Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23178/09.3YYLSB-E.L1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
INDEFERIMENTO LIMINAR
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
Não é inconstitucional o regime previsto no art. 370.º, n.º 2, do CPC, que, em sede de procedimentos cautelares, veda, em regra, a admissibilidade do recurso de revista interposto de acórdão da Relação.
Decisão Texto Integral:

I - Em 4-11-09, a Caixa Económica Montepio Geral instaurou uma execução comum contra AA, …, e Outros para pagamento da quantia de € 104.226,98, acrescida de juros, em virtude do incumprimento de um contrato de mútuo com hipoteca e fiança:   

No âmbito dessa execução, foi penhorada a fração autónoma hipotecada e, posteriormente, determinada a sua venda executiva em leilão eletrónico, conforme despacho proferido em 8-6-16.

Encerrado aquele leilão de que resultou a aceitação da melhor proposta apresentada em nome da sociedade “Altanuance Atividades Imobiliárias, Unipessoal, Ldª”, e efetuado o depósito do preço, esta sociedade deduziu requerimento nos autos de execução, em 17-7-17, a informar que, apesar de o título transmissivo da venda lhe ter sido entregue e de o imóvel estar registado a seu favor, não foi investida na correspetiva posse, em virtude de o mesmo lhe não ter sido entregue pelo depositário.

Em 21-3-18, foi proferido despacho a ordenar a notificação dos executados para, no prazo de 20 dias, procederem à entrega em falta, sob pena de, não o fazendo, se ordenar a requisição da força pública para a efetivação dessa entrega, requisição essa que acabou por ser determinada em 28-6-18, com autorização para se proceder a arrombamento, se necessário.

Em 10-7-18 e 11-7-18, a executada AA apresentou requerimentos de igual conteúdo, a arguir a nulidade dos atos processuais relativos à notificação para entrega do imóvel, pedindo ainda que fosse diferida a sua desocupação.

Em 3-10-18, foi proferido despacho a determinar, novamente, a notificação pessoal dos executados para, em 20 dias, procederem à entrega do imóvel vendido à sociedade adquirente, sob pena de, não o fazendo, se ordenar a requisição da força pública para a efetivação de tal entrega, sendo ainda indeferido o pretendido diferimento da desocupação, por falta de fundamento legal, tendo aquele despacho sido objeto de recurso.

Em 14-11-2019, teve lugar a entrega da fração à sociedade adquirente com arrombamento, mormente por não se encontrar ninguém no local, tendo sido afixada na porta informação disso à executada.

Em 5-12-19, a executada AA deduziu requerimento, por apenso aos autos de execução, a solicitar a devolução imediata da fração com reposição da fechadura, invocando a nulidade do ato praticado pelo agente de execução, defendendo ser de aplicar o disposto sobre a penhora nos arts. 75º e 76º do EOA.

Em 27-1-20, foi proferido despacho a desatender aquela arguição de nulidade, por se considerar a mesma extemporânea, referindo-se ainda que a executada nunca dantes mencionara que exercia advocacia no imóvel em causa, tendo mesmo afirmado que se tratava de cada de morada da família, despacho esse de que foi interposto recurso.

Em 23-2-20, a executada AA instaurou, por apenso à referida execução, uma providência cautelar comum contra o agente de execução BB, a pedir que:

a) Fosse declarado nulo o ato de arrombamento ocorrido e condenado o demandado agente de execução a devolver a fração em referência e a repor a fechadura, dando acesso à executada;

b) Fosse fixada uma sanção pecuniária compulsória no montante diário de € 100,00 por cada dia em que o requerido mantivesse indevidamente a posse do escritório de advocacia da requerente.

Na 1ª instância, foi proferido despacho de indeferimento liminar com fundamento, em síntese, na inviabilidade da providência requerida, por se considerar ser um meio inviável para reagir contra os impugnados atos do agente de execução.

A requerente interpôs recurso de apelação, no âmbito do qual foi proferido o acórdão confirmando a decisão recorrida.

A requerente interpôs recurso de revista, acolhendo-se, genericamente, ao disposto nos arts. 852º e 671º e ss. do CPC, sustentando, no que aqui releva e em resumo, que:

1.ª Os procedimentos cautelares pertencem ao leque de medidas provisórias previstas pelo nosso ordenamento jurídico, destinadas à tutela de determinadas situações jurídicas;

2ª. Tais procedimentos visam assim assegurar os resultados práticos de uma ação, suspendendo a eficácia de um ato jurídico sempre que o seu prosseguimento possa colocar em causa os direitos de um sujeito;

3ª. Tais procedimentos mediante o mecanismo da inversão do contencioso, permitem que o juiz decida sobre a existência do direito acautelado com dispensa de instauração da correspondente ação;

4ª. No caso presente, o arrombamento e a mudança da fechadura do escritório da requerente, por parte do agente de execução, constituem violação do direito desta, concretamente em face do disposto nos arts. 70º, 75º e 76º do EOA e do art. 208º da Constituição, com fundado receio de graves e avultados prejuízos de difícil reparação, tendo em conta a sua situação profissional.

Pede a recorrente que se revogue o acórdão recorrido e, em sua substituição, se declare a providência requerida procedente por provada.

A revista foi rejeitada na Relação, por se considerar não ser admissível nos termos do art. 370º, nº 2, do CPC, e ainda face à regra da dupla conforme consagrada no art. 671º, nº 3, do CPC, bem como pelo facto de não terem sido invocados quaisquer fundamentos especiais que a tornassem admissível à luz do nº 2 do art. 629º do mesmo diploma, nomeadamente a existência de conflito jurisprudencial.


II – Da decisão de rejeição do recurso de revista a recorrente reclamou para esta Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. 643º do CPC, tendo sido proferida decisão singular de indeferimento com o seguinte teor:

“II – Fundamentação

O objeto da presente reclamação consiste apenas em saber se, no caso presente, é admissível revista do acórdão da Relação que confirmou, por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente, o despacho de indeferimento liminar do procedimento cautelar comum proferido na 1ª instância.

O art. 370º, nº 2, do CPC preceitua que: das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.

Em face deste normativo, não sofre qualquer dúvida de que o acórdão recorrido se inscreve no âmbito de tais decisões, posto que se trata de acórdão da Relação confirmativo do despacho de indeferimento liminar de procedimento cautelar. Nem tem aqui aplicação a regra da admissibilidade irrestrita das decisões de indeferimento de requerimento inicial de procedimento cautelar consagrada no art. 629º, nº 3, al. c), do CPC, confinada como está ao recurso para a Relação.

De igual modo, apesar de não ter sido sequer requerido, sempre se dirá que, mesmo em caso de verificação de dupla conforme, não haveria lugar a revista excecional, nos termos do art. 672º, nº 1, do CPC, porquanto esta pressupõe a admissibilidade da revista em termos gerais, apenas quando impedida por aquela verificação.

Assim sendo, só restaria à recorrente a hipótese de interpor a revista com fundamento especial, mormente com base em qualquer das situações previstas no nº 2 do art. 629º, conforme a ressalva feita no acima transcrito art. 370º, nº 2, parte final, do CPC.

Sucede que, como bem se refere no despacho reclamado, a recorrente nem tão pouco indicou fundamento específico de recorribilidade irrestrita, conforme o exigido pelo art. 637º, nº 2, do mesmo Código.

É certo que a recorrente convocou vários acórdãos dos Tribunais Superiores incidindo sobre os pressupostos inerentes aos procedimentos cautelares, mas de nenhum deles se colhe o entendimento de que seja lícito a um executado instaurar providência cautelar, por dependência de uma execução, para prevenir ou assegurar uma tutela provisória contra atos aí contra ele praticados tidos por nulos ou ilegais, em contradição com o que foi decidido pelas instâncias.

De resto, como é sabido, à luz do disposto nos arts. 2º, nº 2, parte final, e 362º, nº 1, do CPC, os procedimentos cautelares são meios de tutela provisória, conservatória ou antecipatória, destinados a acautelar o efeito útil da ação, seja ela declarativa ou executiva, facultados, portanto, ao respetivo impetrante (autor, reconvinte ou exequente) e nunca como meios de prevenir a legalidade ou assegurar o efeito jurídico-processual pretendido a favor dos demandados quanto a atos contra eles praticados no desenvolvimento da instância, para cuja impugnação dispõem dos mecanismos próprios de arguição de nulidades ou dos competentes meios recursórios.

Nem a simples circunstância de a requerente, em sede cautelar, ter peticionado a inversão do contencioso assume aqui qualquer relevância, na medida em que não configurou sequer qualquer espécie de ação autónoma que pretendesse intentar contra o agente de execução requerido e de que, por essa via, ficasse dispensada de instaurar, limitando-se a pretender que fosse “declarado nulo o ato de arrombamento ocorrido” na sobredita execução e condenado o agente de execução a devolver a fração aí entregue e a repor a respetiva fechadura, ou seja, confinando-se à mera impugnação daqueles atos praticados no âmbito do próprio processo de execução.

De qualquer modo, o certo é que a recorrente nem tão pouco equacionou ou caracterizou qualquer contradição relevante nesse sentido entre os arestos convocados e o acórdão recorrido, para que a revista pudesse ser admitida ao abrigo da al. c) do nº 2 do art. 629.º do CPC.

Termos em que, sem necessidade de mais considerações, se impõe concluir pela manifesta improcedência da reclamação”.


O que foi decidido foi sumariado do seguinte modo:

1. Nos termos do art. 370º, nº 2, do CPC, do acórdão da Relação que confirme o despacho da 1ª instância que indeferiu liminarmente o requerimento inicial de procedimento cautelar com fundamento em inviabilidade da providência requerida não cabe recurso de revista, salvo nos casos em que seja sempre admissível recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça. 

2. Não tendo a recorrente indicado, aquando da interposição da revista, qualquer fundamento específico de recorribilidade irrestrita, nos termos conjugados dos arts. 637º, nº 2, e 629º, nº 2, do CPC, a mesma não se mostra admissível.

3. À luz do disposto nos arts. 2,º nº 2, parte final, e 362º, nº 1, do CPC, os procedimentos cautelares são meios de tutela provisória, conservatória ou antecipatória, destinados a acautelar o efeito útil da ação, seja ela declarativa ou executiva, facultados, portanto, ao respetivo impetrante (autor, reconvinte ou exequente) e nunca como meios de prevenir a legalidade ou assegurar o efeito jurídico-processual pretendido pelos demandados quanto a atos contra eles praticados no desenvolvimento da instância, para cuja impugnação dispõem dos mecanismos próprios de arguição de nulidades ou dos competentes meios recursórios.

4. De nenhum dos acórdãos dos Tribunais Superiores convocados pela Recorrente se colhe o entendimento de que seja lícito a um executado instaurar uma providência cautelar, por dependência de uma execução, para prevenir ou assegurar uma tutela provisória contra atos aí contra ele praticados tidos por nulos ou ilegais.


III - A recorrente pediu a intervenção da conferência, nos termos do art. 652º, nº 3, do CPC, invocando, no essencial, o seguinte:

A posição defendida na decisão singular não é seguida unanimemente pela jurisprudência, até porque o Tribunal da Relação de Lisboa concordou com a admissão do recurso, por estarmos perante um caso em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, conforme previsto no art. 629º, nº 2, do CPC.

Há de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual a proibição da indefesa que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efetiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efetivos para os seus interesses (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anot., 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164 e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 82 e 83).

Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cf. os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da República, II série, de, respetivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).


IV – Decidindo em conferência:

Neste Supremo Tribunal de Justiça, foi proferida decisão singular, ao abrigo do art. 643º, nº 3, que se traduziu no indeferimento da reclamação interposta pela recorrente do despacho da Relação que rejeitou o recurso de revista interposto de acórdão proferido no âmbito de um procedimento cautelar, atento o disposto no art. 370º, nº 2.

Porém, tanto a decisão da Relação sobre o requerimento de interposição do recurso de revista como a decisão singular proferida já neste Supremo não se quedaram, sequer, por aquele fundamento que emerge claramente do direito positivo. Pelo contrário, foi ainda ponderado, por um lado, que ainda que o recurso de revista obedecesse às regras gerais, ficaria impedido pela verificação de uma situação de dupla conformidade, já que tanto a primeira instância como a Relação consideraram que a pretensão cautelar não tinha condições de viabilidade. E para que não restasse qualquer ponta solta, até se afirmou que a admissibilidade da revista em sede de procedimentos cautelares poderia, porventura, encontrar sustentação em alguma das situações previstas no art. 629º, nº 2, do CPC, mas que, no caso, nenhuma das situações configuradas pelo legislador se verificava.

Perante a linearidade do que foi decidido, não existe qualquer motivo para reverter tal decisão que, efetivamente, corresponde ao regime que emerge das normas de direito adjetivo que regulam a matéria. Aliás, nenhum argumento a reclamante apresenta que deva ser de novo ponderado por este coletivo, já que a reclamação para a conferência que apresentou, para além da parte introdutória que se isolou, limitou-se a reproduzir anteriores peças processuais que foram devidamente escalpelizadas.

Obviamente que não colhem, nesta sede, argumentos pretensamente extraídos da Constituição, no sentido da admissibilidade, sem limites, do recurso de revista, atento o princípio da indefesa. Pelo contrário, a jurisprudência constitucional vem afirmando sucessivamente, e de modo pacífico, que, em matéria de direito privado, em que se inscrevem os procedimentos cautelares do género daquele que foi requerido pela ora reclamante, cabe ao legislador ordinário regular a amplitude do regime de recursos, designadamente através das alçadas ou de outras normas objetivas limitadoras da recorribilidade, como ocorre com a dupla conformidade, nos termos do art. 671º, nº 3, do CPC, ou com a limitação ao recurso de revista em sede de procedimentos cautelares, nos termos do art. 370º, nº 2. Ponto é que se possa considerar que as normas de direito ordinário que regulam o regime da recorribilidade respeitam o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado.

É o que se extrair do Ac. do Trib. Const. nº 159/2019, com menção de muitos outros, e bem assim de Lopes do Rego, “O direito fundamental do acesso aos tribunais e reforma do processo civil”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, pp. 763 e ss.

No caso concreto, estamos inequivocamente perante um procedimento cautelar que a ora reclamante requereu com o objetivo de pôr em causa o ato de arrombamento e de entrega de um espaço onde exercia a advocacia e cuja entrega foi ordenada e executada no âmbito de uma ação de execução para entrega de coisa certa que contra si foi dirigida.

Independentemente da apreciação do mérito do indeferimento liminar de tal pretensão, o que está unicamente em causa nesta reclamação é a suscetibilidade de intervenção do Supremo Tribunal de justiça em sede de recurso de revista.

Neste contexto, para além de a decisão reclamada refletir o que emerge do direito positivo ordinário, não existe qualquer motivo para assacar à norma do art. 370º, nº 2, ou mesmo às normas dos arts. 671º, nº 3, e 629º, nº 2, do CPC, fruto da tendo larga margem de discricionariedade conferida ao legislador ordinário, a violação quer do princípio da proporcionalidade, quer do princípio da indefesa.


V – Face ao exposto, indefere-se a reclamação que foi apresentada contra a decisão singular proferida neste Supremo Tribunal de Justiça.

Custas a cargo da reclamante, com taxa de justiça de 2 Uc.

Notifique.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Lisboa, 24-9-20


Abrantes Geraldes (Reltor)


Tomé Gomes


Maria da Graça Trigo