Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B841
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
VENDA A PRESTAÇÕES
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
INTERPELAÇÃO
FIADOR
Nº do Documento: SJ20070510008412
Data do Acordão: 05/10/2007
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1 . A força probatória dos documentos autênticos considera-se desde logo estabelecida quanto à sua autenticidade e esta só poderá ser atacada pela via da falsidade.
2 . Quanto à força probatória material, há que distinguir:
Também se considera haver prova plena a afastar apenas com a prova da falsidade, no que respeita à veracidade das atestações do funcionário documentador nos limites da sua competência e até onde o conteúdo verse sobre actos praticados por ele próprio.
No que respeita à veracidade, ausência de vícios ou anomalia do que foi transmitido ao funcionário e vertido no documento ou, bem assim, às atestações deste fora dos seus limites de competência, existe plena liberdade de valoração probatória e, consequentemente, de impugnação.
3 . Previamente à demonstração a que os ónus de prova previstos no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10. se reportam, tem de haver a demonstração, a cargo da parte que quer beneficiar da invalidade das cláusulas contratuais gerais, de que estamos em terreno próprio destas.
4 . A perda do benefício do prazo de pagamento de obrigações a prestações emergente do não pagamento de uma delas não vale quanto ao fiador.
5 . E não é automático, carecendo a exigência de pagamento de todas as prestações assim vencidas, de interpelação.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I –
Nos autos de execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, instaurados no Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde, pelo BANCO AA, SA, contra BB e mulher CC, foram deduzidos embargos pelos executados.

Alegaram, em síntese, que:
As cláusulas do documento complementar não podem ser aplicadas in casu, porquanto, o seu conteúdo não lhes foi lido e explicado, pelo que devem ser consideradas como não escritas e, portanto, excluídas das obrigações assumidas pelos fiadores;
O banco embargado não possui título executivo (obrigação certa, líquida e exigível) contra os fiadores em relação a todas as prestações, já que o empréstimo deveria ser pago em 300 prestações, com início em 30 de Novembro de 1997, sendo que a perda do benefício do prazo atribuído aos mutuários não se estende a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia, ou seja, ao terceiro fiador;
O banco embargado não procedeu de boa fé e, por culpa dele, extinguiram-se os direitos de sub-rogação do fiador: o facto de o embargado não ter comunicado aos embargantes o vencimento imediato de todas as prestações; a resolução do contrato, a interposição da acção executiva contra os mutuários, libera os fiadores, por impossibilidade de sub-rogação;
Resolvido o contrato de empréstimo com fiança, sobre o saldo devedor apenas recairão os juros legais de mora.

Na contestação, o embargado reduziu a quantia exequenda ao montante de € 18.139,55 e impugnou os factos alegados.

Os embargos prosseguiram a sua normal tramitação e, na altura própria, foi proferida sentença.
Concluiu-se pela incerteza, insuficiência, inexistência ou inexequibilidade do título executivo e consequentemente, julgaram-se os mesmos procedentes.

II –
Apelou o exequente, mas debalde, porquanto o Tribunal da Relação do Porto confirmou a decisão de primeira instância.

III -
Ainda inconformado, o exequente pede revista.

Conclui as alegações como segue:

1. As cláusulas excluídas pelos Tribunais recorridos constam de um contrato formalizado por escritura pública, bem como de um documento complementar que faz parte integrante da mesma.
2. A escritura pública é um documento autêntico, dotado de fé pública - que de acordo com o disposto no artigo 371º n.º 1 do Código Civil faz prova plena dos factos praticados pela autoridade pública respectiva, bem como dos factos neles atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
3. A força probatória da antedita escritura só poderia ser elidida mediante a arguição da sua falsidade.
4. Ao não entender assim, as decisões dos Doutos Tribunais recorridos, ignoraram, por completo, as consequências jurídicas que advêm da autenticidade do documento em causa - violando as normas contidas nos artigos 371º e 372º do Código Civil.
5. Não havendo os Recorridos invocado tal excepção - falsidade do documento autêntico - então a formulação dos quesitos correspondentes teria de ser diversa - no sentido de o aludido ónus recair sobre os mesmos - e a final dados como não provados, improcedendo os embargos deduzidos.
Sem prescindir
6. Ainda que assim não seja entendido, sempre teriam tais quesitos de ser dados por provados.
7. Tal como consta da escritura pública que está na base do litígio, os quartos outorgantes, aqui Recorridos, declararam-se solidariamente fiadores e principais pagadores da dívida contraída pelos segundos outorgantes.
8. Na mesma escritura se refere que foi feita a sua leitura bem como o seu conteúdo devidamente explicado aos outorgantes, em conformidade com o disposto na alínea 1) do n.º 1 do artigo 46.º e do n.º 1 do artigo 50.º do Código do Notariado.
9. O contrato abrange não apenas a escritura mas também o documento complementar.
10. Os Recorridos, ao se declararem solidariamente fiadores e principais pagadores no âmbito daquele contrato, fazem-no em relação a todas as cláusulas que do mesmo fazem parte, uma vez que o "contrato" se rege por todas essas cláusulas.
11. Ao ter sido efectuada a leitura da escritura e a explicação do seu conteúdo, os aqui Recorridos ficaram cientes que aquele "Contrato de Compra e Venda com Empréstimo", do qual se constituíram Fiadores, era regulado também por um documento complementar, parte integrante da referida escritura.
12. A escritura exarada faz fé pública de que a sua leitura e explicação do seu conteúdo foi, diligentemente, cumprida pelo Notário que a celebrou.
13. A comunicação adequada e efectiva aos Fiadores das cláusulas constantes do documento complementar, fica provada, desde logo, porque consta da escritura a sua realização.
14. Feita mediante escritura pública, tal comunicação foi assegurada com uma certeza e segurança que tutelam os interesses do consumidor de forma mais favorável do que a exigida pelo regime das cláusulas contratuais gerais.
15. Tornar-se-ia, até, desnecessário que os Recorridos viessem a ter, na prática, conhecimento, pois ao outorgarem o negócio mediante escritura pública e não tomando conhecimento das cláusulas, tal conduta não se conformaria com o grau de diligência legalmente pressuposto.
16. O Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais apenas exige que seja dado à contraparte razoável possibilidade de delas tomar conhecimento.
17. O contrato celebrado - mediante escritura pública - concedeu aos Recorridos uma possibilidade mais do que razoável de conhecer e perceber o seu conteúdo - uma possibilidade mais exigente do que aquela que a lei prevê.
Termos em que
Deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, e, em consequência, ser decretada a anulação das doutas decisões de 1ª instância e do Venerando Tribunal da Relação do Porto, substituindo-as por outra que, julgando os embargos deduzidos improcedentes, ordene o prosseguimento da execução.

Contra-alegaram os executados, concluindo que:

1- Dos factos provados na douta sentença, não há razão para alterar as respostas aos quesitos e a douta decisão recorrida;
2- "Parte devedora", na escritura pública que formalizou os contratos de compra e venda, empréstimo, hipoteca e fiança, são os segundos outorgantes, não os quartos outorgantes;
3- Debalde procuraremos uma declaração dos fiadores no sentido de "conhecer perfeitamente e aceitar integralmente as cláusulas do documento complementar (...) tendo dispensado a sua leitura;
4- Das várias versões de "verdade" plausíveis, em confronto, a que prevalece é a do julgador, após a valoração das provas produzidas;
5- Requer-se a ampliação do objecto de recurso, uma vez que os recorridos obtiveram ganho da causa, mas apenas por parte dos fundamentos pedidos referidos na sua Oposição à Execução;
6- Extinta a obrigação principal por pagamento, com a adjudicação ao exequente do imóvel hipotecado, atendendo ao valor real deste, fica extinta a fiança;
7- A fiança extingue-se, na medida em que o Banco, por culpa sua, não pode sub-rogar os fiadores nos direitos que a ele competem;
8- O credor só pode exigir dos fiadores o que puder exigir dos afiançados. É este o limite da fiança, como obrigação acessória;
9- Normas jurídicas que suportam a tese dos recorridos: 360º, 363°, 369°, 393°, 397°, 405°, seg.s, 592", 627°, 634°, 644°, 651°, 653º, 762º,2 e 1142° do Código Civil e 563°, 684°-A, 690º, 690º-A, 698º, 5 do Código de Processo Civil;
10- No entender dos recorridos, a interpretação e aplicação das normas referidas no item precedente, deveria ter sido as conclusões 1 a 8.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Ex.as deverá ser julgado improcedente o presente recurso e, subsidiariamente ser ampliado o seu objecto tendo em vista conhecer os fundamentos alegados pelos recorridos e manter-se a douta decisão recorrida com o consequente arquivamento da execução.

IV –
O recorrente levanta, como se vê das conclusões das alegações que se transcreveram, a questão consistente em saber se:
O regime das cláusulas contratuais gerais em que se apoiou a decisão recorrida é afectado, nos termos pretendidos, por as cláusulas constarem de documento autêntico; na medida em que seria necessária a arguição de falsidade e porque tal documento foi lido e explicado pelo notário.

Os recorridos, como referem nas contra-alegações, ampliaram o recurso e tal ampliação foi admitida por despacho do relator.
Levantam as questões referentes à:
Extinção da obrigação principal por pagamento, com a adjudicação do imóvel hipotecado, atendendo ao valor real deste, com a consequente extinção da fiança;
Extinção da fiança na medida em que o banco, por culpa sua, não pôde sub-rogar os fiadores nos direitos que a eles competem;
Não extensão da perda do benefício do prazo a eles, fiadores, devendo o banco aguardar o pagamento prestacional de cada uma das 300 prestações mensais até ao ano de 2002;
Incerteza, insuficiência, inexistência ou inexequibilidade do título executivo, atendendo ao valor já cobrado de € 40.000 que deverá ser levado em conta nas prestações vencidas e vincendas;
Impossibilidade de execução por parte da embargada por não saber ao certo o montante da dívida e por não ter transitado em julgado a decisão final na execução instaurada contra os mutuários.

V –
Vem provada a seguinte matéria de facto:

A) Nos autos de execução principais, o executado - embargado reclama o pagamento da quantia de Euros 33.116,52, sendo Euros 29,893,85 referente a capital, Euros 3.098 referente a juros de mora vencidos e Euros 123,95 relativo a imposto de selo, acrescida de juros vincendos e respectivo imposto de selo sobre o capital em divida, quantias em débito relativamente ao contrato intitulado “Compra e venda e empréstimo com fiança”, formalizado por escritura pública celebrada em 20 de Novembro de 1997, na Secretaria Notarial da Póvoa do Varzim, e pelo documento particular que dela faz parte integrante, juntos, respectivamente, a fls. 6-15 e 16-26 dos autos principais de execução, que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
B) Na referida escritura, .... e mulher ...., aí segundos outorgantes, confessaram-se solidariamente devedores ao embargado (anteriormente denominado BCI – Banco de Comércio e Industria, SÁ), ali terceiro outorgante, da importância de dez milhões de escudos (Euros 49.879,79) que, no acto, declararam receber a título de empréstimo;
C) Ficou convencionado, na dita escritura, que o pagamento do mútuo seria efectuado em 300 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, sendo o valor de cada prestação, durante os primeiros seis meses do contrato, no montante de Euros 47.016$00;
D) Ficou ainda convencionado que durante os primeiros seis meses de vigência do contrato o capital mutuado venceria juros a uma taxa anual nominal, variável, igual à praticada pelo embargado para este tipo de empréstimo a prazo, a qual, na data de celebração do contrato, equivalia a uma taxa anual de juro remuneratório de 7,75%, findos os quais vencer-se-iam juros a uma taxa que seria revista semestralmente e que resultaria da média aritmética dos valores diários, exceptuados os últimas dois dias, da taxa LISBOR a seis meses do mês anterior à revisão, média à qual acresceriam 2,25 %;
E) Na mesma escritura ficou a constar que os segundos e terceiros outorgantes declararam que o citado empréstimo era concedido nos termos do Dec-Lei 328-B/86, de 30.09 e regulado por este e demais legislação complementar e ainda pelas condições específicas e constantes da escritura, bem como pelas clausulas constantes “de um documento complementar que faz parte integrante desta escritura e que foi elaborado nos termos do número dois, do artigo sessenta e quatro, do Código do Notariado, disposições legais e clausulas essas que a parte devedora declara conhecer perfeitamente e aceitar integralmente dispensando, neste momento, a sua leitura”;
F) Na mesma escritura os executados – embargantes, que ali figuram como quartos-outorgantes, declaram que se constituíam solidariamente fiadores e principais pagadores da divida contraída pelos mencionados .... e mulher ...., no âmbito do mesmo contrato, com renúncia expressa ao benefício da excussão prévia;
G) O documento complementar acima referido em A) e E) foi rubricado e assinado, além do mais, pelos ora embargantes e pelo embargado;
H) No dito documento complementar ficou, além do mais, estipulado: “Em caso de incumprimento no reembolso do crédito, incluindo neste, quer a dívida de capital, quer prestações dos juros, serão devidos pelo mutuário ao Banco juros de mora calculados à taxa de juro remuneratória contratual que se encontrar nesse momento em vigor, acrescida, a título de cláusula penal, de uma sobretaxa de quatro por cento, perdendo bonificações” – ponto um da Cl.ª 11ª;
I) Ainda o mesmo documento complementar ficou a constar que: “O incumprimento, por parte do mutuário, de qualquer uma das obrigações decorrentes do presente contrato, poderá determinar o vencimento e exigibilidade da totalidade da divida e de todas as importâncias cujo pagamento seja devido nos termos contratuais e de lei, se o Banco assim o entender” – Clª 15ª;
J) Para garantia das obrigações emergentes do contrato mencionado em A), os mutuários, .... e mulher ...., constituíram uma hipoteca a favor do embargado sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n° 2889, da freguesia de Vila do Conde e inscrito na matriz predial sob o artigo 624°, até ao limite de Euros 72.824,49, prédio esse que na mesma escritura adquiriram;
L) Em data anterior a 15.03.99, os mutuários deixaram de pagar ao Banco embargado três prestações do mútuo referido em A) a E);
M) O embargado-exequente remeteu ao embargante marido a carta, junta a fls. 9 dos autos e cujo conteúdo se dá por reproduzido, datada de 15.03.99, dando-lhe conhecimento, na qualidade de fiador, de se encontrarem vencidas e por regularizar 3 prestações do crédito à habitação mencionado em A) a E), num total 176.466$00, mais referindo que a situação deveria ser regularizada no prazo máximo de seis dias após a recepção da carta, sob pena de cobrança coerciva;
N) Em 27.09.99 a embargante instaurou contra .... e ....execução hipotecária para pagamento de quantia certa, a qual ainda se encontra pendente e corre termos por este juízo com o n° 572/99, invocando a falta de pagamento das prestações relativas ao contrato de mútuo mencionado em A) a E), vencidas desde 30.11.98, peticionando o montante total de 10.376.372$00 (Euros 51.757,13) – sendo 49.171,53 referente a capital, Euros 1.975,02 referente a juros de mora, e Euros 79,00 relativo a imposto de selo – acrescida de juros vincendos à taxa legal, acrescidos de 4% (mora) e respectivo imposto de selo até integral pagamento;
O) Nesses autos de execução, o imóvel hipotecado e aí penhorado, mencionado em J), após frustrada a primeira venda judicial designada, foi adjudicado, em 24.10.02, ao ali exequente e ora embargado, pelo valor de Euros 40.000,00, tendo este sido dispensado do depósito do preço;
P) Entre 13.10.99 e 11.07.01, para abatimento ao montante em débito relativamente ao contrato de mútuo referido em A) a E) foi entregue ao embargado a quantia total de Euros 6.994,19;
Q) Com base no facto atrás mencionado, não tomado em consideração no requerimento inicial de execução, o embargado – exequente declarou reduzir a quantia exequenda ao montante de Euros 18.139,55, sendo Euros 17.202,12 de capital, Euros 901,37 de juros de mora contados até à data da entrada da acção executiva e Euros 36,06 de imposto de selo, sem prejuízo de juros vincendos contados à taxa constante do requerimento executivo e respectivo imposto de selo;
R) Após a recepção da carta referida em M), os embargantes dirigiram-se à agência bancária na Póvoa do Varzim do embargante e aí foram informados que os mutuários já haviam pago as prestações em falta e mais um ou dois meses;
S) Na mesma agência bancária foi ainda dito aos embargantes que o assunto estava resolvido, para não se preocuparem e que se houvesse algum problema voltariam a ser avisados;
T) Os embargados não voltaram a ser avisados pelo embargante antes da instauração da execução principal;
U) Os embargantes não foram notificados do vencimento imediato de todas as prestações relativas ao contrato referido em A), nem foram notificados da resolução do mesmo contrato por parte do embargado;
V) Só tendo tido conhecimento de que os mutuários não tinham mais cumprido as suas obrigações prestacionais perante o embargado, que as prestações vencidas tinham sido consideradas imediatamente vencidas e que contrato tinham sido resolvidos aquando da citação para a acção executiva de que estes embargos são dependência;
X) Caso tivessem tido conhecimento de tais factos, antes da instauração da acção executiva, os embargantes teriam negociado o pagamento do crédito ao Banco embargado, por forma a ficarem sub-rogados nos direitos deste face aos mutuários;
Z) À data da adjudicação, em 24.10.02, mencionada em O), o valor real do imóvel aí referido era de 112.500,00 Euros.

VI –
A primeira das questões levantadas pelo recorrente envolve três vertentes que importa não confundir, ainda que numa fase logicamente posterior tenhamos de as conjugar entre si.
Referimo-nos:
Ao procedimento previsto no Código do Notariado relativamente ao papel do notário na elaboração dos documentos (artigo 4.º, n.º1) e ao regime dos chamados “Documentos complementares”(artigo 64.º, n.ºs 2 a 4);
Ao regime probatório dos documentos autênticos;
À figura das cláusulas contratuais gerais.

VII –
De acordo com o mencionado artigo 4.º, n.º1, o notário deve redigir o instrumento público conforme a vontade das partes, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance.
Especificamente, quanto aos documentos complementares, o artigo 64.º dispõe, sempre considerando o que agora nos interessa, que as cláusulas contratuais dos actos em que sejam interessadas as instituições de crédito ou em que a extensão do clausulado o justifique, podem ser lavradas em documento separado. Os documentos a que se referem os números anteriores devem ser lidos juntamente com o instrumento e rubricados e assinados pelos outorgantes e pelo notário. A leitura é, no entanto, dispensada se os outorgantes declararem que já os leram ou que conhecem perfeitamente o seu conteúdo, o que deve ser consignado no texto do instrumento.

VIII -
A definição de documentos autênticos resulta do artigo 369.º, n.º1 do Código Civil e não se duvida de que o documento que é agora objecto de análise tem essa natureza.
A força probatória dele considera-se desde logo estabelecida quanto à sua autenticidade (artigos 370.º, n.ºs 1 e 2) e esta só poderá ser atacada pela via da falsidade.
Quanto à força probatória material, há que distinguir:
Também se considera haver prova plena a afastar apenas com a prova da falsidade, no que respeita à veracidade das atestações do funcionário documentador nos limites da sua competência e até onde o conteúdo verse sobre actos praticados por ele próprio (art.ºs 371.º e 372.º) (1).
Já no que respeita à veracidade, ausência de vícios ou anomalia do que foi transmitido ao funcionário e vertido no documento ou, bem assim, às atestações deste fora dos seus limites de competência, existe plena liberdade de valoração probatória e, consequentemente, de impugnação.

IX – 1
Por sua vez, as cláusulas contratuais gerais (abaixo ccg) estão previstas no Decreto-lei n.º 446/85, de 25.10.
Este normativo sofreu manifesta influência da AGBG alemã de 1976 (2).
A lei germânica, logo na primeira parte do § 1, estatuiu que:
“Cláusulas Contratuais Gerais são todas as que sejam pré-formuladas para uma multiplicidade de contratos e são apresentadas à contraparte contratual na conclusão dum contrato.” (3).
A lei portuguesa não seguiu este caminho de redacção e encaminhou o intérprete para dificuldades com repercussão prática.

Dispõe, no artigo 1.º, n.º1 daquele Decreto-Lei, que:
“As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma.”
Numa primeira interpretação, existiriam, então, ccg que não resultam de ausência de negociação ou que os proponentes ou destinatários indeterminados não se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar e que escapariam ao referido diploma. Haveria um círculo referente às ccg e dentro deste círculo, as que se caracterizassem de acordo com o referido pela lei, estariam submetidas ao regime desta. De fora ficariam, então, ccg que não tinham estas características.
Ficaria, então, uma lacuna sobre o que são ccg.
As características apontadas não seriam definitórias, mas particularizantes relativamente a conceptualização necessariamente preexistente.
Por aqui teríamos, pois, o caminho aberto para, numa primeira fase, exigir a prova de que se estava dentro do círculo amplo das ccg e para só numa segunda fase se atentar nos ónus de prova, quer do artigo 1.º, n.º3, quer do artigo 5.º, n.º3.

Mas não é esta a interpretação que vem sendo seguida.
A que vem sendo adoptada cifra-se em considerar os elementos constantes daquele n.º1 do artigo 1.º como definitórios. As ccg seriam as que tinham sido elaboradas sem prévia negociação individual, propostas a destinatários indeterminados que se limitaram a subscrevê-las ou aceitá-las. Ou seja, as que obedecessem aos requisitos da pré-elaboração, rigidez e indeterminação.
Só que, assim pensando, somos conduzidos a um entrechoque lógico:
As ccg são aquelas que, numa realidade contratual, tiverem aquelas categorias e, sendo-o, regem-se pelo Decreto-Lei n.º 446/85. Mas, para se aferir se as têm ou não, já temos que atentar no regime deste normativo no que concerne ao ónus de prova. Ou seja, se, depois de atento tal regime, virmos que o proponente das cláusulas demonstrou que houve negociação prévia, por exemplo, as cláusulas deixam de ter tal natureza e afastado fica o normativo que já antes se aplicara. Aplicou-se e, depois, não podia ter-se aplicado. Um “non sense”.
Da imposição, à cabeça, dos ónus de prova acabados de referir pode resultar ainda uma violência que o julgador/intérprete não pode cobrir. Em todas as cláusulas contratuais, a parte a quem não agradasse o respectivo cumprimento, invocava que as cláusulas dum contrato que lhe não convinham haviam sido rígidas, sem negociação prévia e com características de indeterminação e, só por aí, atirava para cima da contraparte ónus de prova terríveis, cominados com o afastamento das mesmas cláusulas. Na prática, um modo fácil de não cumprir, legalmente, contratos. O que também é inaceitável.
Desta problemática deram conta os Acórdãos deste tribunal de 24.2.2005 e de 25.5.2006, cujos textos se podem ver em www.dgsi.pt., nos quais se decidiu que, previamente à demonstração a que os ónus de prova se reportam, teria de haver a demonstração, a cargo da parte que quer beneficiar da invalidade das cláusulas contratuais gerais, de que estamos em terreno próprio destas. (4)

Nem outra coisa, aliás, corresponde ao entendimento do Supremo Tribunal Alemão que – tendo por esta construção, é certo, logo à cabeça da lei, a definição que transcrevemos supra – decidiu, no Acórdão de 14.5.1992, posteriormente invocado noutros, que quem pretender beneficiar do regime das ccg tem de demonstrar que as cláusulas insertas no contrato aparentavam ser ccg. (5)

E não temos dúvidas de que essa primeira demonstração deve estar a cargo do destinatário das cláusulas por se integrar no regime próprio da invocação e prova dos factos extintivos do direito invocado pela contraparte e cair, assim, no âmbito do n.º2 do artigo 342.º do Código Civil.

IX – 2
Decerto que, com as regras do ónus de prova, se não confunde outra realidade que consiste na facilidade de prova ou, mesmo de quase evidência dos factos probandos. (6). Perante, por exemplo, um contrato que corresponde a um exemplar dos muitos iguais que o contratante elaborou, com o local já destinado à assinatura, é manifesto que a demonstração (ou mesmo presunção judicial) de que estamos dentro do círculo de abrangência do regime próprio das ccg, se torna muito mais fácil. Mas, em todo o caso, não estamos perante factos que não careçam de prova por serem notórios, nem que resultem da prova plena que os documentos autênticos – se as cláusulas vierem a ser insertas em documentos com esta natureza - alcançam. Mas tudo isso diz respeito à fixação factual própria das instâncias, não podendo este Supremo Tribunal, à míngua de prova ou de presunção judicial vindas de baixo, mais do que aplicar o regime que resulta do ónus de prova.

IX - 3
Na enumeração factual, supra transcrita, nada consta que permita concluir que as cláusulas constantes do “Documento Complementar” se integrem no mundo das ccg e, por isso, as respostas de “não provado” aos quesitos onde se perguntava se foram previamente lidas e comunicadas aos embargados e lhes foi explicado o respectivo conteúdo são inócuas.

X –
Conjugando as três vertentes que vimos trazendo (em VII, VIII e IX) podemos concluir que:
Não se podem subsumir no regime das cláusulas contratuais gerais as cláusulas constantes do “Documento Complementar”, por os embargados não terem demonstrado os factos que permitiriam situar-nos no domínio próprio destas;
Só procedendo-se à mencionada subsunção, ganharia relevo a questão da sua inserção em documento autêntico, passando a ter-se como certo, por míngua de invocação de falsidade, que a parte devedora, aquando da elaboração do documento, declarou conhecê-las e aceitá-las integralmente, dispensando, no momento ao acto, a sua leitura, mas sendo isso insuficiente, porquanto o artigo 5.º, n.º2 do aludido Decreto-Lei n.º 446/85, exige antecedência – que arrasta necessariamente um período de reflexão – a qual não se inclui naquela declaração e, bem assim, nos deveres do notário. (7).

……………………

XI –
Chegados aqui, há que atentar na ampliação do recurso levada a cabo pelos recorridos.
Nos seus termos está incluída a não extensão a eles da perda do benefício do prazo, por se tratar de fiadores e lhes valer o artigo 782.º do Código Civil.
Este preceito abrange, quer os co-obrigados do devedor, quer os terceiros que a favor do crédito tenham constituído qualquer garantia. Não releva, portanto, a discussão que podíamos abrir sobre se os ora recorrentes são co-devedores ou fiadores.
Poderia relevar antes eventual acordo das partes no sentido do afastamento desta norma que, atento o princípio da liberdade contratual consubstanciado no artigo 405.º, n.º1, tem natureza supletiva. Mas nada disso consta do acordo, como se pode ver da cláusula 15.ª do “Documento Complementar”.
O vencimento antecipado que levou à execução não valia quanto aos ora recorridos que não podiam ser executados de imediato. (8).

XII –
De qualquer modo, mesmo que contra eles valesse a perda do benefício do prazo, sempre haveria que considerar que não provou o banco exequente que os tenha interpelado para levarem a cabo esse cumprimento imediato. Pelo contrário, até, consta da enumeração factual que o não fizeram (ponto U, pormenorizado nos pontos que o antecedem e seguem).

O vencimento antecipado de todas as prestações relativamente às quais fora fixado um prazo ficou contratualmente fixado como não automático. É o que consta da parte transcrita na alínea I) da enumeração factual.
Aliás se, por ausência de estatuição contratual, resultasse directamente da lei, outro não seria o regime, por outra não ser a melhor interpretação do artigo 781.º do Código Civil.
A ausência de automatismo no vencimento antecipado arrasta uma consequência: Só pode levar-se a cabo tal exigência – mormente através de instauração de processo executivo – depois de interpelação ao devedor para cumprir a obrigação de pagamento que então ganhou novos contornos. É o que vem entendendo este tribunal (Acórdãos de 15.3.05, 17.1.06, 6.2.07 – que se podem ver em www.dgsi.pt – de 24.10.06 e de 16.11.06, revistas 3354/06 e 2911/06, respectivamente) e corresponde ao entendimento de A. Varela (Das Obrigações em Geral, II, 54), Almeida Costa (Direito das Obrigações, 6.ª ed. 893), Ribeiro de Faria (Direito das Obrigações, II, 325, nota de pé de página), Menezes Cordeiro (Direito das Obrigações, II, 193) e Menezes Leitão (Direito das Obrigações, II, 158).
Também por aqui naufraga a pretensão recursória, ficando prejudicadas as restantes questões que os recorridos pretendiam ver apreciadas.

XIII –
Termos em que se nega a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 10 Maio 2007
João Bernardo (relator)
Oliveira Rocha (Votei a decisão, com ressalva do ponto XII)
Oliveira Vasconcelos

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(1)Cfr-se Manuel de Andrade, NEPC, 227.
(2) Cfr-se Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, 428, Sousa Ribeiro, Responsabilidade e Garantia Em Cláusulas Contratuais Gerais, 4 e, bem assim, os Acórdãos deste tribunal de 6.2.97 e 5.11.97 (CJ STJ 1997, I, 99 e III, 120), respectivamente.
(3)Esta e as demais normas referentes às ccg estão agora no § 305.º e seguintes do BGB, o Código Civil
(4) Esta nossa posição – cremos – também se enquadra bem nos limites relativos à favorabilidade que deve assistir àquele que contrata com quem apresenta as ccg. Não se põe em causa que esta favorabilidade tenha que existir. Mas devemos também ter presente que muitas ccg representam antes uma protecção do destinatário, porquanto a multiplicidade aumenta a possibilidade censura ou provoca, por vezes, até a necessidade legal de aprovação administrativa prévia. Essencialmente, devemos atender a que o Direito visa disciplinar a vida económica (que tem como pressuposto de desenvolvimento a massificação e standartização contratual) e não determinar o seu bloqueio. A todo este propósito, parecem-nos pertinentes as palavras de Fernando Araújo, em Teoria Económica do Contrato, 460 e seguintes.
(5)Ainda que a prova dessa aparência apareça facilitada. Pode-se ver o texto, inserindo no motor de busca Alpmann schmidt.de, depois, Urteile e, depois, mesmo pela data.
(6) Disso se dá conta o aresto alemão citado
(7) Abstraímos aqui da questão de saber se os embargantes integram a “parte devedora” constante do texto do documento, por não nos interessar.
(8)Cfr-se, Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 97.