Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
314/2000.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRÉDIO RÚSTICO
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
USUCAPIÃO
PEDIDO RECONVENCIONAL
Data do Acordão: 02/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS - POSSE - DIREITO DE PROPRIEDADE.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / RECURSOS.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol., 2.ª Ed. revista e ampliada, p. 56.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, Vol. III, 2ª Ed., p. 26.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. II, 3.ª Ed., p. 31.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1251.º, 1252.º, N.º2, 1253.º, 1257.º, N.º2, 1305.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 274.º, N.º1, 487.º, N.º2, 2.ª PARTE, 493.º, N.º3, 722.º, N.º2, 729.º, N.º2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 66.º, N.ºS 1 E 2, ALS. B), E) E H).
D.L. N.º 289/73, DE 06.06: - ARTIGO 1.º, 27.º, N.º2.
LEI N.º 38/87, DE 23.12 - LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS (LOFTJ): - ARTIGO 29.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 06.07.76 – BOL. 259º/161;
-DE 08.06.93, COL/STJ, 2º/142;
-DE 09.01.97, COL/STJ, 1º/37;
-DE 02.05.99, COL/STJ, 2º/126;
-DE 09.10.08, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
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ASSENTO DO STJ, DE 14.05.96 (DR, II SÉRIE, DE 24.06.96).

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
-DE 26.10.00, CJ, 4º/272.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 09.01.95, CJ, 1º/189.
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 29.11.94, CJ, 5º/48;
-DE 31.05.05, PROC. N.º 3997/04, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Inexiste obrigação de dedução de reconvenção, estando dependente das conveniências do réu a sua dedução, juntamente com a contestação ou a apresentação da correspondente pretensão em acção autónoma.

II - Alienada a propriedade de um prédio rústico a vários compradores que, subsequentemente, aí, procederam à delimitação material das respectivas parcelas, sobre estas exercendo, cada um deles, actos de posse habilitantes à respectiva aquisição por usucapião, os requisitos da verificação desta devem reportar-se à parcela, individualmente considerada, e não à totalidade do prédio.

III - Na situação descrita, o reconhecimento judicial da mencionada usucapião deve sobrepor-se e prevalecer sobre o fraccionamento ilegal do prédio, que, porventura, tenha estado na respectiva génese, já porque em causa está um direito não transmitido, mas constituído ex novo, já porque, esgotado o decurso do tempo necessário à respectiva verificação, com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as concepções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº 314/2000.P1.S1[1]

          (Rel. 150)

                                  Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1AA instaurou, em 27.11.97, na comarca de Espinho, acção declarativa, com processo comum e que, após fixação judicial do seu valor, seguiu sob a forma ordinária, contra BB e mulher, CC, DD e mulher, EE, FF e mulher, GG, ora representados por seus herdeiros habilitados, HH e II, JJ e mulher, KK, LL e mulher, MM e NN e mulher, OO, pedindo a condenação dos RR. a entregar-lhe, livre de pessoas e coisas, o prédio rústico id. no art. 1º da p. i. (petição inicial).

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência:

                                                        /

--- O sobredito imóvel fazia parte do património comum da A. e seu ex-marido, PP, que o havia recebido por sucessão dos seus pais, sendo que, na sequência do divórcio de ambos, o mesmo prédio foi adjudicado à A., mas sempre o mesmo, há mais de 30 anos, vindo a ser possuído pela demandante, por si e antepossuidores, em termos de o ter adquirido por usucapião;

--- Os RR. passaram a ocupar o aludido prédio por mero favor do ex-marido da A., após Fevereiro de 1984, mas contra a vontade da demandante, tendo aqueles procedido à divisão do dito terreno e nele levantado edificações, recusando-se a entregar-lho.

       Citados, vieram os RR. apresentar contestação, alguns deles conjuntamente, mas trazendo versão em tudo semelhante, para tanto defendendo-se por excepção e impugnação, neste último âmbito pondo em causa o vertido na p. i. quanto aos actos de posse aí invocados, enquanto, em sede daqueloutra defesa, arguíram a ilegitimidade da A., a caducidade da acção, bem assim actos de posse da sua parte (deles RR.) conducentes à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o mencionado prédio, sendo que, nos finais de 1970, haviam negociado com a A. e seu ex-marido a aquisição do dito prédio, a ponto de terem celebrado com os últimos contratos-promessa de compra e venda, ainda que por referência a áreas concretas desse imóvel, mas tendo passado, a partir daquela altura e por que haviam liquidado a totalidade do preço ajustado, a possuir o dito terreno, tendo-o dividido em parcelas entre si, onde cada um deles (RR.) levou a cabo edificações, nessa medida devendo a acção improceder.

       A A. respondeu, pugnando pela improcedência da matéria de excepção deduzida pelos RR. e concluindo nos precisos termos do, inicialmente, peticionado.

       Findos os articulados e após ter sido fixado o valor à acção, proferiu-se despacho saneador onde ficou decidido dispor a A. de legitimidade para intentar o litígio, seguindo-se a fixação da matéria de facto tida por assente entre as partes e a organização da base instrutória (b. i.), peças estas que não sofreram reclamação, mas tendo a última sido objecto de correcção e aditamento da iniciativa do tribunal.

       Após vicissitudes processuais que, aqui, irrelevam, veio a realizar-se audiência de julgamento, tendo sido proferida decisão da matéria de facto, após o que a causa foi sentenciada, concluindo-se, entre o mais, pela improcedência da acção, com a inerente absolvição dos RR. do pedido.

       Por acórdão de 04.04.13, da Relação do Porto, foi julgada improcedente a apelação da A.

       Daí, a presente revista interposta pela A., visando a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes e relevantes conclusões:

                                                          /

1ª – Não podia o Tribunal ter julgado procedente a excepção de usucapião "alegadamente invocada pelos RR." e nessa medida julgar improcedente a acção, uma vez que ainda que os RR tenham alegado factos tendentes a demonstrar a aquisição originária da propriedade da sua especifica parcela por usucapião, o certo é que não retiram consequências técnico-jurídicas e processuais de tal alegação, por não terem deduzido pedido reconvencional, nem manifestado o desejo de beneficiar das respectivas consequências jurídicas;

2ª – Não estando deduzida qualquer excepção de usucapião nem sendo esta de conhecimento oficioso, o acórdão recorrido não podia ter-se pronunciado como pronunciou sob os últimos cinco parágrafos da decisão em apreço, doutra forma se violando o disposto nos artigos 495 e 496 do CPC; Sem prescindir,

3ª – A A. nunca deixou de exercer o seu domínio - pontos 1, 2, 3, 4, 6, 7, 8 - sobre o prédio a que se referem os presentes autos.

4ª – Da matéria vertida nos pontos 9 a 16 {todos os contratos promessa são de 1979} 29, 30 e 31 decorre, sem possibilidade de dúvida, que nunca a A. por si, por seu marido e antepossuidores, cessou de praticar actos de domínio sobre o reivindicado prédio;

5ª – Quer na outorga da escritura referida no ponto 6 da matéria assente, quer na intervenção em todos os contratos-promessa, ao longo do ano de 1979, quer na pendência do processo de inventário que correu termos sob o nº .../A, de 1989, quer depois da prolação da sentença homologatória da partilha (em 23.03.94, certidão junta - ponto 8), quer na continuação do pagamento dos impostos - documento junto com as alegações de recurso apresentadas no tribunal da Relação do Porto e referente ao ano de 2011 ( de resto, obrigação a cargo da A., pela simples razão de o prédio se encontrar inscrito na matriz em seu nome) , quer com a propositura desta acção entrada em Juízo aos 27 de Novembro de 1997, a A. praticou, sucessiva e continuamente, inequívocos actos de domínio sobre o prédio;

6ª – Nem, por qualquer omissão sua, a A., alguma vez, perdeu a posse em que sucedeu - pontos 1, 2 e 3 da matéria de facto;

7ª – De resto, nos termos do disposto no nº1 do artigo 1268º do CCivil " O possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse'*;

8ª – Ora, a A., conjuntamente com seu marido, sucederam na posse dos pais deste Ponto 3 e a titularidade foi-lhe adjudicada por partilha em inventário, tendo, por isso, o prédio inscrito na matriz a seu favor, pelo que só ela paga os correspondentes impostos.

9ª – E, porque estes actos de domínio se encontram todos provados por documentos autênticos, e estes actos só mesmo por documento podem ser provados, têm de prevalecer sobre a matéria dada como provada sob o ponto 7, ” in fine”, que, de resto, só ao uso diz respeito;

10ª – Desde logo, porquanto a posse da A., desde os seus antecessores, prosseguiu com os actos supra definidos, que se encontram provados por documentos;

11ª – Quando, no acórdão em apreço, nos últimos dois parágrafos, de fls 11, se escreveu:

"Numa primeira ordem de razões, aduz a recorrente que os actos de posse sobre o aludido prédio apenas à A. poderiam ser atribuídos até ao presente, já que o mesmo se encontra inscrito em seu nome na matriz, pagando o respectivo imposto e tendo sido levados a cabo no aludido inventário actos reveladores dessa posse relevante"

" Ainda que alguma dessa realidade se possa extrair do vertido no ponto 1,3, 4 e em parte do constante do Ponto 7 - outro tanto não diremos quanto ao pagamento do imposto, por essa matéria não poder dar-se como demonstrada nos autos, para além de não dispor de especial relevância para o efeito pretendido - a verdade é que os falados actos de posse, como decorre do também vertido no dito Ponto 7 (parte final) cessaram nos finais de 1970";

12ª – Mas foi junto um documento com as alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto que prova o pagamento do IMI pela A.);

13ª – E não são os falados actos de posse que cessaram...o que se deu como provado foi que o uso do imóvel findou em finais dos anos 70. Apenas o USO FINDOU;

14ª – Estes factos - os vertidos sob os pontos 1,2 3 e 4 - não podem ser derrogados pela parte final do ponto 7, pela simples razão de que a falta de uso do imóvel não derroga quer a posse ininterrupta, quer o domínio da A.;

15ª – A parte final do ponto 7 dos factos provados tem de ser interpretada no sentido estrito e rigoroso em que foi usada porquanto assim o determina o disposto no artigo 1252º;

16ª – E, ainda que assim não fosse, não poderia elidir a presunção definida sob o nº 1 do artigo 1268º do CCivil;

17ª – Por isso, não poderá deixar de se decidir que, mais do que a posse em que sucedeu, o domínio sobre a coisa nunca deixou de ser exercido pela A., com os indiscutíveis efeitos definidos nos nº/s 1 e 2 do artigo 1257º do CCivil;

18ª – Dos factos provados não resulta demonstrado o "animus" dos RR. - pelo contrário, uma vez que os contratos-promessa sob os pontos 11 a 15, pela própria natureza do sinalagma, induzem na falta deste elemento;

19ª – Após a celebração do contrato-promessa, a posse do proprietário continua a ser por este totalmente exercida, ainda que, em parte, o seja através do promitente-comprador- uma vez mais se invoca o disposto no artigo 1252º, nº/s 1 e 2;

20ª – E se assim é quanto à parcela do terreno prometida, por maioria de razão o é quanto à totalidade do imóvel, só atingível por ficção, através da soma das parcelas;

21ª – Sendo que a soma das parcelas nem mesmo corresponde à totalidade da área do prédio, uma vez que, somadas as parcelas - pontos 11 a 15 e 6 da matéria de facto – 670 m2+762 m2+480 m2+535 m2+852 m2 + 4/27 ( 4/27x4 550m2= 674,07 m2), obtemos um total de áreas de 3 973,07 metros quadrados, o que não totaliza a área global do terreno, que é de 4 550 ( ver verba 9 da certidão);

22ª – A A. sempre praticou actos de domínio sobre o prédio, designadamente intervindo no processo de inventário com o número 8 038/A de 1989, no qual o imóvel - verba 9 - foi relacionado, licitado e adjudicado à, ora, A;,

23ª – E, homologada a subsequente partilha aos 23/3/1994, fez saber aos RR. a sua oposição à situação destes - ponto 6 - vindo a   intentar a presente acção aos 27 de Novembro de 1997;

24ª – Por isso que, apesar do declarado - apenas quanto ao uso - na parte final do ponto 7 dos factos, nunca a A. perdeu a posse;

25ª – E, a par disso, os RR não alegaram sequer a prática de actos de posse relevantes, iniciados em finais dos anos 70 e prolongando-se ao longo do tempo sem interrupção até 1997 que incidissem ou tivessem incidido sobre a totalidade do prédio de forma adequada à aquisição originária, por via da usucapião, do correspondente direito de propriedade sobre a totalidade do prédio inscrito na matriz sob o artigo 266 com a área de 4550 metros quadrados, bem pelo contrário...

26ª – Neste sentido, na própria sentença proferida em primeira instância, escreve-se, no segundo parágrafo de fls. 24:

"Significa o exposto que a posse de cada um dos Réus tem incidência especifica na parcela sobre a qual começaram em finais dos anos 70 a exercer poderes de facto, de forma que a usucapião, quanto a cada um deles, incide sobre essa parcela individualmente considerada e não sobre o prédio no seu conjunto, nem tão pouco sobre uma quota ideal do mesmo." Os sublinhados são nossos.

27ª – Não se pode afirmar, concluir e decidir, como o faz o acórdão recorrido, a páginas 13, no antepenúltimo parágrafo, ao escrever:

" E essa posse tem de ser entendida... Sobre a totalidade do prédio e não sobre as partes especificas do mesmo por cada um dos Réus e do falado QQ -…já que a divisão que desse prédio terão feito (a dita factualidade não a concretiza com um mínimo de rigor) não afasta uma apropriação conjugada do todo (do dito prédio), sendo que a utilização individualizada de parcelas do mesmo ocorreu após combinação entre eles e já depois de terem dado inicio à sua ocupação."

"E se essa divisão do prédio se encontra actualmente consolidada de facto, por força de edificações levadas a cabo por cada um dos RR. e do referido QQ, tal não constitui motivo suficiente, na interpretação que deixámos feita à dita factualidade, para afastar uma posse conducente à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o dito prédio rústico, visto como um todo, e a todos conjuntamente respeitando".

28ª – De facto, da factualidade vertida sob os pontos 6, 9, 10 e 11 a 15, 16, 17, e 18 resulta que O USO DE CADA RÉU incide sobre essa parcela individualmente considerada e não sobre o prédio no seu conjunto, nem tão pouco sobre uma quota ideal do mesmo;

29ª – Analisada toda a matéria de facto dada como provada, verifica-se que os RR. não provaram - aliás, nem sequer alegaram - quaisquer actos de posse relevantes que tivessem incidido sobre a totalidade do prédio;

30ª – Os RR.-recorridos também não adquiriram posse sobre a parcela do prédio tal como foi definida no acordo que cada um celebrou;

31ª – Também nunca poderia ser declarada a aquisição, por usucapião, de cada uma das parcelas, porquanto tal sempre significaria dar cobertura a um loteamento e construção clandestinos;

32ª – Quer a decisão proferida pela 1ª instância, quer a decisão proferida pelo acórdão seguiram um caminho que viola a lei substantiva e que tem por efeito a viabilização de um loteamento clandestino e subsequentes construções ilegais;

33ª – Os RR. nunca poderiam adquirir a propriedade quer em conjunto, quer por parcelas, através do instituto da usucapião, porquanto uma decisão judicial que o reconheça viola normas urbanísticas imperativas que regulam o fraccionamento dos prédios;

34ª – Em Portugal, desde a entrada em vigor do DL nº 46 673, de 29.11.65, que o parcelamento de terrenos foi submetido a regras de natureza urbanística, diploma que veio a ser revisto pelo DL nº 289/73, de 06.06, que pretendeu intervir mais activa e alargadamente nos processos de loteamento, referindo, logo no seu preâmbulo, o objectivo de regulamentar os loteamentos e afirmando, logo no seu artigo primeiro

"Artigo 1º A operação que tenha por objecto ou simplesmente tenha como efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios. situados em zonas urbanas ou rurais, e destinados imediata ou subsequentemente à construção, depende de licença da câmara municipal da situação do prédio ou prédios, nos termos do presente diploma;" (Sublinhados nossos)

35ª – Quer a sentença proferida em 1ª instância, quer o acórdão ora em apreço fizeram menos correcta aplicação do disposto nas normas substantivas e processuais contidas nos artigos 280º, 281º e 294º, 371º, 372º e 376º, 1251º, 1252º, 1257º, 1268º, 1287º, 1288º, todos do CC e 488º, “in fine”, 495º e 496º e 722º do CPC;

SEM PRESCINDIR

Ao decidir-se como se decidiu a fls. 792, nos dois últimos parágrafos, e 793, escrevendo-se:

       "E essa posse tem de ser entendida, na apreensão que fazemos dessa mesma factualidade, sobre a totalidade do prédio e não sobre partes especificas do mesmo por cada um dos Réus e do falado QQ - aqui nos afastando do raciocínio desenvolvido na sentença impugnada - já que a divisão que desse prédio terão feito (a dita factualidade não a concretiza com um mínimo de rigor) não afasta uma apropriação conjugada do todo (do dito prédio), sendo que a utilização individualizada de parcelas do mesmo ocorreu após combinação entre eles e já depois de terem dado início à sua ocupação";

       "E se essa divisão do prédio se encontra actualmente consolidada de facto, por forca de edificações levadas a cabo por cada um dos RR. e do referido QQ, tal não constitui motivo suficiente, na interpretação que deixámos feita à dita factualidade para afastar uma posse conducente à aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre o dito prédio rústico, visto como um todo, e a todos conjuntamente respeitando."

       "A existir um loteamento ilegal, por não licenciado - algo que a matéria acima elencada não traduz com nitidez, a ponto de não vir demonstrado que as ditas construções não se encontrem licenciadas - isso não invalida o raciocínio antes feito quanto aos termos em que o direito de propriedade foi adquirido pelos RR., quando muito estando sujeitos à inerente reacção por parte das autoridades administrativas";

       "Nesta perspectiva, não podendo atribuir-se à apelante-A. o exercício de actos de posse correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre o dito prédio rústico, tão pouco beneficiando de alguma presunção legal atinente à posse ou ao direito de propriedade, antes devendo atribuir-se essa posse e correspondente direito aos RR. nos termos analisados, terá de manter-se a ilação extraída na sentença impugnada, ao denegar a pretensão restituitória por aquela deduzida na acção", foi feita uma interpretação do disposto no artigo 1287º do CCivil e nas normas ínsitas nos artigos 57º e 58º do DL nº 400/84, de 31.12, posteriormente, nos artigos 53º e 56º do DL nº 448/91, de 29.11 e, mais recentemente, no artigo 49º do DL nº 555/99, de 16.12 e, ainda no artigo 1º do DL nº 289/73 de 06.06, que viola a Constituição, na medida em que faz uma aplicação errónea das normas contidas no artigo 66º, nº/s 1 e 2, b) e) e h) da Constituição da República, uma vez que considerou estarem reunidos os pressupostos da aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre um terreno em que se procedeu a uma divisão ilícita em parcelas.

       Ao interpretar o normativo ínsito no artigo 1287º como o fez o acórdão recorrido, que considerou que a usucapião pode operar ainda que em violação das disposições legais que prosseguem o ordenamento do território, designadamente a norma então em vigor, inserta no artigo 1º do DL nº 289/73, de 06.06, bem como, mais tarde, o DL nº 559/99 de 16.12, viola a citada norma Constitucional.

       Termos em que deve ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que, procedendo à aplicação correcta das normas ali violadas, julgue procedente o pedido formulado pela A.-recorrente, como forma de fazer Justiça!   

       Contra-alegaram os recorridos, JJ e mulher e HH, em defesa do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

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2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:

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1 – O prédio rústico de terra lavradia, sito no lugar do ..., ..., Espinho, a confrontar, do Norte, com RR e outros, a Nascente, com SS e outros, do Sul, com TT e outros e, do Poente, com herdeiros de UU e outros, inscrito na matriz rústica sob o art. 206º, veio a ser adjudicado à A., no inventário facultativo para separação de meações, onde exerceu as funções de cabeça de casal, em consequência do divórcio que correu termos no Tribunal de Família do Porto, no 1º Juízo, 1ª Secção, Processo n° 8 038/A, integrando, aí, a verba n° 9 (A);

2 – A A. foi casada com PP, em regime de comunhão geral de bens, e divorciou-se, por sentença transitada em julgado (B);

3 – O prédio referido em 1 fazia parte do património comum da A. e do seu ex-marido, PP, que, por sua vez, o recebeu por sucessão dos seus pais (C);

4 – Quer o ex-marido da A., quer esta intervieram no processo de inventário referido, onde a segunda exerceu o cargo de cabeça-de-casal, juntaram documentos fiscais e emitidos pela competente Conservatória do Registo Predial, com referência ao prédio identificado em 1, relacionaram-no e licitaram-no, vindo o mesmo a ser adjudicado à A., que também recebeu tornas (D);

5 – Os RR. ocupam o prédio referido em 1 e procederam à divisão do mesmo em parcelas, onde levantaram edificações (E);

6 – A A. e o seu, então, marido declararam vender a QQ 4/27 avos indivisos do prédio referido em 1, conforme o teor da certidão da escritura de fls. 67 a 69 (F);

7 – Os antepossuidores do prédio identificado em 1 usaram-no, demarcaram-lhe os limites, colheram os respectivos frutos, à vista de toda a gente, sem oposição e na convicção séria de que o dito prédio lhes pertencia, no que foram seguidos pela A. e seu falecido ex-marido, sendo que, no caso destes últimos, o uso do imóvel nos assinalados termos findou, em finais dos anos 70 (1º a 7º);

8 – Pelo menos depois da prolação da sentença homologatória da partilha, a A. fez saber aos RR. que não concordava com a permanência deles naquele terreno, nem consentia na continuação dessa ocupação (10º);

9 – Em finais dos anos 70, os RR.-maridos (aqui incluindo o falecido FF) e QQ negociaram com o, então, marido da A., com o conhecimento e concordância desta, a compra e venda de partes do terreno identificado em 1 (12º);

10 – Na sequência dessas negociações, a A. e o seu, então, marido celebraram, pelo menos, com os RR.-maridos, BB, DD, JJ e NN, acordos que intitularam de "contrato-promessa de compra e venda", nos termos dos quais aqueles se declaravam legítimos possuidores de um terreno composto de uma leira de lavradio situada no Lugar do ..., da freguesia de ... (13º),

11 –… mais declaravam que iam vender ao segundo outorgante – o R. BB – uma parcela de terreno com a área de 670 m2 (...) e que essa venda foi efectuada por 200 000$00, que já tinham recebido, conforme documento de fls. 70... (14º),

12...iam vender ao segundo outorgante – o R. DD – uma parcela de terreno com a área de 762 m2 (...) e que essa venda foi efectuada por 220 000S00, que já tinham recebido, conforme documento de fls. 71... (5º),

13... iam ceder ao segundo outorgante – o R. JJ – uma parcela de terreno com a área de 480 m2 (...) e que essa venda foi efectuada por 150 000S00, que já tinham recebido, conforme documento de fls. 72... (16º),

14...iam ceder ao segundo outorgante – o R. NN – uma parcela de terreno com a área de 535 m2 (...) e que essa venda foi efectuada por 150 000SOO, que já tinham recebido, conforme documentos de fls. 169 e 170 (21º);

15 – Pelo menos, PP acordou com o (falecido) R. FF, quanto ao terreno identificado em 1, a venda de uma parcela de 852 m2, pelo valor de 250 000$00 (17º);

16 – Pelo menos, PP recebeu o valor referido em 15 (18º e 19º);

17 – Em finais dos anos 70, os RR. e QQ tinham acordado entre si a utilização que cada um iria fazer da parcela com que ficara (22º);

18 – Cada um deles vedou a sua parcela com um muro (25º);

19 – 0 referido em 5, 17 e 18 verifica-se, ininterruptamente, desde finais dos anos 70 (26º)…,

20…à vista de toda a gente (27º)…,

21…sem oposição de quem quer que fosse (28º);

22 – Foram construídos acessos (31º);

23 – Depois, cada um deles, nas respectivas parcelas, edificou casa no terreno e cultivou as partes não edificadas (32º);

24 – Tudo usando como coisa sua e na convicção de serem donos do terreno (33º)…

25 –…e, cada um deles, das casas que edificaram a expensas suas, que habitaram (34º);

26 – Mais tarde, veio a ter lugar a inscrição matricial, pelo menos, do "prédio urbano" gerado na parcela aludida em 15 (35º);

27 – Sempre agindo na convicção de que eram os legítimos donos e por toda a gente sempre foram como tal considerados (37º);

28 – Todos estes factos eram e são do conhecimento da A. (38º);

29 – Mau grado o acordo celebrado com todos os RR.-maridos e com o dito QQ, conforme referido em 9 a 14 e 16, apenas com este último viria o mesmo a ser formalizado em escritura pública, conforme referido em 6 (39º);

30 – O, então, marido da A., normalmente, não trabalhava e, durante anos, foi alienando património que herdara a fim de se sustentar e de sustentar a família (47º);

31 – A assinatura aposta nos documentos de fls. 70 a 72, 169 e 170 foi feita pela A. (49º).

                                                          *

3 - Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado e não tendo lugar – como, ora, não teve – a ampliação prevista no art. 684º-A) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na redacção emergente da reforma processual de 95/96[2]) –, constata-se que as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso são, em síntese, as seguintes:

                                                          /

   I – Irrelevância processual da defesa apresentada pelos RR. com apoio na invocação de usucapião a seu favor, por não haverem deduzido correspondente reconvenção;

 II – Prevalência dos actos de posse praticados pela recorrente e seu ex-marido sobre os actos de idêntica natureza protagonizados pelos RR., uns e outros incidentes sobre o prédio reivindicado;

III – Em qualquer caso, a posse exercida pelos RR., pelos herdeiros de FF e mulher e por QQ não incidiu sobre a totalidade do mencionado prédio, mas, antes, sobre as respectivas parcelas pelos mesmos, aí, delimitadas;

IV – Ininvocabilidade da aquisição, por usucapião, da propriedade de tais parcelas, por tal redundar no reconhecimento e contemporização com um loteamento urbano clandestino.

       Apreciando:

                                                       *

4 – Por retratar fielmente os termos da acção, transcreve-se, de seguida, a correspondente síntese, constante do acórdão recorrido: “A A. veio demandar os RR. em ordem a estes últimos serem condenados a entregarem-lhe o aludido prédio rústico – diga-se, apesar dos termos em que aquela formulou aquele pedido, estarmos perante uma acção de reivindicação, tal como se reflectiu no sentenciado – posto ser ela (A.) a dona do mesmo, dado o vir possuindo há mais de 30 anos, sendo que, antes de se ter divorciado do seu marido, esse imóvel pertencia ao casal de ambos, nele se tendo integrado na sequência do óbito dos pais daquele seu marido, vindo a ser-lhe adjudicado por força do inventário a que se procedeu após ser decretado o mencionado divórcio (…) Adiantou que os RR. passaram a ocupar o dito prédio por mera tolerância do seu ex-marido, não dispondo de qualquer título a justificar a continuação dessa ocupação ou a recusa da sua entrega à A., dessa forma se impondo a procedência da pretensão pela mesma deduzida (…) Os RR., na defesa da ocupação legítima desse prédio, aduziram que, em meados de 1978, haviam negociado – bem assim um tal QQ, referido no ponto 6 supra, com quem a A. e seu ex-marido acabaram de celebrar escritura de compra e venda relativa a 4/27 avos indivisos desse imóvel – com a apelante/A. e seu ex-marido a aquisição de tal prédio rústico, tendo formalizado essa aquisição através de contratos-promessa com entrega da totalidade do preço ajustado (v. quanto a esses contratos o nesse aspecto apurado e constante dos pontos 10 a 15 supra), sendo na base do assim negociado que desde o início de 1979 todos eles passaram, bem assim o referido QQ, a ocupar o mencionado prédio, dividindo-o em parcelas entre si na proporção do preço pago, vindo a possuir tal imóvel até ao presente, como se donos do mesmo fossem (invocaram desta forma o direito de propriedade a seu favor sobre esse prédio, sustentado também no instituto da usucapião (…) Na sentença recorrida, tendo por base a factualidade acima elencada, considerou-se que a posse que à A. poderia ser atribuída, correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre o aludido imóvel, havia cessado em finais dos anos 70 (final de 1970), sendo que a partir daí quem passou a exercer actos de posse sobre o aludido prédio até à actualidade haviam sido os RR. e o já mencionado QQ, a ponto de terem adquirido por usucapião esse prédio, por se estar diante duma posse de boa fé, ainda que não titulada, pública, pacífica e a perdurar por mais de 15 anos”.

       Como decorre do relatado, o acórdão recorrido, julgando improcedente a apelação da A., confirmou o sentenciado.

                                                        *

5I – A primeira das supra elencadas questões suscitadas pela recorrente não tem qualquer suporte legal.

       Com efeito, sustenta a recorrente que, não tendo os RR. invocado o instituto jurídico da usucapião, ou, pelo menos, não tendo sido consequentes na retirada dos respectivos efeitos, não formulando o correspondente pedido reconvencional, não estava o tribunal legitimado a julgar procedente a matéria exceptiva de usucapião a favor dos RR., com a inerente improcedência da acção.

       Mas, a lei adjectiva não consente semelhante argumentação, como, claramente, decorre do preceituado nos arts. 274º, nº1, 487º, nº2, 2ª parte e 493º, nº3.

       É que o R., não obstante a alegação de factos habilitantes à dedução de reconvenção, com a formulação do correspondente pedido reconvencional, pode ter interesse ou simples conveniência em limitar-se à mera alegação de factos que, servindo de causa impeditiva – no caso versado nos autos –, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo A., determinem apenas a improcedência total ou parcial do pedido por este formulado, assim afectando o efeito jurídico dos factos por si articulados. Limitando-se, pois, o R., nesta última hipótese, a aduzir matéria fáctica exceptiva determinante da improcedência da acção, sem simultânea formulação de pedido reconvencional, não impetrando, pois, ao tribunal a satisfação de qualquer outra sua pretensão.

       O que não pode, em caso algum, é impor-se ao R. a obrigatoriedade de dedução de reconvenção, ficando dependente das respectivas conveniências a sua dedução, juntamente com a contestação ou a apresentação da correspondente pretensão em acção autónoma[3].

       Em suma: tendo-se os RR. contido na alegação de factos que, consubstanciando a integração de usucapião a seu favor do prédio reivindicado pela A. (com o implícito pedido de reconhecimento da titularidade do respectivo direito de propriedade), com isso visando apenas impedir tal efeito jurídico pretendido pela mesma A., não extravasaram aqueles da alegação de simples matéria exceptiva determinante da improcedência da acção, não tendo os mesmos que deduzir correspondente reconvenção para legitimar que o tribunal devesse atender à factualidade provada e integrante de tal excepção.

       Improcedendo, assim, as correspondentes conclusões formuladas pela recorrente.

                                                       /

II – A recorrente persiste na afirmação da prevalência dos actos de posse por si e seu ex-marido praticados e incidentes sobre o prédio reivindicado, em confronto com os actos de idêntica natureza protagonizados pelos RR.

       Sem razão, porém.

       Com efeito e com correspondente atinência, mostra-se provado que:

--- A prática, directamente pela A. ou pelo seu ex-marido, de actos materiais de uso e fruição do prédio findou, em finais dos anos 70 (Cfr. 7 de 2 supra);

--- Os RR. ocupam o prédio desde finais dos anos 70, tendo, entre si e ainda com o terceiro, QQ, dividido o mesmo em parcelas, acordado entre si na utilização que cada um iria fazer da parcela com que ficara, vedado cada um deles a sua parcela com um muro e nelas levantado edificações, que habitaram (Cfr. 5, 17, 18, 23 e 25 de 2 supra);

--- Esta actuação ocorreu, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição, tudo usando como coisa sua e na convicção de serem donos do terreno, tudo sendo do conhecimento da A. (Cfr. 19, 20, 21, 24, 27 e 28 de 2 supra);

--- Em finais dos anos 70, os RR.-maridos e o QQ negociaram com o, então, marido da A., com o conhecimento e concordância desta, a compra e venda de partes do prédio reivindicado e, na sequência de tais negociações e em relação a, pelo menos, quatro dos RR.-maridos, foi outorgado um documento, intitulado de contrato-promessa de compra e venda, em que é descrita a parcela, é referido o valor da venda, que se declara estar recebido e em que, entre o mais, é feita uma referência à venda como tendo já sido efectuada – “esta parcela de terreno foi vendida”… (Cfr. 9 e 10 de 2 supra e docs. de fls. 70 a 72, 169 e 170);

--- Pelo menos, PP (ex-marido da A.) acordou com o falecido FF, quanto ao prédio reivindicado, a venda de uma parcela de 852 m2, pelo valor de Esc. 250 000$00, recebido, pelo menos, pelo PP (Cfr. 15 e 16 de 2 supra).

       Como é sabido, a posse traduz-se na prática reiterada de actos materiais correspondentes ao direito que se reclama ou reivindica, mostrando-se perfilhada, entre nós, a correspondente concepção subjectivista (arts. 1251º e 1253º, ambos do CC), sendo seus elementos integrantes o corpus  – que, como elemento externo ou material, se identifica com a prática de actos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre o objecto, de modo contínuo e estável – e o animus – que, como elemento interno ou psicológico, se traduz na vontade ou intenção do autor de tais actos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente aos actos realizados. Ademais, sendo exigida a presença simultânea desses dois elementos e dada a dificuldade em demonstrar a ocorrência de posse em nome próprio, ou seja, do animus, a lei estabeleceu uma presunção (juris tantum), em caso de dúvida e sem prejuízo do disposto no nº2 do art. 1257º (que, ora, irreleva), da verificação do mesmo por parte de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, presumindo-se, pois, em caso de dúvida, com a sobredita limitação e ainda que com admissão de prova em contrário, que quem dispõe do corpus também beneficia do animus (art. 1252º, nº2, do CC e assento – hoje, com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência – do STJ, de 14.05.96 (DR, II Série, de 24.06.96) e, bem assim, Acs. deste Supremo, de 09.01.97 – COL/STJ – 1º/37 – e de 02.05.99 – COL/STJ – 2º/126).

       Perante o que acaba de ser ponderado, não têm qualquer consistência as correspondentes objecções da recorrente: apenas releva a factualidade provada (arts. 29º da, aqui, aplicável Lei nº 38/87, de 23.12 – LOFTJLei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, 729º, nº2 e 722º, nº2), que não foi objecto de qualquer impugnação, em sede própria, por parte da recorrente, sendo certo que só os RR. e o mencionado QQ podem ser havidos por possuidores do prédio reivindicado, reportadamente à parcela por cada um deles adquirida, em conformidade com correspondente divisão daquele (Cfr. 5 de 2 supra).

       Na realidade, irrelevam, nesta perspectiva, a relacionação, licitação e partilha do prédio reivindicado, ocorridas no processo de inventário para separação das meações da recorrente e de seu ex-marido, por iniciativa dos respectivos interessados, entre os quais a recorrente: como, certeiramente, se pondera na sentença da 1ª instância, em perfeita sintonia com o ensinamento dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (“CC Anotado”, Vol. III, 2ª Ed., pags. 26)“…a posse traduz-se na prática de actos materiais que incidam sobre a coisa; o «relacionamento» (sic) e licitação de um prédio em processo de inventário não configuram em si mesmos actos com aqueles sentido e alcance, mas tão só actos de pendor ideal ou jurídico, que podem estar inteiramente desgarrados de qualquer substrato prático e que em tese até podem ser protagonizados por quem nenhuma ligação teve ou tem com o imóvel (…) Esses actos de relacionação e licitação em processo de inventário poderão, é certo, ter alguma relevância em matéria de posse, mas não propriamente como consubstanciando actos materiais que incidam sobre a coisa – poderão relevar é quando nos aprestamos a perceber a intenção com que os tais actos materiais sobre a coisa são praticados. O relacionamento (sic) e a licitação em inventário de um prédio não relevam, em suma, do corpus, relevam quando muito do animus, mas para que este animus tenha alguma expressão em termos de posse, é imprescindível que esteja associado aos assinalados actos materiais integradores do corpus, que no caso concreto, quanto à A. e seu ex-marido, deixaram de existir a partir de finais dos anos 70 (…) Assim é que aquando do relacionamento (sic), licitação e partilha do prédio no inventário para separação de meações, já não existia quanto à A. qualquer corpus, e sem corpus (fora dos casos dos arts. 1255º e 1264º), não há por definição posse”.  

       Com o que, igualmente, improcedem as correspondentes conclusões tiradas pela recorrente.

                                                         /

III – A recorrente insurge-se, igualmente, contra o facto de os RR. e o QQ não poderem ser havidos como possuidores da totalidade do prédio reivindicado, mas apenas e só de cada uma das várias parcelas em que aquele foi dividido, sendo certo que o somatório das áreas de tais parcelas é inferior à área total do dito prédio. Assim sustenta a mesma –, nunca aqueles poderiam contrapor ao pedido de restituição do mesmo prédio a excepção peremptória da usucapião, a seu favor, do mesmo prédio, com a inerente improcedência da acção.

       Não podemos, porém, aderir a um tal entendimento.

       Desde logo, porque não se mostra provada (e, pois, processualmente, adquirida) a invocada área do prédio reivindicado, ao que acresce que, nem mesmo a presunção constante do art. 7º do CRPredial abarca e é extensiva a todos os elementos de identificação do prédio constantes da descrição, sempre que exista uma desconformidade entre esta (no que respeita a algum daqueles elementos) e a realidade material do imóvel, designadamente quanto aos limites, estremas, área e confrontações.

       Depois, porque não está garantido o inteiro rigor e exactidão da área atribuída a cada uma das parcelas que foram objecto dos contratos celebrados com os RR. e o QQ e a que se reportam os autos, não fornecendo, pois, os autos elementos credíveis que evidenciem que as sobreditas parcelas não abarcam toda a área do prédio reivindicado.

       Finalmente, porque os RR. não excepcionaram com a invocação da usucapião, a seu favor, da totalidade do prédio, antes tendo pretendido beneficiar de tal instituto jurídico com referência à parcela sobre que cada um deles exerceu actos de posse, em termos de lhe ser reconhecida – como foi, em sede exceptiva e a determinar a decretada improcedência da acção, perante a factualidade provada – a correspondente aquisição originária

da propriedade da parcela sobre que cada um deles, e a partir dos finais dos anos 70, exerceu, exclusiva e singularmente, todos os poderes de gozo e fruição que integram o conteúdo do direito de propriedade (art. 1305º, do CC).

       Assim, perante a descrita realidade factual emergente da prova produzida, outro não poderia ser o desfecho da acção, reclamado, até, reforçadamente, pelo provado facto de todo o prédio ter sido, pelos RR., dividido em parcelas, e pelas demais razões que, em caso algo similar, foram, brilhantemente, expendidas no Ac. deste Supremo, de 09.10.08, relatado pelo Ex. mo Cons. Santos Bernardino e acessível em www.dgsi.pt.    

       Improcedendo, pois, de igual sorte, as correspondentes conclusões extraídas pela recorrente.

                                                    /

IV – Finalmente, sustenta a recorrente a ininvocabilidade da aquisição, por usucapião, da propriedade das sobreditas parcelas, por tal redundar no reconhecimento e contemporização com um loteamento urbano clandestino.

       Ainda aqui, a recorrente não tem razão.

       Desde logo, porque, como bem se observa no acórdão recorrido, não está demonstrado, nos autos, que as edificações erigidas se não encontrem licenciadas.

       Depois, porque, como se decidiu no Ac. deste Supremo, de 06.07.76 – BOL. 259º/161), “I – A operação de loteamento tem por objecto a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, destinados imediata ou subsequentemente à construção; assim, são dois os requisitos do loteamento urbano: um fraccionamento predial e o destino desse fraccionamento (construção)”.

       Ora, no caso dos autos, não só se não provou um tal destino do fraccionamento do prédio, como não será excessivo admitir que nem sequer a contemplação do mesmo presidiu à celebração dos correspondentes contratos, não tendo, pois, no caso, aplicação o preceituado no art. 1º do DL nº 289/73, de 06.06, e estando, por via disso, arredada a aplicação da sanção da nulidade de tais contratos, prevista no art. 27º, nº2, do mesmo DL.

       Aliás, a usucapião é uma forma de constituição de direitos e não uma forma de transmissão dos mesmos: o usucapiente não adquire o bem por transmissão de anterior titular, o direito surge na sua esfera jurídica, “ex novo”.

Assim, sendo a usucapião uma forma de aquisição originária e não derivada de direitos, ela operará, mesmo relativamente a parcelas de um prédio, ainda que, na sua génese, tenha estado um fraccionamento ilegal.

       Como se decidiu no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.05.05 – Proc. 3997/04.dgsi.Net – relatado pelo – actualmenteEx. mo Cons. Serra Baptista – “I – Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária e não uma forma de transmissão de direitos, surgindo estes na esfera jurídica do usucapiente ex novo, ela operará, mesmo que relativamente a uma parcela de um prédio, ainda que, na sua génese, tenha estado um fraccionamento ilegal porque constitutivo de fracções com área inferior à unidade de cultura. II – E isto é assim porque, perante um longo período de tempo, deixa de fazer sentido a invocação do interesse público que preside às restrições impostas à divisão, à prévia sujeição aos mecanismos ligados ao urbanismo, devendo o sistema jurídico absorver a situação e reconhecer ao usucapiente a exclusividade do seu direito de propriedade sobre a parcela que, na prática e desde há tanto tempo, nunca deixou de lhe pertencer e sobre a qual veio exercendo, de forma regular, continuada e pacífica, os poderes inerentes ao direito de propriedade”.  Sendo defendida doutrina idêntica, designadamente, no Ac. deste Supremo, de 08.06.93 – COL/STJ – 2º/142 – relatado pelo Ex. mo Cons. Machado Soares, no Ac. da Rel. do Porto, de 09.01.95 – Col. – 1º/189, relatado pelo – então – Ex. mo Des. Bessa Pacheco, e no Ac. da Rel. de Évora, de 26.10.00 – Col. – 4º/272, relatado pelo Ex. mo Des. Ribeiro Cardoso.

       Como, em caso similar, se ponderou no sobredito Ac. de 09.10.08, deste Supremo, “…o estado de facto…criado pela divisão do prédio e pela autonomização das suas parcelas, converteu-se, sem dúvida, em estado de direito, pelo funcionamento das regras da usucapião, cujos fundamentos se mostram inequivocamente provados, como flui da matéria de facto provada”.

       Improcedendo, pois, como já insinuado, as remanescentes conclusões propostas pela recorrente, tanto mais que não se vislumbra em que é que o acórdão recorrido possa ter incorrido na invocada violação do preceituado no art. 66º, nº/s 1 e 2, als. b), e) e h) da CRP (Constituição da República Portuguesa).

                                                       *

6Sumário:

                                                        /

                     I – Inexiste obrigação de dedução de reconvenção, estando dependente das conveniências do R. a sua dedução, juntamente com a contestação ou a apresentação da correspondente pretensão em acção autónoma.

                    II – Alienada a propriedade de um prédio rústico a vários compradores que, subsequentemente, aí, procederam à delimitação material das respectivas parcelas, sobre estas exercendo, cada um deles, actos de posse habilitantes à respectiva aquisição por usucapião, os requisitos da verificação desta devem reportar-se à parcela, individualmente considerada, e não à totalidade do prédio.

                   III – Na situação descrita, o reconhecimento judicial da mencionada usucapião deve sobrepor-se e prevalecer sobre o fraccionamento ilegal do prédio, que, porventura, tenha estado na respectiva génese, já porque em causa está um direito não transmitido, mas constituído “ex novo”, já porque, esgotado o decurso do tempo necessário à respectiva verificação, com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as concepções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada.

                                                         *

7 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.

                                                         /

     Custas pela recorrente.

                                                         /

                                            Lx     04 /02/ 2014/

____________________________
[1]  Relator: Fernandes do Vale (37/13)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida

[2]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[3]  Neste sentido, designadamente, Cons. Rodrigues Bastos, in “NOTAS ao CPC”, Vol. II, 3ª Ed., pags. 31, Cons. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, I Vol. (2ª Ed. revista e ampliada), pags. 56, onde, após, afirmar o sobredito princípio processual, alude, não obstante, a dois casos de dedução de reconvenção conveniente (arts. 1792º, nº2, do CC e 1029º - actual art. 921º), consubstanciadores de afloramentos do princípio da preclusão, mais do que de excepções ao princípio dispositivo) e, ainda, o Ac. da Rel. de Coimbra, de 29.11.94 – Col. – 5º/48).