Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B538
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA DA SILVA
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: SJ200804170005382
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A reapreciação a que se reporta o artº 712º nº2 do CPC é pontual, condicionada à alegação do recorrente, com ela se visando a detecção e correcção de concretos erros do julgador de 1ª instância, a apontar, por forma clara, pelo impugnante, a Relação, nessa tarefa, devendo fundar a sua própria convicção, seja ela, ou não, coincidente com a que, no tribunal "a que", prevaleceu, funcionando, a acontecer a 2º hipótese, como tribunal de substituição, que não de cassação.
II - O mau uso, pela Relação, dos poderes conferidos pelo artº 712º nº 2 do CPC, filiada no desrespeito da metodologia consignada em tal comando legal, não consubstancia nulidade do acórdão, antes impondo o desencadear, pelo STJ, dos poderes conferidos pelo artº 729º nº 3 do supracitado Corpo de Leis.
III - A exigência de fundamentação, outrossim plasmada no artº 205º nº1 da CRP e no artº 158º do CPC, fica satisfeita com expressa invocação, no acórdão da Relação, da observância do artº 712º nº 2 do CPC, através da audição da prova gravada, sucintamente referido o seu juízo para não alterar a decisão da matéria de facto no atinente ao vazado na al. a) do nº 1 do artº 690º-A do CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. a) AA intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário, contra "Banco Empresa-A, S.A.", nos termos e com os fundamentos que fls. 2 a 11 mostram, impetrando a condenação da demandada a indemnizar a autora:

1. Pelo Montante de 92.277,61 euros, "com a devida correcção monetária, acrescido de juros de mora vincendos à taxa legal."
2. Pelos "custos do empréstimo hipotecário" referido na p.i., "desde 13/8/2001 até efectivo e integral pagamento da quantia supra mencionada, montante esse a liquidar em execução de sentença".
b) Contestou o "Banco ...., S.A., o qual incorporou, por fusão, o "Banco Empresa-A, S.A", como decorre de fls. 34 a 45, requerendo a intervenção acessória de "Empresa-B, Companhia de Seguros, S.A." e sustentando a justeza do decreto da improcedência da acção, com consequente absolvição sua do pedido.
c) Replicou a demandante, pugnando pelo demérito da defesa exceptiva e pelo indeferimento do aludido incidente.
d) Contestou a interveniente, concluindo pela improcedência da acção em relação a si.
e) Elaborado despacho saneador tabelar, foi seleccionada a factualidade considerada como assente e organizada a base instrutória.
f) Cumprido o demais legal, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, sentenciada tendo sido a improcedência da acção, com decorrente absolvição do "Banco Réu dos pedidos contra ele formulados" (cfr. fls. 785 a 811).
g) Com a sentença se não tendo conformado apelou a autora, sem êxito, embora, já que o TRP, por acórdão de 07-09-27, como flui de fls. 1019 a 1035, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão impugnada.
h) É do predito acórdão que, ainda irresignada, traz revista a autora, a qual, na alegação oferecida, em que propugna a bondade da "devolução dos autos para cumprimento efectivo do dever de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto", tirou as seguintes conclusões:

"1) A Autora intentou acção declarativa de condenação na 1ª instância, a fim de obter a condenação dos Recorridos no pagamento da indemnização de seguro de vida no âmbito do crédito habitação.
2) Não satisfeita com a decisão do Tribunal de 1ª Instância quanto à matéria de facto a Autora recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, com base no art. 712º nº 1 do C.P.C., por forma a sindicar dois quesitos fundamentais à boa decisão da causa, nomeadamente os quesitos 5º e 6º.
3) O Tribunal da Relação não alterou a decisão da 1ª Instância, e, para surpresa da Autora, fundamentou tal decisão dizendo que "o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si."
4) Ora como é óbvio o Tribunal que está incumbido de sindicar o segundo grau de jurisdição da matéria de facto não pode cingir-se a tal postura.
5) O aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 14-09-2006, é bem claro quanto a esta posição, nomeadamente quando afirma", a Relação deve efectuar um «exercício crítico substitutivo» (...) Não o fazendo, a Relação falha na fundamentação específica da sua própria convicção sobre esses mesmos pontos de facto."
6) E acrescenta ainda o mesmo acórdão "Um «efectivo segundo grau de jurisdição» em matéria de facto que a lei coloca sobre os ombros da Relação, obviamente sai frustrado (...) quando a Relação apenas apura «se a convicção do tribunal recorrido tem suporte razoável na prova presente».".
7) Assim, torna-se necessário que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique sempre extensivamente os fundamentos para que se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado.
8) O Tribunal de segunda jurisdição da matéria de facto tem de realizar uma exposição completa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova.
9) No entanto, o acórdão que ora se indica, limita-se a verificar se, quanto à decisão da matéria de facto, na fundamentação da 1ª Instância, existe suporte razoável da prova.
10) Limitando-se, ainda, a dizer que não existem erros de julgamento de 1ª Instância, na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto.
11) Ora, não é esta a postura imposta pelo art. 712º nºs 1 e 2 do C.P.C. e pelo imperativo constitucional inscrito no art. 205º nº 1 da Constituição, que obrigam a que o tribunal fundamente a sua decisão em motivos claros e objectivos, de forma a que a sua decisão seja construída de forma cabal.
12) Impondo tais disposições uma verdadeira reapreciação da prova, reponderação do juízo sobre ela efectuado e renovação da decisão.
13) Conclui-se, assim que o acórdão do Tribunal a quo é ilegal e inconstitucional, por violação das normas referidas em 11), tornando-se imperioso que a sua substituição de forma a expurgar o ordenamento jurídico de decisões ilegais e inconstitucionais."

i) Contra-alegaram o "Banco Empresa-A, S.A.", e "Empresa-B - Companhia de Seguros, S.A.", defendendo o acerto da confirmação do julgado.
j) Corridos os vistos de lei, há que apreciar e decidir.

II. Eis como se configura a materialidade fáctica que vem dada como assente pelas instâncias:
"1º ) O Banco ...., S.A., com sede na Praça D. João I, incorporou por fusão, o Banco Empresa-A, S.A. através de escritura pública lavrada em 15 de Dezembro de 2000, no 1º Cartório Notarial de Lisboa de fls. 57 a 69 v do Livro 521-G;
2º) Por escritura pública celebrada em 25 de Julho de 1996, nas instalações da Ré sitas à Praça do Bom Sucesso, no Porto, perante a Ajudante do 6º Cartório Notarial do Porto, a A. conjuntamente com o seu marido BB outorgaram com o Banco Réu o contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca junto aos autos a fls. 14 a 19, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, através do qual este mutuou àqueles a quantia de Esc. 18.500.000$00;
3º) A Autora e o seu marido juntamente com o Banco Réu outorgaram também o documento complementar junto aos autos a fls. 20 a 27, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;
4º) No âmbito desse contrato, a Autora e o seu marido receberam, conjuntamente com diversa documentação do processo de concessão do empréstimo acima referido, as condições e propostas de contratos de seguro-seguro de vida e seguro de imóvel cuja aquisição ia ser financiada;
5º) Condições e propostas que eram provenientes da "Empresa-B, S.A.";
6º) Seguradora do "Grupo ...", onde se inclui também o Banco Réu;
7º) O marido da Autora, BB, faleceu em 13/8/2000;
8º) Instado o Banco Réu para apresentar a apólice de seguro a fim de ser reclamado o sinistro junto da Companhia Seguradora, foi a Autora informada que não existia qualquer seguro de vida e que o mesmo não havia sido contratado;
9º) A fls. 135 a 229 encontram-se os extractos da conta bancária nº 667746865 pertencente à Autora e seu falecido marido, do Banco Empresa-A, S.A., também um Banco do "Grupo ....", onde mensalmente foram descontadas duas verbas para pagamento de seguros, sob a designação de "MRH" e SEGUROS NOVARENDA";
10º) A sigla "MRH" referia-se a Multi-Riscos-Habitação com a apólice nº 10434313 e a sigla "SEGUROS NOVARENDA" a acidentes pessoais com a apólice nº 41400496;
11º) A fls. 255 e 256 encontram-se duas propostas de seguros pertencentes à "Empresa-B, S.A." as quais foram entregues ao Banco Réu depois de preenchidas;
12º) Datada de 30 de Julho de 1996 o Banco Réu enviou à Empresa-B, a carta junta aos autos a fls. 442 do seguinte teor:

" Exmos Senhores,
Pela presente enviamos as propostas de Seguros de Vida e Multi-Riscos associados ao produto "Crédito Imobiliário do (s) nosso (s) cliente (s);
BB: data de nasc. 60.02.09
Processo: 118411793
Balcão 538 Ger. Proc: 178/ Cal
D/O:66746865
Valor do empréstimo: 18.500.000$00
Capital a segurar (vida) 18.500.000$00
Capital a segurar (Multi-Riscos): 25.000.000$00.
As apólices deverão se emitidas com efeito a partir de 96/07/25"

13º A essa carta respondeu a Empresa-B através do "mail" junto aos autos a fls. 444 do seguinte teor:
" Cliente: BB
Capital: 18.500.000$00.
Pelo presente informamos que relativamente ao cliente acima indicado o seguro de vida não poderá ser emitido, uma vez que o cliente necessita de fazer exames médicos para apreciação do risco, pelo que ficamos a aguardar o seu envio.
É no entanto da maior importância sermos informados da data e local da marcação dos mesmos"
Da base instrutória:
14º ) O falecido marido da Autora, na altura da preparação dos documentos para a outorga do mútuo referido em 2º), visitou um médico;
15º) Com vista a responder ao questionário médico exigido pelo Banco Réu e a respectiva Seguradora;
16º Para aceitação do contrato de seguro de vida;
17º) E realizou exames médicos, nomeadamente análises clínicas;
18º) Na sequência do "mail" referido em 13º) e com vista à celebração do contrato de seguro-vida referido em 4º) o Banco Réu enviou ao falecido marido da Autora a carta junta aos autos a fls. 72.

III. 1. A tónica do recurso, como brota das conclusões da alegação da recorrente, as quais delimitam o âmbito daquele (art.s684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC), se centrando no decretado naufrágio da acontecida impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, perfila-se cabido o, a título introdutório, antes de se elencar a factualidade que como definitivamente fixada se tem, tecer as seguintes considerações:
O mau uso, pela Relação, dos poderes conferidos pelo art. 712º nº 2 do CPC, filiado no desrespeito da metodologia consignada em tal comando legal, não consubstanciando nulidade do acórdão, impõe o uso, pelo STJ, Tribunal a que pertencem os arestos que se citarem, dos poderes conferidos pelo art. 729º nº 3 do predito Corpo de Leis - cfr. acórdãos de 06-09-12 e 07-05-08, docs. nºs SJ200609120019941 e SJ20070508007591, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj..
A reapreciação a que se reporta o art. 712º nº 2 do CPC é pontual, condicionada à alegação do recorrente, visando a detecção e correcção de concretos erros do julgador da 1ª instância, apontados, por forma clara, pelo impugnante, a Relação devendo formular a sua própria convicção, nessa tarefa, seja ela, ou não, coincidente com a que, em 1ª Instância, prevaleceu, na 2ª hipótese funcionando como tribunal de substituição, não de cassação (vide acórdãos de 08-07-03, 04-02-12 e 07-06-21, in CJ/Acs. STJ-Ano XI-tomo I-pp.151 a 154, "Sumários", Nº 78, pág. 21, e doc. nº SJ200706210035404, respectivamente, para além dos já chamados à colação).
A exigência de fundamentação plasmada no art. 205º nº 1 da CRP e no art. 158º do CPC fica satisfeita com a expressa invocação, no acórdão da Relação, de observância do art. 712º nº 2 do CPC, através da audição da prova gravada, sucintamente referido o seu juízo para não alterar a decisão da matéria de facto no atinente aos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados.

2. Em retorno à hipótese vertente, como apodíctico se tem que, sem valimento, é apodada a decisão impugnada de olvido dos preceitos legais nas conclusões da alegação da revista nomeados, de, frise-se, ter a decisão sido fundamentada no levado à conclusão 3ª de tal peça processual.
Como, pertinentemente, destacado pelo "Banco Empresa-A, S.A.", na sua contra-alegação, cotejando "as dezassete páginas do Acórdão recorrido, facilmente se conclui que a transcrição" feita em tal conclusão "não constitui, por si só, o fundamento da decisão que acabou por ser proferida, mas tão só uma referência àquela que tem sido a posição maioritária da jurisprudência.
Daqui resulta que a recorrente ao reduzir a fundamentação da decisão do Acórdão recorrido àquela referência incorre num manifesto equívoco" (cfr. fls. 1066).
Para se concluir como exposto, pelo, em súmula, não haver lugar ao ordenar da repetição do julgamento, pela Relação, basta não desconsiderar a boa doutrina exposta em 1. que antecede e o expandido no acórdão sob recurso (vide fls. 1026 a 1035).
Na verdade:
O Tribunal "a quo", tendo reapreciado a prova gravada, como referido no acórdão recorrido, fundamentou com suficiência bastante, a legal, o porquê de não ver razões para efectuar qualquer "mexida" na matéria de facto, feita a reapreciação das provas, não se limitando a considerar razoável o que, a respeito, decidiu a 1ª instância.
Assumiu e exteriorizou uma bem cimentada convicção própria, coincidente com a do Tribunal de 1ª Instância, acontecida a devida menção dos pertinentes depoimentos gravados e as provas reanalisando criticamente.

3. Tudo visto, não sendo caso para fazer jogar o exarado nos art.s 722º nº 2 e 729º nº 3, ambos do CPC, a materialidade fáctica que como assente se tem é a descrita em II.
4. Em causa não estando o acerto da ditada improcedência da acção, atenta a supracitada factualidade, provimento não merece o recurso.

IV. CONCLUSÃO:
Destarte, sem necessidade de considerandos outros, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão sob recurso.
Custas pela recorrente (art. 446º nºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 17 de Abril de 2008

Pereira da Silva (relator)
Rodrigues dos Santos
João Bernardo