Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A3357
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: SJ200501110033576
Data do Acordão: 01/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 793/01
Data: 02/05/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1 - Se o STJ, dando procedência à revista, anular o saneador sentença e ordenar à Relação que conheça de novo a apelação, no acórdão a proferir a 2ª instância fica vinculada às orientações traçadas relativamente a factos, embora não
incluídos no acórdão revogado, o STJ reputou fundamentais
para a decisão jurídica do pleito.
2 - Incluem-se em tais factos aqueles que o Supremo entendeu estarem já provados e ainda os que, na sua óptica, carecem de averiguação pelas instâncias, segundo o disposto no artº 729º, nº 3, do CPC.
3 - Revogado o acórdão da Relação nas circunstâncias e com as consequências referidas em 1), a 2ª instância fica impedida de julgar a apelação com recurso à norma do artº 713º, nº 5, do CPC (acórdão por remissão).
4 - É nulo por omissão de pronúncia e por falta de
especificação dos fundamentos de facto e de direito que
justificam a decisão o acórdão da Relação proferido ao arrepio
das indicações fornecidas pelo Supremo Tribunal referidas em
1), 2) e 3).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. "A", representado pela sua sociedade gestora B - Sociedade Portuguesa de Capital de Risco, S. A., propôs na 2ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Guimarães uma acção ordinária, pedindo que se declarassem nulas, anuladas ou inexistentes todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral de 29/9/99 da ré "C", LDA, relativas à propositura de execuções de sentença pela ré.

Alegou, no essencial, que na assembleia geral foi admitida a intervenção de um não sócio, D, cessionário de quotas sociais em cessões não autorizadas pela sociedade ré.

A ré contestou, afirmando que a sociedade deu o seu consentimento às cessões questionadas nas assembleias gerais realizadas em 11.9.98 e 3.2.99 e que, independentemente disso, a procedência do pedido traduziria um abuso de direito por parte do autor, já que fez parte dum plano de reestruturação da empresa e quer agora miná-lo, prejudicando a sociedade com esta e com as restantes acções que contra ela tem intentado.

Após a réplica foi proferido despacho saneador-sentença que julgou a acção procedente, declarando nulas as deliberações impugnadas.

A Relação do Porto - acórdão de 22.11.01, a fls 617 e sgs - julgou improcedente a apelação da ré.
Mantendo-se inconformada, a ré pediu revista, formulando, entre outras, as seguintes conclusões, únicas que agora interessa pôr em relevo:

1ª - O acórdão recorrido violou o disposto na 1ª parte do n.º 2 do art.º 660.º e alínea d) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, ao não julgar nula a decisão proferida em 1ª instância que julgou inválidas as deliberações impugnadas por violação do disposto no art.º 230.º do CSC sem ter apreciado se o consentimento às cessões de quotas efectuadas foi validamente prestado na assembleia geral da ré realizada em 3/2/99, questão que foi suscitada nos art.ºs 83.º a 99.° da contestação, onde se verteu matéria que, por não ter sido impugnada e estar provada pela cópia da respectiva acta, nos termos do disposto no art.º 63.º n.º 1 do CSC (cfr. doc. n.º 12 junto com aquela peça), que igualmente não foi impugnada, deveria ter sido dada como provada;

2ª - O acórdão recorrido violou, ainda, o disposto na 1ª parte do nº 2 do art.º 660.º e alínea d) do n.º 1 do art.º 668º do CPC, ao não julgar procedente a nulidade da decisão proferida na 1ª instância que não conheceu os factos articulados pela ré nos art.ºs 227º a 240º e 124º a 197º da contestação, por o autor abusar manifestamente do direito que invoca, nos termos do artº 334º do CC.

Por acórdão de 21.5.02 (fls 714 e sgs) este Supremo Tribunal julgou procedentes as duas apontadas violações da lei adjectiva, decidindo, em conformidade, revogar o acórdão recorrido e anular o saneador-sentença proferido na 1ª instância, mandando que na Relação se tomasse de novo conhecimento da apelação.

Baixado o processo à Relação, o juiz relator proferiu em 28.1.03 o despacho de fls. 757, determinando a suspensão da instância até à prolacção da decisão definitiva na acção ordinária n.º 125/99, pendente na 2ª Vara Cível de Guimarães, na qual se discutia a validade do consentimento prestado às cessões de quotas.

Junto o acórdão proferido pelo STJ naquela acção (1) a Relação do Porto, por acórdão de 5.2.04 - fls. 788 a 807 - julgou a apelação improcedente e confirmou o saneador-sentença (como já sucedera no acórdão, anulado, de 22.11.01).

A Ré arguiu nulidades relativamente ao acórdão de 5.2.04.
A conferência de juízes, no entanto, rejeitou a arguição por decisão de 17.6.04 (fls 860) e ordenou a subida dos autos a este Supremo Tribunal para apreciação da revista entretanto apresentada pela ré, cujas conclusões são as seguintes:

1ª - O acórdão é nulo, nos termos do disposto na aliena c) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil por na sua fundamentação considerar como assente o vertido no ponto 23 da matéria provada e que "está assegurada a legitimidade da intervenção do Dr. D na assembleia geral de 29/9/1999" e simultaneamente julgar inválidas as deliberações impugnadas. por violação do disposto no art.º 230º do Código das Sociedades Comerciais, por nelas ter intervindo o Dr. D;

2ª - O acórdão recorrido violou, ainda, o disposto na primeira parte do n.º 2 do art.º 660º e alínea d) do n.º 1 do art.º 668º do Código de Processo Civil, ao não julgar procedente a nulidade da decisão proferida em primeira instância que não conheceu os factos articulados pela Ré nos artigos 227º a 240º e 124º a 197º, da contestação, que a provarem-se conduziriam à improcedência da presente acção, por o autor abusar manifestamente do direito que invoca, nos termos do art.º 334º do Código Civil.

3ª - As deliberações impugnadas nunca poderiam ser julgadas nulas nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 56º do Código das Sociedades Comerciais, já que esse preceito apenas pune as deliberações cujos efeitos contrariem preceitos imperativos, e o fim visado por aquelas, sendo como é, apenas a interposição de acções executivas contra alguns dos seus sócios, não só não é proibido como é necessário à tutela dos interesses da sociedade recorrente.

4ª - A sociedade prestou validamente o seu consentimento às questionadas cessões de quotas na assembleia geral realizada a 11/9/98, posto que as deliberações ali tomadas nesse sentido colheram os votos correspondentes a mil e cinquenta milhões de escudos e foram expressos por quem delas era titular, quer a sociedade considerasse como tal, os cedentes, quer a mesma reputasse como dono das quotas o cessionário Dr. D, totalizando os votos contrários tão somente setecentos e vinte e dois milhões de votos pelo que aquelas cessões são plenamente eficazes, conferindo o estatuto de sócio do Dr. D.

5ª - A assim não se entender, sempre ter-se-á de julgar validamente prestado o consentimento da sociedade, deliberado na assembleia geral de 3/2/99, onde a deliberação de prestação de consentimento às cessões efectuados pelo E ao Dr. D, foram aprovadas com 1.051.000 votos favoráveis e majoritários da sócia F, que votou por si e em representação de G, H e E e com 722.000 votos contrários dos Fundos sócios e esse consentimento é quanto bastaria para tornar plenamente eficazes todas as subsequentes cessões, que estariam, então dispensadas de qualquer consentimento, por terem sido efectuadas a quem já havia adquirido a qualidade de sócio, conforme aliás dispõe a parte final do n.º 2 do art.º 228º do Código das Sociedades Comerciais.

6ª - O cessionário das quotas, assinou a convocatória para a assembleia geral, na sua qualidade de gerente da sociedade, da qual constava todo os elementos relevantes das cessões efectuadas, pelo que efectuou validamente o pedido de consentimento e a comunicação à sociedade, nos termos e para os efeitos no disposto no n.º 1 do art.º 230.º e n.º 2 do art.º 228.º, do CSC.

7ª - Os acordos parassociais não podem condicionar o consentimento das cessões de quotas, nos termos do disposto na 1.ª parte do n.º 5 do artigo 229.º do CSC, a contrario sensu, nem com base neles se pode impugnar qualquer acto da sociedade, nos termos do n.º 1 do artigo 17.º daquele diploma legal, pelo que o acórdão recorrido, ao assim não entender, violou o disposto nas referidas normas.

A recorrida contra alegou, defendendo a manutenção integral do julgado.

2. As duas primeiras conclusões do presente recurso coincidem, no essencial, com as correspondentes conclusões da revista primeiramente interposta e acolhidas no acórdão deste Tribunal de 21.5.02.
Assim, importa verificar se a Relação deu ou não cabal cumprimento ao que o Supremo Tribunal ali ordenou, conhecendo a apelação de harmonia com as orientações que aqui se traçaram a respeito da pronúncia omitida.

No que agora releva, o Supremo fundamentou assim a sua decisão (os sublinhados são da nossa responsabilidade):
...nos arts. 83° a 99° da contestação a ré alegara, em resumo, que em assembleia geral de 3/2/99 haviam sido aprovadas, com os votos favoráveis dos sócios F, E, G e H e os votos contrários dos FRIE, deliberações prestando o consentimento da ré às cessões feitas pelo E, o que, designadamente na medida em que ficava consentida a primeira de todas as cessões, dispensava em relação às restantes a prestação de idêntico consentimento, uma vez que ficavam sendo cessões feitas a quem já era sócio.

Visando esta acção a declaração de inexistência ou de nulidade das deliberações tomadas em 29/9/99 ou a sua anulação, e assentando a respectiva invalidade na circunstância de na assembleia geral onde foram tomadas ter havido intervenção de quem não era sócio porquanto era cessionário de quotas em cessões não consentidas, esta argumentação da ré configura-se como um facto impeditivo daquela invalidade.

E isto porque as duas cessões feitas pelo E tendo sido feitas sem consentimento, o teriam sido "a posteriori".
...
Ora, e apesar de ter dedicado atenção a esta última e ter tido como irrelevante o que lá se passou - cfr. facto n°9 supra - nada se disse, porém, na sentença quanto ao que se passou em 3/2/99.
Sobre esta omissão disse o acórdão recorrido que a mesma tinha toda a razão de ser"
Mas mal, a nosso ver.

Assinale-se, desde logo, que a matéria de facto está insuficientemente averiguada a este propósito. Na verdade, enquanto que o saneador-sentença, com o acordo do acórdão recorrido, consagrou ter o D participado e votado na assembleia geral de 3/2/99, tal não foi alegado na petição inicial - cfr. os seus arts. 108° a 142°, onde se alude à intervenção da sócia F e seus representados -, nem na contestação - onde, neste aspecto, se alegou o mesmo que na petição -, nem na acta respectiva, junta por cópia, a fls. 209 e segs. - em especial, a fls. 220 e 222 e verso -, o que justificaria o uso, neste momento, dos poderes conferidos pelo artº 729°, n° 3.

Por outro lado, embora o objecto desta acção seja o que foi deliberado em 29/9/99, a verdade é que a validade do que consta das deliberações aí aprovadas passa, determinantemente, pela legitimidade da intervenção do D, cuja qualidade de sócio é discutida.

E esta qualidade, de acordo com o que a ré alegou, terá ficado regularizada com as autorizações deliberadas em 3/2/99 - o que não pode, por isso, deixar de ser apreciado no âmbito do litígio aqui estabelecido.
Tal como, aliás, não poderá também deixar de ser apreciada a questão de abuso do direito que a estas autorizações é imputado nos arts. 126° e segs. da petição.
...
Não se tendo assim procedido, compete a este STJ, na procedência do recurso, anular o saneador-sentença e mandar que a Relação volte a conhecer da apelação, não podendo agora isso ser feito com uso, como sucedeu no acórdão recorrido, do art. 713º, n° 5 por desaparecer a decisão para a qual se remeteu.
...
Embora os arts. 143° a 145° da contestação, invocados no acórdão recorrido, pareçam apontar no sentido de que os FRIE não deram nunca o seu acordo a que viessem a ser realizadas as cessões de quotas, acima referidas, o contrário parece ser o que consta dos arts. 141° e 233° do mesmo articulado, designadamente quando no primeiro deles se fala no conhecimento, por parte da administração da B e da PME INVESTIMENTOS, do projecto de cessão de quotas ao D e quando no segundo se refere o acordo de todos
os sócios quanto a tal.

Assim, e sem que aqui se esteja a deixar afirmada a suficiência dos factos alegados a este propósito pela ré, deve dizer-se que a questão do abuso do direito por parte do autor foi também indevidamente omitida no saneador-sentença, gerando nulidade do mesmo por razões legais idênticas às acima mencionadas.
Esta questão fica, também, abrangida pelo dever que sobre a Relação impende por força do artº 715°, n°1".
Perante isto, como procedeu a Relação?
Procedeu do seguinte modo:

1º - No ponto nº 22 da matéria de facto - no qual se reproduzia parte do teor da acta da assembleia geral da ré de 29.9.99 - suprimiu este segmento: "Encontrava-se ainda presente o sócio Dr. D (...) mas que intervém nesta assembleia não só na qualidade de sócio como também na de gerente desta sociedade".

2º - Aditou à matéria de facto o ponto nº 23, do seguinte teor (fls 805):
"Em assembleia geral de 3.2.99 haviam sido aprovadas, com os votos favoráveis dos sócios F, E, G e H e os votos contrários dos Frie, as deliberações prestando o consentimento da ré às cessões feitas pelo E, o que, designadamente na medida em que ficava consentida a primeira de todas as cessões, dispensava em relação às restantes a prestação de idêntico consentimento, uma vez que ficavam sendo cessões a quem já era sócio";

3º - Depois, entrando no que designou o "mérito do recurso", e relativamente à conclusão 3ª da apelação, considerou que " tendo sido declarada já finda a referida suspensão da instância, por se encontrar junta a fls 764 e sgs. certidão da referida decisão definitiva, diremos:

a) - por Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13 de Nov. de 2002, a fls. 734 e sgs., em apreciação do recurso de apelação interposto pelo Fundo de Reestruturação e Internacionalização Empresarial B-Sociedade Portuguesa de Capital de Risco S.A., foi proferida a seguinte decisão: "revoga-se a sentença recorrida, (junta a fls. 633 e sgs., da 2ª Vara Mista de Guimarães, que havia decidido anular as deliberações sociais tomadas em assembleia geral da ré, no dia 3 de Fevereiro de 1999, descritas sob as alíneas b) e c) ... do pedido, cfr. fls.702), na parte em que decidiu anular as deliberações sociais tomadas em assembleia geral da ré, no dia 3 de Fevereiro de 1999, descritas sob as alíneas B) e C) do pedido formulado" (fls. 756);

b) por Ac. do STJ, de 27.5.2003, junto a fls. 764 e sgs., em recurso de revista da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães referido na precedente alínea a), foi proferida decisão definitiva a negar a revista (cfr. fls. 785 v.º), portanto a confirmar aquela decisão recorrida do Tribunal da Relação de Guimarães.

4º - Abordando seguidamente o problema do abuso do direito, escreveu-se no acórdão recorrido: "entendemos que, efectivamente, não ocorre, ora, o pela apelante invocado abuso de direito, eliminada, como foi, por um lado, a parte da matéria fáctica descrita sob o nº 22º, consoante mencionado Ac. do STJ, a fls.719, e, por outro, adicionada, como também foi, a factualidade descrita supra sob o n.º 23º, consoante pretensão da ré e expendido no mencionado Ac. do STJ, de 21 de Maio de 2002, a fls. 714-721, o qual não só anulou o saneador-sentença proferido em 1.ª instância, como mandou que esta Relação, de novo, tomasse conhecimento da apelação. É que, estando agora, perante a mencionada decisão definitiva proferida pelo STJ, assegurada a legitimidade da intervenção do Dr. D na assembleia geral de 29/9/1999, improcede, o pela R. invocado abuso de direito".

5º - E finalizou do seguinte modo:

"Face a tudo o que se acabou de expor e atento por um lado o expendido e determinado pelo referido Ac. do STJ, a fls. 714 e sgs., e, por outro, o decidido não só pelo Tribunal da Relação de Guimarães, como também pelo Ac. do STJ, que o confirmou, e consta de fls. 763 e sgs., entendemos que, analisado o julgado em 1.ª instância, tendo em consideração toda a factualidade descrita supra sob os n.ºs 1.º a 23.º, não há qualquer censura a fazer ao ali decidido. Por isso, face ao que se acaba de expor, por concordarmos com o julgado em 1.ª instância, quer quanto à decisão, quer quanto aos seus fundamentos, julga-se a apelação improcedente, remetendo-se para os seus fundamentos, nos termos do n.º 5 do art.º 713.º, quanto às demais questões suscitadas pela recorrente, inclusive no que concerne aos acordos parassociais.
Na improcedência de todas as conclusões da apelante, julga-se a sua apelação improcedente e confirma-se o saneador-sentença recorrido".

Afigura-se que assim postos, um a seguir ao outro, os dois arestos em presença - o deste Supremo, datado de 21.5.02, e o da Relação, datado de 5.2.04, ora sob recurso - salta à vista que a 2ª instância não observou (ou observou erradamente) o que lhe foi determinado.
Vejamos porquê, cinjindo-nos ao fundamental.

a) Na primeira conclusão da revista arguiu-se a nulidade do acórdão da 2ª instância, decorrente da contradição entre a sua fundamentação e a decisão, já que naquela se considera como assente o vertido no ponto 23 da matéria provada e que "está assegurada a legitimidade da intervenção do Dr. D na assembleia geral de 29/9/1999" e, nesta, se decide julgar inválidas as deliberações impugnadas, por nelas ter intervindo o Dr. D, conforme a primeira instância já decidira, ao reputar não consentida a cessão de quotas efectuada.

Tem razão a recorrente.

Liminarmente, deve dizer-se que o acórdão recorrido não observou o ordenado por este Supremo Tribunal quanto à matéria de facto, subsistindo, logo aí, motivo para anulação. Com efeito, o artigo aditado à matéria de facto assente sob o n.º 23 reproduz literalmente, como pode ver-se, um parágrafo do acórdão deste Tribunal de 21.5.02 (cfr. a fls. 7 do presente aresto o texto sublinhado na linha 4), ignorando por completo os pontos de facto a que ali se mandou atender, e que são os alegados nos artigos 83º a 99º da contestação. O "facto" em questão, aliás, contém matéria puramente conclusiva, de direito, a partir de "o que, designadamente", e, como tal, teria sempre que considerar-se nessa parte como "não escrito", por força do artigo 646º, n.º 4, do CPC.

Independentemente disto, é certo que a inobservância do que este Tribunal determinou no acórdão de 21.5.02 releva decisivamente na apreciação da causa, uma vez que é nos referidos artigos da contestação que se invoca a matéria de facto relativa à assembleia geral de 3/2/99, aquela em que se deliberou prestar o consentimento da sociedade à cessão da quota realizada por escritura pública de 3/9/97.

Ora, suprimida a conclusão indevidamente inserida pela Relação no ponto de facto nº 23, este deixa de reflectir, contrariamente ao determinado, os pontos de facto alegados nos indicados artigos da contestação (neles se põe em relevo a importância e a prejudicialidade do julgamento da acção relativa à assembleia geral de 3.2.99, na medida em que, reportando-se à cessão de quotas de 3.9.97 a favor do Dr. D, o consentimento da ré prestado para esta determinaria a sua desnecessidade em relação às seguintes, por terem sido feitas a quem já era sócio).

A alteração que o acórdão recorrido introduziu no ponto 22 da matéria de facto também não obedece à indicação traçada por este Tribunal quando oportunamente aludiu à insuficiente averiguação da matéria de facto respeitante à participação e votação do cessionário D na assembleia geral de 3/2/99. Efectivamente, como vimos atrás, suprimiu-se a menção relativa à presença do Dr. D na assembleia geral de 29/9/99, e da qualidade em que tal presença ocorreu. Não há dúvida, porém, que a supressão foi errónea, pois a menção retirada é a efectiva (e correcta) transcrição do que consta do documento junto por cópia a fls. 73 e não impugnado (acta nº 77 - assembleia de 29.9.99).

Errónea foi ainda, por fim, a manutenção do facto 15-e), esse, sim, objecto de expressa referência no acórdão deste STJ de 21.5.02. Na verdade, a Relação deu ali como assente que o Dr. D foi admitido a participar e votar, com a inerente qualidade de sócio, na assembleia geral de 3/2/99. Esse facto, todavia, não foi alegado nos articulados e não consta da acta respectiva (cfr. o documento junto por cópia a fls. 209 e seguintes, em especial fls 211, onde somente se refere:
"consigna-se que ainda estava presente o gerente desta sociedade, Dr. D"; nenhuma alusão é feita à referida qualidade de sócio, atribuída, nesta acta, apenas aos cedentes das quotas).

Evidenciada, assim, a desconformidade do acórdão recorrido com o que este Supremo Tribunal ordenou no acórdão de 21.5.02, impõe-se que os autos baixem de novo à Relação para cumprimento do ali determinado, mediante a fixação da matéria de facto e o subsequente conhecimento do mérito da apelação; e isto porque está vedado ao Supremo Tribunal substituir-se à segunda instância nessa tarefa, visto que tal implicaria preterição ilegal de um grau de jurisdição, contra o que dispõe o artº 726º, 2ª parte, do CPC.

Ainda, porém, que a matéria de facto tivesse sido correctamente fixada, seria inevitável a anulação do acórdão recorrido pelo fundamento invocado pela recorrente, ou seja, por contradição entre os fundamentos e a decisão. Na verdade, apesar de na 2ª instância o relator ter considerado a decisão a proferir no processo nº 125/99 da 2ª Vara Cível de Guimarães prejudicial relativamente à desta causa (cfr. despacho de 28.1.03, a fl. 757, referido em I) e de o correspondente facto ter sido adicionado, como se viu, à matéria assente, o acórdão recorrido não extraiu a partir dele nenhuma consequência jurídica, desconsiderando totalmente a sua eventual repercussão no presente processo. Mas impunha-se que o tivesse feito. Na verdade, segundo a autora, as deliberações tomadas na assembleia geral de 29.9.99 são inválidas por nelas ter intervindo o Dr. D, que não tinha a qualidade de sócio porque adquiriu quotas da sociedade sem que esta tivesse prestado o seu consentimento.

Ora, na acção declarada prejudicial relativamente a esta atrás referida pedira-se a anulação da deliberação social por força da qual a sociedade ré na assembleia de 3.2.99 prestara o consentimento à cessão. Por acórdão de 27.5.03 (cfr. nota 1) o STJ julgou essa acção improcedente. Deste acórdão retira-se a ilação de que aquela deliberação é válida (referimo-nos à deliberação por via da qual a ré prestou consentimento à cessão das quotas no valor nominal de 87.100.000$00 e 111.800.000$00 feitas em 3.9.97 e 29.11.97 pelo sócio E ao Dr. D).

Portanto, considerando o fundamento sobre o qual repousa o pedido formulado na presente acção, torna-se inescapável a análise da repercussão daquele acórdão do Supremo no julgamento destes autos.

E tal apreciação não poderá efectuar-se, logicamente, nos termos em que, ao fim e ao cabo, - o não foi pela Relação (perdoe-se-nos a redundância): em primeiro lugar porque se confirmou a decisão de 1ª instância por simples remissão para os seus fundamentos, quando é certo que no acórdão atrás transcrito se assume explicitamente que " compete a este STJ, na procedência do recurso, anular o saneador-sentença e mandar que a Relação volte a conhecer da apelação, não podendo agora isso ser feito com uso, como sucedeu no acórdão recorrido, do art. 713.º, n.º5, por desaparecer a decisão para a qual se remeteu"; depois porque, com flagrante contradição entre os fundamentos e a decisão, se refere, por um lado, que " estando agora, perante a mencionada decisão definitiva proferida pelo STJ, assegurada a legitimidade da intervenção do Dr. D na assembleia geral de 29/9/99, improcede, o pela R. invocado abuso de direito" e, por outro, se considera que, analisado o decidido pelo acórdão do STJ de 27.5.03, e tendo em conta os factos descritos sob os nºs 1 a 23, não há qualquer censura a fazer à decisão da primeira instância, que por isso se confirma.

Acontece que tal decisão, anterior à do STJ no processo nº 125/99 da 2ª Vara Cível de Guimarães, julgou a acção procedente e declarou a nulidade das deliberações sociais relativas aos pontos 6, 7, 8 e 9 da ordem de trabalhos da assembleia geral da ré ocorrida no dia 29.09.99, por violação dos bons costumes e normas imperativas, com fundamento na circunstância de não poder considerar-se sócio aquele que (2) se reclama dessa qualidade com base num acto que não é plenamente válido, no mínimo por ser anulável, já que a cessão não é eficaz perante a sociedade ré (cfr. sentença da 1ª instância - fls 548/549).

É patente, por conseguinte, não apenas a contradição, mas de igual modo, e em simultâneo, a omissão de pronúncia em que o acórdão recorrido. Refere-se ao cessionário das quotas, Dr. D. incorreu ao não analisar as consequências, nestes autos, da decisão proferida no processo nº 125/99 da 2ª Vara Cível de Guimarães designadamente: a) efeito do caso julgado formado no que toca à prestação do consentimento societário à cessão de quotas; b) momento a que se reportam os efeitos desse consentimento (3); c) necessidade ou desnecessidade de decisão sobre o abuso de direito invocado pela autora e pela ré nos presentes autos.

b) Na segunda conclusão da revista a recorrente insiste em que o acórdão recorrido violou ainda o disposto nos artigos 660º, nº 2, 1ª parte, e 668º, nº 1, d), ao não julgar procedente a nulidade da decisão proferida em 1ª instância que não conheceu os factos articulados pela ré nos artigos 227º a 240º e 124º a 197º da contestação, factos estes que, a provarem-se, conduziriam na sua tese à improcedência da presente acção, por o autor abusar manifestamente do direito que invoca, nos termos do artigo 334.º
do Código Civil.

Também aqui a razão está do seu lado.
Trata-se de nulidade já anteriormente invocada e a que este Supremo Tribunal deu acolhimento, como está claro nos passos transcritos do acórdão de 21.5.02. O vício, contudo, subsiste, já que, ao invés do afirmado no acórdão recorrido, não é por estar "assegurada a legitimidade da intervenção do Dr. D na assembleia geral de 29/9/99", que "improcede o pela ré invocado abuso de direito". Com efeito, a ré nunca pôs em dúvida essa legitimidade; pelo contrário, sempre a defendeu, sempre a deu como certa.

O que importava decidir, como o acórdão deste STJ já salientara, era se a autora tinha conhecimento do projecto de cessão de quotas ao Dr. D e se existiu acordo de todos os sócios, incluindo ela, autora, relativamente a isso, situação que, na perspectiva da ré, configuraria um abuso de direito por parte da recorrida ao pretender, agora, invalidar as deliberações. Acontece que o acórdão recorrido, apesar de aparentemente decidir a questão do alegado abuso de direito, fá-lo uma vez mais sem atender, como lhe competia, aos factos pertinentes alegados pela ré acerca do problema, incorrendo, deste modo, na invocada omissão de pronúncia. Cumpria-lhe, nomeadamente, tomar posição acerca da suficiência ou insuficiência dos factos articulados sobre o tema e, dependendo desta decisão, acerca da necessidade ou desnecessidade de produção de prova relativamente a eles.

Face à procedência das duas primeiras conclusões da revista fica prejudicado, logicamente, o conhecimento das restantes.

3. Pelo exposto concede-se a revista, anula-se o acórdão recorrido e ordena-se a baixa do processo à Relação - artº 731º, nºs 2 e 3, do CPC - a fim de aí ser feita a reforma da decisão anulada, se possível pelos mesmos juízes e tendo em atenção as orientações que antecedem.
Custas pela recorrida.


Lisboa, 11 de Janeiro de 2005
Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira
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(1) Acórdão de 27.5.03 - revista nº 1263/03 - 1ª secção.
(2) Refere-se ao cessionário das quotas, Dr. D.
(3) Cfr. o Ac. deste STJ de 8.7.03, disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo Cons. Ferreira de Almeida, proferido a propósito da deliberação da assembleia geral de 6/7/98, entre as mesmas partes destes autos.