Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B129
Nº Convencional: JSTJ00036049
Relator: PEREIRA DA GRAÇA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
EXAME LABORATORIAL
PATERNIDADE BIOLÓGICA
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
Nº do Documento: SJ199903110001292
Data do Acordão: 03/11/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 956
Data: 09/29/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 1871 ARTIGO 1817 E ARTIGO 12 N1.
DL 496/77 DE 1977/11/25.
L 21/98 DE 1998/05/12.
CPC67 ARTIGO 712.
Sumário : I - No art. 1871, do Cód. Civil (redacção do DL 496/77, de 25 de Novembro), indicam-se presunções de paternidade que a estabelecem em termos legais. Ela pode, porém, resultar de uma base biológica, ou seja, da prova do convívio ou trato sexual no período legal da concepção, caso em que é necessária a prova da exclusividade das relações.
II - Na investigação da paternidade, a probabilidade laboratorial deve ser complementada pela restante prova produzida, que será tanto mais simples quanto a proximidade da certeza se alcança.
III - A alínea e) do mencionado art. 1871, acrescentada pela Lei 21/98, de 12 de Maio, veio dar relevância ao aspecto puramente biológico, considerando a evolução técnica entretanto alcançada no campo hematológico e de rigor científico do ADN.
IV - A lei, ao acrescentar a referida alínea e) dispõe directamente sobre o conteúdo da presunção de paternidade, alargando o seu âmbito de modo a abranger o mero relacionamento sexual durante o período legal de concepção, aplicando-se, por isso, às situações preexistentes.
V - Desta forma, a aplicabilidade do Assento de 21 de Junho de 1983 ficou restringida aos casos em que se não tenha efectuado o exame hematológico.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de justiça:

O Ministério Público na comarca de Ourém, propôs, em representação da menor A, contra B, acção de investigação de paternidade.
Alegou, em suma:
A menor nasceu na sequência de relações sexuais mantidas, com exclusividade, entre o Réu e a mãe da A;
A paternidade é atribuída ao Réu pelas pessoas residentes no local.
Pede, portanto, que a menor seja reconhecida como filha do Réu.
Contestou este, negando a paternidade e pedindo, consequentemente, a absolvição do pedido.
Os autos prosseguiram até à audiência de discussão e julgamento e consequente sentença em que se julgou a acção procedente. declarando-se a menor A filha do Réu.
Apelou este, sem êxito, pois o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a sentença recorrida, declarando-se filha do Réu, neta paterna, portanto, de C e D.
Pediu, então, a presente revista, concluindo, de forma escusadamente longa, deste modo, as suas alegações recursivas:
1. Não resultou provada a exclusividade das relações sexuais entre a mãe do menor e o R., durante o período legal de concepção.
2. Tendo-se provado, até, que aquela foi vista com outro homem, que não o R., numa festa;
3. Realizado o exame hematológico, o resultado foi de 99,521%.
4. O Meritíssimo Juiz de primeira instância, baseado unicamente neste resultado, decidiu pela procedência da acção.
5. Acontece que, o exame hematológico foi posto em causa pelo recorrente, na sua contestação, afirmando que o mesmo não é parte fidedigna e foi deficientemente realizado, uma vez que não foram estudados os sistemas de interpretação conducentes à exclusão da paternidade averiguada.
6. Sendo que acresce, ainda, o facto de o exame hematológico ter sido produzido no processo de averiguação oficiosa, no qual não foi dada ao Réu a possibilidade de exercer o direito do princípio do contraditório.
7. Motivo pelo qual, o ora alegante viu precludidos os direitos que lhe eram reconhecidos, nos termos do disposto no art. 522, n. 1 - 2ª parte e 601 do C. Proc. Civil parte e 601 do C. Proc. Civil ex-vigorante.
8. Além disso, este exame pericial não é um facto, mas sim um meio de prova de factos, não tendo, por isso, força probatória plena, sendo, antes de livre apreciação, nos termos do disposto nos arts. 1801 e 389 do Código Civil.
9. Ademais, a ciência, por mais desenvolvida que esteja, também ela é susceptível de enganos.
10. A autora, não provou a exclusividade das relações sexuais com o R., no período legal de concepção, como, legalmente, lhe competia.
11. De acordo, aliás, com a Jurisprudência do Assento de 21-6-83, segundo a qual «na ausência de presunção de paternidade, ainda assim é possível demonstrá-la com a prova de exclusividade das relações sexuais».
12. Também neste sentido, surgem-nos Acórdão do STJ de 11-4-91 e os Acórdãos da Relação de Lisboa de 17-5-78 e de 18-7-78, de acordo com os quais é imprescindível a prova da exclusividade das relações sexuais entre a mãe e o investigado.
13. Verificou-se, pois, uma violação da doutrina do Assento 4/83, de 21 de Junho, doutrina esta acompanhada pela jurisprudência defendida nos Acórdãos atrás referidos.
14. O caso «sub judice» não se enquadra em nenhuma das presunções de paternidade previstas no art. 1871 do C. Civil, à data da decisão de primeira instância.
15. Posteriormente a esta data, foi aditada ao referido preceito, uma nova presunção, segundo a qual, a paternidade presume-se quando se prove que o pretenso pai teve relações com a mãe durante o período legal de concepção.
16. Porém, e salvo melhor entendimento, tal presunção não se pode aplicar ao presente caso, uma vez que a função do recurso é o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida, não se podendo, com o devido respeito, fazer uso de leis inexistentes à data da decisão de que se recorre.
17. Neste sentido, ensina o Dr. Armindo Ribeiro Mendes que, relativamente aos recursos, e «quanto ao direito superveniente, o direito aplicável é o existente à data da decisão de primeira instância, não devendo atender-se às leis entretanto surgidas», in Recursos em Processo Civil, Lex 1992, pág. 139.
18. Além disso, estar-se-ia a contrariar o princípio geral da não retroactividade das leis, previsto no art. 12 do C. Civil, o qual só excepcionalmente, se não aplica, e o caso em apreço não se enquadra em nenhuma dessas excepções.
19. Acresce, ainda, o facto de, se tal aplicação se verificasse, o ora alegante veria as suas expectativas frustradas, uma vez que, a defesa que elaborou se fundamentou na lei vigente à data da decisão de primeira instância.
20. A tudo isto acresce, ainda, a circunstância de que o douto e Venerando Tribunal «a quo» deveria ter-se circunscrito ao estabelecido no art. 712 do C. Civil, não estando neles prevista a possibilidade de se recorrer a uma lei posterior à decisão de primeira instância, para fundamentar a sua douta decisão.
21. Motivo pelo qual, o mui douto Acórdão da Relação ao fazer uso da nova presunção legal aditada ao art. 1871 do C. Civil, está, por um lado, a violar o estabelecido no art. 12 do C. Civil e por outro, os poderes que são atribuídos à Relação, pelo disposto no art. 712 do C. P. Civil.
Pede, pois , que se revogue a sentença (?) e, consequentemente, que a acção seja julgada improcedente por não provada.
Em contra-alegações, o Recorrido, pronuncia-se no sentido da manutenção da decisão impugnada, ou então, da ampliação da matéria de facto.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Objecto do recurso:
A - EXCLUSIVIDADE NÃO PROVADA;
B - EXAME HEMATOLÓGICO;
C - PRINCÍPIO DA NÃO RETROACTIVIDADE;
D - EXPECTATIVAS DE DEFESA;
E - A RELAÇÃO E O ART. 712 DO CPC.
FACTOS:
a) Nasceu no dia 26 de Janeiro de 1993 A, a qual foi registada como sendo filha de E, sendo o assento de nascimento omisso quanto à menção de paternidade;
b) o réu B e a mãe do menor não são parentes ou afins entre si;
c) A presente acção de investigação de paternidade foi julgada viável por despacho judicial proferido no âmbito dos autos de averiguação oficiosa de paternidade que ocorreu seus termos no tribunal de Ourém;
d) A mãe da menor A e o Réu iniciaram uma relação de namoro em Novembro de 1991, tendo mantido em Janeiro de 1992, pela primeira vez, relações sexuais;
e) O Réu e a mãe da menor mantiveram relações de cópula completa até, pelos menos, finais de Maio de 1992;
f) Entre finais de Maio e Agosto de 1992, a mãe da menor comunicou ao Réu que estava grávida;
g) A paternidade da menor é atribuída ao Réu por algumas pessoas que os conhecem e com ele se relacionam;
h) A mãe da menor foi vista numa festa acompanhada por outro homem que não o Réu.

CONSEQUÊNCIAS:
A - EXCLUSIVIDADE NÃO PROVADA
1 - No art. 1871 do Código Civil (1) indicam-se presunções de paternidade que a estabelecem em termos legais. Ele pode, porém, resultar de uma base biológica, ou seja, da prova de convívio ou trato sexual no período legal da concepção. Só que, neste caso, considerou-se necessária a prova da exclusividade das relações, pois só assim era possível garantir a atribuição da paternidade a determinado homem.
A prova desta situação, chamada exceptio plurium, competia ao autor, conforme o exarado em Assento (2).
2 - No caso presente, foi alegada e quesitada - quesito 11 - a seguinte matéria:
"A mãe da menor não manteve relações de sexo com nenhum outro homem para além do Réu nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da A?"
Tal quesito mereceu a resposta de não provado. Daí a dificuldade no estabelecimento da paternidade, na perspectiva tradicional. Na verdade, se tal matéria tivesse sido dada como provada, nenhuma dúvida se levantava quanto ao respectivo reconhecimento biológico. Por isso se entendia que a resposta negativa ao quesito da exclusividade, impunha a improcedência da acção (3).
3 - A alínea e) do mencionado art. 1817, acrescentada pela Lei 21/98, de 12-V, veio dar relevância ao aspecto puramente biológico, considerando a evolução técnica entretanto alcançada no campo hematológico e do rigor identificativo do ADN. É o tema da epígrafe seguinte.

B - EXAME HEMATOLÓGICO
1 - O estudo dos diversos marcadores genético-moleculares e génicos da menor A e dos indigitados progenitores levou à conclusão seguinte:
"A análise estatística, tendo em conta a estrutura genotípica deste pretenso pai (valor X) e a distribuição dos diferentes marcadores analisados na população (valor Y), deu uma probabilidade de paternidade de 99,521% que corresponde a uma paternidade provável, segundo escala de Hummel que se junta".
Nos termos daquela escala, a probabilidade encontrada situa-se logo a seguir ao grau máximo possível que é a paternidade praticamente provada.
2 - Tal exame, não sendo lucipotente, em temos absolutos, situa-se no mencionado grau que atinge a raia da certeza, sem contudo lá chegar. Quando esta certeza for alcançada, perde razão de ser a essência do objecto deste tipo de acção de investigação. Por enquanto, tal ainda não ocorreu pelo que o exame é insuficiente, havendo ainda uma margem de erro de 473 milésimas. Assim, sempre a probalidade laboratorial deve ser complementada pela restante prova produzida. Esta será tanto mais simples quanto a proximidade da certeza se alcança. Assim, sobeja a prova de namoro prolongado, abrangente do período concepcional, e o facto de a paternidade ser atribuída ao Réu por algumas pessoas que os conhecem e com as pessoas em causa se relacionam.
Só que, no rigor dos valores subjacentes ao referido Assento, falta a prova da exclusividade.
Provou-se que a mãe da menor foi vista numa festa acompanhada por outro homem que não o Réu. Este facto, desacompanhado de circunstancialismo minudente e mais significativo, é completamente irrelevante. O vero escolho é a exclusividade não provada, o que já se arreda com o aditamento da referida al. e) do art. 1817, mas dada à luz em Maio de 1998, o que nos impele para o item seguinte.

C - PRINCÍPIO DA NÃO RETROACTIVIDADE
1 - O princípio geral de aplicação da lei no tempo, baseia-se, como é sabido, na teoria do facto passado, segundo a formulação de Enneccerus-Nipperday. Tal encontra expressão no n. 1 do art. 12 do Código Civil, segundo o qual "a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular".
2 - Há, porém, que atentar no disposto no n. 2 do referido art. 12 e no seu esquema disjuntivo (4).
Assim, a 1ª parte reporta-se a factos e a 2ª a direitos. Esta segunda parte interessa-nos, agora, particularmente. Ali se exara:
Quando a lei dispuser "directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor".
Afigura-se que a lei, adindo a referida alínea e), dispõe directamente sobre o conteúdo da presunção da paternidade, alargando o seu âmbito de modo a abranger o mero relacionamento sexual durante o período legal da concepção. Assim, tal normativo teria aplicação às situações preexistentes. Isto é: teria aplicação a esta sub judice lis est.
Terá tal interpretação reflexos nas expectativas de defesa do Recorrente? É o que vamos abordar no almagre sequente.

D - EXPECTATIVAS DE DEFESA
1 - Entende o Recorrente que elaborou a sua defesa fundada na lei vigente à data da decisão da primeira instância, facto não tido em conta, frustrando-se, assim, as suas expectativas.
2 - Ora bem: não houve qualquer alteração fáctica. O rol factual ficou intocado a partir do encerramento da audiência de discussão e julgamento. O juiz está sujeito aos factos articulados pelas partes, devendo tomar em consideração todos os constitutivos, modificativos ou extintos, na elaboração da decisão, de modo a que esta corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão. O julgador tem, porém, plena liberdade no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (5).
Portanto, os factos mantiveram-se inalteráveis. O que houve foi uma modificação no conteúdo do conceito de presunção de paternidade. Como tal, de aplicação imediata, o que não tem reflexos, como se disse, nos factos, mas apenas nos efeitos futuros, a produzir, tendo sempre em conta os factos já inalteravelmente firmados e inalterados.
Quanto a tal, teve o Recorrente oportunidade de se pronunciar e, efectivamente, tem-se pronunciado, não só nas presentes alegações de revista, como já o tinha feito nas de apelação.
Não há, pois, frustração nas expectativas, para além das resultantes da alteração legislativa, a que sempre se está sujeito.
3 - A questão pode ser encarada ainda noutra perspectiva. É fácil constatar a razão de ser do substracto inerente ao referido Assento ao pressupor a exceptio plurium: a impossibilidade coeva, relativamente àquele aresto, da prova de paternidade perante uma situação de relações sexuais plúrimas. Esse substrato alterou-se de forma a tornar-se possível a identificação do pai mesmo naquela situação.
Assim, já nada impedia o reconhecimento da paternidade nestes casos, perante a realização de exame hematológico. A aplicabilidade do Assento ficou restringida aos casos em que se não tenha efectuado o referido exame. A Lei 21/98 limitou-se, pois, a dar acolhimento expresso a uma situação já preexistente.
Só assim é possível conceder tratamento igual a situações de facto iguais, criando-se inteligibilidade perante o cidadão comum.
4 - Assevera o Recorrente que não é o pai do menor não obstante o resultado do exame efectuado no Instituto de Medicina Legal de Coimbra. Considera que tal exame não é fonte fidedigna para que o Tribunal possa, só por ele, decidir no sentido da procedência da acção. Também considera o seu resultado deficiente, pois não foram estudados sistemas de interpretação conducentes à exclusão. Que sistemas?
Apesar de tais asserções, nada requereu em termos de pretender efectivamente impugnar o conteúdo do exame, efectuado, aliás nos termos científicos e técnicos habituais. Se não teve oportunidade de reagir contra o conteúdo do exame no processo administrativo em que foi requerido, haveria de poder fazê-lo quando teve dele conhecimento. O Tribunal aprecia, aliás livremente o resultado do exame - que carece de força probatória plena -, conjugando-o com as restantes provas, embora possua, obviamente, uma força especial.
Como podemos já constatar, o exame hematológico não foi o único elemento a considerar. Se o tivesse sido, então sim, resultaria insuficiência probatória. Mas há o namoro, há as relações sexuais mantidas por largo tempo, nomeadamente no período legal da concepção. Se as instâncias tal não consideraram, fá-lo este Supremo, aplicando aos factos o correspondente direito, como lhe compete.

E - A RELAÇÃO E O ART. 712 DO CPC
1 - O Tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto nos casos expressos no art. 712 do CPC.
2 - Data venia, ao contrário do pretendido pelo Recorrente, aquele Pretório não alterou facto algum. Limitou-se a considerar os factos que sempre estiveram nos autos, retirando deles as consequências jurídicas que julgou impostas pelas normas legais aplicáveis.
Decaem, pois, as conclusões do Recorrente.
NESTES TERMOS:

Nega-se a revista.
Custas pelo Recorrente que, no entanto, goza do benefício de apoio judiciário.
Lisboa, 11 de Março de 1999.
Pereira da Graça,
Lúcio Teixeira,
Dionísio Correia.
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(1) - Redacção introduzida pelo DL 496/77, de 25-11.
(2) - In Diário da República de 27-08-83.
(3) - BMJ 310/283.
(4) - Prof. Baptista Machado, "Sobre a Aplicação das Leis...", 352.
(5) - Arts. 663 e 664, do CPC.