Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1801/10.7TBOER.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CASO JULGADO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE REVISTA
OFENSA DE CASO JULGADO
ÂMBITO DO OBJECTO DA APELAÇÃO
REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil “, Anotado, vol. III, tomo I, 2ª ed., p. 42.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 684.º, N.º4.
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 2, AL. A), IN FINE, 635.º, N.º5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13-3-97, BMJ 465º/477.
Sumário :
1. É de admitir a revista, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, se for invocada a ofensa de caso julgado (art. 629º, nº 2, al. a), in fine, do NCPC).

2. Tal ocorre designadamente quando a Relação, no âmbito de recurso de apelação interposto pelo A., modifica ex officio o que foi decidido na sentença da 1ª instância que é objecto de recurso, em termos que se revelam mais desfavoráveis para o próprio apelante, em desrespeito pelo que dispõe o nº 5 do art. 635º do NCPC.

A.G.

Decisão Texto Integral:

Quanto à reclamação para a conferência:

1. Do despacho do relator que rejeitou o recurso por inadmissibilidade em função da alçada da Relação, veio a recorrente reclamar para a conferência, alegando que, apesar de o valor do decaimento ser inferior a metade daquela alçada, deverá ser ponderado o direito aos juros. Além disso, considera que está em causa o desrespeito do caso julgado, a possibilitar, assim, um terceiro grau de jurisdição.

2. Ficou expresso no despacho sob reclamação o seguinte:

“Na presente acção foi formulado o pedido de condenação no pagamento da quantia de € 12.500,00, correspondente à deixa testamentária.

Depois de na sentença ter sido reconhecido esse direito, a Relação decidiu que tal reconhecimento era apenas para o caso de a pensão de sobrevivência não lhe ser concedida.

Foi este o único segmento decisório objecto de impugnação em recurso de revista, estando em causa apenas o direito imediato ou eventual ao recebimento daquele quantitativo pelas forças da herança.

Torna-se evidente que o recurso não é admissível, já que o decaimento não supera metade do valor da alçada, não fazendo sentido o apelo que a recorrente faz a alegado direito à obtenção de juros moratórios que nem sequer foram peticionados.

Não existe, por conseguinte, qualquer dúvida quanto ao valor da sucumbência, impondo-se, isso sim, a extracção dos efeitos que decorrem do art. 678º, nº 1, do anterior CPC.

Assim, rejeita-se o recurso de revista por falta do pressuposto da recorribilidade em função do valor da sucumbência.

Determina-se a remessa ao Tribunal da Relação, a fim de que sejam apreciadas as nulidades que foram arguidas relativamente ao acórdão proferido”.

3. Nada há a acrescentar ao que então foi dito, na medida em que corresponde precisamente ao critério delimitador da recorribilidade em função do valor do processo e do decaimento.

Quanto ao primeiro argumento, não há dúvida que é pelo valor processual que foi indicado e que corresponde ao pedido formulado que se afere a recorribilidade, e não através de qualquer outro que, em abstracto, correspondesse à pretensão material em causa.
Tendo sido formulado o pedido de que “os herdeiros do falecido AA sejam condenados a pagar a quantia de € 12.500, conforme legado que lhe foi deixado por testamento …”, sem qualquer alusão, expressa ou implícita, a juros de mora, pedido esse que foi julgado improcedente, é claro que não supera metade do valor da alçada da Relação que está fixado em € 30.000,00.

4. Quanto ao segundo argumento, verifica-se que a A., além do mais, formulou o pedido de que os herdeiros do falecido AA fossem condenados a pagar a quantia de € 12.500,00, conforme o legado que lhe foi deixado por testamento.

Na sentença de 1ª instância, quanto a essa pretensão, foi decidido reconhecer o direito da A. a reclamar da herança de AA , na qualidade de legatária, a quantia de € 12.500,00.

Ficou expresso na sentença o seguinte:

«Em terceiro lugar, pede a A. a condenação dos RR. herdeiros a pagar a quantia de € 12.500 da herança indivisa, conforme legado que lhe foi deixado por AA .

Na verdade, ficou provado que em 22-10-08, no Cartório Notarial de Oeiras, AA outorgou o "TESTAMENTO" onde declarou:

"Que mantém uma relação de união de facto com BB desde o ano de 2003. Que pretende que a sua companheira passe a ser beneficiária da sua pensão de reforma, a qual deverá ser solicitada a Centro Nacional de Pensões. Se, porém, esta não lhe for atribuída, ou para efeitos de sobrevivência, deixa-lhe a quantia de doze mil e quinhentos euros".

Assim, tendo em conta o testamento dado como provado, a A. é efectivamente legatária, na quantia de € 12.500, facto que, diga-se, os RR. herdeiros nem sequer contestam.

O legado, conforme resulta do teor do testamento, dependia de uma de duas condições: a não atribuição da pensão de reforma do CNP, ou por necessidades de sobrevivência.

Já vimos que a A. não reúne condições para recorrer à pensão do falecido AA , pelo que logo se verifica uma das condições estabelecidas no testamento para se reconhecer o direito da A. a reclamar o legado.

Acresce que se provou que a A. é reformada e, no ano de 2009, auferiu uma pensão mensal de cerca de 300€. Com esta quantia - única de que dispõe -, tem de pagar a electricidade, água, gás, telefone, alimentação, vestuário, e deslocações.

Acresce que contraiu empréstimos para aquisição de um automóvel e de um imóvel em Portalegre.

Verifica-se assim a outra condição estabelecida no testamento (sendo alternativas, bastaria uma) para o reconhecimento do legado: necessidades de sobrevivência.

No entanto, nesta acção, apenas podem os RR. herdeiros ser condenados a reconhecerem o direito da A. ao legado, a reclamar da herança o valor constante do testamento. Não podem ser condenados desde já a pagar esse montante.

Assim, o recebimento do legado terá de ser exercido posteriormente mediante a instauração do competente processo de inventário.

Por se tratar de um reconhecimento implícito no próprio pedido de condenação efectuado pela A., deverá declarar-se reconhecido o direito da A. a reclamar da herança de AA , como legatária, a quantia de € 12.500».

5. Desta sentença apenas recorreu a A. pretendendo que se reconhecesse o seu direito a receber a pensão de sobrevivência

Apesar disso, no acórdão da Relação isolou-se como questão que importaria conhecer a de apurar “se os herdeiro de AA devem ser condenados a pagar à A. a quantia de € 12.500 «conforme legado que lhe foi deixado por testamento”.

Na mesma ficou expresso o seguinte:

“Os RR não interpuseram recurso desta decisão, pelo que, em princípio, deveria ser mantida.

No entanto, põe-se a questão de saber se, face à alteração da decisão da matéria de facto em sentido desfavorável aos filhos do falecido AA, é de manter a decisão proferida. É que a interpretação do testamento levanta agora dúvidas (o que então não sucedia), pois, perante a decisão proferida em relação à não existência da união de facto era tudo muito simples e claro. E os RR. aceitaram o legado, mas por partirem do pressuposto de que o pai deles e a autora não viviam em união de facto, com as consequências daí decorrentes. E, como é evidente, neste caso, o legado teria e ser respeitado. Por isso, entendemos que aquela decisão não transitou em julgado.

É o seguinte o texto do testamento, na parte que importa considerar, depois de o testador ter declarado que lega, por conta da quota disponível, a "quota parte" que possui na dita fracção autónoma a sua filha CC:

«Que mantém uma relação de união de facto com BB desde o ano de dois mil e três.

Que pretende que a sua companheira passe a ser beneficiária da sua pensão de reforma, a qual deverá ser solicitada ao Centro Nacional de Pensões. Se, porém, esta não lhe for atribuía, ou para efeitos de sobrevivência, deixa-lhe a quantia de doze mil e quinhentos euros».

Parece-nos que esta declaração deve ser interpretada no sentido de que o legado apenas se manteria se não fosse atribuída à BB a pensão "a solicitar ao CNP".

A redacção é confusa, mas parece-nos que a conjunção "ou" indica que as ditas razões não são de verificação cumulativa. E bem se compreende que assim seja: o testador pretendia que a BB beneficiasse da pensão de sobrevivência a conceder pela CGA; se lhe fosse concedido esse direito é evidente que perderia razão de ser a primeira destas condições; no caso de isso não suceder, não há qualquer dúvida de que o legado se manteria. Mas, então, não teria qualquer interesse o segundo membro da alternativa, pois a pensão seria concedida pelo primeiro dos fundamentos.

Portanto, no caso de não ser concedida a pensão, manter-se-ia o legado a favor da BB. Mas o testador disse; "se, porém, esta não lhe for atribuída ... deixa-lhe a quantia de doze mil e quinhentos euros". Então há que concluir, "a contrario", que, se lhe fosse atribuída a pensão, já não teria razão de ser a atribuição do legado.

E justifica-se plenamente que assim seja, pois, caso a pensão não lhe fosse concedida, a BB ficaria em má situação económica, pelo que, por uma questão de "sobrevivência", ou seja para que pudesse sobreviver com um mínimo de dignidade (dizemos nós), o testador deixar-lhe-ia aquele legado. Pelo contrário, recebendo a pensão deixaria de estar naquela situação e, por isso, não se justificaria que a herança ficasse assim sobrecarregada, uma vez que a autora já poderia "sobreviver" com a pensão. Tenha-se em consideração que a pensão é paga pela CGA e o montante do legado seria suportado pela herança.

O testador não precisava de invocar qualquer razão para deixar o legado. Se quisesse que a BB beneficiasse daquela quantia poderia fazê-lo como muito bem entendesse (desde que respeitasse a legítima). Mas, invocou duas razões e, em nossa opinião, em alternativa: se não fosse concedida a pensão ou "para efeitos de sobrevivência". Ou seja, por uma questão de sobrevivência o AA queria que a BB recebesse por conta da sua quota disponível a quantia de 12.500 euros. Mas isso já não se verificaria se lhe fosse concedida a pensão. Caso contrário não vemos qualquer motivo para a alternativa. A não ser assim, haveria que se concluir que o legado sempre se manteria. Mas então para quê a invocação de tais razões?

Não se vê como pretendendo alguém deixar uma certa quantia em dinheiro em testamento invoque duas "condições", em alternativa, mas produzindo os seus efeitos ainda que ambas se verifiquem.

Ou seja, o legado só teria razão de ser se à BB não fosse concedida a pensão. Se o testador pretendesse que esta recebesse tal quantia, em qualquer circunstância, isto é, por uma questão de sobrevivência, para quê invocar a concessão da pensão? De resto mal se compreende a expressão: "ou para efeitos de sobrevivência".

O testador começa por dizer que pretende que a "companheira" beneficie da "sua pensão de reforma". E só então vem a segunda parte da declaração (já transcrita), o que significa que esta só teria aplicação se não se verificasse aquela.

Como estatui o n.° 1 do art. 2187.° do CC, "na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento".

Ora, como vimos, o que o AA quis foi que a "companheira" pudesse receber a pensão (o que não dependeria da sua vontade). Mas, caso isso não se verificasse, e por uma questão de sobrevivência, ficaria a beneficiar do legado.

Portanto, se for concedida a pensão não se justifica a manutenção do legado.

No entanto há que acautelar os interesses da BB, isto é, se por qualquer razão não lhe for concedida a pensão, ficará com direito a exigir da herança o cumprimento do legado”.

Terminou o acórdão do seguinte modo:

“…

b) Reconhece-se à autora o direito a receber, por conta da CGA, pensão de sobrevivência por morte de AA, a partir do dia 1 do mês seguinte ao falecimento;
c) No caso de esta pensão não ser concedida, a autora tem o direito de exigir da herança o cumprimento do legado;
…”.

6. Com o presente recurso pretende a recorrente que se mantenha a sentença de 1ª instância que considerou que a atribuição do legado dependia apenas do preenchimento de uma das duas condições alternativas. Para o efeito alegou que o acórdão da Relação não respeitou o caso julgado que se formara sobre a sentença de 1ª instância, na parte em que reconheceu à A. o direito ao legado por qualquer das duas condições alternativas que ficaram previstas no testamento.

Ou seja, enquanto a 1ª instância decidiu que o reconhecimento do direito ao legado dependia apenas do preenchimento de qualquer uma das duas condições (não atribuição da pensão ou para efeitos de sobrevivência), a Relação considerou que o reconhecimento do direito ao recebimento de pensão de sobrevivência prejudicava o direito ao recebimento do legado pelo outro motivo (sobrevivência).

Não está em causa apreciar qual a melhor interpretação do testamento, mas tão só apurar se, apesar de o valor do decaimento da A. ser inferior a metade da alçada da Relação, a revista encontra sustentação no art. 678º, nº 2, al. a), in fine, do anterior CPC (actual art. 629º, nº 2, al. a), in fine, do NCPC), no segmento em que admite o recurso quando seja invocada a violação de caso julgado.

Ora, uma vez que os RR. herdeiros do testador não recorreram da sentença de 1ª instância em qualquer dos seus segmentos e, designadamente, não a puseram em causa na parte em que nela se reconheceu à A. o direito a receber o legado fundado exclusivamente no factor sobrevivência que então foi considerado como condição alternativa, a Relação, ao apreciar oficiosamente esse segmento decisório e ao declarar um diverso resultado que prejudica a A. não respeitou efectivamente o caso julgado que no interesse da mesma se formou.

Reconsidera-se, assim, o que foi decidido no despacho do ora relator o qual, por isso, se substitui por outro a admitir o recurso de revista com fundamento no art. 678º, nº 2, al. a), in fine do anterior CPC.

7. Por conseguinte, defere-se a reclamação e, com base no disposto no actual art. 629º, nº 2, al. a), in fine, do NCPC, admite-se o recurso de revista.

Custas a cargo da parte vencida a final, com taxa de justiça de 1 UC.

_________________

Quanto ao recurso de revista:

I - BB

intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra

CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES (CGA)

e

HERANÇA INDIVISA de AA (representada por todos os herdeiros, CC, DD e EE),

pedindo que seja reconhecido que existiu uma união de facto entre a A. e AA , que seja declarado que a herança indivisa deste, bem como os familiares da A., não têm possibilidades de lhe prestar alimentos, e ainda que seja declarado que a A. tem direito a receber, por conta da R., CGA, uma pensão de sobrevivência por morte de AA, a partir do dia 1 do mês seguinte ao falecimento, sem limite de tempo.

A título subsidiário, caso se entenda que a herança de AA tem capacidade para prestar alimentos, pede que sejam os RR. herdeiros condenados a pagar mensalmente à A. uma quantia não inferior a € 1,000, a título de alimentos.

Pede ainda que os referidos herdeiros sejam condenados a pagar a quantia de € 12.500,00 conforme legado que lhe foi deixado no testamento do de cujus, e que lhe seja reconhecido o direito real de habitação, pelo período de 5 anos, da fracção autónoma correspondente ao .... e arrecadação do prédio sito na Al. Conde de Oeiras, Torre I, Oeiras.

A R. CGA contestou e alegou desconhecer os pressupostos de facto para o reconhecimento à A. da qualidade de herdeira hábil para efeitos de atribuição de prestações por morte de AA , assim os impugnando, concluindo no sentido de que a decisão final dependerá da prova produzida.

Os RR. DD, CC e EE contestaram, sustentando, em síntese, não ser verdade que a A. vivia em união de facto com AA, pai dos RR., pois residia na casa deste último apenas na qualidade de empregada doméstica. Negaram qualquer comunhão de cama, mesa e habitação entre a A. e seu pai e disseram que esta dormia no quarto da empregada.

Negaram que a A. alguma vez tenha contribuído para os encargos da vida em comum, sendo que auferia o seu vencimento em contrapartida dos trabalhos prestados. Admitem que a A., aproveitando-se da incapacidade de AA nos dois anos anteriores à sua morte, tenha auferido outros valores para suportar os encargos por si assumidos com dois empréstimos.

Quanto ao constante do testamento, para além do seu teor contrariar a afirmação de que viveria em união de facto, o mesmo foi elaborado quando AA tinha 88 anos, e apenas para tentar atribuir à A. a sua pensão de reforma, sem que a declaração correspondesse à realidade.

No que se refere ao pedido de pagamento de € 12.500,00 estão disponíveis para cumprir o legado, contabilizados que sejam os prejuízos causados pela A. resultantes da posse ilegítima da casa onde AA residia e da obstrução aos documentos e móveis nela existentes.

Quanto à habitação, alegam não só que AA era proprietário apenas de ½ da fracção, sendo a outra parte dos próprios RR., mas também que a A. não reúne os requisitos necessários para beneficiar do direito real de habitação peticionado.

Foi proferida sentença que decidiu declarar que a herança indivisa de AA e FF, GG, HH, II, JJ, LL, MM e NN não têm condições para prestar alimentos à A., reconhecendo a esta o direito de reclamar da herança de AA , na qualidade de legatária, a quantia de € 12.500,00 declarando improcedentes todos os restantes pedidos.

Apenas a A. recorreu, tendo a Relação alterado a sentença e reconhecer à A. o direito a receber, por conta da CGA, pensão de sobrevivência por morte de AA , a partir do dia 1 do mês seguinte ao falecimento e, no caso de esta pensão não ser concedida, o direito de exigir da herança de AA o cumprimento do legado.

A A. interpôs recurso de revista em que concluiu que:

a) O douto acórdão, ao se ter pronunciado acerca do reconhecimento do direito da recorrente em reclamar da herança, enquanto legatária, a quantia de € 12.500,00, apresenta diversas nulidades, porquanto o mesmo conheceu de questões de que não poderiam ter tomado conhecimento e condenou em objecto diverso do pedido, pelo que violou expressamente o disposto nos arts. 668º, nº 1, als. d) e e) do CPC.

b) Violou o aludido acórdão o disposto no nº 2 do art. 684º do CPC, porquanto o objecto do recurso foi restringido a questões concretas cuja apreciação foi pedida, sendo apreciadas questões perfeitamente distintas, não colocadas à sua apreciação.

c) E, mesmo que a recorrente BB não tivesse delineado as suas questões/conclusões cuja apreciação pretendia do Tribunal superior, nos termos e de acordo com o disposto no art. 685º A, do CPC, nunca se poderia ter conhecido de questões que foram favoráveis à recorrente, em conformidade com o aludido preceito nº 2 do artigo 684º do CPC, in fine.

d) É que, em caso de procedência do recurso, na parte em que efectivamente a recorrente instaurou recurso (declaração da união de facto), os recorridos sempre poderiam instaurar um recurso subordinado, que não o fizeram, pelo que não se entende o conhecimento de questões cuja apreciação não foi colocada, nem foi pedida (nos termos do disposto no art. 684º-A, e 682º, ambos do CPC).

e) E também foi violado o disposto no nº 3 do art. 684º do CPC: nas próprias conclusões da Recorrente foi restringido o objecto do recurso, pelo que não se entende o conhecimento de questões novas.

f) Mais é de referir que foi violado o princípio do caso julgado (os efeitos do julgado quanto àquela matéria), nos termos do nº 4 do art. 684º do CPC: a parte não recorrida não pode ser prejudicada pela decisão do recurso.

g) Mais foi violado o princípio do dispositivo, nos termos do disposto no art. 264º do CPC – são as partes que trazem à acção os conflitos que pretendem dirimir em tribunal. Nem a recorrente nem os próprios recorridos quiseram que aquela questão referente ao testamento fosse conhecida novamente em tribunal superior, pelo que não se entende o seu novo conhecimento, e com prejuízo para a própria recorrente!

h) E não se afirme que tais questões são prejudiciais uma da outra: são causas de pedir e pedidos totalmente diferentes: um assunto é referente à declaração da união de facto existente entre a recorrente e o falecido, e outro era a declaração do direito a um legado, mediante a outorga de um testamento.

i) Mais violou, clamorosamente, o princípio do contraditório, culminando numa “decisão surpresa”, que lesa os interesses da recorrente, nos termos e de acordo com o disposto no art. 3º do CPC.

j) Violou também, clamorosamente, o princípio da certeza e segurança jurídicas das decisões, e a expectativa jurídica de aquisição de um direito ao legado: não tendo sido interposto recurso quanto àquela decisão a recorrente confiou que a mesma não iria ser alterada, porquanto instaurou inclusivamente, processo judicial de Inventário (perdendo este, assim, com esta nova decisão, o seu fundamento!).

k) Termos em que, e relativamente àquela parte na decisão, que corresponde a causa de pedir (outorga de testamento com atribuição de legado vs declaração da existência da união de facto) e pedidos diferentes (direito à atribuição de um legado vs declaração da união de facto com vista à atribuição da pensão de reforma, não poderia ter havido revogação da decisão, porquanto o Tribunal não poderia ter conhecido daquela questão.

l) Tendo-o feito, cometeu as nulidades acima identificadas, tendo sido violado o princípio da igualdade (art. 13º da CRP) e o princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP), com o cometimento das nulidades acima identificadas.

m) Sem prejuízo, e sem conceder, à cautela, por mero dever de patrocínio: os recorridos nunca discutiram o direito ao legado por parte da recorrente BB, nem do mesmo interpuseram recurso (principal, ampliado ou subordinado), sendo que a recorrente, por lhe ser favorável, obviamente que também não interpôs recurso.

n) A Mª Juíza da 1ª instância, tendo analisado e se debruçado sobre a questão do direito ao legado de 12.500,00 €, considerou que ambas as condições alternativas estavam preenchidas para que a recorrente pudesse ter acesso ao legado, sendo que a mesma afirmou expressamente que bastaria o cumprimento de uma das condições para que se verificasse o direito ao legado, sendo que foram consideradas ambas preenchidas: “Verifica-se assim a outra condição (sendo alternativas bastaria uma) para o reconhecimento do legado: necessidades de sobrevivência”.

o) Pelo que não se entende a consideração diversa dos requisitos alternativos para o direito de acesso ao legado, e quando não se pediu a apreciação de tal questão.

p) Sendo que não se pode afirmar que tais questões são prejudiciais, porque não o são, atento o acima exposto.

q) Mais é de concluir que, de acordo com juízos de razoabilidade e senso comum, o testador, companheiro da recorrente durante anos, naturalmente não quereria que a mesma passasse dificuldades/privações de qualquer tipo, ou seja, necessidades económicas, pelo que o mesmo pretendeu acautelar esta situação: que fosse cumprido o legado de imediato, atentas as carências da recorrente, enquanto a mesma não tivesse direito à pensão de reforma, e passasse por algumas privações/necessidades.

r) E o facto de não ter sido cumprido o legado entretanto não pode ser utilizado como factor penalizante para a recorrente: esta está há mais de três anos a receber apenas a quantia mensal de € 300,00, sendo que a morosidade na justiça não pode ser impeditivo do acesso ao legado.

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II – Factos provados:
1. A A., solteira, nasceu em ..., filha de OO e de FF.
2. Em 22-10-08, no Cartório Not. de Oeiras, AA outorgou o "TESTAMENTO" onde declarou: "Que mantém uma relação de união de facto com BB desde o ano de 2003. Que pretende que a sua companheira passe a ser beneficiária da sua pensão de reforma, a qual deverá ser solicitada a Centro Nacional de Pensões. Se, porém, esta não lhe for atribuía, ou para efeitos de sobrevivência, deixa-lhe a quantia de € 12.500,00".
3. AA faleceu em 10-12-09, viúvo de PP e era pensionista da CGA, recebendo cerca de € 2.094,27 mensais.
4. Encontra-se registada a favor de AA (casado com PP no regime da comunhão geral) desde 1-VIII-72 a aquisição das fracções "AO" e "B" do prédio descrito na 1.a  CRP de Oeiras com o n° 971.
5. Em 9-4-10 foi registada a favor dos ora RR. DD, CC e EE a aquisição das fracções supra (por "sucessão hereditária").
6. GG, viúva, nasceu em ..., filha de OO e de FF.
7. HH, casada, nasceu em ..., filha de OO e de FF Elvas.
8. II, casada, nasceu em ..., filha de OO e de FF.
9. JJ, viúva, nasceu em ..., filha de OO e de FF.
10. LL, casado, nasceu em ..., filho de OO e de FF.
11. MM, casado, nasceu em ..., filho de OO e de FF.
12. NN, casado, nasceu em ... filho de OO e de FF.
13. AA residiu durante muitos anos (e até à sua morte em 10-12-09) no ..., na Al. Conde de Oeiras - onde recebia a família e os amigos - e que, por volta de 1990, a ora autora foi contratada como empregada doméstica pelo AA, tendo, cerca de dois anos depois, passado a residir na mesma casa.
14. Alguns anos antes da morte do AA (seguramente mais de 5 anos antes) este e a A. começaram a dormir na mesma cama e a comer à mesma mesa no referido andar.
15. AA, com os seus rendimentos, suportava as despesas inerentes aos gastos e à manutenção da casa onde via com a A., tratando esta das lides domésticas.
16. AA. é reformada e, no ano de 2009, auferiu uma pensão mensal de cerca de € 300,00.
17. Com a quantia supra - única de que dispõe - a A. tem de pagar a electricidade, água, gás, telefone, alimentação, vestuário, e deslocações.
18. A A. contraiu "empréstimos" para aquisição de um automóvel, e de um imóvel em Portalegre.
19. A ora A. não tem descendentes e o seu pai já faleceu.
20. A mãe da A. é doente e carece de cuidados constantes (prestados pela A.), e recebe duas pensões, no valor mensal total de cerca de € 475,00, quantia que se esgota nas suas despesas com alimentação, vestuário e saúde.
21. GG aufere como único rendimento uma pensão mensal de € 235, quantia que se esgota nas despesas com habitação, água, electricidade, gás, alimentação, vestuário, saúde e deslocações.
22. HH encontra-se desempregada desde 2006, não possui quaisquer rendimentos, e depende financeiramente do marido.
23. II tem como único rendimento mensal cerca de € 560, quantia que se esgota nas despesas com habitação, água, electricidade, gás, alimentação, vestuário, saúde, e deslocações.
24. JJ tem como único rendimento mensal uma pensão no valor de cerca de € 575, quantia que se esgota nas despesas com habitação, água, electricidade, gás, alimentação, vestuário, saúde, e deslocações.
25. LL tem como único rendimento mensal uma reforma por invalidez no valor de € 450, quantia que esgota a fazer face as despesas do seu agregado familiar.
26. MM tem como único rendimento mensal ilíquido cerca de € 650, quantia que se esgota nas despesas do seu agregado familiar com habitação, água, electricidade, gás, alimentação, vestuário, saúde e deslocações.
27. A A. desconhece o paradeiro de NN, que fugiu para Espanha por causa de dívidas que não conseguiu pagar.
28. A A. desconhece a existência de quaisquer bens do falecido AA para além dos prédios que identifica.
29. Nenhum dos prédios gera rendimento para prover ao sustento da A.


III – Decidindo:
1. Sendo diversos os argumentos apresentados pela A. contra o acórdão da Relação, na parte em que alterou o que fora decidido pela 1ª instância quanto ao legado, quedar-nos-emos por aquele que é fundamental e que, aliás, justificou a admissão do recurso de revista: desrespeito do caso julgado formado contra os RR. herdeiros e resultante da sentença de 1ª instância.

2. Como já se disse no acórdão interlocutório que incidiu sobre a reclamação para a conferência apresentada pela A., os RR. herdeiros conformaram-se com a sentença de 1ª instância que reconheceu à A. o direito a receber o legado deixado por testamento de AA . Ainda que a sentença não tenha reconhecido à A. o direito a obter a pensão de sobrevivência cuja negação conferiria o direito ao legado, reconheceu o direito ao recebimento do legado por causa da outra condição que considerou verificada e que qualificou como alternativa: por motivos de sobrevivência.

Ora, o tribunal de recurso não pode olvidar o efeito do caso julgado que porventura já se tenha formado a montante sobre qualquer decisão ou segmento decisório, o qual prevalece sobre o eventual interesse na melhor aplicação do direito, nos termos claramente enunciados no nº 5 do art. 635º do NCPC.

Trata-se da manifestação do princípio da proibição da reformatio in peius.[1]

Assim, concretizando e exemplificando:

a) Se apenas uma das partes interpuser recurso que abarque uma parcela da decisão, não pode, sob pretexto algum, ser revogado ou modificado o outro segmento decisório em relação ao qual tenha saído vencedora a parte contrária;

b) Se o recorrente, de forma expressa ou tácita, restringiu o âmbito do recurso, o Tribunal ad quem não pode interferir na parte da sentença que ficou excluída da impugnação;

c) Ainda que, por algum motivo, o Tribunal ad quem determine a anulação do processado, ficam salvaguardados, em definitivo, os efeitos da decisão, na parte que não tiver sido objecto de recurso.[2]
Tendo em conta que o recurso de apelação e o acórdão da Relação estão submetidos ao regime que constava do anterior CPC, resultava deste diploma que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não poderiam ser prejudicados pela decisão do recurso (art. 684º, nº 4).
Ora, no caso concreto, apenas a A. interpôs recurso de apelação, de modo que a Relação estava impedida de modificar substancialmente o teor da decisão, deixando de reconhecer o direito ao legado com fundamento autónomo no factor “sobrevivência” que a 1ª instância considerara pertinente.
Esse efeito foi afectado quando a Relação, fora do objecto do processo e no âmbito de um recurso que nem sequer foi interposto pelos RR. herdeiros, oficiosamente modificou o teor da sentença de 1ª instância, produzindo um resultado que objectivamente beneficia os RR. não recorrentes e prejudica a A., com a adopção de uma interpretação da cláusula testamentária que nenhuma das partes questionara no recurso de apelação, nem a título principal, nem a título subordinado, nem sequer a título subsidiário.
Impõe-se, por isso, a revogação do acórdão da Relação nesta parte, sendo reposto o que, a respeito do legado, foi decidido na sentença de 1ª instância ou seja, reconhecendo à A. o direito de reclamar da herança de AA, na qualidade de legatária, a quantia de € 12.500,00, independentemente do que se decidiu quanto à pensão de sobrevivência.
Direito que, aliás, os herdeiros, reconheceram na sua contestação.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão da Relação na parte em que incidiu sobre o legado, sendo reposta a sentença de 1ª instância que reconheceu à A. o direito de reclamar da herança de AA Fonseca, na qualidade de legatária, a quantia de € 12.500,00.
Custas da revista e da apelação a cargo dos RR. herdeiros de AA Fonseca.
Notifique.
Lisboa, 18-12-13



Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva



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[1] Neste sentido cfr. também Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anot., vol. III, tomo I, 2ª ed., pág. 42.

[2] Decidiu-se no Ac. do STJ, de 13-3-97, BMJ 465º/477, que, sendo anulada uma sentença que condenou o réu no pagamento de determinada quantia, absolvendo-o da parte respeitante aos juros de mora, mas da qual apenas o réu recorreu, a sentença transitou em julgado na parte referente à absolvição. Consequentemente, concluiu-se que violava o caso julgado formado quanto a essa parte da sentença a decisão que posteriormente condenara o réu também no pagamento dos juros.