Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19/15.7JAPDL.S1
Nº Convencional: 3ª. SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: RECURSO PENAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CRIME CONTINUADO
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
CONSENTIMENTO
Data do Acordão: 04/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME / CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
Doutrina:
- Conceição Ferreira da Cunha, «Questões actuais em torno de uma vexata questio: o crime continuado», em estudos em Homenagem do Professor Figueiredo Dias, 325 e ss..
- Cristina Líbano Monteiro, «Crime Continuado e Bens Pessoalíssimos - A concepção de Eduardo Correia e a revisão de 2007 do código Penal», Estudos de Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, 732 e ss..
- Eduardo Correia, Teoria do Concurso em Direito Criminal, 84 e ss..
- Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, 113, 314, 989.
- Hans Heinrich Jescheck, «Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria», Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, Núm. 05, 2003.
- João da Costa Andrade, Da Unidade e Pluralidade de Crimes, 84 e ss..
- Laura LowenKron, «(Menor)idade e consentimento sexual...», Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2007, V. 50, n.º 2, Ag., 715 e ss..
- Lobo Moutinho, Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, 620 (nota 1854).
- Maia Gonçalves, “Código Penal” Anotado, 649.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, anotação 32 ao artigo 30.º, 162.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, 171.º, N.ºS 1 E 2, 177.º, N.º 4.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS DA CRIANÇA PELA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (1989).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 12/07/2006, PROC. N.º 1709/06 – 3.ª SECÇÃO.
-DE 03/05/2007, PROC. N.º 07P341, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 23/01/2008, PROC. N.º 4830/07– 3.ª SECÇÃO.
-DE 29/11/2012, PROC. N.º 862/11.6TAPFR.S1, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - A conduta do arguido que, desde Julho de 2014 e até Janeiro de 2015, altura em que a vítima era menor de 13 e 14 anos, respectivamente, manteve com esta, relações sexuais, com cópula completa, com uma regularidade de 1 vez por semana, nos dois primeiros meses, e de 2 a 3 vezes por semana, nos meses subsequentes até à data da detenção do arguido, em Janeiro de 2015, é demonstrativa de uma renovação de vontade, que tem na sua génese a satisfação dos instintos sexuais, evidenciando-se pelo facto de entre a prática das mesmas relações mediar um lapso temporal mais do que suficientemente para que emergisse uma ponderação da conduta do recorrente à face daquilo que lhe era exigível no cumprimento de regras básicas de convivência e de conduta de vida e impostas legalmente.
II - Mesmo existindo uma unidade de resolução, a mesma não concede automaticamente a configuração de crime de trato sucessivo, pressupondo a afinidade desta figura com a do crime habitual, pois que somente a estrutura do respectivo tipo incriminador há-de supor a reiteração.
III - Em face de tipos de crime como os imputados no caso vertente - crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP - não nos encontramos perante uma «multiplicidade de actos semelhantes» realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.
IV - Cada um destes actos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única actividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos existe, pluralidade de crimes.
V - Se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo», ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador.
VI - É evidente que o apelo à figura de trato sucessivo permite ultrapassar uma outra questão que é o da determinação concreta do número de actos ilícitos que devem ser imputados. Porém, esse é um tema que convoca a forma como se faz a investigação criminal e a diligência acusatória e não uma questão de dogmática penal.
VII - Perante a realização repetida do mesmo tipo de crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP, num espaço temporal de 6 meses, encontramo-nos perante uma situação de pluralidade de crimes, sendo certo que tal dessintonia não pode assumir relevância jurídica no caso concreto (em que o arguido recorrente foi condenado pela prática de um único crime) face ao princípio da proibição da "reformatio in pejus" na medida em que o recurso foi interposto unicamente pelo arguido.
VIII - A existência, ou não, de consentimento da vítima menor, sendo irrelevante no afastamento da tipicidade criminal, poderá assumir um significado mais, ou menos, intenso consoante a idade da vítima, ou seja, em equação com a maior ou menor proximidade do limite que o legislador entendeu como relevante para a concessão de dignidade penal ao comportamento do arguido.
IX - Ponderando que o arguido agiu com dolo directo, sendo a ilicitude das suas condutas muito elevada tendo em consideração não só a forma de actuação mas também o resultado, mas por outro lado, considerando a inexistência de coacção e considerando, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento da menor, relevando uma pequena diminuição da ilicitude de que revestem os actos praticados, entende-se por adequada a pena de oito anos de prisão (em detrimento da pena de 10 anos e 6 meses prisão aplicada pelas instâncias), pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão que pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, p.p. art.º 171.° n.º 1 e 2 e 177.° n.º 4 do Código Penal o condenou na pena de dez anos e seis meses de prisão.

As razões de discordância encontram-se sintetizadas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

I - O Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, p.p. art.º 171.° n.º 1 e 2 e 177.° n.º 4 do Código Penal;

II- O presente recurso tem com objecto toda a matéria do acórdão condenatório proferido nos presentes autos.

III- O arguido foi condenado a uma pena de dez anos e seis meses de prisão.

IV- Tendo o douto acórdão indicado corno factos provados:

"(..)

14. Natural de …, AA é o mais velho de cinco filhos de um casal de modesta condição socioeconómica e cultural, tendo o seu desenvolvimento sido marcado pelo ambiente familiar pouco harminioso decorrente da acção, ora ausente ora autoritária/agressiva, do progenitor, com o qual não desenvolveu um relacionamento positivo, determinante da sua autonomização precose tendo o arguido abandonado o lar com cerca de 15 anos de idade.

(. .. )

17. AA revela um percurso profissional positivo, marcado pelo exercicio regular de actividade laboral, tendo chegado a exercer em simultâneo mais do que um trabalho, não registando períodos significativos de inactividade.

 31. Da análise da informação recolhida constata-se que AA apresenta-se como um individio amigável, ainda que não procure de forma sistemática o contacto social, tendo a preocupação de imprimir uma imagem favorável/positiva de si.

32. Muito centrado no impacto da sua situação jurídico-penal para o próprio, receando acondenação em pena efectiva de prisão e revela limitações ao nível da capacidade de descentração.

33. Em situação de reclusão desde Janeiro de 2015, AA vem revelando um comportamento desciplinado e adequado ao relacionamento interpessoal, apresentado capacidade em lidar com a maioria das contrariedades e situações de pressão, ainda que progressivamente venha revelando maior ansiedade.

limpeza/jardinagem local.

282. Tal inintegração, deve-se à necessidade de efectivar uma cobertura urgente das necessidades básicas do agregado constituido,

(…)

V - Em relação a antecedentes criminais, o mesmo não tem quaisquer antecedentes criminais.

VI- Tendo o arguido colaborado para a prosecução da verdade, com a sua confissão.

VII- Tendo o douto acórdão na determinação concreta da medida da pena, entendeu a favor do arguido( ... ).,

-o arguido está inserido pessoal e socialmente;

-não regista condenação pela prática de crimes;

VIII- Ora, tendo em conta estes factos, cremos a condenação de uma pena de prisão de 10 anos e seis meses, não relevou a colaboração do arguido, bem como a autocensura do mesmo em relação aos factos praticados, bem corno ao facto de o arguido não ter antecedentes criminais.

IX-Como tal cremos que a medida da pena é exagerada e que a mesma deverá diminuir a pelo menos cinco anos com a correspondente suspensão da pena com prova.

Respondeu o Ministério Publico concluindo que o recurso não merece provimento

Neste Supremo Tribunal de Justiça a ExªMª Srª. Procurador Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais

                                                           *

Cumpre decidir

Em sede de decisão recorrida encontram-se provados os seguintes factos:

1. BB nasceu a 12/12/2000 e é filha de CC.

2. O arguido e CC mantiveram uma relação análoga às dos cônjuges desde Junho de 2013 até Janeiro de 2015.

3. Nesse pressuposto, fixaram o domicílio comum na Rua …, …, área desta comarca, conjuntamente com os filhos de CC, BB e DD.

4. Ao fim de 6 meses contados do início da relação para-conjugal, mantida entre o arguido e CC, essa relação começou, por motivos concretamente indeterminados, a deteriorar-se.

5. Já no decurso do ano de 2014, mais precisamente no mês de Fevereiro, na sequência de uma viagem realizada ao continente português (…), em que o arguido fez-se acompanhar da menor BB, verificou-se uma aproximação gradual entre ambos.

6. Entretanto, o arguido deixou de partilhar o leito para-conjugal com CC, e, acto contínuo, a menor, com conhecimento e sem oposição da mãe (CC), passou a pernoitar no quarto do arguido; o que se verificou no mês de Junho de 2014, tendo ocorrido, logo nessa altura, o primeiro beijo na boca entre ambos.

7. Após esse primeiro beijo, denotou-se, desde o início de Julho de 2014, uma intimidade crescente entre o arguido e BB.

8. Nessa altura, o arguido e BB, sem fazer uso de quaisquer métodos contraceptivos, mantiveram relações de cópula completa, mediante a introdução do pénis erecto do arguido na vagina de BB até à ejaculação no interior da mesma.

9. A partir dessa altura, desde Julho de 2014 e até Janeiro de 2015, altura em que BB era menor de 13 e 14 anos, respectivamente, o arguido manteve com a menor, relações sexuais, com cópula completa, mediante a introdução do pénis erecto do arguido na vagina de BB até à ejaculação no interior da mesma, com uma regularidade de 1 vez por semana, nos dois primeiros meses, e de 2 a 3 vezes por semana, nos meses subsequentes até à data da detenção do arguido, em Janeiro de 2015.

10. As referidas relações sexuais, no arco temporal acima referido, ocorreram sempre no quarto do arguido.

11. Na sequência das relações sexuais mantidas entre o arguido e a BB, esta engravidou e deu à luz, no dia 25 de Março de 2015, a bebé EE.

12. O arguido sabia qual a idade de BB; ainda assim, actuou da forma descrita, querendo com a menor, de 13 e 14 anos de idade ao tempo dos factos, respectivamente, praticar actos sexuais de relevo e de cópula completa, sabendo que, por não usar qualquer meio contraceptivo, aquela poderia engravidar, com o que se conformou; intenção, essa, que repetidamente renovou, actuando, deste modo, cônscio de que, com a sua acção, ofendia a liberdade de determinação sexual de BB, pondo em causa o seu normal desenvolvimento sexual.

13. O arguido agiu com consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

14. Natural de …, AA é o mais velho de cinco filhos de um casal de modesta condição socioeconómica e cultural, tendo o seu desenvolvimento sido marcado pelo ambiente familiar pouco harmonioso decorrente da acção, ora ausente ora autoritária/agressiva, do progenitor, com o qual não desenvolveu um relacionamento positivo, determinante da sua autonomização precoce tendo o arguido abandonado o lar com cerca de 15 anos de idade.

15. Recorda com tristeza a sua infância e adolescência, marcada pela precariedade e assunção precoce de responsabilidades de adulto, tendo começado a trabalhar aos 14 anos.

16. Abandonou os estudos por volta dos 16 anos, frequentava então o 10º ano de escolaridade, por dificuldades em conciliar o estudo com o trabalho.

17. AA revela um percurso profissional positivo, marcado pelo exercício regular de actividade laboral, tendo chegado a exercer em simultâneo mais do que um trabalho, não registando períodos significativos de inactividade.

18. No que respeita ao seu processo de desenvolvimento afectivo-sexual, não referiu qualquer constrangimento, tendo iniciado a sua vida sexual na adolescência no âmbito de uma relação de namoro.

19. Desde então descreve uma vida sexual gratificante e vivida sempre no seio de relações de afectividade, nomeadamente no seio da relação conjugal que manteve por mais de vinte anos e da qual teve quatro filhos, um dos quais falecido precocemente.

20. A morte do filho com 2 anos de idade, por acidente (asfixia), foi descrita como o episódio emocionalmente mais negativo da vida do arguido, e com impacto na vida familiar, ainda que o casal se tenha esforçado por viabilizar o projecto familiar. Tiveram mais um filho e mantiveram a relação por mais alguns anos, no entanto, a separação conjugal veio a efectivar-se há cerca de 6 anos, por vontade da esposa do arguido e, segundo o próprio, de uma forma inesperada.

21. O casal residia no continente, para onde o arguido se havia deslocado ainda muito criança, na sequência da actividade laboral do progenitor, tendo o arguido decidido regressar à terra natal cerca de um ano após a separação, perante as dificuldades em manter o relacionamento com os filhos, por alegadas dificuldades criadas pela ex-mulher.

22. Em termos sociais não há indícios de problemáticas aditivas ou criminais, sendo esta a primeira vez que se encontra ligado ao sistema formal de administração da justiça.

23. À data dos factos o arguido encontrava-se residir na ilha do …, para onde se deslocou em Janeiro de 2013, na sequência das dificuldades em se fixar em … por não ter conseguido emprego fixo.

24. Após um período em que residiu junto de uma das irmãs, AA estabeleceu relação afectiva com CC, mãe da menor BB, com quem viveu maritalmente entre Junho e Dezembro de 2013.

25. Por incompatibilidade de feitios, diferença de atitude e de projetos de vida, descrevendo o arguido a ex-companheira como uma pessoa pouco dinâmica e sem grandes objectivos de vida, AA decidiu romper a relação e sair de casa.

26. Contudo, a pedido de CC, alguns dias depois regressou a casa, onde viveu até à sua reclusão.

27. O seu quotidiano era caracterizado pelo exercício laboral e pelo convívio com familiares, não se encontrando integrado em actividades estruturadas de ocupação do tempo livre.

28. Em finais de 2014 o arguido ficou na situação de desemprego, na sequência do termo do contrato de trabalho, enquanto segurança, contexto em que trabalhou durante alguns meses, maioritariamente em horário nocturno (das 20h00 às 8h00).

29. No presente e desde a sua reclusão que se encontra suspensa a atribuição do subsídio de desemprego, ao qual só terá direito se for restituído à liberdade até Janeiro de 2017, data em que atingirá o período máximo de 2 anos de suspensão daquele direito.

30. Na sequência da emergência do presente processo, considera o arguido não beneficiar de suporte sociofamiliar muito consistente, vindo a manter alguns contactos apenas com uma das irmãs, residentes no …, onde não pretende regressar, temendo que a sua imagem e consequente aceitação social estejam comprometidas.

31. Da análise da informação recolhida constata-se que AA apresenta-se como um indivíduo amigável, ainda que não procure de forma sistemática o contacto social, tendo a preocupação de imprimir uma imagem favorável/positiva de si.

32. Muito centrado no impacto da sua situação jurídico-penal para o próprio, receando a condenação em pena efectiva de prisão e revela limitações ao nível da capacidade de descentração.

33. Em situação de reclusão desde Janeiro de 2015, AA vem revelando um comportamento disciplinado e adequado relacionamento interpessoal, apresentando capacidade em lidar com a maioria das contrariedades e situações de pressão, ainda que progressivamente venha revelando maior ansiedade.

34. Não beneficia de visitas, vindo apenas a manter algum contacto telefónico com uma irmã, considerando que o facto de ter sido constituído arguido teve impacto relevante em termos familiares, considerando ainda que será significativo o impacto em termos sociais em geral, contexto em que não pretende regressar à ilha do ….

35. Não interiorizou, ainda, o desvalor da sua conduta.

Factos Não Provados

Realizada a audiência de julgamento, nenhum facto ficou por provar que o arguido fosse padrasto de BB.

                                                                       *

I

Pluralidade de crimes

A primeira questão suscitada pelos presentes autos centra-se com um dos temas nucleares da dogmática do direito penal, ou seja, o critério distintivo ente a unidade e a pluralidade de infracções

No que respeita chamamos á colação o que a propósito escreveu Eduardo Correia referindo que, de acordo com uma concepção normativista do conceito geral de crime,- a unidade ou pluralidade de crimes é revelada pelo "o número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. ( ... ). Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valo­res jurídicos negados. ( ... ) Pelo que, deste modo, chegamos à primeira determinação essencial de solução do nosso problema: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção" No cerne do critério enunciado, e que constitui a trave mestra de toda a elaboração doutrinal que, a propósito, se escreveu no nosso país, estão princípios nucleares do direito penal uma vez que, seguindo a argumentação do mesmo Mestre[1] , mais do que em nenhum outro campo da vida jurídica, se impõe no direito criminal o princípio da segurança do direito e a necessidade de assinalar um fundamento sólido à actividade jurisprudencial pois que a valoração jurídico-criminal não pode ser deixada ao arbítrio do juiz, mas deve ser formulada de maneira, tanto quanto possível, precisa.

Para dar realidade a este pensamento, adianta Eduardo Correia, possui a técnica legislativa um recurso, que consiste precisamente no «tipo legal de crime». Nele descreve o legislador aquelas expressões da vida humana que, em seu critério, encarnam a negação dos valores jurídico criminais que violam os bens ou interesses jurídico-criminais. Neles vasa a lei como em moldes os seus juízos valorativos, neles formula de maneira típica a antijuricidade, a ilicitude criminal. Depois, uma vez formulados esses tipos legais de crimes, impõe-nos ao juiz como quadros, a que este deve sempre subsumir os acontecimentos da vida para lhes poder atribuir a dignidade jurídico-criminal.

O juiz não pode valorar á sua vontade as relações submetidas à sua apreciação, mas deve sempre, em cada caso, para que as possa considerar antijurídicas" verificar se elas são subsumíveis a um tipo legal de crime. O tipo legal é, pois, o portador, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados os tribunais e o intérprete.

Se todos os juízos de valor jurídico-criminais hão-de ser fornecidos, através de tipos legais de crimes, é, por outro lado, certo que cada tipo legal há-de ser informado por um específico valor jurídico-criminal. Consequentemente, se diversos tipos legais de crime são preenchidos, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais, da mesma maneira que, se um só tipo é realizado, um só valor nega a actividade criminosa do agente

Assim, conclui Eduardo Correia, que a possibilidade de subsunção duma relação da vida a um ou vários tipos legais de delito é a chave para determinar a unidade ou pluralidade a unidade ou pluralidade de crimes.

Porém,

Para que exista uma infracção não basta que uma conduta seja tipicamente antijurídica: é preciso, também, que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é, que seja culposa. Assim, ao lado daquele Juízo que refere o comportamento humano a bens ou valores jurídico-criminais, outro juízo de valor se requer como pressuposto do crime, o qual se analisa na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente.

Por vezes o momento psicológico, correspondente à realização de uma série de acti­vidades subsumíveis a um mesmo tipo legal, estrutura-se de tal forma que esse concreto juízo de reprovação tenha de ser formu­lado várias vezes. Consequentemente, o todo formado por tais actividades, enquanto encarnam a violação do mesmo bem jurídico, fragmenta-se na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura, adquirindo, portanto, dessa maneira independência e individualidade.

Assim, a consideração da «culpa», elemento essencial ao conceito de crime, constitui um limite do critério segundo o qual se determinaria a unidade ou pluralidade de infracções pela unidade ou pluralidade de tipos realizados. Na verdade, a unidade de tipo legal preenchido não importará definitivamente a unidade das condutas corres­pondentes, na medida em que, sendo vários os juízos de censura que as ligam à personalidade do seu agente, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável, e deverá por conseguinte considerar-se existente uma pluralidade de crimes.

A questão subsistente será, então, a aferição da existência de vários juízos de censura incidindo sobre actividades unificadas do ponto de vista do valor jurídico que negam. A esta aspiração de concretização de critérios responde Eduardo Correia reafirmando o postulado de que o direito criminal pode ser encarado antes de tudo como um complexo de normas de valoração objectiva, ou seja, de normas do ponto de vista das quais se retira objectivamente a licitude ou ilicitude do comportamento humano.Com o olhar este aspecto do direito não se esgota, porém, a sua essência pois que, paralelamente, citando Mezger «em derivação desta, uma outra função não menos significativa é exigida pelo seu conceito: a de determinação».

Repristinando a força das palavras de Eduardo Correia “o direito penal não valora negativamente certas condutas apenas por valorar. Valora-as para, emprestando-lhes a força desta sua avaliação, alcançar no processo de motivação dos indivíduos um papel decisivo: valora-as para determinar. Quer dizer: o direito é também um conjunto de normas de determinação subjectiva (Bestimmungsnormen), isto é, um conjunto de imperativos dirigidos aos indivíduos que querem funcionar como motivos que obstem à formação de resoluções tendo por conteúdo a realização de actividades criminosas,- que querem, como diz Goldshmidt, «que os indivíduos orientem a sua conduta interior de tal forma que possam corresponder às exigências postas pelas normas jurídicas no respeitante à sua conduta exterior».

Ora é precisamente a violação concreta das normas nesta sua função de determinação, é precisamente a falta da sua eficácia querida, devida e, portanto, possível no domínio da representação e do processo de motivação do agente, que faz nascer aquele juízo de censura' em que se estrutura a culpa.

Necessariamente que tais juízos de reprovação têm de ser desdobrados, e repetidos, sempre que uma pluralidade de resoluções, e de resoluções no sentido de deter­minações de vontade, tiver iluminado o desenvolvimento da actividade do agente. Com efeito, afirma o mesmo Mestre, a resolução neste sentido é o termo daquele especifico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor, ou desvalor, os prós e os contras dum projecto concebido. É o termo daquela específica fase da volição que, metafisicamente se costuma descrever como constituída por uma luta de motivos e contra motivos, em que o próprio «em intervém numa afirmação da sua personalidade. Deste modo, quando se trate de um projecto criminoso que entra em execução, é precisamente no momento em que o agente toma a resolução de o realizar que a ineficácia da norma, na sua função de determinação, se verifica. Se, pois, diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da actividade crimi­nosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os juízos de censura a formular ao agente.

O índice da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente

A experiência, e as leis da psicologia, referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todo se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.

Igualmente Jeschek aponta no sentido de que, em algumas situações, a simples realização do tipo não é suficiente para a determinação da distinção entre a unidade e pluralidade de infracções e deverá fazer-se apelo a critérios como o da unidade natural de acção.

Situação típica é a realização repetida do mesmo tipo legal de crime num curto espaço de tempo. O requisito para apreciar a unidade de acção nestes casos é a circunstância de que, com a repetição plural do tipo, a lesão do bem jurídico só experimenta uma progressão quantitativa e que o facto responda, além do mais, a uma situação motivacional unitária.

Uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural.

No mínimo, dir-se-ia que a autonomização tem como pressuposto um processo de renovação da vontade e não é incorrecto, á luz dos princípios, considerar uma renovação de propósito criminoso a sustentar uma renovação da formulação de um juízo de culpa.

A construção dogmática desenhada constitui o prius lógico do artigo 30 do actual Código Penal e do exame da conduta do recorrente. Face á mesma não oferece qualquer dúvida a existência de uma renovação de decisão de violar a lei penal e os bens jurídicos que lhe estão subjacente.

Ao longo de vários meses e repetidamente, o recorrente repetiu a mesma conduta ilícita sendo certo que entre qualquer uma daquelas práticas existiu um hiato temporal suficientemente denso para permitir a afirmação de que um não é a mera continuação do outro, mas algo de distinto e fruto duma nova decisão de vontade que encontrou guarida e se desenvolveu num ambiente propicio. Tal renovação de vontade, que tem na sua génese a satisfação dos instintos sexuais, evidencia-se pelo facto de entre a prática das mesmas relações mediar um lapso temporal mais do que suficientemente para que emergisse uma ponderação da conduta do recorrente à face daquilo que lhe era exigível no cumprimento de regras básicas de convivência e de conduta de vida e impostas legalmente.[2]

Se tal conclusão é formulada, de forma sustentada, á luz do ensinamento proposto por Eduardo Correia igualmente a mesma linearidade lógica oferece a apreciação nos limites propostos por Figueiredo Dias, apontando a necessidade de se prestar atenção ao facto de que “o tipo de ilícito, o verdadeiro portador da ilicitude material, é sempre formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito. A segunda observação que formula é a de que o tipo objectivo tem sempre como seus elementos constitutivos o autor, a con­duta e o bem jurídico, só da conjugação destes elementos - e também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito - resultando o sentido jurídico ­social da ilicitude material do facto que o tipo abrange. Todos estes elementos parece deverem ser tidos em conta e valorados - e não apenas em si mesmos, mas ainda no sentido que da sua consideração global resulta - na determinação da unidade ou pluralidade de tipos violados.

Para o mesmo Autor o bem jurídico assume, na questão da tipicidade, um relevo primacial e insubstituível, devendo recorrer-se aos restantes elementos típicos numa perspectiva de consideração global do sentido social do comportamento que integra o tipo. Só assim, acrescenta, se podendo ter a esperança de aceder à compreensão do sentido jurídico-social do comportamento delituoso. O que se tem de contar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global.

Nesta última perspectiva o "crime" por cuja unidade ou pluralidade se demanda é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efectivamente aplicável. A essência de uma tal violação não reside pois nem por um lado na mera "acção", nem por outro na norma ou no tipo legal que integra aquela acção: “reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside no ilícito típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente submetido á cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crime”

Tal posicionamento encontrou o apoio de alguns autores como Conceição Ferreira da Cunha (Questões actuais em torno de uma vexata questio: o crime continuado em estudos em Homenagem do Professor Figueiredo Dias pag 325 e se g) referindo que o critério, defendido por Figueiredo Dias, da "unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global), parece-nos ter potencialidades para, perante as concretas situações da vida, distinguir com justeza o que deve considerar-se uno do que deve qualificar-se de múltiplo: "O que se tem de contar para determinação da unidade ou pluralidade de crimes não são por uma parte acções externas, como tal indiferentes ao sentido do comportamento; nem por outro lado tipos legais de crime como entidades abstractas, mesmo que concretamente aplicáveis ao caso. O que se tem de contar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global").

Segundo esta concepção, vários factores deverão ser considerados, não assumindo cada um deles isoladamente relevância decisiva, mas sendo tomados no seu conjunto, e no âmbito das concretas circunstâncias do comportamento em causa, pois é esse conjunto, esse "comportamento global", que tem significado segundo um juízo de ilicitude material. Assim, os bens jurídicos afectados, a unidade ou pluralidade de resoluções, a distância ou proximidade espácio-temporal entre as acções, as conexões de sentido entre elas (por exemplo, a relação meio-fim), o modo como tais bens jurídicos, condutas e relações encontram tradução nos tipos legais de crime, a unidade ou pluralidade de vítimas, serão elementos a relevar.

Na verdade, para Figueiredo Dias só da conjugação dos elementos objectivos do tipo legal (autor, conduta e bem jurídico) e "também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito" resultaria o "sentido jurídico-social da ilicitude material do facto que o tipo abrange"; assim, todos estes elementos deveriam ser valorados "e não apenas em si mesmos, mas ainda no sentido que da sua consideração global resulta" na determinação da "unidade ou pluralidade dos tipos violados

De salientar que este último elemento deverá ser considerado decisivo, pelo menos no âmbito dos crimes contra bens eminentemente pessoais.

Adianta João da Costa Andrade[3] na esteira de Figueiredo Dias, que a essência do critério da unidade ou pluralidade de infracções está na renúncia à concepção global do tipo e a consequente assunção do critério da unidade ou pluralidade dos bens jurídicos violados pela conduta do agente como critério operativo para distinção da unidade ou pluralidade de crimes.

Estamos em crer que é incontestável a importância que o bem jurídico assume no que à tipicidade diz respeito. Contudo, tal relevo não justifica uma preclusão legítima dos restantes elementos típicos ou seja da consideração global do sentido social do comportamento que integra o tipo. Só pressupondo esta consideração se poderá, pois, aceder à compreensão do sentido jurídico-social do comportamento delituoso[4]

Reconhecendo nós o importante contributo que foi transmitido por Figueiredo Dias continua, todavia, a seduzir a linearidade e segurança do pensamento jurídico de Eduardo Correia quando reconduz ao binómio da tipicidade/culpa a chave para decifrar a questão em apreço.

Sem embargo, é manifesto a nosso ver que a consideração global do sentido social do comportamento do arguido não introduz qualquer “nuance” na valoração que merece o seu comportamento vertente, evidenciando uma persistente, e renovada, vontade de violar a lei

Em cada um dos actos sexuais praticados consumou-se uma decisão, uma opção de vontade, perfeitamente delimitada na sua autonomia em relação a todas as outras.

O exposto resolve já, embora de forma implícita, a questão da existência de continuação criminosa. Entre os diversos actos, não existir qualquer facto que aponte para uma solicitação exterior susceptível de potenciar os seus efeitos a nível da culpa.

Na verdade, no que concerne á figura alvo da impostação do recorrente impõe-se relembrar que se mantêm inteiramente válidos os ensinamentos do Professor Eduardo Correia que, aliás, tiveram acolhimento no artigo 30 do Código Penal que dispõe "constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente".

O normativo citado consubstancia a doutrina de Eduardo Correia formulada a propósito da mesma figura. Afirma o mesmo Mestre que o núcleo do problema reside em que se está por vezes perante uma série de actividades que, devendo, em regra, ser tratadas nos quadros da pluralidade de infracções, tudo parece aconselhar - nomeadamente a justiça e a economia processual – que se tomem unitariamente, como um crime só. Para resolução do problema, duas vias fundamentais de solução podem ser trilhadas:- ou se parte dos princípios gerais da teoria do crime, procurar deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado- e teremos então uma construção lógico-jurídica do conceito ; ou atender antes à gravidade diminuída que uma tal situação revela, em face do concurso real de infracções, e procurar, assim, encontrar no menor grau de culpa do agente a chave do problema - intentando, desta forma, uma construção teológica do conceito.

A opção, na esteira do ensinamento de Eduardo Correia, é no último sentido pois que existem certas actividades às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em principio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção na medida em que revelam uma diminuição de culpa do agente. O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Assim, o pressuposto da continuação criminosa será a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito.

Procurando alinhar as configurações fácticas que podem sugerir tal ambiente exterior com reflexo na densidade da culpa, diminuindo-a, indica-se a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos; a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável á prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa: a circunstância da perduração do meio apto para executar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da actividade criminosa

Nas situações enumeradas existe um denominador comum apontando a diminuição considerável da culpa do agente. Só tal situação exterior poderá justificar a facilitação da reiteração criminosa pois que quando se verifique uma situação exterior normal, ou geral, que facilite a prática do crime, o agente contar com elas para modelar a sua personalidade de maneira a permanecer fiel aos comandos jurídicos.

Na perspectiva de Eduardo Correia não se trataria do simples "amolecimento" das inibições, ou reacções morais, que resultaria da pratica do primeiro crime, facilitando a repetição, pois, nesse caso, qualquer repetição criminosa implicaria menor censurabilidade, mas o reconhecer da relevância a uma certa relação entre "um crime e o ambiente" ou uma "disposição exterior das coisas para o facto", que "arraste Irresistivelmente o agente para a sua pratica". Na génese o conteúdo da continuação criminosa apela à ideia de culpa como o "poder de agir de outra maneira", considerando que as circunstâncias externas, mesmo não excluindo totalmente o "poder de livre determinação do delinquente ... todavia mais ou menos o tentam, mais ou menos o arrastam para o crime, diminuindo ou alargando a sua liberdade de resolução e tornando, portanto, mais ou menos exigível outro comportamento"

Em última análise a circunstância externa facilitadora do crime molda uma diminuição da resistência da pessoa "normalmente fiel ao Direito” . Como refere Cristina Líbano Monteiro (Crime Continuado e Bens Pessoalíssimos-A concepção de Eduardo Correia e a revisão de 2007 do código Penal Estudos de Homenagem ao professor Figueiredo dias pag 732 e seg) Eduardo Correia chama as doutrinas da «não exigibilidade» e da «culpa pela não formação da personalidade» para fundamentar a solução que quer dar ao crime continuado. Contrapõe a influência do lado exógeno e do lado endógeno no juízo de culpa, restringindo a culpa diminuída própria da figura em apreço à resultante do primeiro dos aspectos. Se a influência de circunstâncias exteriores pode tornar menos exigível ao agente normal um comportamento conforme ao direito, já uma tendência endógena para o crime, não contrariada, diminuindo embora a culpa pelo facto, pode aumentá-la enquanto negligência na formação da personalidade, enquanto perigos idade censurável. E esta última situação não se mostra compatível com a benevolência punitiva própria do crime continuado. Por outras palavras: o lado endógeno da culpa, a existir como tendência criminosa, neutraliza uma eventual circunstância exógena que parecesse determinante. Para Eduardo Correia, e por assim dizer, ou a culpa foi das circunstâncias ou do agente. Se o acento tónico do caso estiver neste segundo domínio, desaparece a razão decisiva a continuação.

O crime continuado configura, afinal, um conjunto de crimes repetidos, com uma característica peculiar: a repetição dá-se porque, acompanhando a nova acção, se repete também (ou simplesmente permanece), uma circunstância exterior ao agente que a facilita. Essa circunstância que o agente aproveita, e que de alguma maneira o incita para o crime há-de ser tal que, se desaparecesse, a sucessão de crimes ver-se-ia provavelmente interrompida.

Criada pelo autor com a primeira conduta, ou surgida de modo casual, sem a sua intervenção, funciona como ocasião propícia ou tentação; em linguagem dogmática, como causa de diminuição da exigibilidade de uma conduta conforme ao direito; em último termo, como factor que afasta de forma significativa o comportamento em análise do grau 'típico' de culpa correspondente àquele crime (conjunto de crimes) e reflectido na sua consequência jurídico-penal.

Segundo Eduardo Correia o crime continuado tem na sua génese uma conexão de resoluções criminosas. Aparentemente autónoma, cada resolução depende, na verdade, da anterior, de tal modo que apenas a primeira se pode dizer normal. O nexo subjectivo - sustentado do lado do ilícito pela homogeneidade das condutas e pela unicidade do tipo ou do bem jurídico contra o qual atentam - determina a conveniência de excluir o comportamento do regime habitual do concurso efectivo de crimes.

Assim, tudo converge para um juízo de exigibilidade diminuída. Será este que impede uma sanção semelhante a outro conjunto de crimes repetidos, subjectivamente conexionados entre si, mas dos quais não possa fazer-se avaliação semelhante.

 

No caso vertente sobressai a existência duma relação de natureza idêntica à familiar, com a menor e sua mãe e na forma, tal como retratado nos autos, como o início das relações sexuais se processam duma forma que diríamos consensual entre os intervenientes. Porém, tal situação apenas evidencia uma maior obrigação de defesa dos interesses da menor atenta a relação existente e o ascendente que derivava da mesma devendo compelir ao recorrente, bem como à mãe da menor, a cuidar e proteger esta, nomeadamente de quaisquer ataques aos seus direitos fundamentais.

Como salienta Maia Gonçalves[5]atente-se mais em que, havendo pluralidade de acções naturalísticas e tratando-se de uma só vítima, normalmente não haverá crime continuado, mas concurso de crimes, já que em regra não haverá relevante solicitação exterior a diminuir a culpa do agente, mas desviante personalidade deste a determinar o seu comportamento criminoso.”

A realidade factual descrita nos autos é ainda passível de ser equacionada, pela forma como o fez a decisão recorrida, subsumindo a mesma ao conceito de crime de trato sucessivo.

Tal conceito com genética doutrinal e jurisprudencial visa as situações de realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos de crime, que, fundamentalmente, protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, e unificados pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime

O crime de trato sucessivo afasta-se da figura do crime continuado, porque não pressupõe, a característica deste, de ser praticado “no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.” Paradigmático do entendimento de que, em determinadas circunstâncias a figura do trato sucessivo tem cabimento no âmbito dos crimes sexuais é o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/2012 segundo o qual Os crimes sexuais são muitas vezes atos isolados, fruto de circunstâncias irrepetíveis. É assim no caso de violações durante um assalto a uma residência, ou na sequência de um rapto, ou num encontro em local ermo.

Mas, outras vezes seguem um percurso que se prolonga no tempo, isto é, em vez de um ato ou de vários atos ilícitos, há uma atividade sexual ilícita.

É próprio da natureza humana a junção dos mesmos parceiros sexuais por períodos prolongados no tempo. O mesmo se passa, muitas vezes, nos crimes sexuais, sempre que as circunstâncias o proporcionam e a diferença entre estes e as uniões sexuais mais correntes entre as pessoas, é a circunstância de nos casos criminosos existir uma vítima, alguém a quem o agente retira [ou condiciona] a liberdade ou a autodeterminação sexual.

Na “atividade sexual criminosa” o agente aproveita-se sexualmente de outra pessoa que é acessível ao seu contato, por ser da família, ou do seu círculo de amizades, ou do seu local de trabalho, ou por outra circunstância similar, fazendo-o pela força, ou pela intimidação, ou pela incapacidade da vítima em se defender, por exemplo, por ser menor. Nesses casos, os crimes sexuais tendem a ter uma frequência por um período prolongado no tempo e a juntar os mesmos «parceiros», um deles vitimizado sucessivamente.

Ora, quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.

A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.

Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.

O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

A propósito desta faceta no crime de tráfico de droga, diz-se no Ac. do STJ de 12-07-2006, proc. 1709/06-3ª, que «o crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos atos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única. Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infrações, nos termos do art.º 30.º, n.º 1, do CP».

E a propósito de um caso de crime de abuso sexual de crianças, o Ac. do STJ de 23-01-2008, proc. n.º 4830/07-3ª, resume do seguinte modo o que aqui temos vindo a expor: «I - O fundamento da unificação criminosa consiste na diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da atuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.II - Estando em causa um crime de abuso sexual de crianças agravado, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado. É, de resto, notório, que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos atos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas. III - Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um «acordo» entre ela e o arguido, que não se provou. IV - Nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes. Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse, que haja uma efetiva diminuição da culpa do agente, o que não sucede, pois que a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos. V - Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude.

Relativamente à admissibilidade da figura em apreço-trato sucessivo- importa referir que a construção dogmática do crime de trato sucessivo, a que as decisões referidas fazem apelo, não tem uma específica consagração legal que elenca como categorias legais o crime permanente [artº 119º, nº 2, alínea a), do CP], o crime continuado [artºs 119º, nº 2, alínea b), 30º, nºs 2 e 3, e 79º] e o crime habitual [artº 119º, nº 2, alínea b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [artº 19º, nº 2, do CPP].

No entendimento de Lobo Moutinho o crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854). Este autor, depois de definir o crime contínuo como o «crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de actos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)», correspondendo «basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de actos», caracteriza assim o crime habitual: «O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”.

Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.

O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”.

É seguro que, por “actos reiterados”, se deve entender, pelo menos, a pluralidade de actos homogéneos. Actos diversos não são reiterados.

(…) apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.

Na verdade, embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “actos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “actos sucessivos” no sentido de praticados em acto seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal – pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo – o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa actividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.

Mas se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação.

Assim se compreende que, como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infracção às regras de segurança (art. 152º), o crime de lenocínio (art. 170º)».

Admite o autor outros casos, como o crime de tráfico de estupefacientes, que considera desdobrar-se ou poder desdobrar-se numa multiplicidade de actos semelhantes, «como claramente resulta da previsão da agravação por diversas circunstâncias, a começar pela da destinação ou entrega a “menores” ou da distribuição “por um grande número de pessoas” (art. 24º, nº 1, als. a) e b), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro)» (ob. cit., páginas 604-620).

Fazendo apelo ao conceito de habitualidade refere Figueiredo Dias define crimes habituais como sendo «aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada», dando como exemplo os crimes de lenocínio e de aborto agravado do artº 141º, nº 2, do CP (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 314).

Porém, mesmo existindo uma unidade de resolução, a mesma não concede automaticamente a configuração de crime de trato sucessivo, pressupondo a afinidade desta figura com do crime habitual, pois que somente a estrutura do respectivo tipo incriminador há-de supor a reiteração. [6] Consequentemente, em face de tipos de crime como os imputados no caso vertente não nos encontramos perante uma «multiplicidade de actos semelhantes» realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.

Cada um destes actos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única actividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989).

Com efeito, se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também “é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo», ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador”[[7].

É evidente que o apelo à figura de trato sucessivo permite ultrapassar uma outra questão que é o da determinação concreta do número de actos ilícitos que devem ser imputados. Porém, esse um tema que convoca a forma como se faz a investigação criminal e a diligência acusatória e não uma questão de dogmática penal.

Assim, e procurando responder à questão que previamente colocámos, encontramo-nos perante uma situação de pluralidade de crimes, sendo certo que tal dessintonia não pode assumir relevância jurídica pelo próprio princípio da proibição da “reformatio in pejus”

II

A concretização da pena conjunta elaborada nos presentes autos necessariamente que tem assentar num juízo que revele o significado do comportamento ilícito global em termos da sua relevância para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) quer a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente pelo conjunto das infracções praticadas (conteúdo da culpa).

Em sede de medida da pena refere a decisão recorrida que

- o crime praticado revela um grau de ilicitude ligeiramente acima da media atenta a idade concreta da menor e o aproveitamento da relação de proximidade decorrente da sua relação com a mãe desta; o número de vezes em que foi actuada aquela resolução; e os actos em concreto cometidos;

- a culpa do arguido apresenta uma intensidade acima da média, à medida que vai avançando na sua concretização a sua confiança vai aumentado e chega, mesmo, a falar com a menor numa vivência a dois, conforme nos confessou;

- o dolo foi directo e revelou uma intensidade normal;

- o arguido está inserido pessoal e socialmente;

- não regista condenação pela prática de crimes;

- não interiorizou, ainda, o carácter desvalioso da sua conduta.

 Os factores de medida da pena ora elencados não merecem, em princípio, qualquer crítica. Existe, porém, um ponto que exige uma ponderação mais intensa relacionada, aliás, com o que consta em sede de fundamentação da materialidade considerada provada.

Na verdade, refere-se na decisão recorrida que  O arguido confirmou a troca de carícias (beijos) e a prática de actos de cópula completa com a menor BB, embora com frequência menor do que a descrita no texto da acusação; confirmou saber a idade de BB e, bem assim, que esta dormia no mesmo quarto. Segundo declarou, olhava e continua a olhar para BB como a sua namorada/companheira, chegando-nos a dizer que chegou a falar com ela acerca do futuro comum (um futuro próximo), em que os dois passariam a viver sozinhos, sustentados por si.

Por isso, demos como provado que o arguido ainda não interiorizou o desvalor da sua conduta, olhando-a como uma normal relação de namoro entre duas pessoas adultas, certo sendo que BB estava e está ainda longe dos 18 anos.

Não pode deixar de se salientar que a aceitação feita pela decisão recorrida faz emergir um tema delicado em sede de dogmática penal ou seja, face à matéria considerada provada, a consciência do ilícito não equivale à (nem pode substituir-se pela) consciência - a que alude uma parte da doutrina - da imoralidade da acção. Como refere Figueiredo Dias[8]  a censura dirige-se à falta de consciência da norma jurídica de comportamento (não decerto como artigo de lei ou mesmo como proibição legal), não de normas pertencentes a outros ordenamentos. Por outro lado, já o sabemos também, a norma jurídico-penal nem coincide, nem se fundamenta em uma qualquer norma moral, antes sim na necessidade de protecção subsidiária de bens jurídico-penais. Não se nega com isto uma larga coincidência entre proibições morais e jurídico-penais, traduzidas aliás no conteúdo destas últimas como o "mínimo ético" de que falava Jellinek o que se nega é que seja função da norma jurídico-penal a tutela de uma qualquer moral. 

No caso vertente o arguido tinha consciência da ilicitude dos seus actos. Todavia, no plano da censurabilidade da sua conduta pela forma como agiu, ou seja, por ter optado pela cedência aos seus instintos primários, está espelhada uma autojustificação que deriva, não só da sua perspectiva da vítima como companheira de futuro, como, também, do clima de anomia que se intui no âmago da família e que desde logo se expressa numa tácita aquiescência da mãe da menor.[9]

Aliado a tal clima de permissividade criado por quem tinha uma maior responsabilidade na protecção da menor impõe-se, também, uma notação sobre a idade desta. Na verdade, a questão é de saber se a adesão da vítima é, em absoluto, irrelevante, não assumindo qualquer significado em termos de dimensionamento da própria culpa do arguido e da ilicitude do acto?

-O tipo legal de crime imputado-artigo 171 do Código Penal- visa “a protecção da autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento”. A existência, ou não, de consentimento, sendo irrelevante no afastamento da tipicidade criminal, poderá assumir um significado mais, ou menos, intenso consoante a idade da vítima, ou seja, em equação com a maior ou menor proximidade do limite que o legislador entendeu como relevante para a concessão de dignidade penal ao comportamento do arguido.

É pois a questão da relevância do consentimento que está em causa.[[10]1]

 Este pode ser definido como uma decisão de concordância voluntária tomada por um sujeito dotado de capacidade de agência e livre-arbítrio. Refira-se que as polémicas contemporâneas sobre as leis da idade do consentimento são parametrizados num contexto em que crianças e adolescentes passaram de um estado de total subordinação à família ou aos tutores para se tornarem “sujeitos de direitos” – com a aprovação da Convenção Universal de Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (1989).

Surge, assim, a necessidade de conciliar a compreensão de crianças e jovens como sujeitos especiais, ou seja, necessitados de protecção e socialização, com o princípio de que são, também, indivíduos portadores de direitos. Esse é um dos dilemas, que está em jogo nos debates em torno das leis da idade do consentimento nos dias atuais, que discutem formas apropriadas de direitos de crianças e adolescentes em relação à sexualidade 

Nas leis da idade do consentimento, a noção de consentimento pode ser entendida como um tipo particular de competência que é considerada fundamental para o exercício do direito de liberdade sexual. O julgamento de quem é capaz de dar consentimento significativo para o acto sexual depende dos tipos de competência que se consideram relevantes. A competência considerada relevante para a tomada de decisão na actividade sexual é multidimensional, sendo concebida como uma combinação entre competência intelectual (habilidade para processar informação relevante), competência moral (capacidade para avaliar o valor social do gesto) e competência emocional (entendida como habilidade para expressar e manejar emoções).

O princípio que fundamenta a menoridade sexual não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazer sexual, mas, sim, que ele não desenvolveu ainda as competências consideradas relevantes para consentir em uma relação sexual. Só o tempo, por meio de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (con)formado permitem a modelação de um processo de decisão correctamente elaborado.

Sendo assim, a incapacidade legal de autogestão que define a dimensão tutelar da menoridade apoia-se na ideia de uma incapacidade “natural” que define uma determinada “fase da vida”. (Conf. citada Autora Laura LowenKron  ibidem)

Consequentemente, também o significado que deve ser atribuído á aproximação da idade em que o legislador entende que o consentimento assume um significado jurídico relevante, nomeadamente quando da proximidade da idade que a lei traça como fronteira para a consideração da ilicitude criminal. 

 

III

Importa, agora verificar se, na esteira do afirmado pelo recorrente, existe uma incorrecta valoração na medida da pena conjunta que lhe foi aplicada pois só esta pena está sujeita á sindicância deste Supremo Tribunal de Justiça.

Os factores de medida da pena conjunta elencados na decisão recorrida são suficientemente explícitos para fundamentar a mesma pena. Nomeadamente refere-se ali que:

 O arguido agiu com dolo, que se apresenta na sua forma mais grave - dolo directo.

A ilicitude das suas condutas é muito elevada tendo em consideração não só a forma de actuação mas também o resultado.

Como já tivemos ocasião de referir em anteriores decisões de Supremo Tribunal de Justiça, e como refere Jeschek, o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, adquirindo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial.

Nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam á prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. O arguido tem direito a esperar, e espera, uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção.

A culpa e a prevenção situam-se em planos distintos. A culpa responde á pergunta de saber se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção em que se decide qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico.

A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente uma finalidade da mesma.

A culpa, se é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira. Aliás, e fundamentalmente, ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção.

Só apelando á profundidade moral da pessoa se pode esperar, tanto a ressocialização do condenado, como também uma eficácia socio-pedagógica da pena sobre a população em geral.

A renúncia ao critério da culpa para a pena concreta é um preço demasiado alto por evitar o problema da liberdade na teoria da culpa (Hans Heinrich Jescheck, "Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003))

           

Face a esta consideração de natureza teórica, e que apenas pode relevar como premissa na lógica que nos leva á individualização da pena no caso concreto, impõe-se, agora, a consideração das circunstâncias singulares que este revela nomeadamente em termos daquela culpa, relevante como parâmetro de retribuição, e da ilicitude do acto.

Uma primeira conclusão que se impõe, face á argumentação do recorrente, é de que, como se referiu, foram devidamente identificados os factores de medida da pena que justificam, na perspectiva da decisão recorrida, a manutenção da pena conjunta aplicada

A decisão recorrida imprime, ainda, um carácter vincante, na medida da pena, às necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infracções em que está em causa um valor nuclear. É imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de relação social sejam penalizados com adequada punição.

Porém, revendo-nos na forma correcta como foram elencados aqueles factores, igualmente é certo que não foi ponderado que os actos praticados surgem durante um curto lapso de tempo, configurando-se como uma interrupção num percurso de normalidade de vida do arguido em que ressalta uma relação familiar “estável e harmoniosa” Igualmente é certo que, tal como entendeu a decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 2007, não se afigura despicienda a consideração de em sede de fixação da pena, há que levar em conta as circunstâncias concretas que modelaram a actuação do arguido. E, dentro dessas circunstâncias, a idade da vítima não é indiferente, muito embora a sua idade – 13 anos – esteja situada dentro dos limites de protecção do bem jurídico especifico aqui em causa, considerando-se a agressão a esse bem jurídico pelas formas indicadas na lei como abuso sexual de criança, desde que o menor tenha menos de 14 anos.

Por outro lado, não sendo necessária a coacção para a relevância da agressão ao referido bem jurídico, nos termos sobreditos, a verdade é que é diferente, em termos de ilicitude, ter ou não existido coacção, assim como é de considerar, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento da menor.

Tal entendimento, que colhe o nosso apoio, e que se situa na decorrência do supra exposto, tem inteira aplicação no caso vertente, relevando numa pequena diminuição da ilicitude de que revestem os actos praticados e tal como foram considerados na decisão recorrida.

Considerando por tal forma, e atendendo á relevância que assumem os factores supra referidos entende-se por adequada a pena conjunta de oito anos de prisão.

Termos em que se julga parcialmente procedente o recurso interposto por AA condenando-se o mesmo pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p.p. art.º 171.° n.º 1 e 2 e 177.° n.º 4 do Código Penal na pena de oito anos de prisão

Sem custas.

Lisboa, 06 de abril de 2016

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes (com voto de vencido: conquanto concorde com a requalificação dos factos, reduziria a pena imposta para 9 anos de prisão).

Pereira Madeira (com voto de desempate)

_______________________________________________________
[1]  Teoria do Concurso em Direito Criminal pag 84 e se
[2] , As relações tiveram uma regularidade de 1 vez por semana, nos dois primeiros meses, e de 2 a 3 vezes por semana, nos meses subsequentes até à data da detenção do arguido, em Janeiro de 2015
[3] Da Unidade e Pluralidade de Crimes pag 84 e seg
[4] [4] Para Figueiredo Dias é o tipo de ilícito o verdadeiro portador da ilicitude material e, como tal, a este deve reconhecer-se uma estrutura complexa, integrada, como pacificamente reconhecido, pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito. Aquele primeiro é constituído, para além do bem jurídico, por outro elementos, como a necessária consideração das questões pertinentes ao "autor" e "conduta", devendo todos estes elementos ser conjugados com os elementos integrantes do tipo subjectivo. Resultarão daqui duas consequências: por um lado, permite-se, porventura ainda, «manter a problemática essencial do concurso ( ... ) dentro da categoria do tipo de ilícito e tomar dispensável, ao menos em princípio, o apelo à categoria da culpa»; por outro lado, só da aludida conjugação resultará «o sentido jurídico-social do conteúdo de ilicitude material do facto que o tipo abrange» .
Uma vez mais, todos os referidos elementos - não só uma sua consideração "autónoma", mas a própria consideração conjunta da sua globalidade - importam na aferição da unidade ou pluralidade de tipos preenchidos
[5] Código Penal Anotado p. 649),
[6] Uma unidade típica de acção existirá em todos aqueles casos em que um tipo legal de crime reduz a uma unidade típica uma pluralidade de actos como tal externamente reconhecível (12).
§ 15 Tal sucederá, desde logo, quando um tipo legal integra, por necessidade, aquela pluralidade de actos, v. g., o de coacção sexual do art. 163.° (actos de coacção+actos sexuais), o de roubo do art. 210.° (actos de coacção+actos de subtracção). O mesmo sucede quando um tipo legal é formulado de tal maneira que, não exigindo necessariamente para a sua integração uma pluralidade de actos singulares, reconduz todavia uma tal pluralidade à unidade sempre que aquela pluralidade tenha lugar dentro de uma certa unidade contextuaI ou espácio-temporal; v. g., quando o agente mata a vítima com vários golpes mortais (arts. 131.° ou 132.°), inflige à vítima vários maus-tratos físicos ou psíquicos ou vários actos cruéis (art. 152.°), repete a cópula com a mesma vítima no contexto de uma violação sexual (art. 164.°), furta vários objectos numa ida ao supermercado (arts. 203.° ou 204.°), transmite vários segredos de Estado no decurso de uma comunicação (art. 316.°), etc. Unidade tipicamente fundada de acção existirá, ainda, no crime duradouro (supra, 11.° Cap., § 51): v. g., a pluralidade de actos necessários à detenção e encerramento da vítima, à manutenção da privação da sua liberdade e ao impedimento da fuga constitui uma única acção (típica) de sequestro (art. 158.°) (13).
[7] Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, anotação 32 ao artigo 30.º, p. 162.
[8] Direito Penal Parte Geral pga 113 )
[9] Tal circunstância está desde logo expressa na referência de que, tal como consta da materialidade provada,  o arguido deixou de partilhar o leito para-conjugal com CC, e, acto contínuo, a menor, com conhecimento e sem oposição da mãe (CC), passou a pernoitar no quarto do arguido; o que se verificou no mês de Junho de 2014, tendo ocorrido, logo nessa altura, o primeiro beijo na boca entre ambos.
[10] Laura LowenKron, “(Menor)idade e consentimento sexual...”, Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2007, V. 50 Nº 2. Ag 715 e seg..