Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
284/14.7TBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
OBRAS
Data do Acordão: 10/31/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DA PROPRIEDADE / DEFESA DA PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL / PRESUNÇÕES DERIVADAS DO REGISTO.
Doutrina:
Código Civil (CC): - artigos 1311.º, n.º 2 e 1344.º, n.º 1.
Código de Processo Civil (CPC): - artigos 608.º, n.º 2, 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), 635.º, n.º 4, 636.º, n.º 2, 639.º, n.º 1 e 663.º, n.º 7.
Código de Registo Predial: - artigo 7.º.
Sumário :
Numa ação de reivindicação em que se alegue a presunção derivada da existência de um registo a favor dos autores incidente sobre um prédio constituindo por um lote de terreno para a construção, a existência de uma moradia implantada no referido lote, não constante do registo referido, pode ser abrangida no reconhecimento da propriedade reivindicada, nos termos do art. 1344º, nº 1 do Cód. Civil, se nada se provar no sentido da desintegração da construção realizada em relação ao imóvel onde foi implantada.
Decisão Texto Integral:

Revista nº 284/14.7TBVIS.C1.S1.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e mulher, BB intentaram, em 29/01/2014, no Tribunal Judicial da Comarca de …, contra CC, ação que intitularam como de reivindicação, rematando assim a petição inicial:

«…Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada e, em consequência:

a) Ser reconhecido o direito de propriedade dos AA., sobre o imóvel em crise;

b) Ser ordenada a desocupação e restituição do imóvel;

c) Ser a Ré, condenada a pagar aos Autores, em caso de mora, uma indemnização à razão de €800,00 por mês, enquanto durar a mora e;

d) Ser a Ré condenada em custas e procuradoria condigna.».

Alegaram, em síntese, que:

- Adquiriram, por compra, à empresa “DD, Limitada”, entre outros, o prédio urbano denominado ..., Lote 00, ..., ..., composto por lote de terreno para construção urbana, com origem no artigo 0077 da matriz, aquisição essa que registaram;

- Em 11 de Agosto de 2011, os AA. celebraram com a empresa “EE, Lda.” um contrato-promessa de compra e venda, relativo ao referido imóvel, tendo sido estipulado que a outorga do contrato definitivo ocorreria durante o mês de Abril de 2012;

- Tal imóvel foi entregue, “em tosco”, à promitente compradora, uma vez que ficaria a seu cargo a realização de obras e respetiva conclusão do mesmo;

 - Em meados do ano de 2012, meses antes de ser emitido alvará de utilização em nome do autor marido, os autores, a pedido da sociedade promitente compradora, consentiram, por mero favor, que o imóvel fosse ocupado pela ora ré, uma vez que esta necessitava temporariamente de habitação e já que essa sociedade, alegou que, futuramente, iria vender o referido imóvel à ora ré.

- Tendo a ré, em função do circunstancialismo que ficou exposto, passado a ocupar o imóvel, sucedeu, porém, que, por incumprimento ilícito da sociedade promitente-compradora, os autores resolveram o contrato-promessa, mediante notificação avulsa de 04/10/2013, levada a efeito na pessoa do representante legal dessa sociedade, FF;

- A ré, contudo, não obstante, as diversas interpelações levadas a cabo pelos autores para o efeito, não entregou nem desocupou voluntariamente o imóvel.

Contestando, a ré defendeu-se por impugnação e por exceção, tendo invocado, designadamente:

- Que, em Novembro de 2011, entre ela e a sociedade “EE, Lda.” (EE) foi celebrado um contrato denominado de promessa de compra e venda, a que atribuíram “força de execução específica”, contrato esse mediante o qual esta sociedade, que se arrogava dona do imóvel, lhe prometeu vender, pelo preço de 180.000,00€, um prédio urbano em construção, destinado a moradia em Banda composta de Cave, rés-do-chão, primeiro andar e sótão para habitação com logradouro, que se irá identificar como Lote 00, no lugar da ..., ..., freguesia de ..., concelho de ..., moradia esta a ser construída no artigo urbano, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 0022, da freguesia de ...;

 - A moradia estava “em tosco”, mas acabou de ser finalizada pela EE, a quem a ré, mediante a entrega de várias quantias, pagou o preço global acordado, e assim que tal casa ficou pronta para isso, foi habitá-la, o que sucedeu, pelo menos, desde o dia 7 de Junho de 2012, tendo, por isso, lhe sido transmitida a posse da moradia pelo Sr. FF, como legal representante da EE;

- Desde essa ocasião, em que passou a habitá-la, que faz da moradia o uso normal e corrente, todos os dias nela comendo, dormindo, recebendo amigos e familiares, como se de verdadeira e legitima proprietária se tratasse;

 - Embora que, a dada altura, haja tomado conhecimento de que o lote de terreno se encontrava registado em nome dos autores, tendo confrontado o Sr. FF com tal informação, este tranquilizou-a, confirmando que tinha documentação na sua posse que garantia que a casa seria transferida para nome da ré;

- Desconhecia e desconhece, o contrato celebrado entre a EE e os autores,  não sabendo, igualmente, se os autores foram os verdadeiros donos do terreno onde foi implantado a moradia, e ou se foram os autores quem construiu o tosco da moradia;

- O registo da aquisição da propriedade a favor dos autores respeita a um lote de terreno para construção urbana, mas a presunção resultante daquele não abrange a moradia, atentos os factos relatados e que são do conhecimento dos autores;

- O valor aportado ao lote de terreno, e que os autores alegam ter vendido à EE, é muito superior ao do próprio lote de terreno, sendo que o aportado ao lote representa uma diferença de 20.000,00 € para quase 150.000,00 €;

- Aos autores “...resta um direito de crédito sobre a EE mas já não o direito de propriedade sobre a moradia, essa comprada pela ré, restando a formalização por escritura da transmissão da propriedade.”;

- “Os autores não podem, sob pena de importante enriquecimento à custa da ré reivindicar a propriedade de um imóvel que não é seu, que não pagaram ou não construíram pelo menos em parte substancial.” (artº 75º, da contestação).

Concluiu pugnando pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Tendo a ré sido convidada a aperfeiçoar a contestação, designadamente, do que concerne ao alegado quanto à acessão industrial imobiliária, o articulado que veio a oferecer na sequência desse convite foi, por despacho de 08/10/2014, transitado em julgado, considerado extemporâneo e, como tal, determinado o respetivo desentranhamento.

Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, veio a ter lugar a audiência final, após o que, em 07 de Abril de 2016, foi, pela Instância Central - Secção Cível - J2, da Comarca de ..., proferida sentença, que, na parcial procedência da ação:

- Reconheceu o direito de propriedade dos Autores sobre “o prédio identificado em 1 e 2 da factualidade”;

 - Condenou a Ré a desocupar e restituir o imóvel aos Autores;

- Julgou improcedente o pedido de condenação da Ré a pagar aos Autores, em caso de mora e enquanto ela durasse, uma indemnização à razão de €800,00 por mês, absolvendo a Ré de tal pedido.

*

Inconformada com tal sentença, na parte que lhe foi desfavorável, a ré interpôs recurso dessa decisão, tendo a Relação de … julgado procedente a apelação e consequentemente absolveu a ré dos pedidos que ainda estavam pendentes de decisão.

Desta vez foram os autores que inconformados, vieram interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas.

Daquelas se deduz que os recorrentes, para conhecer neste recurso, levantam as seguintes questões:

a) O acórdão é nulo por haver tomado conhecimento de questão  que não integra a matéria decisória, por o reconhecimento da propriedade da moradia em causa não integrar o pedido, a causa de pedir e nem as exceções da causa em litigio?

b) E é ainda nulo por  haver contradição entre os fundamentos e o decidido ?

c) Se assim se não entender, dos factos provados resulta que os autores são os legítimos proprietários do imóvel constituído pelo lote de terreno e da moradia nele implantada ?

A recorrida contra-alegou defendendo apenas a manutenção do decidido.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts.  635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Já acima vimos as concretas questões oferecidas pelos recorrentes como objeto deste recurso.

Mas antes de mais há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por apurada e que é a seguinte:

1. Encontra-se inscrito a favor dos Autores, na matriz predial urbana de ... sob o artigo 4025º- anterior artigo 3077º -o prédio urbano, composto por casa de habitação com três pisos, com a superfície coberta de 139 m2 e superfície descoberta de 92 m2, perfazendo o total de 231 m2 de área total, sito em Lugar da ..., Lote 00, freguesia de ..., concelho de ....

2. Por sua vez está descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0022, o prédio urbano denominado ..., Lote 00, ..., ..., composto por lote de terreno para construção urbana, com origem no artigo 0077 da matriz, e a seguinte descrição: lote de terreno para construção, urbana, a confrontar do Norte com Lote 03, Sul Lote 05, Nascente Arruamento e Poente GG e outros, desanexado do nº 0085 e registado pela AP nº 30 de 0000/00/21 por via de compra três prédios em nome do Autor AA, casado com BB.

3. Os referidos prédios - Lotes 02, 03 e 0 4 - foram adquiridos pelos AA por via de contrato de compra e venda outorgado entre eles e a empresa “DD, Limitada”, com sede na Rua …, 00, ....

4. Em 11 de Agosto de 2011 os AA celebraram com a empresa “EE Lda um contrato promessa de compra e venda, relativo ao referido Lote 00, já com a implantação no mesmo de uma construção, que foi entregue, “em tosco”, à sociedade promitente compradora, ficando a seu cargo a realização de obras e respectiva conclusão do mesmo.

5. No dito contrato promessa foi estabelecido como data limite para a celebração da escritura o mês de Abril de 2012, obrigando-se a promitente compradora a notificar os promitentes vendedores, ora AA, por carta registada com aviso de recepção com a antecedência mínima de 15 dias sobre a data em que a mesma se realizaria.

6. Os AA comunicaram por carta registada, a intenção de realizar a escritura de compra e venda, obtendo como resposta informar que era sua intenção celebrar a referida escritura até ao dia 31 de Julho, o que não aconteceu.

7. Decorrido alguma tempo os AA procederam, eles mesmos, à marcação da escritura, notificando a promitente compradora que a mesma se iria realizar no dia 29/08/2013, em hora e local identificados e comunicados.

8. A promitente compradora não compareceu no dia, hora e local agendados, pelo que a escritura não foi celebrada.

9. No mesmo dia 29/08/2013, através de carta registada, os AA notificaram, novamente, a promitente compradora, da marcação de nova data para realização da escritura, para o dia 09/09/2013, mas a promitente compradora voltou a não comparecer.

10. Os AA, através de Notificação Judicial Avulsa, que tomou o nº 2902/13.5TBVIS do 3º Juízo Cível, efectuada por agente de execução, notificaram a promitente compradora, da marcação para realização da escritura de compra e venda do prédio em causa, para o dia 29/10/2013, advertindo-a de que, não comparecendo para aquele fim, os AA perderiam o interesse no negócio e assim considerava-se o contrato definitivamente resolvido.

11. Tal notificação foi efectivada pelo agente de execução no 04/10/2013, na pessoa do gerente da sociedade promitente comprador, não tendo comparecido de novo.

12. A certa altura a moradia do Lote 00 do lugar de ..., cerca de meados de 2011, estava em tosco (com o telhado colocado) e ostentava uma placa de “vende-se” com um número de telefone que correspondia ao Sr FF, sócio e Gerente da EE  Ldª.

13. O referido Sr FF era um construtor civil com anos de mercado e nome na praça.

14. Por a Ré ter mostrado interesse na aquisição e após negociação do preço o Sr FF pediu um sinal para o que aquela exigiu a celebração de um contrato de promessa.

15. Na sequência e em Novembro de 2011 entre a Ré e a dita FF foi celebrado um contrato denominado de promessa de compra e venda.

16. Em tal contrato a EE Ldª declarou-se proprietária de um prédio Urbano em construção, destinado a moradia em Banda composta de Cave, rés-do chão, primeiro andar e sótão para habitação com logradouro, que se irá identificar como Lote 00, no lugar da ..., ..., freguesia de ..., concelho de ..., moradia essa que estava a ser construída no artigo urbano, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 0022, da freguesia de ....

17. O preço acordado foi de €180.000,00 (cento e oitenta mil euros) e a dita EE Ldª estava à data a construir a moradia prometida vender, a qual apresentava exteriormente sinais próprios de estar em construção, cujos contornos de acabamento foram aplicados em consenso entre os outorgantes do dito contrato.

18. Ao contrato foi conferida força de execução específica.

19. Em cumprimento do contrato a R pagou ao Sr FF ou à EE Ldª as seguintes quantias:

a) 95.000,00€ por transferência de 15-11-2011;

b) 5.000,00€ em cheque com numero 0000139 no mesmo dia;

c) 12.500,00€ em cheque com o numero 0000000521 no dia 30- 04-2012;

d) 22.500,00€ em cheque com o numero 0000142 no dia 30-01-2012;

e) 25.000,00€ em cheque com o numero 0000000523 no dia 30-05-2012;

f) 10.000,00€ em numerário no dia 23-03-2012:

20. E em pagamentos directos a fornecedores quantia não apurada em concreto mas não inferior a 13.545,00€.

21. Em meados do ano de 2012, meses antes de ser emitido alvará de utilização em nome do Autor marido, o que sucedeu em 11 de Setembro de 2012, a sociedade promitente compradora pediu aos AA que o imóvel fosse ocupado pela ora Ré uma vez que lhe iria vender o referido imóvel.

22. Os AA acederam ao pedido da promitente compradora porque não viam qualquer inconveniente em tal, uma vez que a Ré alegava necessitar temporariamente de  habitação.

23. A partir desse momento a Ré passou a ocupar o referido imóvel, mantendo relações de vizinhança com a nora dos AA com quem trocava impressões acerca do contrato promessa de compra e venda.

24. A nora dos AA sempre informou a Ré que a efectivação do contrato prometido se encontrava única e exclusivamente dependente do Sr. FF, gerente da sociedade promitente compradora e relatando a sua indisponibilidade, de facto, para outorgar a escritura do negócio prometido.

25. Atendendo a que a EE Ldª era uma sociedade de construções, o acordo celebrado entre ela e os AA teve por pressuposto que aquela lhes pagasse o preço quando fosse feita a escritura da moradia que aquela iria acabar de construir no lote de terreno.

26. Nunca os AA nem o seu filho HH, tiveram qualquer intenção de residir na moradia em causa.

27. Quando a moradia ficou pronta a ser habitada, a R foi habitá-la.

28. Desde pelo menos o dia 7 de Junho de 2012 a Ré passou a ocupar a moradia e, causa, nela comendo e dormindo quotidianamente, recebendo amigos e familiares, com conhecimento e à vista de toda a gente, em particular dos AA e de seu filho.

29. Quer no decurso da finalização das obras da moradia quer depois de ter entregue a posse da mesma à Ré nunca houve qualquer oposição pelos AA ou por quem quer que fosse.

30. A Ré mobilou a casa que hoje habita, sendo que alguns dos móveis foram comprados à medida dos compartimentos da moradia.

31. A luz e água, por falta de licença de habitabilidade, eram concedidas pelos vizinhos do lado, incluindo o referido HH, filho e nora dos AA.

32. A Ré, tomando conhecimento de que o lote de terreno se encontrava registado em nome dos AA, confrontou o Sr FF com tal informação e este tranquilizou-a confirmando que tinha documentação na sua posse que garantia que a casa seria transferida para nome da Ré, ocasião na qual informou que teria que pagar ao “anterior proprietário cerca de 100.000€ para tudo ficar resolvido.

33. Em data não apurada a Ré tomou conhecimento de que a EE Ldª havia prometido comprar a moradia ao Autor, por intermédio do Sr HH em tosco e que aquela ainda devia parte do dinheiro.

34. A Ré solicitou em Outubro de 2013 a liquidação do IMT junto da AT, o que lhe foi concedido.

35. O lote de terreno em causa foi adquirido pelo valor venal de 20.000,00€, em tosco, até á intervenção da EE Ldª valeria quantia não inferior a 95.000,00€- deduzido um “lucro” -e no final, “pronta a habitar”, valeria quantia não inferior a 160.000,00€.

36. Depois de construída a moradia o seu proprietário irá pagar IMI sobre montante não apurado de momento.

37. Os AA nunca receberam, quer da sociedade promitente compradora, quer da Ré, qualquer contrapartida remuneratória, pelo facto de esta se encontrar a ocupar o referido imóvel.

38. Os AA não retiram do dito imóvel qualquer tipo de rendimento ou benefício, estando o IMI de tal imóvel a ser-lhes imputado.

39. Até à presente data a Ré não entregou nem desocupou voluntariamente o imóvel em causa.

Vejamos agora cada uma das questões acima apontadas como objeto deste recurso.

a) Nesta primeira questão os recorrentes defendem que o acórdão recorrido é nulo por ter excedido a matéria de conhecimento que lhe era permitido.

Esta pretensão é manifestamente infundada e, por isso, não precisaremos de ocupar muito tempo na análise da mesma.

O art. 615º, nº 1, al d) – segunda parte -, do Cód.. de Proc. Civil, comina com a nulidade a sentença quando a mesma conheça de questão de que não podia tomar conhecimento.

Trata-se aqui de sancionar o dever processual previsto no nº 2 do art. 608º do mesmo código que prescreve a obrigação do juiz, na elaboração da sentença, de conhecer apenas das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de ouras.

O argumento dos recorrentes para preencher esta nulidade consiste em dizer que não consta do pedido efetivamente formulado o reconhecimento  da propriedade do imóvel constituído por lote de terreno e respetiva moradia nele implantada, pois apenas havia pedido o reconhecimento da propriedade do referido lote de terreno, por apenas este constar do registo em seu nome efetuado.

Não percebemos o que os recorrentes pretendem aqui.

Com efeito, analisando a petição inicial dos autores se vê que o que foi pedido foi o reconhecimento da totalidade do imóvel constituído por lote de terreno – inscrito em favor dos autores – e da moradia nele implantada.

Assim, no art. 1º da petição inicial os autores referem o seguinte:

“ Encontra-se inscrito a favor dos autores, na matriz predial urbana de ..., sob o art. 0025 – anterior artigo 0077 – e descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o número 0022, o prédio urbano, composto por casa de habitação com três pisos, com a superfície coberta de 139 m2 e superfície descoberta de 92 m2, perfazendo o total de 231 m2 de área total, sito em lugar de ..., Lote 00, freguesia de ..., concelho de ..., conforme (…)”

E no artigo 6º do mesmo articulado consta o seguinte:

“Como tal, os AA são donos e legítimos proprietários do imóvel descrito em 1.”

E terminam a petição inicial com a dedução de vários pedidos em que o primeiro é o seguinte:

“Ser reconhecido o direito de propriedade dos AA. sobre o imóvel em crise”.

Daqui só se pode concluir que o imóvel cujo reconhecimento é aqui pedido consiste no imóvel tal como é descrito no artº 1 daquele articulado e, por isso, compreendendo o lote de terreno e respetiva construção nele incorporada.

E foi como tal entendido pela douta sentença de 1ª instância ao condenar no reconhecimento e entrega do conjunto predial constituído por lote de terreno e moradia nele implantada.

Só por isto, tem de improceder esta nulidade dado que o acórdão recorrido ao tratar deste pedido como abrangendo a totalidade do imóvel, não extravasa o pedido ou causa de pedir deduzidos pelos autores.

Soçobra, assim, este fundamento do recurso.

b) Nesta segunda questão alegam os recorrentes que o acórdão recorrido é nulo por haver nele contradição entre os fundamentos e o decidido.

A alínea c) do nº 1 do art. 615º do Cód. de Proc. Civil estipula que a sentença é nula quando os fundamentos da sentença estejam em oposição com a decisão.

Trata-se da deficiência da sentença em que o respetivo silogismo em que se analisa aquela, contém fundamentos que levam logicamente a uma decisão em determinado sentido, mas em que a decisão efetivamente adotada pela sentença é a de sentido oposto.

Precisa-se aqui que esta anomalia da sentença nada tem a ver com o erro de julgamento que se traduz numa decisão contra lei expressa ou contra os factos apurados, mas em que a apreciação da verificação desse erro envolve uma apreciação jurídica e não uma mera incongruência de ordem lógica.

Ora o fundamento apontado pelos recorrentes para esta arguição estava  dependente da procedência da nulidade anterior, ou seja, pela sanação daquela primeira nulidade, ficaria a haver uma pronúncia sobre um prédio composto quando o que estava em causa – após a sanação da referida nulidade – era apenas um prédio constituído apenas por lote de terreno para construção.

Como improcedeu a anterior arguição nulidade, fica sem fundamento esta nulidade.

Improcede, desta forma, mais este fundamento do recurso.

c) Resta apreciar a questão sobre o mérito das causa, no sentido de que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, por dos factos apurados resultar a procedência do pedido de reconhecimento da propriedade do imóvel reivindicado e a consequente condenação da ré na sua entrega.

Começaremos por dizer que estamos em desacordo com o teor do acórdão recorrido na parte em que fez improceder estes pedidos que a douta sentença de 1ª instância havia julgado procedente.

Está aqui em causa uma ação de reivindicação prevista no art. 1311º do Cód. Civil.

Tal como é pacífico e foi largamente exposto na sentença de 1ª instância e no acórdão recorrido, neste tipo de ações os autores têm de provar um direito de propriedade e provado este e a detenção da coisa reivindicada por parte da ré, tem esta de provar justo título para a sua  detenção, sob pena de ser condenada na restituição da coisa  

O doutro acórdão fez uma exposição bastante completa sobre os eventuais direitos à coisa que a ré alegara, concluindo pela improcedência  de todos esses direitos ou justos títulos.

Este entendimento não foi objeto deste recurso – mesmo nos termos de ampliação do âmbito do recurso, ao abrigo do disposto no art. 636º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil – pelo que se tem de aceitar tal decisão, no sentido de que a ré não provou ter qualquer direito que pudesse paralisar o direito dos autores – se provado - , nos termos do nº 2 do art. 1311º do Cód. Civil.

Porém, o acórdão recorrido julgou a apelação procedente com o fundamento de que os autores não provaram o direito de propriedade reivindicado.

Esta decisão baseou-se na circunstância de aqueles terem apenas  a seu favor um registo de um lote de terreno e, por isso, a presunção alegada de titularidade prevista no art. 7º do Cód. de Registo Predial  não abranger o imóvel composto de lote de terreno e moradia nele implantada.

Discordamos deste entendimento.

Com efeito, pelo raciocínio do acórdão recorrido, dever-se-ia manter a procedência dos pedidos decretados na sentença apelada, mas com  a restrição de abranger apenas o imóvel  tal como consta da inscrição registral de que os autores beneficiam.

Mas vejamos melhor.

Está apurado nos autos que os autores têm inscrito no registo predial a seu favor o imóvel constituído por um lote de tereno para construção, com os demais elementos identificadores constantes dos factos apurados, pelo gozam da presunção de que são  proprietários do mesmo imóvel.

Mas também se apurou que quando os autores adquiriam esse lote de terreno – por compra e venda - ele tinha implantado uma moradia em toscos, pelo que são também proprietários desta construção, nos termos do art. 1344º, nº 1 do Cód. Civil, dado que nada se provou sobre a desintegração da construção existente do imóvel tal como consta do registo.

Também resulta provado que os autores celebraram um contrato promessa como promitentes vendedores com uma sociedade como promitente compradora segundo o qual esta acabaria a construção do imóvel e venderia o mesmo, pagando aos autores o preço fixado no contrato promessa  pela compra e venda prometida.

Este contrato promessa, porque incumprido pela sociedade promitente compradora, foi resolvido pelos autores.

A ré, por seu lado, prometeu comprar o imóvel completo à sociedade referida, arrogando-se esta a propriedade do  mesmo.

A ré foi pagando, pelo menos parte do preço convencionado para esta aquisição, mas nunca esta promessa foi cumprida.

A ré foi ocupar o imóvel, logo que a construção ficou pronta, mas com a aquiescência dos autores pedida pela sociedade referida e  dado que a ré  alegou precisar daquele imóvel para sua habitação, e dado que o cumprimento do contrato promessa em que os autores eram promitentes devedores só estava dependente da referida sociedade promitente compradora.

Daqui resulta que, nos termos do citado art. 1344º, nº1, as obras, entretanto realizadas pela sociedade promitente compradora, no prédio inscrito no registo em nome dos autores, se integraram neste prédio registado  e, como tal, são, igualmente, propriedade dos autores, dado que nenhum negócio jurídico foi provado que autonomizasse ou desintegrasse  a propriedade das referidas obras – ou melhor, do seu resultado - em relação ao lote de terreno em que foram realizadas.

É de referir que se provou também que o imóvel com a moradia incorporada foi inscrito na matriz em nome dos autores e a moradia contém alvará de utilização passada em nome do autor marido. 

Poderia, eventualmente, a sociedade referida reivindicar qualquer direito de crédito sobre os autores, nomeadamente, a titulo de enriquecimento sem causa ou outro, ou até eventual direito de acessão industrial imobiliária sobre o imóvel como  autores das referidas obras, mas tais direitos não estão aqui em discussão.

E os direitos que a ré alegou sobre o imóvel para  a sua detenção ou fruição com que pretenderam opor-se à procedência dos direitos aqui em discussão, foram rejeitados, como já dissemos, pelo acórdão recorrido, sem que esta parte do mesmo tenha sido impugnado, nomeadamente, nos termos do art. 636º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.

Desta forma e tal como doutamente havia sentenciado o julgador da 1ª instância,  têm os referidos direitos de reconhecimento da propriedade sobre o imóvel constituído por lote de terreno, inscrito no registo predial a favor dos autores, e sobre a moradia entretanto nele implantada, e consequente restituição do mesmo pela ré aos autores, de serem aqui reconhecidos.

Procede, desta forma, este fundamento do recurso.

Pelo exposto, concede-se a revista pedida e, por isso, se revoga o acórdão recorrido para ficar a valer a procedência parcial dos pedidos, tal como decidira a sentença de 1ª instância.

Custas pela ação e pelos recursos a cargo da ré.

*

Nos termos do art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil, se sumaria o acórdão da seguinte forma:

31-10-2017

João Camilo – Relator

Fonseca Ramos

Ana Paula Boularot