Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELDER ALMEIDA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ACIDENTE DE VIAÇÃO DANO BIOLÓGICO EQUIDADE CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO SEGURADORA DANO ESTÉTICO DANOS NÃO PATRIMONIAIS DANOS PATRIMONIAIS | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 10/18/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO. | ||
Doutrina: | - Maria da Graça Trigo, Adoção do Conceito de Dano Biológico pelo Direito Português, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume VI, Coimbra Editora, 2012, p. 653. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º, 496.º, 564.º E 566.º. PORTARIA N.º 377/2008, DE 26-05, ALTERADA PELA PORTARIA N.º 679/2009, DE 25-06: - ARTIGO N.º 1, N.º 2, | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 06-07-2000, IN COL./STJ, TOMO II, P. 145; - DE 05-11-2009, PROCESSO N.º 381/02, IN WWW.DGSI.PT; - DE 28-10-2010, PROCESSO N.º 272/06, IN WWW.DGSI.PT; - DE 16-12-2010, IN COL./STJ, TOMO II, P. 223; - DE 17-12-2015, PROCESSO N.º 3558/04, IN WWW.DGSI.PT; - DE 07-03-2017, PROCESSO N.º 4754/11, IN WWW.DGSI.PT; - DE 20-12-2017, PROCESSO N.º 390/12; - DE 17-05-2018, PROCESSO N.º 952/12, IN WWW.DGSI.PT. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I - A jurisprudência emitida pelos nossos tribunais superiores, em sintonia, de resto com o preâmbulo e com o disposto no art. 1.º, n.º 2, da Portaria n.º 377/2008, de 26-05, vem invariavelmente decidindo que: “as tabelas constantes da Portaria n.º 377/2008, de 26-05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06, apenas relevam no plano extrajudicial ou, quando muito, como critério orientador ou referencial, mas nunca vinculativo para os tribunais (arts. 564.º e 566.º, n.º 3, do CC)”. II - No que ao dano biológico concerne, na medida em que o critério último, obrigatório e decisivo, é a equidade, tem, inclusive, a jurisprudência fixado, quase sem excepção, valores indemnizatórios excedentes aos que resultariam da simples e “automática” aplicação desses referentes da dita Portaria. III - A doutrina e a jurisprudência vêm considerando como integrantes do dano biológico diversas vertentes, parâmetros ou modos de expressão, entre eles avultando, pelo seu significado ou relevância o “quantum doloris” – que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária –, o “dano estético” – que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima –, o “prejuízo de afirmação social” – dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural e cívica) – o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” – aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida – e, por fim, o “pretium juventutis” – que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida. IV - Quer se considere o dano biológico como dano patrimonial – consoante vem sendo o nosso entendimento – ou dano não patrimonial, ou até mesmo como “tertium genus” ou ainda como uma entidade híbrida participando de uma e outra de tais dicotómicas modalidades, no cômputo dos danos sofridos não podem deixar de acrescer os danos mencionados em III, desde que efectivamente comprovados, em conformidade com o estatuído nos arts. 494.º, 496.º e 566.º do CC. V - Tendo o ajuizamento no cálculo da indemnização levado a efeito por qualquer das instâncias – “maxime” pela Relação – se fundado, em último e decisivo termo, em critérios de equidade e sem dissociação de entendimentos “minimamente uniformizados” e, portanto, compaginando-se com a exigível segurança na aplicação do direito e demais imperativos decorrentes do princípio da igualdade, deverá tal juízo prudencial e casuístico, em princípio, ser mantido pelo STJ. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1] I – RELATÓRIO
1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação, na forma ordinária, contra: - Fundo de Garantia Automóvel, BB, CC e DD, pedindo a condenação dos RR. no pagamento solidário da quantia de €537,51, acrescida de juros moratórios desde a citação e até efectivo e integral pagamento, bem como de quantia a liquidar em execução de sentença, referentes a outros danos patrimoniais, não patrimoniais e dano biológico. Para tanto, alegou ter sido interveniente num acidente de viação, enquanto passageira do motociclo de matrícula ...-...-TU, causado exclusivamente pelo condutor do próprio motociclo, que não possuía seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório: a A., passageira, circulava com EE, condutor, tendo o motociclo se despistado após efectuar uma curva à direita, pela razão de ter EE abordado a curva com imperícia, em excesso de velocidade e com diminuição de reflexos devido ao seu estado de embriaguez [2,00g/l]. Em consequência do acidente, o condutor EE faleceu e a A. invoca ter (i) sofrido lesões físicas, ter ficado em coma, sido internada nos serviços de urgência, e sujeita a diversos tratamentos médicos, (ii) ficado impossibilitada de trabalhar durante o período de incapacidade temporária, e (iii) afectada de sequelas permanentes com prejuízo da sua actividade profissional habitual. Todas as lesões e tratamentos – mais diz - , causaram-lhe grande sofrimento físico e moral. Por ora, não discrimina valores dependentes do resultado do exame médico-legal, remetendo para ampliação do pedido ou liquidação em execução de sentença. Alegou ainda, e por fim, que o aludido motociclo é propriedade do R. BB, sendo que não possuía seguro de responsabilidade civil automóvel, e que os RR. CC e DD são herdeiros do falecido EE. 2. Em sede de contestação, o R. Fundo de Garantia Automóvel (i) negou a dinâmica do acidente e mais alegou (ii) que a Autora não podia desconhecer o estado de embriaguez do condutor do motociclo e que, por isso, aceitou o risco de ser transportada naquelas condições, bem como não se encontrava equipada com capacete de protecção, sendo tal ausência de capacete a razão das lesões cranianas que invoca. 3. Os menores EE e DD foram citados nas pessoas dos respectivos curadores, já nomeados no âmbito da providência cautelar apensada aos presentes autos, não tendo sido apresentada contestação pelos mesmos. 4. Após junção aos autos do exame médico-legal, a fls. 243 e ss., veio a A. ampliar o pedido por requerimento de fls. 253, nos seguintes termos: (i) A título de danos patrimoniais futuros pela incapacidade permanente: € 105.724,08, acrescidos de juros moratórios desde a citação e até efectivo e integral pagamento; (ii) A título de lucros cessantes pela incapacidade temporária: € 2.620,86, acrescidos de juros moratórios desde a citação e até efectivo e integral pagamento; (iii) A título de danos não patrimoniais: € 200.000,00, acrescidos de juros moratórios desde a citação e até efectivo e integral pagamento. 5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, finda com a parte decisória seguinte: - “Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência: a) Condeno os Réus a pagar à Autora a quantia de €2.420,00 (dois mil quatrocentos e vinte euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação e até efectivo e integral pagamento. b) Condeno os Réus a pagar à Autora a quantia de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal, de 4% ao ano desde a data da prolação da presente sentença [05/05/2017] e até efectivo e integral pagamento. c) Absolvo os Réus do demais peticionado.” 6. Inconformado, o R. Fundo de Garantia Automóvel recorreu, concluindo a sua alegação no sentido de os danos não patrimoniais sofridos pela A. deverem ser fixados em montante não superior a € 20.000,00, e o dano biológico, que também a vitimou, na vertente patrimonial, em valor não superior a € 75.000,00. Demais, e tendo em conta que a sentença recorrida era omissa nessa parte, salientando que o FGA, por força de sentença proferida no âmbito da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, se encontrava a pagar à A. a quantia mensal de € 300,00, havendo pago até essa data a quantia global de € 15.000,00, deveriam todos os montantes pagos até transito em julgado ser deduzidos ao valor indemnizatório que viesse a ser fixado. 7. A A. AA também recorreu, defendendo, entre o mais, dever ser revogada a sentença proferida em relação ao valor arbitrado a título de danos não patrimoniais e condenados os Recorridos ao pagamento de um valor não inferior a € 100.000,00 e, ainda, no pagamento da quantia de € 537,51, a título de danos patrimoniais referente às despesas efectuadas. 8. Contra-alegou o FGA, defendendo a improcedência do recurso 9. Por Acórdão de fls. 379 e ss., a Relação de Évora decidiu: - Julgar improcedente o recurso interposto pelo R. FGA; - Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela A., em consequência “fixando a indemnização devida à A. em € 160.000, 00, acrescida de juros nos termos definidos na sentença e a que se descontará o montante já pago pelo R. Fundo no âmbito do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória." 10. De novo inconformado, o FGA interpôs o vertente recurso de revista, o qual encerra com as seguintes conclusões: A) - O Tribunal "a quo" entendeu aumentar a parcela destinada aos danos não patrimoniais de € 140.000,00 (que já se mostravam manifestamente exagerados), para a quantia de € 160.000,00. B) - O Venerando Tribunal "a quo" assente a sua decisão com base nos critérios de que a fixação dos danos não patrimoniais não deva ser aleatória, mas também não deverá limitar-se a formulas matemáticas devendo, portanto, seguir-se o critério previsto no art.º 496º n.ºs 1 e 4 do C.C., que desde já se concorda. C) - No entanto, na bondade de tal procura equitativa, o douto Tribunal Recorrido, cita o Acórdão da Relação de …, datado de 9 de março de 2017, onde se fixou uma indemnização de € 457.000,00, salientando, no entanto, que o caso era mais gravoso do que a situação em apreço. D) - E, nessa medida, decidiu fixar os danos não patrimoniais da Autora em € 160.000,00. E) - Olvidou-se, no entanto, o venerando Tribunal "a quo" de apurar que, no supra citado Acórdão de 9 de março, proferido por este Tribunal, o valor fixado a título de danos não patrimoniais foi de € 120.0000,00, ou seja, valor manifestamente inferior ao agora fixado e para uma situação deveras mais gravosa que a situação em apreço. F) - Por último, embora se reconheça que a Portaria 377/2008 de 26 de maio tenha sido elaborada para apresentação de propostas razoáveis, o que é certo é que os valores nela explanados, cada vez mais se aproximam dos valores justamente aplicados pelos nossos Tribunais Superiores, como aliás é o caso do Tribunal ora recorrido. G) - Pelo exposto, parece-nos justa e adequada a indemnização, a título de danos não patrimoniais da Autora, o valor apurado segundo os critérios da referida portaria de € 88.960,98 ou em valor nunca superior a € 100.000,00 €. H) - O douto acórdão recorrido ao fixar os montantes indemnizatórios em termos de dano Biológico na vertente não patrimonial e danos não patrimoniais violou, assim, o disposto nos art.ºs 494º,496º, 562º todos do Código Civil Conclui no sentido de se dever revogar o douto Acórdão recorrido, no âmbito delimitado pelo objeto do recurso. 11. A A. apresentou contra-alegações, pugnando pelo improvimento do recurso e consequente manutenção do Acórdão recorrido. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – FACTOS - No Acórdão foram inscritos como provados os seguintes; 1. No dia 30 de Setembro de 2012, pelas 10h30m, EE conduzia um motociclo com a matrícula ...-...-TU, marca Yamaha, modelo YZf-R1, 999 de cilindrada, na Av. …, em Setúbal. 2. A Autora também seguia no referido motociclo enquanto passageira e utilizava capacete de protecção. 3. A Av. … é uma artéria com duas vias nos dois sentidos e com um separador, cujo limite máximo de velocidade é de 50 Km/h [dentro de localidade]. 4. A largura total da faixa de rodagem é de 6 metros, com 3 metros para cada uma das vias, rodeadas por árvores que integram o parque da …. 5. Ao efectuar uma curva à sua direita na intersecção com a Av. …, o motociclo conduzido por EE despistou-se devido à velocidade imprimida, não concretamente apurada mas superior a 50 km/h, ao estado ébrio de EE, portador de uma taxa de álcool no sangue de 2,00 g/l, que lhe reduziu os reflexos, e à sua imperícia na condução. 6. EE não era titular de carta de condução. 7. O motociclo acabou por embater no pavimento que rodeia a estrada, tendo com a violência do embate e a velocidade imprimida sido arrastado por cerca de 25 metros até se imobilizar. 8. Como consequência directa e necessária do embate, EE faleceu e a Autora foi projectada e caiu, sofrendo traumatismo craniano com perda de conhecimento, fractura do corpo de D7 e fractura posterior de arcos costais correspondentes, pneumotórax bilateral, com pouco expressão clínica, fractura do pólo superior do rim direito, laceração hepática do segmento VI, sem pneumoperitoneu, tendo sido conduzida aos serviços de urgência do Centro Hospitalar de …, estabilizada e transferida no mesmo dia para o Hospital de … onde esteve internada nos serviços de urgência até 17 de Outubro de 2012. 9. Durante o internamento na unidade de urgência, a Autora foi observada por UVM [opção por tratamento conservador da fractura de D7, com indicação para colocação de dorsolombostato quando iniciar levante]; observada pela equipa de cirurgia cardio-torácica, tendo retirado os drenos torácicos a 14 de Outubro de 2012; observada pela equipa de urologia e cirurgia geral, com indicação para vigilância clínica e imagiológica; realizou Dx de fractura de 1/3 proximal do úmero esquerdo, tendo feito encavilhamento estático a 16 de Outubro; apresentava inicialmente agitação psicomotora e depois humor deprimido tendo sido acompanhada por psicólogo. 10. Foi sujeita a intervenção cirúrgica no dia 16 de Outubro de 2012 para encavilhamento com cavilha T2 e redução cruenta do foco de fractura já com calo ósseo. 11. Após 17 de Outubro de 2012, a Autora esteve internada no Hospital de … até 29 de Outubro de 2012, tendo feito limpeza cirúrgica da escara do couro cabeludo em 18 de Outubro. 12. Manteve-se a ser seguida em consulta externa do mesmo hospital, nos serviços de ortopedia, psiquiatria, psicologia e cirurgia. 13. Teve de realizar fisioterapia e fazer a troca do penso do couro cabeludo durante um ano. 14. Esteve durante três meses sem se levantar da cama. 15. Após, começou a levantar-se com utilização de um colete de suporte da coluna durante um ano. 16. As lesões sofridas pela Autora em consequência do sinistro acima referido consolidaram-se em 28 de Janeiro de 2013. 17. Tais lesões determinaram para a Autora: 17.1 Um período de défice funcional temporário total de 30 dias; 17.2 Um período de défice funcional temporário parcial de 91 dias; 17.3 Um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 121 dias; 17.4 Um quantum doloris fixável no grau 6/7; 17.5 Um dano estético permanente fixável no grau 5/7; 17.6 Uma repercussão permanente na actividade sexual fixável no grau 4/7. 17.7 Um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 21,698 pontos, com existência de dano futuro de 5 pontos. 18. As sequelas sofridas pela Autora decorrentes do sinistro são incompatíveis com o anterior posto de trabalho, tendo a mesma sido reconvertida. 19. Ao tempo do acidente a Autora exercia actividade de operária fabril numa fábrica de peças de automóveis e na linha de montagem, trabalhando para a empresa “FF, Lda.”, estando colocada na empresa “GG, S.A..”, auferindo vencimento mensal de € 500,50, acrescido de subsídios de Natal, férias e nocturnos, num valor global médio de € 600,00. 20. Actualmente a Autora continua a exercer a actividade de operária fabril numa fábrica de peças de automóveis, mas na parte da costura, trabalhando para a empresa “HH, Lda.”, estando colocada na empresa “II, S.A..”, auferindo remuneração média mensal de € 800,00. 21. A Autora nasceu em 05 de Setembro de 1983. 22. À data do acidente a Autora era saudável. 23. O acidente em si, o transporte para o hospital, os tratamentos, as operações cirúrgicas, o período de doença e as lesões sofridas pela Autora, provocaram fortes dores e tristeza. 24. Após o acidente, a Autora precisou de auxílio da sua mãe para as tarefas mais básicas como alimentação e higiene. 25. Com despesas em tratamentos, medicamentos, consultas, colchão anti-escaras, um alteador de sanita e uma almofada anti-escaras, os progenitores da Autora despenderam um valor total de €537,51. 26. O motociclo de matrícula ...-...-TU é propriedade do Réu BB e não possuía a responsabilidade civil emergente de acidentes causados transferida para qualquer seguradora. 27. Os Réus CC e DD são herdeiros de EE. 28. O valor da remuneração média nacional em 2015 era de €913,50. III – DIREITO 1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do NCPC, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões da alegação do recorrente, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas, sendo certo que o conhecimento e solução deferidos a uma(s) poderá tornar prejudicada a apreciação de outra(s). De tal sorte, e tendo em mente esse conjunto de finais proposições com que o R. FGA ultima as respectivas alegações, surge de apurar, em suma, qual o quantitativo global a arbitrar à A., tendo em conta os danos não patrimoniais e dano biológico que a mesma sofreu com o acidente dos autos. Vejamos, pois. 1. Na sentença apelada, tendo em conta as adversas consequências resultantes para a A. do acidente, considerou-se que a mesma, além de danos de natureza patrimonial, foi também vítima de danos não patrimoniais e, ainda, de dano biológico. Quanto aos danos não patrimoniais, na medida em que sofreu: - Um período de défice funcional temporário total de 30 dias; - Um período de défice funcional temporário parcial de 91 dias; - Um quantum doloris fixável no grau 6/7; - Um dano estético permanente fixável no grau 5/7; e - Uma repercussão permanente na actividade sexual fixável no grau 4/7. Além disso, a A., tendo 29 anos de idade aquando do acidente, esteve internada durante um mês [Outubro de 2012], foi sujeita a diversos tratamentos hospitalares e cirúrgicos, teve de realizar fisioterapia e fazer troca do penso do couro cabeludo durante um ano, bem como ser acompanhada em consultas externas de variadas especialidades [ortopedia, psiquiatria, psicologia e cirurgia] após a alta hospitalar, tendo ainda estado três meses sem se levantar da cama, após o que utilizou um colete de suporte da coluna durante um ano. Frente a todos estes danos, ponderando os critérios constantes da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, e lançando decisivamente mão da equidade, em observância ao disposto no art. 496.º, n.º 4, do Código Civil [CC] a sentença, pelos enfocados danos, atribuiu à A. a indemnização de € 40.000,00, reportada à data da sua prolação. Quanto ao dano biológico, por isso que: - Ficou afectada com um défice funcional permanente na integridade físico-psíquica fixável em 21,698 pontos, a que acresce um dano futuro certo de 5 pontos, elevando aquele défice para o somatório desses dois valores – 26,698 pontos. Assim, e considerando, por outro lado: - Que o dano biológico, também chamado “corporal” é difícil de enquadrar na classificação dogmática de danos, mas, não obstante, é indemnizável em si, pela violação da integridade física e psíquica do ser humano que o sofre, ficando, a partir de então, limitado no seu todo, pelo que poderá assumir ou um cariz mais patrimonial [enquanto dano patrimonial futuro], quando limitar a capacidade de ganho, ou se configurar apenas na sua vertente não patrimonial por “somente” afectar, como afecta sempre, a integridade do indivíduo. - Que, no caso, o défice funcional de que sofre a A. não se traduz em perda da sua capacidade de ganho, pois que, pese embora seja incompatível com a actividade de operária fabril na linha de montagem, como exercia à data do acidente, não o é com a actual actividade de operária fabril na parte da costura, da qual aufere rendimentos superiores ao que anteriormente ocorria. - Havendo, pois, que avaliar o dano biológico da A. na sua vertente não patrimonial; - avaliação a efectuar, nessariamente, em função da equidade [referido art. 496.º, n.ºs e 4], mas tendo ainda em consideração, conforme a jurisprudência, os parâmetros previstos na sobredita Portaria n.º 377/2008, mais precisamente, respectivo Anexo IV. - Assim, e operando com tais parâmetros, obtém-se o valor de € 88.960,00, pelo que, fazendo uso, por fim, desse decisivo critério “ex aequo et bono”, assente na justiça do caso concreto, ponderando a idade da A., a esperança média de vida conjugada com o aumento do custo de vida, - fixou a sentença indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes do dano corporal sofrido pela A. em € 100.000,00, valor este reportado a essa data do seu proferimento. 2. No Acórdão recorrido, por sua vez, começou por se referir não se reputar particularmente útil a introdução da figura do dano biológico como dano autónomo, antes este devendo ser avaliado – e só - como fonte de danos de ordem patrimonial ou de ordem não patrimonial, não se concordando assim com a sentença ao aplicar em simultâneo um dano não patrimonial e um dano biológico na vertente não patrimonial, impondo-se assim analisar os recursos tendo em mente, unicamente, esses dois tipos de danos que a lei portuguesa aceita. E passando a apreciar o recurso da A., concordando com a censura desta à sentença, no sentido de que nela não foi ponderado o dano [concreto] emergente da repercussão permanente na sua [da A.] actividade sexual, fixável no grau 4/7 – o que se afigurou não ser despiciendo, visto tratar-se de uma deficiência permanente e a A. de uma mulher nova, logo com importância para ela, a exemplo de qualquer pessoa ‑, utilizando o legal critério da equidade, e seguindo ainda assim, mor da delimitação de cada um dos recursos, o método seguido na sentença – ou seja, fazendo uma análise dos danos de acordo com essa efectiva destrinça, danos não patrimoniais e dano biológico – entendeu-se subir o “quantum indemnizatur” por aqueles danos não patrimoniais de € 40.000,00 para €70.000,00. - No que tange ao recurso do R. FGA, fazendo incidir o Acórdão, desde logo, a sua atenção sobre os danos decorrentes do dano biológico ou corporal sofrido pela A., considerou não haver quaisquer argumentos susceptíveis de pôr em causa o raciocínio e critério aplicados na sentença, assentes na utilização do constante da já referenciada Portaria n.º 377/2008 e seu Anexo IV, subscrevendo assim, ao fim e ao resto, o objectivo valor de € 88.960,98 achado, nessa base, pela sentença. De tal modo, e reconduzindo este dano a um dano [também] de natureza não patrimonial, congregando esses dois equacionados valores - € 70.000,00 + 88.960,98, e aplicando uma vez mais a equidade – reputando, assim, a indemnização fixada na sentença, tal como a defendida pelo R., como pecando por defeito, e contrapostamente a da A. como eivada de excesso -, –, fixou a indemnização [única] por danos não patrimoniais em € 160.000,00, não deixando ainda de chamar à colação um aresto da mesma Relação de … – Acórdão de 9 de Março de 2017 -, o qual, posto recaindo sobre um caso reconhecidamente mais grave, arbitrou uma indemnização no valor de € 457.000,00. 3. No recurso ora em atinência, o R. FGA começa por ressalvar, como resulta do supra exposto, que no Acórdão da Relação de … de 9 de Março, a que o aresto ora em exame, além do mais, se ateve para fixar a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela A., estabeleceu a título de tais danos – para uma situação deveras mais gravosa que a destes autos – a indemnização de € 120.000,00. Demais – acrescenta - embora se reconheça que a aludida Portaria n.º 377/2008 tenha sido elaborada para apresentação de propostas razoáveis, o que é certo é que os valores nela explanados, cada vez mais se aproximam dos valores aplicados pelos nossos Tribunais Superiores. E assim conclui no sentido de ser mais justa e adequada a indemnização, a título de danos não patrimoniais da A., apurada segundo os critérios da referida Portaria, ou seja, € 88.960,98, ou, quando muito, valor nunca superior a € 100.000,00. Sendo que o Acórdão recorrido ao fixar os montantes indemnizatórios em termos de dano biológico na vertente não patrimonial e danos não patrimoniais, violou, assim, o disposto nos arts. 494º,496º, 562,º, todos do CC. 4. Decidindo, - dir-se-á, antes de mais, que também nós –na linha, aliás, de ambas as doutas decisões proferidas e, bem assim, das posições de Recorrente e Recorrida -, consideramos o valor “matematicamente” apurado na sentença [€ 88.960,98] para o dano biológico sofrido pela A. – segundo essa caracterização para tal dano, com o maoir acerto, assumido pelas Instâncias [2]-, de acordo com os parâmetros decorrentes da Portaria n.º 377/2008, como integralmente correcto. Contudo, e ao invés do afirmado, salvo o muito respeito, pelo Recorrente, a jurisprudência emitida pelos nossos Tribunais Superiores, em sintonia, de resto, com o proclamado no preâmbulo da aludida Portaria – no qual se refere que o seu objectivo “não é a fixação definitiva de valores indemnizatórios mas o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando ainda que a autoridade de supervisão possa avaliar, com grande objectividade, a razoabilidade das propostas apresentadas “ - , e, bem assim, no n.º 2, do seu art. 1.º - onde se prescreve que “[a]s disposições constantes da presente portaria não afastam […] nem a fixação de valores superiores aos propostos”-, vem invariavelmente decidindo que “as tabelas constantes da Portaria n.º 377/2008, de 26-05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06, apenas relevam no plano extrajudicial ou, quando muito, como critério orientador ou referencial, mas nunca vinculativo para os tribunais (arts. 564.º, e 566.º, n.º 3, do CC)”[3]. E, nessa conformidade, e no que ao ora enfocado dano biológico concerne, na medida em que o critério último, obrigatório e decisivo é a equidade, fixando – a dita jurisprudência - quase diríamos sem excepção, valores indemnizatórios excedentes aos que resultariam da simples e “automática” aplicação desses referentes da dita Portaria[4]. Como assim, e tendo em mente esses factores também – e, uma vez mais, devidamente - ponderados nas doutas decisões, como vimos, idade da A., bem como a esperança média de vida conjugada com o aumento crescente do custo de vida, sem esquecer ainda a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade - a implicarem a demanda de uma uniformização de critérios, sem nunca deixar de atender às circunstâncias do caso - esse “quantum” de € 90.000,00 em que, como se alcança, a Relação fixou a equitativa indemnização para o dano biológico da A., afigura-se-nos cabalmente ajustado e, portanto, de ratificar. Ora, assim sendo, verdade é que, nesse dano, não se acha de forma alguma contemplado todo aquele estendal de danos outros e relevantes que também atingiram a A. – Cfr. acima elencados Pontos n.ºs 8 a 17.6 -, estes de índole indiscutivelmente não patrimonial; sabido que – consoante desde o paradigmático Acórdão deste Supremo, de 6.07.2000[5], se vê insistentemente proclamado - a doutrina e a jurisprudência vêm considerando como integrantes dessa categoria ou ordem de danos diversas vertentes, parâmetros ou modos de expressão, entre eles avultando, pelo seu significado ou relevância, precisamente, o “quantum doloris” – que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária -, o “dano estético” – que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima -, o “prejuízo de afirmação social” –dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes [familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica] -, o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” - aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida - e, por fim, o “pretium juventutis” - que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida. Assim, e quer se considere o dano biológico como dano patrimonial – consoante vem sendo o nosso entendimento[6] - , ou dano não patrimonial, ou até mesmo como “tertium genus”[7], ou ainda como uma entidade híbrida participando de uma e outra de tais dicotómicas modalidades, o certo é que – retomando o caso “sub judice” - ao cômputo de tal dano sofrido pela A., não poderia deixar de acrescer o dos danos em último mencionados, por isso que efectivamente comprovados, e de conformidade com o estatuído nos arts. 494.º, 496.º e 566.º, todos do CC. Cômputo que, estabelecido pelo Acórdão em € 70.000,00, se nos oferece, outrossim, presentes os específicos condicionalismos do caso e demais circunstâncias atendíveis – em especial, os padrões que vêm sendo jurisprudencialmente adoptados - como expressão de devido e adequado juízo equitativo. E, como assim, esse cômputo global de € 160.000,00 em que, no Acórdão em crise, se acabou por assentar, e que ora de plano se sufraga. 5. Aliás – diga-se ainda - , mesmo que qualquer desses valores estabelecidos pelo douto Acórdão em apreço não lograsse concitar a nossa concordância – o que, como visto, não ocorre - , haveria ainda assim que ter em consideração que – consoante se noticia no supra referenciado Acórdão deste Supremo de 17.05.2018 – como “vem sendo reiteradamente sublinhado pelo STJ, o juízo de equidade de que se socorrem as instâncias, na fixação de indemnização, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade (arts. 566.º, n.º 3, do CC, e 674.º, e 682.º, do CPC).[8]” Ou ainda – e tal como o também já mencionado Ac. do STJ de 17.12.2015 [citando o Acórdão desse Supremo de 28.10.2010[9], este, por sua vez, em parte fazendo-se eco do acórdão do mesmo Tribunal de 5.11.2009[10] - “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito”; [pelo que o STJ ] se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar […], mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»[11]”. Frente a estes doutos considerandos, pois, e uma vez que, consoante repetidamente afirmado, o ajuizamento levado a efeito por qualquer das Instâncias – e “maxime” pela Relação -, fundado, em último e decisivo termo, em critérios de equidade, houve-se em estrita conformidade com a devida utilização de tais critérios, do que não se dissociou de entendimentos “minimamente uniformizados”[12], e, portanto, compaginando-se com a exigível segurança na aplicação do direito e, demais, os imperativos decorrentes do princípio da igualdade, esse ajuizamento – dizíamos – sempre haveria de permanecer subsistente, impondo, conseguintemente, tais valores de cálculo indemnizatório, derradeiramente fixados por aquele Tribunal de recurso, como inalterados. 6. Nestes termos, e em conclusão, o Recurso em apreço naufraga, o que dita a confirmação do Acórdão poe ele em crise. IV – DECISÃO Termos em que se nega a revista, mantendo o Acórdão recorrido intocado. Custas a cargo do R./Recorrente. * * Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 18 de outubro de 2018 Helder Almeida (Relator) Oliveira Abreu Ilídio Sacarrão Martins ____________ [1] Rel.: Helder Almeida |