contestação no domínio das relações de trabalho, apresenta uma ligação suficiente com o funcionamento da embaixada em causa no que respeita à gestão do seu pessoal.


Por conseguinte, no que respeita a contratos de trabalho celebrados por uma embaixada em nome do Estado, esta constitui um «estabelecimento» na aceção do artigo 18.º, n.º 2, do Regulamento n.º 44/2001, quando as funções dos trabalhadores com os quais celebrou esses contratos têm ligação com a atividade de gestão levada a cabo pela embaixada no Estado acreditador. “


Subscreve-se o entendimento vertido no Parecer do Exmº PGA no sentido de que as missões diplomáticas permanentes, nomeadamente as embaixadas, constituem pessoas colectivas que têm como funções representar o Estado acreditante, proteger os interesses desse Estado e promover as relações com o Estado acreditador, conforme o disposto no artº 3º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (concluída em 18.04.1961)- http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/47aab1d40fb6de5180257a3200341c01?OpenDocument.


Ora, os Estados Unidos da América são uma pessoa colectiva de direito público, segundo a respectiva ordem jurídica e na ordem jurídica internacional, e como tal reconhecida pela ordem jurídica portuguesa, nos termos do artº 8º, nº 1, da CRP, e artº 26º, nº 1, do Cod. Civil, sendo que possuem uma embaixada aberta em Portugal, ou seja, uma pessoa colectiva com funções de representação daquele Estado soberano.


Daqui importa retirar que a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal representa o respectivo país perante as autoridades nacionais, sendo que, embora não tenha propriamente uma personalidade jurídica distinta do respectivo Estado, possui uma extensão da personalidade judiciária no que respeita a ação que proceda de facto por ela praticado, nos termos do artº 13º, nº 1, do CPC.


Pelo que, e também de acordo com a jurisprudência citada, se deva entender que a acção e respetiva execução propostas contra a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal nos presentes autos se consideram como sendo propostas contra os próprios Estados Unidos da América.


Nomeadamente o já referido acórdão do STJ de 19-01-2023, proc. n.º 25603/21.6T8LSB.L1.S1, em situação similar, segundo qual Em rigor, uma Embaixada não tem personalidade jurídica própria distinta do Estado a acção deve considerar-se proposta contra o Estado respectivo”.


A consequência não deverá ser, todavia, a adoptada pelas instâncias.


Devendo a acção e a execução ser consideradas como propostas contra o Estado soberano dos Estados Unidos da América, facilmente se influi que o mesmo dispõe de legitimidade passiva para deduzir os embargos, devendo os mesmos ser recebidos.


Conforme escrevem ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e FILIPE LUÍS DE SOUSA, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição, Almedina, p. 49, “sendo demandada a sucursal, nada impede a substituição processual da sucursal ou agência demandada pela sociedade ou pessoa colectiva, a quem respeita a relação jurídica (RL 28-3-19, 6564/17).”.


E no acórdão da Relação de Lisboa de 28-03-2019, proc. n.º 6564/17.2T8LRS.L1, considerou-se que:


Tendo a CGD intervindo na acção, tem de se considerar a Agência de ... da CGD substituída na acção pela pessoa colectiva Caixa Geral de Depósitos, S.A., que passa a ocupar a sua posição na lide.


Comentando o art.º 7.º, na redacção do Dec.-Lei n.º 180/96, de 25-9, que corresponde, sem alterações, à redacção do art.º 14.º do CPC vigente, escreveu ANTUNES VARELA [Manual de Processo Civil, pág. 116]:


“Se a acção nascer de facto praticado pela sucursal nada impede, entretanto, que a sociedade ou pessoa colectiva tome a iniciativa de ser ela, através da sua administração principal, a propor a acção, visto ser a sociedade ou pessoa colectiva o verdadeiro sujeito da relação jurídica. Porém, se a acção for proposta contra a sucursal, por nascer de facto por ela praticado, a sociedade ou pessoa colectiva não poderá arguir, na defesa, a falta de personalidade judiciária da demandada, conquanto também nada impeça que esta se substitua daí em diante. Ter a sucursal ou a agência personalidade judiciária, significa apenas, por conseguinte, ter ela poder de representar em juízo a sociedade ou pessoa colectiva, por força da lei, enquanto a sociedade ou pessoa colectiva se lhe não substituir na acção.


No mesmo sentido, e como já vimos, o acórdão do STJ de 29/05/2012.


Assim sendo, não ocorrem as alegadas, pelo Recorrente, violações do regime de Direito Internacional Público instituído e da soberania dos Estados Unidos da América.


Ficando prejudicada a abordagem das questões objecto do recurso supra-enunciadas em b) e c).


x


Decisão:


Nos termos expostos, concede-se, embora por diferentes fundamentos, a revista, revogando-se o acórdão recorrido, considerando-se o Embargante Estados Unidos da América como parte legítima e ordenando-se, com o recebimento dos embargos, o prosseguimento dos autos.


Custas do recurso pelo Recorrido.


Lisboa, 06/03/2024


Ramalho Pinto (Relator)


Domingos José de Morais


Mário Belo Morgado





Sumário (da responsabilidade do Relator).


__________________________________________________

1. A acção principal, o incidente de liquidação e a execução foram intentadas contra a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal.

Os Embargos foram deduzidos pelos Estados Unidos da América. No intróito da petição de embargos, o Embargante identifica-se como “Estados Unidos da América, em nome da sua Embaixada em Portugal”.↩︎