Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
155/04.5TBFAF.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RECLAMAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ASSENTE
RECLAMAÇÃO DA BASE INSTRUTÓRIA
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROVA DOCUMENTAL
REMISSÃO PARA DOCUMENTOS
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
CAMINHO PÚBLICO
ILICITUDE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Doutrina: Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Vol., pags. 154 e 1555; Pires de Lima e Antunes Varela (Anotado, vol. I, 4ª ed., pags. 471 e sgs); A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, 9ª ed., 607/8; Marcello Caetano, ”Manuel de Direito Administrativo”, 5ª edição, Coimbra Editora, 1960, pag. 561; Castro Mendes, Revista dos Tribunais, 83, 38, Anselmo de Castro, Lições, volume III, página 466 e seguintes, Jacinto Rodrigues Bastos, Nota ao Código de Processo Civil, 2a Edição, Volume III, 266 e seguintes e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2a edição, 1985, páginas 414 e 415; Almeida Costa, 4a ed. Obrigações, pág. 397.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ARTIGO 511.º, N.ºS 2 E 3, DO CPC, ARTIGO 508.º-A, N.º 1, AL. E), ARTIGO 508.º-B, N.º 2, ARTIGO 722.º, N.º 2 IN FINE, CÓDIGO CIVIL: ARTIGO 483.º
Jurisprudência Nacional: ASSENTO Nº 14/94, DE 26 DE MAIO; AC.STJ, DE 22.4.97, (CJ, II-62); ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, DE 6-11-2002, CONFIRMADO POR ACÓRDÃO DO S.T.J. DE 6-5-2003; ACÓRDÃO DO STJ, DE 12 DE JANEIRO DE 1994, IN COL. JURISP. STJ 1994, I, 31; ACÓRDÃO DE 12 DE MARÇO DE 1998, IN AC. STJ, VI, 1, PÁG. 124; AC. DO STJ DE 21 DE FEVEREIRO DE 1995, IN COL. JURISP., ANO 1995, I, PÁGINA 96; ACÓRDÃOS DA RELAÇÃO DO PORTO, DE 2 DE MARÇO DE 1978, IN COL. JURISP. ANO III, TOMO II, PÁGINA 617 E DA RELAÇÃO DE ÉVORA, DE 29 DE JULHO DE 1982, IN COL. JURISP., ANO IV, 277, E AC. REL. PORTO, DE 30/3/1992, IN BMJ 415, PÁG. 726, ENTRE MUITOS; ACS. REL. DE LISBOA, DE 17/1/91, IN COL. JUR. 1991, 1, 133 E DE 24/6/93, IN COL. JUR. 1993, 3, 139, DE 28/10/1993, IN COL. JUR. 1993, 4, 159 E DE 15/12/93, IN BMJ 432, 419.
Sumário :
I - As decisões da 1.ª instância sobre a matéria de facto são passíveis de reclamação perante o próprio tribunal, com fundamento em deficiência, excesso ou obscuridade; porém, a decisão respectiva não pode ser objecto de recurso autónomo (art. 511.º, n.ºs 2 e 3, do CPC).
II - Quando tenha existido audiência preliminar, a reclamação deve fazer-se imediatamente à prolação da decisão (art. 508.º-A, n.º 1, al. e) do CPC) e, na situação oposta, a reclamação deve ser apresentada no início da audiência de discussão e julgamento (art. 508.º-B, n.º 2, do CPC).
III - No entanto, se vier a ser interposto recurso da decisão final, o seu objecto poderá ser alargado à reapreciação da matéria de facto no que concerne à parte dessa matéria concretamente questionada.
IV - O réu tem, portanto, toda a legitimidade para, no recurso da decisão final, fazer notar ao tribunal as omissões da especificação e do questionário, mesmo que não tenha apresentado qualquer reclamação contra as referidas peças processuais.
V - Os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos, constituindo, portanto, prática incorrecta, na decisão sobre a matéria de facto, remeter para o teor de documentos.
VI - Pode-se compreender, embora sem a aceitar, especialmente se for o caso de grande profusão de documentos, ainda que essa profusão não pressuponha, nem tenha que lhe corresponder profusão de factos, maxime, de factos relevantes para a decisão, seja esta em que sentido for.
VII - Dar por reproduzidos documentos ou o seu conteúdo é bem diferente de dizer qual ou quais os factos que, deles constando, considera provados - provados quer por força do próprio documento em si, quer por outra causa (v.g. acordo sobre um facto nele indicado, embora o documento não gozasse de força suficiente para o dar como provado).
VIII - Pode, portanto, ao longo do acórdão tornar-se necessário “abrir” algum desses documentos; mas, se for esse o caso, ter-se-á de o fazer com respeito pela competência do tribunal a quo e apenas aí considerar o que deva ser tido como plenamente provado (art. 722.º, n.º 2 in fine, do CPC).
IX - Não se reveste de ilicitude, para efeitos do disposto no art. 483.º do CC, a informação prestada por um munícipe de que um caminho existente no seu prédio não era público e que foi insuficiente para desfazer a dúvida que o próprio Município tinha a respeito de tal caminho, levando a que o mesmo tivesse imposto ao autor - que pretendia a concessão de licença para construção de duas moradias unifamiliares, sendo que o respectivo acesso se faria unicamente pelo troço em causa - a necessidade de obtenção prévia de uma decisão judicial que atestasse a natureza pública do caminho, atrasando, deste modo, a conclusão e fruição dos imóveis projectados.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1.
AA e mulher BB instauraram acção declarativa, com processo ordinário, contra CC e mulher DD, pedindo a condenação destes a pagar-lhes, a título de indemnização por perdas e danos, a quantia de € 110.484,83, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.

Alegam que adquiriram dois lotes de terreno, destacados do Campo da Veiga de Baixo, Castilhão, Fafe. No adquirido inicialmente, construíram uma casa de habitação e, no lote comprado em segundo lugar, o autor requereu licença para construção de uma outra casa, em 22-3-1994, apresentando o respectivo projecto de arquitectura.
Porém, em 18-7-94, o vereador competente da Câmara Municipal de Fafe, uma vez que se haviam colocado dúvidas acerca do terreno onde se pretendia construir, mandou que o réu se pronunciasse sobre o caminho que constituía o único acesso à construção pretendida, sendo que a licença para a construção foi recusada com base na oposição que o réu fez junto da Câmara Municipal à passagem por tal caminho.
Em 31-1-96, os autores e outros utilizadores do referido caminho intentaram uma acção judicial contra os réus, na qual foi decidido declarar constituída servidão de passagem a pé e com quaisquer veículos a favor dos prédios ali identificados, que os réus são proprietários da parte subsistente do Campo da Veiga de Baixo, na qual se integra o referido arruamento e que os primitivos donos do Campo da Veiga de Baixo destinaram uma faixa de terreno, com a largura de seis metros, para um arruamento iniciado no caminho, que, pelo seu lado norte, margina tal prédio.
Os réus tinham conhecimento que esse arruamento tinha sido propositadamente aberto pelos anteriores donos do Campo da Veiga de Baixo, para caminho dos lotes, designadamente daquele dos autores, que, assim, sofreram prejuízos, uma vez que, desde a data em que pretenderam construir e até ser proferida sentença definitiva, decorreram mais de nove anos, tempo suficiente para provocar um considerável aumento do custo da construção. Por outro lado, sofreram desgosto e sofrimento com a referida situação.

Os réus contestaram, impugnando os factos alegados pelos autores e pedindo a improcedência da acção.
Saneado, instruído e julgado o processo, foi proferida sentença, que, julgando a acção procedente, condenou os réus a pagarem aos autores, a título de danos patrimoniais, a quantia que se vier a apurar em execução de sentença e, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 5.000,00, quantias essas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Inconformados, os réus recorreram, ainda que sem êxito, para o Tribunal da Relação de Guimarães.

Ainda irresignados, pedem revista.

Concluíram a alegação do recurso pela seguinte forma:
O acórdão recorrido confirmou uma sentença da primeira instância, que condenou os ora recorrentes a pagar aos autores uma indemnização, a liquidar em execução de sentença quanto a danos patrimoniais, e já liquidada, em € 5.000, quanto a danos não patrimoniais, pois se entendeu que os réus devem ser responsabilizados pelo facto de a Câmara Municipal de Fafe não ter concedido aos autores licença de construção de um prédio urbano, face à informação do réu de que o lote de terreno dos autores onde a construção seria levada a efeito não era servido de qualquer "caminho, muito menos de natureza pública"(sic);
Da sentença fora interposto recurso, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito; quanto à matéria de facto, porque o tribunal não analisou nem considerou provada a matéria de facto transcrita por remissão, mas sem análise das respectivas incidências e consequências (cfr. os factos 6, 8, 9 atrás transcritos constantes de documentos juntos aos autos, pelos autores, que os réus expressamente aceitaram, e que a sentença alude como "cujo teor aqui se dá por reproduzido", o que constitui "prática incorrecta", como sustentam os Acs. Rel. de Lisboa, de 17/1/91, in Col. Jur. 1991, 1, 133 e de 24/6/93, in Col. Jur. 1993, 3, 139, de 28/10/1993, in Col. Jur. 1993, 4, 159 e de 15/12/93, in BMJ 432, 419, porquanto deve "transcrever-se o que relevar desse documento", violando, assim, a sentença o nº1 do artigo 511° do Código de Processo Civil; e, quanto à matéria de direito, por se entender que a informação do réu foi verdadeira e em nada podia prejudicar os autores, acabando por ser confirmada por acórdão deste STJ;
Por tais motivos, pedia-se ao Tribunal de apelação, nos termos do art. 712°, nº1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, que corrigisse a matéria de facto fixada, por forma a aditar-lhe expressamente o teor dos documentos juntos aos autos, na parte relevante e com interesse para a decisão, nos lugares onde a sentença se refere apenas a documentos "cujo teor aqui se dá por reproduzido", sugerindo-se também que fossem levados aos factos provados, os seguintes, que constam desses documentos e que fossem incluídos seguidamente e em desenvolvimento dos factos nºs 6, 8 e 9 (utilizando a numeração atrás referida):
a) Facto 6 A
Da informação datada de 16/7/1994, que foi comunicada aos autores pela Câmara Municipal de Fafe, consta que "o Sr. Presidente não considera aquele caminho público", que "o licenciamento implicava o reconhecimento daquele caminho como público", que "só podia ser autorizada a construção (...) desde que: a) os interessados provassem judicialmente a natureza pública do caminho", caso em que "b) (...) "deveriam previamente proceder à sua pavimentação em cubos", que se propõe "a emissão de parecer favorável ao projecto de arquitectura condicionado à prévia decisão judicial de natureza pública do caminho" ou, "caso esta hipótese se não verifique, poderá, neste caso, resolver-se a situação, se o requerente, ao definir os limites da área a destacar, deixar uma passagem para a construção existente, com pelo menos 3 metros".
b) Do Facto 8 deve ser eliminada a expressão "cujo teor se dá aqui por reproduzido", porque a carta aí referida está efectivamente transcrita nesse mesmo facto n° 8;
c) Do Facto 9 deve eliminar-se a expressão "cujo teor se dá aqui por reproduzido" e ser acrescentado um Facto 9 A, de onde conste o teor da "informação de fls. 43", a saber: que "o Sr. CC, na petição apresentada, refere (que) “em seu entendimento, o terreno do caminho é sua propriedade", enquanto "o Sr. AA (...) apresentou uma declaração do antigo proprietário daqueles terrenos (...)" onde "é referido que (...) a abertura deste caminho se destinava unicamente a dar acesso aos lotes de terreno criados";
E ao mesmo tribunal de apelação, em termos de direito, pediu-se a revogação da decisão, porque a procedência do pedido sempre dependeria de verificação das circunstâncias aludidas nos arts. 483º e 563º do Código Civil, ou seja, de ter ocorrido um acto voluntário dos réus, que, com dolo ou mera culpa, viole direitos de outrem, de modo ilícito, e se verificasse nexo de causalidade adequada entre os danos sofridos pelo lesado e a acção do lesante em relação aos danos que este provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (cfr. Almeida Costa, 4a ed. Obrigações, pág. 397 e Ac. Rel. Porto, de 30/3/1992, in BMJ 415, pág. 726, entre muitos), circunstâncias seguramente não verificadas;
Estava, de facto, assente e provado, perante os indicados documentos, que a Câmara Municipal de Fafe fazia depender a concessão aos autores da licença de construção por eles pedida, nos termos da lei - porque os autores requereram o destaque de uma parcela de lote de terreno por eles previamente unificado (antes eram 2 lotes) - da observância do disposto no artigo 5°, nº1, alínea a), do Decreto Lei n° 448/91, de 29 de Setembro, ou seja, de as duas parcelas de terreno - a destacar e a sobrante - confrontarem com arruamentos públicos, o que no caso não sucede, visto que a parcela de terreno a destacar confronta apenas com um caminho de servidão, cujo solo é propriedade dos réus;
Por outro lado, a declaração do réu marido que, a solicitação da Câmara - que pretendia que os autores "provassem judicialmente a natureza pública do caminho" (sic) e informara os mesmos autores que o Presidente da Câmara "não considerava aquele caminho público" (sic) - foi plenamente comprovada na acção movida pelos autores e outros (Proc. nº 44/96, 1 ° Juízo do Tribunal Judicial de Fafe) por decisão confirmada até ao STJ e há muito transitada em julgado;
Na verdade, nessa acção, o pedido de que o dito armamento estava "integrado no domínio público" foi julgado improcedente, declarando-se apenas "constituída uma servidão de passagem a pé e com quaisquer veículos" e a reconvenção foi julgada procedente, declarando-se que os aqui réus são proprietários do solo desse caminho de servidão, decisão que, para os autores, de nada serve, visto que só poderiam construir se o caminho fosse público e não é;
Daí concluir-se - o que ora se reitera - que não ocorre, deste modo (cfr. os arts. 483° e 487° do Código Civil) facto lesante (a informação do réu, para além de correcta e verdadeira, como se comprova face ao decidido pelo tribunal na acção atrás citada, em nada prejudicou os autores, que, de resto, no seu articulado inicial - cfr. art. 16º -, alegam que a decisão camarária é nula por violação dos arts. 100° e 101º do Código de Processo Administrativo, mal se percebendo como, ainda assim, e sem reagirem contra tal invocada nulidade, ainda querem responsabilizar os réus, como não ocorre qualquer ilicitude (a procedência do pedido reconvencional bem demonstra que o réu agiu dentro dos seus direitos e licitamente, visto que tinha toda a razão em sustentar que o solo do caminho era sua propriedade), nem daí decorreu qualquer dano (como vimos, os autores podiam sempre construir, como a Câmara Municipal de Fafe lhes sugeriu, para tanto bastando que "ao definir os limites da área a destacar, deixar uma passagem para a construção existente com pelo menos três metros") nem, e muito menos, ocorreu qualquer nexo de causalidade entre o facto - informação do réu - e o resultado - o arquivamento do processo de construção - pois o arquivamento foi consequência, por um lado, do facto de os autores não terem demonstrado a natureza pública do caminho que serviria a construção e, por outro lado, do facto de não terem optado pela solução de estabelecerem uma passagem entre os dois lotes, como a Câmara lhes sugeriu, ou até do facto de, se consideraram ter a Câmara cometido a nulidade que apontam ao procedimento (art. 16° da p.i.) contra ela não terem reagido;
O acórdão recorrido rejeitou o recurso, quanto aos factos, por entender que a matéria de facto já não pode ser alterada, porque as partes não reclamaram oportunamente contra a sua fixação; e, quanto ao direito, porque, face aos pressupostos de facto assentes, entendeu verificarem-se todos os elementos prescritos no art. 483º do Código Civil, pelo que a sentença não mereceu qualquer censura;
A decisão é inaceitável quanto ao modo como evitou o devido julgamento da matéria de facto, porquanto, pelo menos desde 1978, ou seja, há mais de 30 anos, está absolutamente assente na jurisprudência e na doutrina, a regra de que “a fixação da especificação e do questionário, com ou sem reclamação, não conduz a caso julgado formal que obste à sua posterior modificação” (cfr. os Acórdãos da Relação do Porto, de 2 de Março de 1978, in Col. Jurisp. Ano III, tomo II, página 617 e da Relação de Évora, de 29 de Julho de 1982, in Col. Jurisp., Ano IV, 277, e Castro Mendes, Revista dos Tribunais, 83, 38, Anselmo de Castro, Lições, volume III, página 466 e seguintes, Jacinto Rodrigues Bastos, Nota ao Código de Processo Civil, 2a Edição, Volume III, 266 e seguintes e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2a edição, 1985, páginas 414 e 415);
Só assim se compreenderá que o juiz tem o poder-dever de formular quesitos novos, desde que sobre matéria que interesse à discussão da causa, nos termos do art. 650°, nº 2, alínea f), do CPC, mas o critério de definição do que interessa à decisão da causa não é o seu, pessoal, o do "organizador da peça", mas o que corresponda ao aproveitamento de toda a matéria que seja "essencial a solução diferente que outros julgadores (membros do tribunal colectivo, relator da sentença final ou julgadores da causa em via de recurso) considerem ser a decisão certa, legal, do conflito", conforme doutrinou o Ac. do STJ de 21 de Fevereiro de 1995, in Col. Jurisp., Ano 1995, I, página 96;
A interpretação assim dada ao instituto do caso julgado formal e ao art. 712° do Código de Processo Civil implica, na prática, a recusa de aplicação desse normativo, violando-o e os arts. 20°, 203° e 2050 da Constituição, fazendo tábua rasa do princípio do duplo grau de jurisdição, consagrado, nessa parte, no art. 690º-A do Código de Processo Civil;
Embora o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 721º, no 2, do Código de Processo Civil, só julgue de revista quando o fundamento do recurso seja a violação da lei substantiva, constitui violação da lei substantiva a fixação dos factos materiais da causa em desrespeito pelas normas jurídicas aplicáveis;
Ante uma decisão da Relação que fixe a matéria de facto, desrespeitando a lei, o Supremo pode, conhecendo do erro, anular a decisão da Relação, julgando logo o fundo da questão, como fez no Acórdão de 12 de Março de 1998, in Ac. STJ, VI, 1, pág. 124, ou optar pela solução de, exercer uma "discreta censura" sobre a decisão, anulando o Acórdão recorrido para o recurso ser de novo julgado nas partes viciadas pelo Tribunal da Relação, como decidiu, por exemplo, no Acórdão do STJ, de 12 de Janeiro de 1994, in Col. Jurisp. STJ 1994, I, 31;
No caso sub judice, ocorrendo erro grosseiro e patente na decisão da Relação quanto à matéria de facto fixada na 1a instância, afigura-se que, na procedência do recurso de revista, pode e deve já julgar-se de fundo essa questão, considerando-se provados os factos supra referidos (conclusão 3a) que foram alegados pelos autores e confessados pelos réus e a acção ser já decidida;
A decisão da matéria de direito, ainda que se não proceda a qualquer alteração da matéria de facto, não foi também a mais correcta, porquanto o comportamento do réu foi absolutamente legítimo e não causal de qualquer dano, considerando-se que, mesmo que fosse de considerar que a informação por si prestada foi incorrecta, a construção dos autores só seria possível de legalização se o caminho fosse público e este não o era, e foi judicialmente reconhecida que era apenas um caminho de servidão;
O acórdão recorrido violou as regras dos artigos 712º, nº1, 511º, 512°, todos do Código de Processo Civil e o artigo 483°, nº 2, do Código Civil.

Nas contra-alegações, os autores pronunciaram-se pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.
Estão provados os seguintes factos:
Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Fafe, a 12 de Fevereiro de 1965, M… B… C… L… A… A…, como primeira outorgante, actuando por si e na qualidade de procuradora de seus filhos, genros e noras, e o autor AA, como segundo outorgante, declararam: a primeira que vendia ao segundo, pelo preço de 6.000$00, um lote de terreno com a área 300 m2, medindo 20m de comprimento e 15m de largo; o segundo que aceitava a venda que lhe ficava feita. (A)
Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Fafe, a 2 de Abril de 1969, A… J… F… F…, como primeiro outorgante, na qualidade de procurador de M… A… P… T… T… L… M… M… S… S… e A… O… V… e o autor AA, como segundo outorgante, declararam: a primeira que vendia ao segundo, pelo preço de 10.640$00, um lote de terreno destinado à construção, com a área de 532m2, medindo 24,80m do lado nascente, 14,65m do lado poente, 29m do lado norte e 27m do lado sul; o segundo que aceitava a venda que lhe ficava feita. (B)
Os lotes de terreno mencionados foram destacados do prédio denominado do Campo da Veiga de Baixo, sito no lugar de Castilhão, cidade de Fafe, descrito na Cons. do Reg. Predial de Fafe sob o nº 39.815 e inscrito na matriz predial sob o art. 404º. (C)
Tais lotes de terreno foram descritos na C.R.P. de Fafe sob os nºs 00904/050588 e 00903/050588, respectivamente, tendo-se inserido aí a sua aquisição a favor dos autores, casados no regime da comunhão geral de bens, sendo que tais descrições foram depois anexadas numa só, dando origem à descrição nº 00905/050588. (D)
O autor requereu à Câmara Municipal de Fafe, a 22 de Março de 1994, a concessão de licença para construção de uma casa destinada a habitação, apresentando o correspondente projecto de arquitectura. (E)
No decurso do processo que teve origem com o requerimento, o Departamento de Gestão Urbana da Câmara Municipal de Fafe elaborou a informação de fls.38, cujo teor se dá aqui por reproduzido, a qual foi submetida à consideração do Vereador Dr. J… M… R… e elaborada na sequência de "dúvidas levantadas quanto à natureza pública do caminho existente e que será o único acesso à construção pretendida ..." pelo autor. (F)
Submetida a informação a consideração do Vereador competente, por este foi proferido, a 18-07-94, o seguinte despacho: "Chame-se aos Serviços o Sr. CC (T…) e dê-se-lhe conhecimento por fotocópia do documento anexo e conceda-se-lhe 3 dias para sobre o mesmo se pronunciar, se o entender. Nada dizendo, entender-se-á que o aceita e reconhece". (G)
O réu marido, na sequência do descrito, dirigiu ao Presidente da Câmara Municipal de Fafe a carta de fls. 42, cujo teor se dá aqui por reproduzido, com data de 22-7-94, e na qual, além do mais, declarou o seguinte:
“a) Como V.a Ex.a se recordará, eu estou autorizado a construir um edifico de rés-do-chão e 3 andares, conforme assinalado na planta na posse dessa Câmara, em que esse terreno faz parte integral do mesmo, contra a cedência de terrenos necessários ao Parque Municipal de Desportos e respectivas infra-estruturas. A este assunto se refere o ofício dessa Câmara nº 3979/DGU e o processo DIV/91, de 25-10­91, que tenho em meu poder.
b) O caminho a que se alude na informação que me foi presente não é nenhum caminho.
Trata-se de terreno que comprei há anos sem qualquer entrada nem saída e que se destina a, eventualmente, e se eu assim o entendesse, futuramente, fazer um caminho de acesso a uma propriedade que me pertence. Esse caminho nunca foi aberto.
Aquilo que existe no local é, pois, apenas terreno da minha propriedade, que não reveste sequer a natureza de nenhum caminho, muito menos de natureza pública.
c) No que respeita às propostas feitas na fotocópia que me foi remetida e quanto à última das duas, julgo compreender que aí, na hipótese de não se fixar judicialmente a natureza pública do questionado caminho.
Devo, porém, informar que me parece impossível se faça qualquer passagem no local sem utilizar terreno da minha propriedade". (H)
A 12-8-94, o Departamento de Gestão Urbana da Câmara Municipal de Fafe prestou a informação de fls. 43, cujo teor se dá aqui por reproduzido, na sequência do que o Vereador competente proferiu, a 20-9-94, o seguinte despacho:
"Solicite-se ao Sr. Dr. S… um parecer jurídico acerca da atitude a tomar pela Câmara, parecendo-me de interesse uma ida prévia ao local com o Sr. Eng. H…". (I)
O parecer mencionado não foi solicitado "face aos elementos apresentados para o processo nº 407/PC/94, em 4-10-1994, registados sob o nº 4355 e despacho neles exarado em onze de Novembro desse mesmo ano", que dizem respeito a um processo de licenciamento para construção requerido por J… N… . (J)
A 7-2-97, foi proferido o seguinte despacho pelo Presidente da Câmara Municipal de Fafe: "Visto, arquive-se". (L)
Em 31-1-96, os autores e outros utilizadores do caminho propuseram, através da petição inicial de fls. 52 a 70, cujo teor se dá aqui por reproduzido, uma acção Judicial contra os aqui réus, a qual correu termos pelo 1º Juízo deste Tribunal sob o nº 44/96 e na qual formularam o seguinte pedido:
"deve a presente acção ser julgada procedente e, por via dela, declarado e reconhecido que nenhum direito de propriedade têm os réus à faixa de terreno identificada nos arts. 36, 37, 39, 42 e 46 desta petição, faixa essa que constitui o arruamento da urbanização ou loteamento aí efectuado, integrado no domínio público.
Se, porventura, assim se não entender, o que só como mera hipótese se admite, sem conceder, deve então ser declarado e reconhecido que sobre essa dita faixa de terreno, denominada de arruamento, se encontra constituída servidão de passagem, a pé e/ou com quaisquer veículos, durante todo o tempo, a favor dos prédios dos autores, referidos e identificados nos arts. 5, 9, 13, 17, 18, 19, 23 e 25 também desta petição, inclusive para novas construções a efectuar. (M)
Em tal processo, por sentença de 15-4-2002, foi decidido:
a) declarar constituída servidão de passagem a pé e com quaisquer veículos, a favor dos prédios identificados sob os nºs 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16 e 17 da planta de fls. 124, sobre a faixa de terreno, com a largura de 6m, que se inicia no caminho que, pelo seu lado Norte, margina tais prédios, assinalado na planta de fls. 124 com a designação “arruamento";
b) declarar que os réus são proprietários da parte subsistente do campo da Veiga de Baixo, no qual se integra o arruamento referido na alínea a). (N)
Esta sentença foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6-11-2002, que, por sua vez, foi confirmado por Acórdão do S.T.J. de 6-5-2003. (O)
A construção a que se alude em E) seria implantada no terreno correspondente ao lote mencionado em B). (1º)
Tal lote é assinalado sob o nº 10 na planta mencionada em N. (2º)
Os réus tinham conhecimento que os anteriores donos do Campo da Veiga de Baixo tinham aberto o arruamento mencionado em N) de propósito para o caminho, além doutros, do lote referido em B). (3º)
Os réus, como descrito em H), visavam impedir a construção dos autores no lote referido em 3. (4º)
O custo da construção por metro quadrado na data referida em E) era de 25.000$00 para a cave, escadas e varandas e de 50.000$00 para o restante. (5º)
Tais valores são, actualmente, de 40.000$00, ou de 199,52 euros para as caves, escadas e varandas e de 90.000$99 ou € 448,92 para os andares. (6º)
Aquando do requerimento para licença de construção mencionado em E), a estimativa orçamental apresentada foi de 16.345.000$00, assim discriminada:
Cave 122,00m2 + 25.000$00 = 3.050.000$00;
r/chão 122,00m2 + 50.000$00 = 6.100.000$00;
andar 122,00m2 + 50.000$00 = 6.100.000$00;
esc. e varandas 43,80m2 + 25.000$00 = 1.095.000$00. (7º)
O custo de tal obra seria, actualmente, de 28.592.009$00 ou € 142.616,34, assim discriminado:
cave 122/00m2 + € 199,52 = € 24.341,34;
r/chão 122,00m2 + € 448,92 = € 54.768,01;
andar 122,00m2 + € 448,92 = € 54.768,01;
esc. e varandas 43,80m2 + € 199,52 = € 8.738,98. (8º)
Os autores pretendiam construir uma casa constituída por duas habitações tipo T3 cada uma. (9º)
Tal casa estaria concluída até fins de 1995. (10º)
As habitações permitiriam aos autores, a partir do início de 1996, a obtenção de um rendimento mensal não concretamente apurado. (11º)
Os autores, com a não construção da casa, sofreram desgosto e sofrimento. (12º)

3. O Direito.
Estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da alegação, a menos que se trate de matéria de conhecimento oficioso não definitivamente decidida, importa abordar as seguintes questões suscitadas pelos recorrentes:
- a matéria de facto foi incorrectamente fixada, por não terem sido considerados importantes factos constantes de documentos juntos aos autos pelos próprios autores, documentos esses para cujo teor, ao ser elaborado o despacho sobre os “factos assentes”, o tribunal remeteu, mas que, depois, não foram considerados, devendo sê-lo;
- a matéria de direito foi incorrectamente julgada, porque nenhum acto ilícito é imputável ou foi imputado aos recorrentes.

Firmando-se nos factos supra elencados, e fazendo incidir sobre eles o direito que considerou aplicável, a Relação orientou a sua decisão, quanto à primeira questão, em conformidade com a seguinte asserção: não tendo havido reclamação contra a selecção da matéria de facto, não pode aproveitar-se o recurso que se interpuser da decisão para corrigir a matéria de facto fixada, por forma a aditar-lhe o teor dos documentos juntos aos autos, na parte relevante e com interesse para a decisão, nos lugares onde a sentença se refere apenas a documentos “cujo teor aqui se dá por reproduzido”.

Tem a jurisprudência entendido que a fixação da especificação e do questionário não conduz a caso julgado formal, podendo, e devendo, a selecção da matéria de facto ser modificada posteriormente, sempre que a reforma se mostre necessária para que o STJ defina o regime jurídico aplicável aos factos apurados.
E compreende-se que assim seja (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., pags. 154 e 1555), dada a natureza puramente instrumental das peças onde o juiz fixa os factos que já considera provados e aqueles que devem ser submetidos a julgamento.
Assim, apesar de se ter considerado provado determinado facto, que, afinal, se constata estar controvertido, ou vice-versa, nada obsta à transposição do mesmo para a peça processual adequada.
Do mesmo modo, omitido qualquer facto controvertido, nada impede o juiz de, no início da audiência de julgamento ou ao longo desta, determinar a sua inserção na base instrutória, nos termos do disposto no art. 650º, nº 2, al. f), do CPC.
Como, também, se um determinado facto provado não tiver sido oportunamente seleccionado, nada impede, igualmente, que, na sentença, o juiz o pondere para dele extrair os correspondentes efeitos jurídicos, já que o art. 659º, nº 2, dá suficiente guarida a esta decisão.

A questão sobre a formação do caso julgado formal relativo à especificação e ao questionário, há muito debatida, fora resolvida, no sentido negativo, com o Assento nº 14/94, de 26 de Maio, hoje com o valor de acórdão de uniformização de jurisprudência, que veio confirmar, concretamente quanto à especificação, que “tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio”.
E razão não havia para não aplicar esta doutrina ao questionário.
Na verdade, todos sabemos que o juiz, na sentença, deve tomar em conta todos os factos admitidos por acordo, por confissão ou provados por documento, mesmo que não tenham sido incluídos na especificação nem no questionário.
Por outro lado, se é lícito, como é, à Relação, nos termos do art. 712º do CPC, anular ex officio a sentença com vista à formulação de novos quesitos tidos por essenciais para a decisão, não se vêem razões para impedir que se proceda a essa anulação, só porque a parte chamou a atenção para a necessidade de a mesma se efectuar.

Com a revisão do CPC, que veio realçar a função instrumental das normas processuais civis, para, em princípio, não prejudicarem a correspondência entre a decisão final e o direito substantivo adequado ao litígio efectivamente estabelecido entre as partes, essa questão ficou definitivamente afastada.
Sinal dessa mudança é a citada norma do art. 650º, nº 2, al. f), que, em conjugação com o disposto no art.264º, nºs 2 e 3, vem permitir a ampliação da matéria de facto quanto aos factos instrumentais ou mesmo essenciais que resultem da discussão e instrução da causa, por constituírem complemento ou concretização de outros oportunamente alegados.

As decisões da 1ª instância sobre a matéria de facto são passíveis de reclamação perante o próprio tribunal, com fundamento em deficiência, excesso ou obscuridade, sucedendo, porém, que a decisão respectiva não pode ser objecto de recurso autónomo (art. 511º, nºs 2 e 3, do CPC).
Quando tenha existido audiência preliminar, a reclamação deve fazer-se imediatamente à prolação da decisão (art. 508º-A, nº1, al. e) e, na situação oposta, a reclamação deve ser apresentada no início da audiência de discussão e julgamento (art. 508º-B, nº2).
No entanto, se vier a ser interposto recurso da decisão final, o seu objecto poderá ser alargado à reapreciação da matéria de facto no que concerne à parte dessa matéria concretamente questionada.
Os réus têm, portanto, toda a legitimidade para, nesta fase processual, fazer notar ao tribunal as omissões da especificação e do questionário, mesmo que não tivessem apresentado qualquer reclamação contra as referidas peças processuais.
E essas omissões são evidentes, ao dar-se por reproduzido, no elenco dos factos provados, o teor de documentos, tal como já se fizera na 1ª instância.

Como é sabido, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue aplicável (art. 729º, nº1, do CPC).
Consequentemente, não conhece de matéria de facto, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (arts. 729º, nº 2 e 722º, nº 2, do mesmo diploma).
É que, sem qualquer dúvida, cabe às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que, na definição da matéria fáctica necessária para a solução do litígio, a última palavra cabe à Relação. Daí que, a tal propósito, a intervenção do Supremo Tribunal se apresente como residual e apenas destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material - art. 722º, nº 2 - ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto - art. 729º, nº3.
Aliás, não poderá esquecer-se que só à Relação compete censurar as respostas à base instrutória ou anular a decisão proferida na 1ª instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos nºs 1 e 4 do art. 712º.
É apodítico, pois, que, para que o Supremo possa, em via de recurso, reapreciar qualquer decisão tomada na Relação, esta tenha fixado, através da pertinente indicação, os factos que teve como provados.
Esses factos materiais devem ser discriminados na fundamentação do acórdão, para se fazer, de seguida, a interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, como, expressamente, se estabelece no art. 659º, nº2, aplicável ao recurso de revista por força do disposto nos arts. 726º e 713º, nº 2, todos do CPC.
É que só perante esta indicação dos factos provados é que o STJ pode entrar na apreciação e julgamento do recurso.
Ora, constitui jurisprudência sedimentada do STJ que os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos, constituindo, portanto, prática incorrecta, na decisão sobre a matéria de facto, remeter para o teor de documentos.
Pode-se compreender, embora sem a aceitar, especialmente se for o caso de grande profusão de documentos, ainda que essa profusão não pressuponha, nem tenha que lhe corresponder profusão de factos, maxime, de factos relevantes para a decisão, seja esta em que sentido for.
Dar por reproduzidos documentos ou o seu conteúdo é bem diferente de dizer qual ou quais os factos que, deles constando, considera provados - provados quer por força do próprio documento em si, quer por outra causa (v.g. acordo sobre um facto nele indicado, embora o documento não gozasse de força suficiente para o dar como provado).
Pode, portanto, ao longo deste acórdão, como se defende no aresto do STJ, de 22.4.97, (CJ, II-62), “tornar-se necessário «abrir» algum desses documentos, mas, se a tal se recorrer, ter-se-á de o fazer com respeito pela competência do tribunal “a quo” e apenas aí considerar o que deva ser tido como plenamente provado.
Um tal procedimento justifica-se pelo recurso à ratio da parte final do nº 2 do art. 722º do CPC no que, até onde for possível, se coloca a cognição do mérito fora do disposto no art. 730º, nº 2, do CPC - «se, por falta de elementos de facto…».
Adoptando-o, respeita-se ainda a celeridade processual, sem prejuízo da necessária segurança e evita-se um demasiado formalismo”.

Apreciada a primeira questão, vejamos, agora, se a matéria de direito foi incorrectamente julgada, por nenhum acto ilícito ser imputável ou ter sido imputado aos recorrentes.

Como causa de pedir, invocam os autores a circunstância de a Câmara Municipal de Fafe ter decidido retardar, durante mais de nove anos, o licenciamento de uma construção que eles pretendiam fazer, apenas por causa da oposição que o réu fez junto do Município, nomeadamente por causa de uma informação que os réus prestaram, o que foi suficiente para provocar um aumento significativo dos custos de construção, como também privou os autores de terem auferido do prédio a construir um rendimento mensal na ordem dos 100.000$00, a partir da sua conclusão.

Como se depreende do princípio geral enunciado no art. 483º do C.Civil, para que se corporize a responsabilidade civil extracontratual, vários pressupostos têm de se conjugar e cujo ónus da prova cabe ao lesado.
Em primeiro lugar, que o facto se revista de ilicitude.
O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente, que tanto pode ser uma acção como uma omissão, um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana, como é referido por Pires de Lima e Antunes Varela (Anotado, vol. I, 4ª ed., pags. 471 e sgs.), pois só quanto a factos desta índole tem cabimento a ideia da ilicitude, os requisitos da culpa e a obrigação de reparar o dano, nos termos em que a lei a impõe.
À ilicitude, que pode traduzir-se na violação do direito de outrem, ou seja, na infracção de um direito subjectivo ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, enquanto negação de valores tutelados pela ordem jurídica, considerada objectivamente, acresce a culpa, considerando os aspectos circunstanciais que interessam à censurabilidade da conduta, culpa que se refere ao acto ilícito e não ao dano, sendo que uma coisa é o aspecto da conduta irregular do agente, outra o da sua conduta faltosa (A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, 9ª ed., 607/8).
Em termos gerais, ter agido culposamente significa ter o devedor actuado de tal forma que a sua conduta lhe deva ser pessoalmente censurada e reprovada.
Por fim, é necessário que se verifique o dano e o nexo de causalidade entre o seu comportamento e o dano.

Convocando os factos provados, podemos concluir que o autor requereu à Câmara Municipal de Fafe a concessão de licença para construção de duas moradias unifamiliares.
No decurso do processo, que teve origem com o requerimento, o Departamento de Gestão Urbana da Câmara Municipal de Fafe elaborou a informação de fls.38, na sequência de dúvidas levantadas quanto à natureza pública do caminho existente e que seria o único acesso à construção pretendida pelo autor, a qual foi submetida à consideração do Vereador competente para o efeito, tendo, por este, sido proferido, a 18-07-94, o seguinte despacho: “Chame-se aos Serviços o Sr. CC (T…) e dê-se-lhe conhecimento, por fotocópia, do documento anexo e conceda-se-lhe 3 dias para sobre o mesmo se pronunciar, se o entender. Nada dizendo, entender-se-á que o aceita e reconhece”.
O réu marido, na sequência do descrito, dirigiu ao Presidente da Câmara Municipal de Fafe a carta de fls. 42, e na qual, além do mais, declarou o seguinte:
“O caminho a que se alude na informação que me foi presente não é nenhum caminho. Trata-se de terreno que comprei há anos sem qualquer entrada nem saída e que se destina a, eventualmente, e se eu assim o entendesse, futuramente, fazer um caminho de acesso a uma propriedade que me pertence. Esse caminho nunca foi aberto. Aquilo que existe no local é, pois, apenas terreno da minha propriedade, que não reveste sequer a natureza de nenhum caminho, muito menos de natureza pública…”.
Os réus, como descrito, visavam impedir a construção dos autores no lote referido.
A 7-2-97, foi proferido o seguinte despacho pelo Presidente da Câmara Municipal de Fafe: “Visto, arquive-se”.

Perante estes factos, entenderam as instâncias que estavam reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil referidos, julgando, em consequência, procedente a acção.

Não cremos, porém, e com o devido respeito, que tenham decidido com acerto.

Se atentarmos no documento junto pelos autores a fls. 37 e 38, não impugnado pelos réus, e do qual se depreende que os autores, através dos processos camarários nºs 236/PC/94 e 407/PC/94, pretendiam obter a licença para a construção de duas moradias, é referido o seguinte:
“A … informação conjunta dos dois processos supra referidos deve-se às dúvidas levantadas quanto à natureza pública do caminho existente e que será o único acesso à construção pretendida…”.
Mais se refere que “o Sr. Presidente não considerava aquele caminho público”; que “o licenciamento implicaria o reconhecimento daquele caminho como público” e que a construção só deveria ser autorizada desde que: “a) os interessados provassem judicialmente a natureza pública do caminho; b) caso os interessados provassem a natureza pública do caminho, deveriam, previamente, proceder à sua pavimentação em cubos”.
Nesta sequência, foi proposta a emissão de parecer favorável ao projecto de arquitectura - Proc. nº 236/PC/94 - “condicionado à prévia decisão judicial da natureza pública do caminho” e, igualmente, parecer favorável - Proc. nº 407/PC/94 – “se o requerente, ao definir os limites da área a destacar, deixar uma passagem para a construção existente com pelo menos três metros”, na hipótese de não lograr provar a natureza pública do caminho.

Em 31-1-96, os autores e outros utilizadores do caminho propuseram, através da petição inicial de fls. 52 a 70, uma acção Judicial contra os aqui réus, na qual formularam o seguinte pedido:
“deve a presente acção ser julgada procedente e, por via dela, declarado e reconhecido que nenhum direito de propriedade têm os réus à faixa de terreno identificada nos arts. 36, 37, 39, 42 e 46 desta petição, faixa essa que constitui o arruamento da urbanização ou loteamento aí efectuado, integrado no domínio público.
Se, porventura, assim se não entender, o que só como mera hipótese se admite, sem conceder, deve então ser declarado e reconhecido que sobre essa dita faixa de terreno, denominada de arruamento, se encontra constituída servidão de passagem, a pé e/ou com quaisquer veículos, durante todo o tempo, a favor dos prédios dos autores, referidos e identificados nos arts. 5, 9, 13, 17, 18, 19, 23 e 25 também desta petição, inclusive para novas construções a efectuar.
Em tal processo, por sentença de 15-4-2002, foi decidido:
- declarar constituída servidão de passagem a pé e com quaisquer veículos, a favor dos prédios identificados sob os nºs 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16 e 17 da planta de fls. 124, sobre a faixa de terreno, com a largura de 6m, que se inicia no caminho que, pelo seu lado Norte, margina tais prédios, assinalado na planta de fls. 124 com a designação “arruamento";
- declarar que os réus são proprietários da parte subsistente do campo da Veiga de Baixo, no qual se integra o arruamento referido na alínea a).
Esta sentença foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6-11-2002, que, por sua vez, foi confirmado por Acórdão do S.T.J. de 6-5-2003.
Os réus tinham conhecimento que os anteriores donos do Campo da Veiga de Baixo tinham aberto o arruamento mencionado em N) de propósito para o caminho, além doutros, do lote referido em B).

Face ao exposto, já podemos concluir que competia, naturalmente, aos autores, porque eram os interessados no licenciamento, e não aos réus, provar, judicialmente, a natureza pública do caminho.
De todo o modo, a informação prestada pelos réus, a este respeito, mostrou-se conforme à realidade, como o demonstra o desfecho da acção intentada com esse objectivo.
Mas mesmo que assim não fosse, a determinação da natureza pública ou não de um caminho não podia estar dependente da simples “opinião” de um qualquer munícipe e, muito menos, do seu silêncio.
Perante as dúvidas levantadas, a Câmara Municipal de Fafe fez o que devia: condicionar o licenciamento da obra à prévia decisão judicial da natureza pública do caminho, tratando-se, de resto, de uma matéria complexa e sujeita, de há muito, a longa polémica e onde se perfilaram, em posições extremadas, diversas orientações e que, aqui, sumariamente se referem apenas e só para dizer que a posição da Câmara Municipal de Fafe, perante a situação com que se confrontava, se revelava perfeitamente justificada.
Entendia uma dessas correntes que seriam públicos os caminhos, sempre que estivessem no uso directo e imediato do público.
Outra postulava que apenas deveriam considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se encontrarem no uso directo e imediato do público, tivessem sido administrados pelo Estado ou outra pessoa colectiva de direito público e se encontrassem sob a sua jurisdição. Esta segunda consubstanciava a orientação dominante na doutrina, de que era exemplo maior a posição autorizada de Marcello Caetano.
É, com efeito, da sua autoria o seguinte pensamento: “Parece que, na verdade, para que o uso imemorial não traduza a mera constituição de uma servidão ou a tolerância de um uso cívico, é preciso que haja sido originado por uma afectação de direito ou que, não existindo esta, seja acompanhado por actos de autoridade ou de posse de uma pessoa colectiva de direito público” (Manuel de Direito Administrativo, 5ª edição, Coimbra Editora, 1960, pag. 561”.
Em termos legais, esta segunda orientação encontrava suporte no conceito de «coisa pública», constante do art. 380°, do Código Civil de 1867, onde se exigia a prova de o caminho ter sido produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público.
Além destas, tinha, ainda, expressão uma corrente intermédia centrada na prova do uso imemorial pelo público, a ponto de, demonstrado este, ser de presumir ter havido apropriação lícita por parte de entidade de direito público, sendo esta presunção ilidível por prova em contrário.
O Assento de 19 de Abril de 1989, hoje com valor de acórdão de uniformização da jurisprudência, pretendeu pôr termo a esta querela, fixando a seguinte doutrina: “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.
A determinado passo, escreve-se no referido Assento: “(...) quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”.
Então, à face à doutrina consagrada no Assento, são dois os requisitos caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: o uso directo e imediato do mesmo pelo público e a imemorialidade de tal uso.
Quanto ao uso directo e imediato pelo público, recorrendo à lição do Prof. MARCELLO CAETANO: há «uso directo» quando cada indivíduo pode tirar proveito pessoal da coisa pública e faz-se «uso imediato» quando os indivíduos se aproveitam dos bens sem ser por intermédio dos agentes de um serviço público, como sucede com a circulação pelas estradas.
No que à imemorialidade concerne, vem-se entendendo que tal se verifica quando os vivos não sabem quando começou.

É verdade que os réus, na aludida informação, foram mais além, afirmando mesmo que “aquilo que existe no local é, pois, apenas terreno da minha propriedade, que não reveste sequer a natureza de nenhum caminho”.
Contudo, esta asserção, que se veio a provar não corresponder à verdade, de modo algum foi condicionante da posição assumida pela Câmara Municipal, como decorre do se expôs a propósito do documento de fls. 37 e 38.
Não se verificando o pressuposto da ilicitude, queda irrelevante apreciar os restantes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

4.
Face ao exposto, decide-se conceder a revista e, em consequência, julgar a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.
Custas pelos autores.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2010
Oliveira Rocha (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista