Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
76/22.0YREVR.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: ADOÇÃO
REGIME APLICÁVEL
ESTRANGEIRO
RESIDÊNCIA
REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 02/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I – O art. 90.º/2 do RJPA (Regime Jurídico do Processo de Adoção, aprovado pela Lei n.º 143/2015) é aplicável tão só às adoções internacionais, ou seja, não é aplicável quando os adotantes e a criança adotada residam, todos eles, na data da adoção, no mesmo país estrangeiro.
II – Assim, não é o art. 90.º/2 do RJPA convocável para definir quem é competente para o reconhecimento da sentença de adoção em causa (ou seja, para o reconhecimento de tal sentença de adoção, não é competente a Autoridade Central, prevista no RJPA), sendo-lhe aplicável o sistema tradicional de controlo prévio de revisão e confirmação das decisões estrangeiras por parte dos órgãos jurisdicionais, ou seja, o processo especial previsto no art. 978.º e ss. do CPC.
Decisão Texto Integral:






Processo: 76/22.0YREVR

ACORDAM, NA 6ª SECÇÃO, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I- Relatório
AA e BB, residentes na Avenida ..., em ..., intentaram ação com processo especial de revisão de sentença estrangeira, pretendendo ver revista e confirmada, para produzir efeitos em território nacional, a sentença do Tribunal de Família e Menores ... da África do Sul, de 24/11/2014, que decretou a adoção, pelos requerentes, do menor, CC, nascido em .../.../2004.

Facultado o exame do processo para alegações, veio o Ministério Público pugnar pela recusa da revisão, argumentando que se aplica ao caso o Regime Jurídico do Processo de Adoção (Lei 143/2015, de 8/9), pelo que, caso a decisão revidenda esteja certificada em conformidade com a Convenção de Haia de 29/05/1993, estará dispensada a revisão da sentença estrangeira, assim se configurando uma exceção dilatória inominada que dá lugar à absolvição da instância; e, caso assim não for, a eficácia em Portugal da decisão estrangeira de adoção depende do reconhecimento a efetuar pela Autoridade Central, devendo o tribunal declarar-se incompetente por falta de jurisdição.

Após despacho a convidar os requerentes a indicar o lugar da sua residência habitual à data da adoção (a que eles responderam, dizendo que, à data da adoção, tinham residência habitual na Africa do Sul), foi proferida decisão – primeiro singular e depois, a requerimento do Ministério Público, em Acórdão da Conferência – a conceder a revisão pedida.

Inconformado com o Acórdão da Conferência, interpõe o Ministério Público o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que indefira a revisão pedida.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

3.º -   A decisão recorrida, que reconheceu e confirmou decisão estrangeira de adoção, violou expressamente o disposto no artigo 90.º, n.º 2, da Lei n.º 143/2015, de 8–9, norma que atribui essa competência à Autoridade Central e não ao Tribunal da Relação.

4.º -   A alteração legislativa operada quanto à revisão de sentença estrangeira de adoção é um regime especial que consagra a eficácia automática em Portugal das decisões de adoção internacional proferidas em conformidade com a Convenção da Haia, e das abrangidas por acordo jurídico e judiciário bilateral que dispense a revisão, ou/e nos demais casos, a eficácia depende de reconhecimento e efetuar pela Autoridade Central, pelo que o Tribunal da Relação de Évora se deveria ter declarado incompetente.

5.º -   Tendo sido retirada (desjudicialização) a competência do tribunal da Relação para o reconhecimento de sentença estrangeira de adoção, e tendo ela sido substituída pela da Autoridade Central, não tem o Tribunal da Relação de Évora jurisdição para a revisão e reconhecimento respetivo, pelo que a pretensão dos requerentes deveria ter sido indeferida, por falta dessa jurisdição, que corresponde à ausência de um pressuposto processual insuprível, consubstancia exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento de mérito e ao indeferimento da Petição Inicial (cf. artigos 99.º, n.º 1 e 576.º, n.º 2, e artigos 278.º, n.º 1, alínea a) e 577.º, alínea a), do Código de Processo Civil).

6.º -   Estando em causa violação das regras de competência em razão da matéria e tendo em conta a legitimidade extraordinária do Ministério Público para o recurso, cabe sempre recurso da decisão para o tribunal hierarquicamente superior, pelo que, sendo admissível a revista, deve o venerando Supremo Tribunal de Justiça sindicar a decisão recorrida, revogando–a, e declarando a falta do pressuposto processual aludido, com as legais consequências, conforme artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.

7.º - Em suma, o Tribunal da Relação de Évora não tem jurisdição para decidir o que decidiu, já que a competência que exerceu está atribuída a órgão do Estado diverso dos tribunais.
*

II – Factos com relevo para a apreciação jurídica
a) Por sentença de 24/11/2014, proferida pelo Tribunal de Família e Menores .. da África do Sul, foi decretada a adoção de DD, nascido a .../.../2004, por AA e BB.
b) O registo de adoção sido efetuado em 02/05/2015, com o n.º .../14, tendo o menor ficado com o nome de CC.
c) À data da adoção, os requerentes (AA e BB) tinham a residência habitual em ..., ..., ... (...), África do Sul.
*

III – Fundamentação de Direito
Coloca-nos a presente revista perante uma questão de competência/jurisdição, na medida em que está unicamente em causa saber/dizer quem é competente – o sistema judicial, nos termos dos artigos 978.º e 979.º do CPC, ou uma entidade administrativa (a designada Autoridade Central, de cuja decisão está previsto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa) – para o reconhecimento duma sentença de adoção (a referida no ponto a) dos factos) proferida, em 24/11/2014, por um Tribunal de Família e Menores da África do Sul.
Não se sustenta que se esteja perante um caso de reconhecimento automático da sentença de adoção em causa[1], antes se sustentando, não há nisto qualquer divergência, ser aplicável o tradicional sistema de controlo prévio das decisões estrangeiras, controlo prévio que o recorrente entende – e é aqui que se situa a divergência recursiva – que, para a situação sub judice, o legislador retirou a respetiva competência dos órgãos jurisdicionais, entregando-o, em primeira linha[2], a uma entidade administrativa (a já referida Autoridade Central).
Vejamos:
É verdade que legislador retirou tal competência aos órgãos jurisdicionais, entregando-a, como resulta do art. 90.º/2 do atual Regime Jurídico do Processo de Adoção (aprovado pelo art. 5.º/1 da Lei n.º 143/2015) à referida Autoridade Central, porém, como bem reflete, a nosso ver, o Acórdão recorrido, não num caso como o presente.
Como resulta do relato inicial, foram os requerentes convidados a indicar o lugar da sua residência habitual à data da adoção e vieram informar que, à data da adoção, tinham residência habitual na Africa do Sul, o que, sublinha-se, não foi colocado em crise pelo Ministério Público, razão pela qual foi tal informação dada como assente, com o que fica “prejudicada” a argumentação jurídica do recorrente.
Porque o que se dispõe no invocado art. 90.º/2 do RJPA – ou seja, que “nos demais casos, a eficácia em Portugal da decisão estrangeira de adoção depende de reconhecimento a efetuar pela Autoridade Central” – vale e é aplicável tão só às adoções internacionais e, residindo os requerentes na África do Sul à data da adoção, não pode a adoção sob revisão ser considerada como uma adoção internacional.
Efetivamente deve entender-se por «adoção internacional», quer no atual art. 2.º/a) da RJPA, quer antes no DL 185/93 (no seu art. 23.º), quer na Convenção de Haia de 1993 (art. 2.º/1 e 14.º), aquela em que ocorre a transferência de uma criança do seu país de residência habitual para o país da residência habitual dos adotantes, com vista ou na sequência da sua adoção, ou seja, a adoção internacional ocorre: (i) quando os adotantes residem habitualmente em Portugal e pretendem adotar criança residente no estrangeiro, (ii) ou quando a criança reside habitualmente em Portugal e os adotantes residem no estrangeiro.
Pelo que, inversamente, a situação em que os adotantes, sejam de nacionalidade portuguesa ou não, residem habitualmente no país em que procedem à adoção duma criança não configura um caso de adoção internacional.
Ora – é o ponto – é justamente este o caso dos autos: a adoção sub judice foi decretada por um tribunal da África do Sul, país onde os requerentes e o menor residiam.
Não estamos pois perante uma “adoção internacional”, pelo que, sendo o disposto no artº 90.º/2 do RJPA tão só aplicável a adoções internacionais, não é o mesmo convocável para definir quem é competente para o reconhecimento da sentença de adoção em causa, valendo e sendo aplicável o sistema tradicional de controlo prévio das decisões estrangeiras por parte dos órgãos jurisdicionais (o processo especial previsto no art. 978.º e ss. do CPC).
O equívoco interpretativo, antevê-se, decorrerá da expressão “nos demais casos” com que se inicia o art. 90.º/2 do RJPA, porém, tal expressão, sistematicamente interpretada, significa e reporta-se apenas aos demais casos de adoções internacionais (com o sentido atrás referido) e não a todos os casos de adoções decretadas no estrangeiro: o art. 90.º em causa faz parte dum Título (do RJPA) respeitante à Adoção Internacional[3], pelo que a expressão “nos demais casos” reporta-se aos demais casos de adoção internacional (reporta-se “àquilo” de que trata tal Título) e é utilizada em conjugação com o que é referido no art. 90.º/1, em que se preveem as situações de eficácia automática (em Portugal) de sentenças de adoção internacional proferidas no estrangeiro, significando muito evidentemente, a nosso ver, que os “demais casos” (no seguimento do que é dito no art. 90.º/1) contemplam, preveem e se referem a todas as outras sentenças de adoção internacional proferidas no estrangeiro que não gozem de eficácia automática em Portugal (as quais continuam sujeitas a controlo prévio, mas que o art. 90.º/2 do RJPA entregou a uma entidade administrativa – a Autoridade Central, a que se referem os artigos 1.º/2/b), 64.º e 65.º do RJPA).
Concorda-se pois totalmente com a parte essencial do raciocínio expendido pelo Acórdão recorrido, ou seja, com o dizer-se/concluir-se que a decisão revidenda não configura uma adoção internacional, pelo que não está a competência/jurisdição para a revisão da sentença que a decretou retirada aos órgãos jurisdicionais.
Já não se tem a mesma certeza é sobre o que adicionalmente se expende, isto é, o raciocínio de que, ainda que o caso configurasse uma adoção internacional, não lhe seria aplicável o regime de revisão instituído pelo RJPA por a sentença revidenda haver sido proferida antes da entrada em vigor do RJPA; para o que se argumenta que, “à data em que decorreu o processo de adoção no termo do qual foi proferida a sentença revidenda, os requerentes não podiam orientar a sua conduta por referência a um processo de adoção e de reconhecimento da decisão estrangeira que, à data, não existia [v.g. a exigência da intervenção da Autoridade Central, nos termos do n.º 3 do artigo 64.º, e da autoridade competente do país de origem ou de acolhimento como requisito para o reconhecimento da decisão estrangeira de adoção – artº 90º, nº3, al. c) do RJPA].
Efetivamente, o que aqui se invoca/argumenta tem já a ver com os requisitos da revisão do art. 90.º/3 da RJPA, alguns deles – face à doutrina geral da nova lei só reger para o futuro e não se aplicar a factos pretéritos (cfr. art. 12.º do C. Civil) – naturalmente inaplicáveis a uma adoção internacional que haja sido decretada antes da entrada em vigor do RJPA, porém, o art. 90.º/2 da RJPA e a atribuição de competência/jurisdição para a revisão de sentenças de adoção internacional à autoridade central é uma norma processual (sobre a competência), onde a orientação geral (por o direito processual ser um ramo do direito público e por não ser ele que regula a substância do direito invocado) é a da sua aplicação imediata.
Seja como for, o que releva é que a decisão revidenda não configura uma adoção internacional e só para estas o RJPA (art. 90.º/2 do RJPA) entrega a uma entidade administrativa – a Autoridade Central, a que se referem os artigos 1.º/2/b), 64.º e 65.º do RJPA – a competência/jurisdição para a revisão das sentenças (de adoção internacional).
É quanto basta para negar a revista.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista.
Sem custas (isenção do recorrente – Ministério Público).

Lisboa, 15/02/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Resende

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Reconhecimento automático previsto no art. 90.º/1 da RJPA, segundo o qual “as decisões de adoção internacional proferidas no estrangeiro e certificadas em conformidade com a Convenção, bem como as abrangidas por acordo jurídico e judiciário bilateral que dispense a revisão de sentença estrangeira, têm eficácia automática em Portugal”; efeito direto este – dispensa de reconhecimento – que já se encontrava previsto no art 23.º/1 da Convenção de Haia de 29 de Maio de 1993 relativa a Proteção das Crianças e a Cooperação em matéria de Adoção internacional, o que leva Rui Moura Ramos (in RLJ, ano 151, número 4030, pág. 64) a observar que o referido art. 90.º/1 da RJPA é uma disposição “ (…) tautológica, uma vez que a dispensa de reconhecimento que nela se prevê constitui um efeito direto daquela Convenção ou dos acordos jurídicos e judiciários de carater bilateral por aquela referidos”.
[2] Dizemos “em primeira linha”, na medida em que, como já referimos, da decisão da Autoridade Central, está previsto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
[3] Que se inicia no art. 61.º, no qual logo é dito que “as disposições do presente título aplicam-se aos processos de adoção em que ocorra a transferência de uma criança do seu país de residência habitual para o país da residência habitual dos adotantes, com vista ou na sequência da sua adoção.”