Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
250/21.6T8OER-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
SUBSCRITOR
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
VENCIMENTO ANTECIPADO
INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
RELAÇÃO CAMBIÁRIA
AVAL
DIREITO POTESTATIVO
PORTADOR LEGÍTIMO
PACTO DE PREENCHIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
PRESSUPOSTOS
DATA
Apenso:
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A declaração de insolvência da subscritora da livrança determina, nos termos do nº1 do art. 91º do CIRE, o imediato vencimento da obrigação que para a mesma emergia da relação subjacente ou fundamental;

II - Não se segue daqui que a declaração de insolvência constitua o termo inicial da prescrição de livrança emitida pro solvendo, que é de 3 anos, nos termos do art.70º da LULL;

III - Não tendo sido acordado diversamente, é direito potestativo do portador preencher a livrança com qualquer data posterior ao vencimento da obrigação subjacente, nomeadamente quando o vencimento decorre da insolvência da subscritora;

IV - E daí que o prazo de prescrição só comece a correr a partir do dia do vencimento aposto por quem devia preenchê-la;

V - Não é abusivo o comportamento do portador que completa o preenchimento da livrança apondo-lhe como data de vencimento 24.07.2019, cerca de cinco anos e meio posterior ao da insolvência da subscritora do título cambiário.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



A Caixa Geral de Depósitos S. A. instaurou ação de execução para pagamento de quantia certa contra AA e BB, reclamando o pagamento da quantia total de € 70. 808,23.

Alegou que no exercício da sua atividade creditícia celebrou com a sociedade A..., Lda, um contrato de adesão a um cartão de crédito Caixa Works e um contrato de abertura de crédito. Os créditos emergentes desses contratos estão titulados por duas livranças, subscritas pela referida sociedade e avalizadas pelos executados. A sociedade foi declarada insolvente. As dívidas tituladas pelas livranças encontram-se vencidas e por pagar. São essas livranças que a exequente deu à execução.

Os executados deduziram embargos. Alegaram, no que aqui interessa, que o executado marido apenas interveio na emissão de uma livrança e no respetivo pacto de preenchimento. Por outro lado, a devedora originária e subscritora foi considerada insolvente em 2013, nesse ano se vencendo todas as dívidas, pelo que a livrança deveria ter sido preenchida nessa altura e não anos depois. A dívida encontra-se, pois, prescrita, por ter decorrido o prazo de três anos previsto no art.º 71.º da LULL.

Liminarmente recebidos, a exequente contestou-os, pugnando pela sua improcedência.

Em sede de saneador-sentença, foram os embargos julgados procedentes e extinta a execução.

A Exequente/embargada apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 10.03.2022, julgou procedente a apelação, revogou a sentença determinou o prosseguimento da execução.

Inconformado, o Executado/embargante interpôs recurso de revista, cujas alegações conclui do seguinte modo:

1ª) O Acórdão recorrido conheceu além do pedido da recorrente, com violação do disposto no artº. 615º, nº 1 alínea d), do CPC;

2ª) A amplitude do Julgado / decisão coarta o direito dos embargantes, aqui recorrentes, impedindo-os de ver apreciada e julgada a matéria que alegaram e peticionaram na Petição de Embargos;

3ª) Os Embargantes, aqui recorrentes emitiram autorização singular -para livrança e não livranças, decorrente do pacto de preenchimento, conforme por eles alegado em 9º da PI de Embargos e ponto 4. da matéria de facto dada como provada pelo douto Acórdão recorrido;

4ª) Em 26-7-2010, a sociedade / executados e aqui Recorrentes a assinaram a autorização de preenchimento de livrança em branco (cartão Caixa Works) que constitui o documento nº 5 junto com a contestação e não outro pacto de preenchimento;

5ª) Tendo sido dada à execução 2 livranças, uma com pacto de preenchimento e outra sem pacto, os Embargantes arguiram a nulidade do título e pacto de preenchimento, pois entendem que a CGD não pode usar um pacto com autorização singular para preencher mais que uma livrança;

6ª) Não tendo o Tribunal de 1ª instância julgado matéria alegada na petição de embargos, a pronúncia do TRL sobre matéria não julgada em primeira instância, ao conhecer e emitir Acórdão sobre a mesma, não só vai além do pedido, como decide em primeira instância matéria que deve ser julgada pelo Tribunal de 1ª instância (Comarca), em vez de julgada na 2ª instância (Relação) em primeiro lugar.

7ª) Tal decisão / Acórdão viola a competência hierárquica judiciária e configura, por conseguinte, Nulidade;

8ª) A declaração de insolvência da sociedade subscritora determina o vencimento de todas as obrigações não subordinadas a uma condição suspensiva.

9ª) Com vencimento de todas as dívidas na data da declaração de insolvência, pelo menos a livrança preenchida sem pacto, na data em que foi preenchida, deve a mesma considerar-se prescrita!

10ª) O art. 91.º do CIRE não dá ao Banco credor o direito de provocar o vencimento das dívidas do insolvente, impõe obrigatoriamente, o vencimento daquelas dívidas.

11ª) Vencendo-se as dividas na data em que a sentença (insolvência) foi proferida, essas dividas – porque da sociedade – não podem considerar vencidas para a sociedade e continuar ativas ou não vencidas para os avalistas de livrança;

12ª) A divida, sendo una, não se pode considerar vencida para uns obrigados ao pagamento (sociedade) e não vencida para outros coobrigados ao pagamento dessa mesma divida da sociedade e a que os avalistas deram aval pela assinatura da livrança, estando estas na posse do Banco Credor – que dispõem de todos os meios possíveis e imagináveis e de todos os meios de controlo, técnicos e humanos que lhe permitem em tempo devido, e com o vencimento da divida, proceder ao preenchimento o título de crédito e instar os coobrigados ao pagamento;

13ª) Não tendo instado os coobrigados ao pagamento, só o vindo a fazer 5 anos, 6 meses e 6 dias depois, necessariamente, tal ato, viola o Princípio da Razoabilidade, Confiança Jurídica e Expectativa que o mediano cidadão tem, deve ter, pode e deve esperar da postura e dinâmica de «potente e imponente Instituição financeira», cuja atuação e procedimento das instituições, mormente os todo-poderosos Bancos, aos olhos do mediano cidadão, denotam «procedimentos de privilégios próprios de Condados, Principados e Ducados no reino» na República!

14ª) A possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a livrança, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, confere-lhe um poder de dilatar infinitamente no tempo a cobrança do crédito cambiário, revelando-se, essa possibilidade, desde logo, de uma forma ostensiva, desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, por um período de tempo ilimitado, sujeito a indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objectiva nos contratos sujeitos ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (RCCG).

15ª) A liberdade total na inserção das datas de emissão e de vencimento de uma livrança subscrita em branco permitiria ao credor defraudar os interesses públicos e do devedor que presidem ao instituto da prescrição dos créditos cambiários, proporcionando a criação de direitos de crédito imprescritíveis;

16ª) Destinando-se a livrança subscrita em branco a facilitar a cobrança do crédito em causa, na hipótese de se verificar o incumprimento da respetiva obrigação, resolvido o contrato, com fundamento nesse incumprimento, a boa fé determina que a livrança seja  coincidentemente preenchida coma resolução do contrato, iniciando-se, a partir desse momento, a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL.

17ª) O preenchimento da livrança 5 anos, 6 meses e 6 dias depois da data de vencimento da divida, só pode ser entendida, como atentatória dos princípios do Estado de Direito, Igualdade, Proporcionalidade, Razoabilidade, e da boa-fé, e fora – muito longe - do assentimento dos institutos que o legislador teve em conta, na década de trinta, do século passado (há cerca de 86 anos), e, também, quando cotejado com o entendimento do legislador atualista, com visão hodierna e abrangente que veio consubstanciar, além do mais nos arts. 1º e 91º do CIRE, em 2012, com violação do estipulado nos artº 2º, 13º e 18 do CRP.

18ª) A aplicação das normas e / ou segmentes de normas alegadas pela recorrente (artºs. 70º e 77º da LULL), no sentido em que a mesma requer a aplicação, violam o disposto, além do mais, nos artºs 2º, 13º e 18º da CRP.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido, reconhecendo-se a prescrição do direito inerente às duas livranças, ou que pelo menos uma das livranças se encontra prescrita (preenchida sem pacto); se assim não se entender mande baixar e prosseguir os autos para julgamento da matéria impugnada na petição de embargos.

Contra alegou a Exequente, tendo apresentado as seguintes conclusões:

a) O presente recurso foi interposto pelo Recorrente do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que julgou procedente o recurso da aqui Recorrida da douta sentença proferida pelo douto tribunal de primeira instância, que julgou verificada a prescrição das livranças dadas à execução, ou, melhor, e como bem diz o douto tribunal a quo, considerou abusivo o preenchimento das livranças com data diversa da insolvência da sociedade subscritora, caso em que as mesmas estariam prescritas.

b) O Recorrente invoca em primeiro lugar que a douta decisão recorrida não respeita os limites do objecto do recurso.

c) Todavia, verifica-se que a sentença da primeira instância que a decisão agora recorrida veio revogar, havia determinado a procedência dos embargos única e exclusivamente com fundamento no alegado preenchimento abusivo das livranças no que concerne à data de vencimento das mesmas (e a consequente prescrição das mesmas).

d) Sendo que, o recurso interposto pela aqui Recorrida incidia somente sobre a decisão referida e sobre a questão do alegado preenchimento abusivo das livranças no que concerne à data de vencimento das mesmas (e a consequente prescrição das mesmas).

e) Na douta decisão recorrida apenas se apreciou a questão do preenchimento abusivo das livranças e da correspondente prescrição, que, contrariamente ao decidido na primeira instância, não foi julgada verificada, determinando-se, em consequência, a alteração da decisão, de não procedência dos embargos.

f) Assim se vê que foram respeitados os limites objectivos do recurso nos termos do disposto nos n.ºs 2 a 4 do art. 635.º do CPC.

g) Na verdade, se entendesse que poderia ainda ser útil a apreciação das questões que acabaram por não ser apreciadas, cabia ao aqui Recorrente, requerer a ampliação do objecto do recurso nos termos do disposto no art. 636.º do CPC, o que não fez.

h) Sobre a decisão recorrida invoca ainda o Recorrente a sua discordância quanto ao entendimento no que concerne à data a considerar para vencimento das dívidas.

i) Invocando que, com a declaração de insolvência da empresa subscritora da livrança se venceram todas as dívidas nos termos do disposto no art. 91.º do CIRE, que, sendo unas, não podem deixar de se vencer igualmente relativamente aos avalistas.

j) Pelo que, entende que as livranças deveriam ter como data de vencimento a data de declaração da insolvência da sociedade subscritora.

k) E que o preenchimento das livranças com data de vencimento mais de 5 anos após a declaração de insolvência é violador do princípio da boa-fé.

l) Ora, nas autorizações de preenchimento das livranças in casu, ficou expressamente convencionado entre as partes que a Recorrida ficava autorizada a preencher as livranças, quanto tal se mostrasse necessário, a juízo da própria, considerando, nomeadamente, que a data de vencimento seria fixada pela Recorrida quando, em caso de incumprimento da subscritora, a mesma decidisse preencher as livranças.

m) Dos pactos de preenchimento, não resultam assim quaisquer condições ou prazos para a Recorrida procedesse ao preenchimento das livranças.

n) Ora, se é certo que a insolvência da empresa determina o vencimento das dívidas da mesma, mais dúvidas se tem sobre se tal implica também o vencimento antecipado da dívida relativamente aos garantes, entendendo-se que a declaração de insolvência apenas teve um efeito relevante para os avalistas e para a concreta previsão de preenchimento das livranças, o incumprimento das obrigações por parte da subscritora avalizada.

o) Acresce que o vencimento das livranças não tem que corresponder exactamente ao vencimento das dívidas subjacentes.

p) Na ausência de previsão legal que limite o prazo para preenchimento da livrança depois de verificado o vencimento da obrigação, terá necessariamente de valer o acordado pelas partes no pacto de preenchimento.

q) Pelo que não existe qualquer violação dos pactos de preenchimento pelo facto das livranças só terem sido preenchidas e fixado o respectivo vencimento mais de 3 anos depois da insolvência da sociedade subscritora.

r) De facto, nem a lei nem o pacto de preenchimento determina que a data de vencimento das livranças tenha de coincidir com a data da declaração de insolvência da empresa avalizada.

s) Este entendimento tem sido maioritário na jurisprudência, aludindo-se, a título exemplificativo, ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.02.2021, Proc. 51/19.1T8SRE-B.C1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.06.2019, Proc. 1025/18.5T8PRT.P1.S1, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.04.2012, proc. 27827/05.4YYLSB-A.L1-8, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.03.2015, proc. 60/10.6TBMTS.P1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.07.2019, Proc. 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 6645/17.2T8FNC-A.L1-7.

t) No mesmo sentido andou o douto tribunal recorrido.

u) Assim, do ponto de vista da Recorrida não merece censura a douta decisão recorrida.


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Fundamentação:

Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. Em 22.7.2010 a sociedade A..., Lda, aderiu ao Cartão de Crédito Caixaworks, da CGD, S.A..

2. Em 12.8.2010 a sociedade A..., Lda, na qualidade de devedora/cliente e os ora executados/embargantes, na qualidade de avalistas, outorgaram com a CGD, S.A. o contrato de abertura de crédito que constitui o documento n.º 2 junto com a contestação aos embargos.

3. Por ocasião da celebração dos dois referidos contratos a sociedade A... subscreveu duas livranças em branco e os ora executados/embargantes nelas apuseram o seu aval à subscritora, nelas figurando respetivamente, como data de emissão, 26.7.2010 e 12.8.2010 (cfr. livranças que acompanham o requerimento executivo).

4. Em 26.7.2010 a sociedade e os ora executados assinaram a autorização de preenchimento de livrança em branco (cartão CaixaWorks) que constitui o documento n.º 5 junto com a contestação.

5. Em 18.02.2014 foi judicialmente declarada a insolvência da sociedade A....

6. A CGD preencheu as aludidas livranças com data de vencimento de 24.7.2019, do que deu conhecimento aos ora executados por cartas registadas com aviso de receção datadas de 25.07.2019, concedendo-lhes o prazo de cinco dias para proceder à respectiva liquidação.  


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Fundamentação de direito.

Se o acórdão recorrido sofre de nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, d) e 666º do CPC).

Sustenta o Recorrente que a Relação conheceu “além do pedido da recorrente, com violação do disposto no artº. 615º, nº 1 alínea d), do CPC”, coartando-lhes o direito de ver apreciada e julgada matéria que invocaram nos embargos.”

Vejamos.

Os Embargos foram julgados procedentes no saneador, com a seguinte justificação:

(…)

Sendo certo que o prazo de prescrição da dívida constante nas livranças começa a correr a partir dos respectivos vencimentos (LULL 77º e 70º), a questão é saber se a data de vencimento aposta nas livranças é a correcta.

Dispõe o nº 1 do artigo 91º do C.I.R.E. que “A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.” – pelo que as dívidas da subscritora, avalizadas pelos ora embargantes, se venceram em 18-II-14.

Se é certo que não existe prazo para o preenchimento de livranças em branco, não é menos certo que a data de vencimento que nelas é aposta deve ser a correcta (não dependendo este vencimento da vontade da embargada, expressa nas cartas que juntou com a contestação), independentemente da data em que foi feito o prenchimento – o que não sucedeu no presente caso.

As livranças deveriam ter apostas, como data de vencimento, a data de insolvência da subscritora.

E, se assim fosse, facilmente se chegaria à conclusão que se encontravam prescritas à data em que os ora embargantes foram citados (em II-21).

Pelo exposto, julgam-se os embargos procedentes, e declara-se extinta a execução.”

Desta decisão foi interposto recurso de apelação pela Exequente.

A Relação de Lisboa julgou o recurso procedente por ter entendido que o pressuposto em que assentou a decisão de 1ª instância – que a Exequente deveria ter aposto nas livranças, como data de vencimento, a data da insolvência da subscritora – não tem apoio legal.

Escreveu-se no acórdão recorrido:

“ (…) tal solução jurídica, se é defensável de iure constituendo, não é conforme ao iure constituto, isto é, não tem cobertura legal.

Neste sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça (cfr., v.g., acórdãos de 19.6.2019, processo 1025/18.5T8PRT.P1.S1; 04.7.2019, processo 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1; 20.4.2021, processo 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1; 04.7.2019).

De facto, como se disse e se admite, em parte alguma a lei estabelece um prazo para o preenchimento do título assinado em branco.

A assinatura de um título cambiário em branco, paralelamente ou em cúmulo com a constituição de uma obrigação a ela subjacente, pressupõe o intuito de reforço da posição do credor, que nesse conspecto se reserva a faculdade de exercer o direito cambiário em momento oportuno, na sequência do incumprimento da obrigação principal ou subjacente, com maior ou menor dilação temporal.

Cabendo ao obrigado, que se encontre no domínio das relações imediatas, demonstrar que a compleição do título afronta o respetivo acordo de preenchimento (artigos 10.º e 17.º da LULL).

Tal demonstração não se mostra feita (nem sequer alegada) no caso destes autos. Através do aval, os executados aceitaram que o respetivo património constituísse garantia face ao eventual incumprimento das obrigações assumidas pela A... perante a CGD (artigos 30.º, 32.º e 77.º da LULL). Tal obrigação foi assumida diretamente pelos executados perante a CGD, tendo aqueles intervindo na celebração dos contratos celebrados entre a devedora e a CGD.

Assim, nem sequer lhes são aplicáveis as razões que justificam a estreiteza dos prazos prescricionais previstos para as obrigações cambiárias: tais prazos explicam-se porque no estrito domínio das relações cambiárias os obrigados cambiários contraem obrigações perante sujeito ativo que pode ser indeterminado e com limitações das exceções ao pagamento que venha a ser-lhes exigido. Daí a conveniência de não manter os signatários vinculados por muito tempo, sendo os curtos prazos de prescrição do direito do portador e da obrigação dos signatários justificados pela própria onerosidade da obrigação.

In casu, as partes na obrigação estavam bem identificadas, assim como a sua fonte.

Por outro lado a insolvência da devedora e a sua publicitação facilmente faziam antever aos ora executados que a respetiva responsabilidade lhes viria a ser exigida pela credora. Aliás a proximidade entre a devedora e os executados é reconhecida pelos executados (que na petição de embargos afirmaram que o executado foi sócio da A... e a executada é a sua esposa).

Não tendo a CGD logrado a satisfação do seu crédito perante a devedora, insolvente, está a CGD legitimada para acionar perante os executados os direitos que lhe advêm dos documentos por estes subscritos. Inibir a CGD de o fazer, eximindo os executados da obrigação de satisfação de uma obrigação que está por cumprir, a pretexto de estar ultrapassado um prazo de três anos que manifestamente não é aplicável ao caso sub judice, constituiria, isso sim, uma flagrante violação do princípio pacta sunt servanda (art.º 406.º n.º 1 do Código Civil), basilar no nosso ordenamento jurídico. A apelação é, assim, procedente.

Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e, em sua substituição, julga-se os embargos de executado improcedentes e determina-se a prossecução da execução.”


Como é bom de ver a Relação não incorreu na nulidade por excesso de pronúncia por ter conhecido de questão “de que não podia tomar conhecimento” (art. 615º, nº1, d) do CPC).

A 1ª instância julgou os embargos procedentes com base na ilicitude do preenchimento das livranças pela CGD SA, que deveria ter aposto como data de vencimento a data da insolvência da subscritora; a apelação incidiu precisamente sobre esta questão; a Relação conheceu da mesma e concluiu que o entendimento da 1ª instância não tinha base legal e revogou a sentença, determinando o prosseguimento da execução.

Com o que improcede este fundamento da revista.

Nas conclusões 3ª a 7ª, sustentam que a decisão da Relação coartou-lhes a possibilidade de verem apreciada a questão que suscitaram de desrespeito pela Exequente do pacto de preenchimento, pois que tendo “autorizado o preenchimento de livrança, não podia a CGD SA preencher mais que uma livrança.”


Sobre a alegada violação do “pacto de preenchimento”, a Relação, depois de notar que cabia ao obrigado cambiário demonstrar que “ a compleição do título afronta o respetivo acordo de preenchimento (artigos 10.º e 17.º da LULL)”, concluiu que “tal demonstração não se mostra feita (nem sequer alegada) no caso destes autos”.

E bem, diga-se.


Resulta da factualidade provada que a sociedade A..., Lda, celebrou com a CGD, SA um contrato de abertura de crédito; na ocasião, a A... subscreveu duas livranças em branco nas quais os ora executados/embargantes apuseram o seu aval à subscritora.

As livranças constituem o título executivo na execução a que foram deduzidos os presentes embargos.

O art. 10º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LU), aplicável à livrança (art. 77º da mesma Lei, prevê a possibilidade de letra em branco, mas estabelece que se tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, a inobservância desses acordos pode ser motivo de oposição ao portador quando este tenha “adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a tenha cometido uma falta grave.”

Não se exige qualquer forma especial para o acordo ou pacto de preenchimento, vigorando o regime regra da consensualidade previsto no art. 219º do CCivil, podendo ser tácito por estar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.

A letra ou livrança em branco destina-se, em regra a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior e tal entrega é acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado “acordo ou pacto de preenchimento.”

Como se decidiu no Ac. do STJ de 13.04.2011, P. 2039/04, “o pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária, e daí que, esse preenchimento tenha atinência não só com o acordo de preenchimento (no fundo o contrato que, como todos, deve ser pontualmente cumprido, art. 406º nº1 do Cód. Civil); esse regular preenchimento em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título (…).”

Para provar preenchimento abusivo, tem o subscritor que demonstrar i) a existência de um acordo e ii)  que o tomador/portador da letra/livrança, ao preenchê-la (ao completar o respectivo preenchimento), desrespeitou tal acordo (Ac. Relação de Coimbra de 10.12.2015, P. 4284/09.

No caso vertente, os Executados/embargantes  imputam à  Exequente a violação do pacto de preenchimento dizendo que apenas a autorizaram a preencher uma livrança, não duas, não podendo a CGD SA “utilizar o pacto de autorização preenchimento de uma livrança para preencher as duas livranças.”

Tal alegação é contrariada pelo facto de terem prestado aval às duas livranças subscritas pela sociedade A... que acompanham o requerimento executivo, nada tendo alegado de concreto nos embargos que denuncie o preenchimento abusivo daqueles títulos por parte da CGD S.A..

Ora, como referido no já citado acórdão da Relação de Coimbra, relatado pelo ora Conselheiro deste Tribunal Barateiro Martins “não é juridicamente compreensível a emissão (subscrição e entrega) voluntária duma letra/livrança objectivamente incompleta sem o cometimento, em certos termos, do seu preenchimento a outrem; sem que, concomitantemente, exista um acordo de preenchimento, seja ele escrito, meramente oral/informal ou porventura tão só implícito”.

Careciam, pois, os Executados de alegar e provar que no preenchimento das livranças, mais rigorosamente, na completude do preenchimento, a Exequente desrespeitou o acordo de preenchimento, o que não fizeram.

Como assim, o acórdão recorrido ao considerar que os Embargantes não alegaram factos tendentes a demonstrar o preenchimento abusivo das livranças, não merece qualquer censura.

Nas conclusões 10ª a 13ª, sustenta o Recorrente que vencida a dívida da subscritora com a declaração da sua insolvência, nos termos do art. 91º do CIRE, também naquela data se venceram as dívidas dos Embargantes/avalistas, por não ser concebível a existência de dois prazos para o vencimento das dívidas.

Assim, devendo as livranças considerar-se vencidas na data da insolvência da subscritora quando foi instaurada a execução já as mesmas se encontravam prescritas, por decorrido o prazo de 3 anos do art. 70º da LU.  (conclusão 9ª).

Mas também aqui lhe falece razão.

É verdade que nos termos do nº1 do art. 91º do CIRE “a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.”

Através deste preceito, as obrigações que se vencessem em data posterior à declaração de insolvência veem esse vencimento antecipado e sem necessidade de interpelação.

Permite-se ao credor do insolvente reclamar no processo de insolvência o seu crédito ainda não vencido, sendo certo que por força do princípio da par conditio creditorum, os credores da insolvência terão, forçosamente, que exercer os seus direitos em conformidade com os termos previstos no CIRE.

A obrigação que se venceu com a declaração de insolvência da sociedade A... é a que emerge da relação subjacente – o contrato de abertura de crédito – celebrado com o credor CGD.

Sucede que o que aqui está em causa é uma obrigação cambiária resultante da emissão das livranças, subscritas pela insolvente e avalizadas pelos Embargantes.

Com efeito, pela aposição do aval nas livranças que fundamentam a presente execução, os Embargantes assumiram a obrigação de pagar a quantia nela titulada, sendo responsáveis por tal pagamento nos mesmos termos que a pessoa por eles afiançada (o subscritor da livrança) – art. 32º da LULL.

Constitui entendimento pacífico que, em regra, a emissão de uma letra ou livrança não importa novação, consubstanciando uma “datio pro solvendo” (art. 840º do CCivil), ficando a existir, para além da relação subjacente, uma relação jurídica cambiária destinada a tornar mais segura a satisfação dos interesses do credor.

Os subscritores e os avalistas de uma livrança são todos solidariamente responsáveis para com o portador, o qual tem o direito de accionar todas as pessoas individual ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que eles se obrigaram (arts. 47º e 77º da LU).

Segundo o art. 30º da LU, o pagamento de uma livrança pode ser em todo ou em parte garantido por aval, configurando-se a obrigação do avalista como uma obrigação de garantia autónoma, cuja extensão e conteúdo se afere pela obrigação do avalizado (arts. 7º e 32º da LU).

Como acertadamente ponderou a Relação:

A assinatura de um título cambiário em branco, paralelamente ou em cúmulo com a constituição de uma obrigação a ela subjacente, pressupõe o intuito de reforço da posição do credor, que nesse conspecto se reserva a faculdade de exercer o direito cambiário em momento oportuno, na sequência do incumprimento da obrigação principal ou subjacente, com maior ou menor dilação temporal.

Posição esta que tem sido seguida neste Tribunal, como sucedeu com o recente Acórdão de 06.09.2022, P. 06.09.2022, P. 3940/20 (José Rainho):

“I - A LULL não fixa prazo dentro do qual deve ser preenchida a livrança entregue em branco, tão pouco o fazendo qualquer outro dispositivo legal. Será normalmente o acordo de preenchimento subjacente à emissão da livrança em branco que define os termos do preenchimento.

II - Nada tendo sido estabelecido diversamente em sede de acordo de preenchimento, é direito potestativo do portador preencher a livrança com uma qualquer data de vencimento ulterior ao momento do alegado incumprimento da subscritora;

III - Ainda que em ambas as situações releve o decurso do tempo, não há que confundir entre prescrição da obrigação cartular e exercício abusivo, na modalidade da chamada supressio, do direito ao preenchimento da livrança em branco.

IV – Mostrando-se que entre a data do vencimento aposta na livrança e o exercício do direito cartular contra o avalista da subscritora não passaram mais de três anos, é quanto basta para se concluir pela improcedência da prescrição estabelecida no art. 70º da LU.”

Neste sentido decidiram os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2012, P. 35671/06, de 09.02.2012, P. 27951/06, de 24.10.2019, P. 1418/14, de 19.06.2019, P. 1025/18, e de 04.07.2019, P.4762/16.

Por se reportar a uma situação semelhante à dos autos, transcreve-se o sumário do citado acórdão de 19.06.2019:

“Numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no art, 70º, ex vi do art. 77º da LULL, conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o do incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente, nomeadamente quando esse vencimento decorre da insolvência do subscritor, em conformidade com o preceituado no art. 91º do CIRE.”

Como assim, constando das livranças, como data de vencimento o dia 24.07.2019, quando foi instaurada a execução ainda não havia decorrido o prazo prescricional de 3 anos, pelo que improcede a invocada prescrição das livranças.

Cabe dizer ainda que não se verificam os pressupostos do abuso de direito (art. 334º do CCivil), porquanto o banco exequente, como portador legítimo da livrança ao accionar os respectivos avalistas ao abrigo do art. 17º da LU, ex vi do art. 77º, exerce um direito legítimo, que não ofende os limites da boa fé.

O STJ tem decidido de forma constante que o simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é susceptível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação (cf. Acórdãos de 15.05.2014, P. 1411/11 e de 19.10.2017, P. 1468/11). Lê-se neste último aresto:

“O preenchimento da livrança em branco, quanto ao montante de data de vencimento, decorridos mais de 12 anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de 7 anos sobre a declaração da insolvência da sociedade subscritora e a instauração da execução contra o avalista desta sociedade, só por si, não consubstancia fundamento para o reconhecimento do abuso de direito (art. 334º do CCivil).


A alegação de que com este entendimento se violam os princípios constitucionais do art. 2º , que define Portugal como um estado de direito democrático, o art. 13º que consagra o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, e 18º, é manifestamente infundada.  

Improcedem as conclusões do Recorrente.

Decisão.

Nestes termos, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 10.11.2022


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva