Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1999/07.1TBEVR.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
ÓBITO DO ARRENDATÁRIO
SEPARAÇÃO DE FACTO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - ARRENDAMENTO URBANO
Doutrina: - Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7ª edição, Revista e Actualizada, página 581.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 713.º, Nº 5, 726.º.
REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (RAU), APROVADO PELO DL Nº 321-B/90, DE 15 DE OUTUBRO: - ARTIGOS 85.º, N.º1, 64.º, N.º2, ALÍNEAS A) E I).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA, DE 29.02.1996, BMJ 454º-817.
Sumário : I – O óbito do arrendatário determina a caducidade do contrato de arrendamento para habitação.
II – Tal caducidade, porém, não se verifica se ao arrendatário sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto, o que pressupõe que entre o arrendatário e o seu cônjuge exista ou aparente existir a comunhão de vida típica da relação conjugal, que se manifesta na comunhão de cama, mesa e habitação e na vontade de ambos de a manter.
III – Inexistindo essa comunhão, e independentemente da causa da separação dos cônjuges e da sua imputabilidade a um deles (por exemplo, o arrendatário), o arrendamento não se comunica nem se transmite ao cônjuge sobrevivo deste, caducando com o óbito.
IV – A causa da separação de facto do casal e a sua imputabilidade a qualquer dos cônjuges não são oponíveis ao senhorio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, foi intentada, por AA e marido, BB, e CC, a presente acção de reivindicação, com processo ordinário, contra DD, com vista à condenação desta a reconhecer que os Autores são donos e legítimos proprietários do imóvel sito na Avª … – Pátio … –, com o número de polícia …, e que faz parte do prédio urbano sito na Rua …, nº …, composto de várias moradas de casa, inscrito na matriz sob os artigos ...º e ...º da freguesia da …, concelho de Évora, e a restituí-lo, livre e devoluto, àqueles.

Para fundamentar a sua pretensão, alegam, em síntese, que o arrendamento de tal imóvel caducou por óbito do inquilino, EE, não se tendo transmitido à Ré o direito ao arrendamento por esta e aquele, apesar de casados entre si, se encontrarem separados de facto há alguns anos, não obstante, após o óbito, a Ré ter ocupado o imóvel e recusar-se a entregá-lo aos Autores.

Defendeu-se a Ré, alegando, em resumo, não se verificar a caducidade do arrendamento, por ter sido forçada a abandonar o locado em virtude da agressão de que foi vítima por parte do arrendatário, seu marido, facto este pelo qual ele veio a ser condenado; logo, só por razões e motivos alheios à sua vontade é que teve de abandonar a casa de morada de família, à qual sempre tencionou voltar logo que pudesse.

A final, foi proferida sentença, segundo a qual se julgou a acção improcedente e, em consequência, se absolveu a Ré do pedido de restituição, por se entender que a sua ausência do locado se teria ficado a dever a força maior, impeditiva da caducidade do arrendamento.

Após recurso dos Autores, foi, no Tribunal da Relação de Évora, proferido acórdão, nos termos do qual, julgando-se procedente a apelação, se decidiu “revogar a sentença recorrida e, reconhecendo a propriedade dos AA sobre o imóvel reivindicado – sito na Av. …– … – com o nº de polícia … e que faz parte do prédio urbano sito na Rua .. . nº …, composto de várias moradias de casa, inscrito na matriz sob os artigos ...º e ...º da freguesia da …, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o nº ..., inscrito a favor dos requerentes através da inscrição --- ... de 1998/05/14 – condenar a Ré a restituí-lo livre e devoluto aos recorrentes”.

Inconformada com esta decisão, dela veio a Ré interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.

A recorrente apresentou as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
1ª – Maugrado a Ré se ter visto obrigada a abandonar a casa de morada de família, em Outubro de 2003, por força da agressão perpetrada pelo seu marido, ainda assim nunca deixou de aí se deslocar, quase diariamente.
2ª – Nomeadamente, arrumando a casa e lavando a roupa ao seu marido, em virtude de sempre ter ficado, na sua posse, com a chave do locado.
3ª – A Ré sempre reputou o locado como a sua casa de morada de família, mesmo após ter saído da mesma, no indicado mês de Outubro de 2003.
4ª – E que nunca escondeu o seu desejo de aí voltar, o que era do inteiro conhecimento de familiares e amigos do casal.
5ª – Aliás, a Ré diligenciou no sentido do procedimento criminal instaurado ao seu marido, na sequência das agressões contra si perpetradas, ficar sem efeito, o que só não logrou, estritamente, por impossibilidade legal.
6ª – O seu marido, EE, acabou por falecer em 22 de Maio de 2006, i.e., antes de decorrido o indicado prazo de suspensão da pena em que foi condenado e, assim, da injunção a que teve de se sujeitar, o que contribuiu, decisivamente, para a não aproximação/reconciliação de ambos.
7ª – A Ré não se encontrava – efectivamente – separada de facto do seu marido, mas tão-só separada fisicamente do mesmo.
8ª – O comportamento da Ré e todo o circunstancialismo referido, vistos de fora, na perspectiva de um declaratário médio e sensato, revela implicitamente, com toda a probabilidade, a vontade de reconciliação de ambos e de que aquela voltasse a habitar a casa de morada de família.
9ª – É evidente e palmar que a ausência do locado por banda da Ré se deveu a uma situação de força maior.
10ª – Por via desse circunstancialismo, não se operou a caducidade do contrato de arrendamento, transmitindo-se à Ré.
11ª – Salvo o devido respeito, foi violado o correcto entendimento dos preceitos legais aludidos na presente peça.
12ª – Em consequência, deverá ser revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro que determine a não caducidade do contrato de arrendamento, por via da sua transmissão à Ré, pelos motivos e razões elencados.

Contra-alegaram os recorridos, defendendo a manutenção do acórdão impugnado.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Nas instâncias, foram considerados provados os seguintes factos:
1. Os Autores são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano sito na Rua Dr. … nº …, composto de várias moradas de casa, inscrito na matriz sob os artigos ...º e ...º, da freguesia da …, concelho de Évora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o número …, inscrito a seu favor através da inscrição G AP 54 de 1998/05/14, prédio que adquiriram por partilha da herança de seus pais e vulgarmente conhecido por ….
2. Em 23 de Julho de 1963, o cabeça de casal da herança de FF deu de arrendamento a EE 4 divisões do supra identificado prédio urbano sito na Rua Dr. … em Évora – … –, com entrada pelo nº …, destinado a habitação.
3. O então arrendatário do prédio, EE, que não era, à data da celebração do contrato de arrendamento, casado com a Ré, veio a falecer, em 22 de Maio de 2006, no estado de casado com esta.
4. Por acórdão proferido em 15 de Fevereiro de 2005, no Processo Comum Colectivo, o EE foi condenado, pela prática do crime p. e p. pelos arts. 131º, 22º e 23º do C.P., e de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo art. 6º, nº.1, da Lei 22/97, de 27 de Junho, na redacção dada pela Lei 98/2001, de 25 de Agosto, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 4 anos, ficando ainda sujeito às injunções de não contactar e manter-se afastado da ora R., vítima das agressões objecto do julgamento.
5. À data do falecimento do Sr. EE, este e a Ré, apesar de casados, já não viviam juntos como marido e mulher há vários anos, com o esclarecimento de que tal ocorreu na sequência do facto referido em 4., e, após essa decisão, os familiares e amigos sempre aconselharam a Ré a não voltar para casa, devido ao perigo de agressão por parte do marido.
6. Sendo o imóvel em causa apenas habitado pelo EE.
7. Ali não comia.
8. Não dormia
9. Não recebia correspondência.
10. A Ré sempre teve a chave do locado e, embora aí não pernoitasse, quase diariamente ia ao imóvel em causa, antes do marido falecer, quando o marido não estava lá em casa, altura em que lhe arrumava a casa e lhe lavava roupa, e dormia na Travessa …, em Évora, onde residia na casa do filho mais velho.
11. A Ré trabalhava numa loja de bicicletas pertença do filho GG, que se situa na R. …, nº …, cuja porta se situa exactamente do lado oposto da rua, e em frente do portão onde se situa o imóvel onde vivia EE.
12. O EE trabalhava duas ou três portas abaixo, na mesma rua, com o nº …, numa oficina de bicicletas.
13. Este e a Ré viam-se todos os dias.
14. Todavia, não trocavam palavras, nem se reconciliaram.
15. A Ré, a partir do início do ano de 1975, passou a residir de forma permanente no locado, o que só interrompeu em 5 de Outubro de 2003, porque no mencionado dia, pouco antes das 21h40m, junto ao locado, o falecido EE agrediu a R., através de um pé-de-cabra, com uma pancada na cabeça, altura em que esta saiu de casa, devido ao referido no facto nº 4. e resposta ao quesito 1º, e, após a morte do marido, colocou uma nova fechadura na porta do imóvel, só por questões de segurança, já que não sabia se outras pessoas tinham a chave e fez algumas obras na casa de banho, nas canalizações, pintou as paredes e as portas, fez a limpeza, e a Ré e o filho HH passaram lá a viver, como era e foi sempre o desejo da Ré, por a considerar a sua casa de morada de família, bem como os restantes membros da família, o que era do conhecimento cabal de todos os familiares e amigos do casal, embora a Ré, por vezes, também pernoite na casa do filho mais velho.
16. A Ré encontrou-se com os Autores no dia 24 de Junho de 2006, em Évora, junto ao locado.
17. Aí, a Ré comunicou pessoalmente aos Autores o falecimento do seu marido, EE, e a sua intenção em suceder no arrendamento em causa.
18. Por se ter instalado no locado, logo após o decesso do seu marido.
19. A Ré tentou ainda que o procedimento criminal acima aludido ficasse sem efeito, mediante apresentação de desistência de queixa, o que – naturalmente – não logrou, por impossibilidade legal.
20. A Ré sempre teve na sua posse a chave do locado.

III – 1. A presente acção foi intentada com fundamento na caducidade do arrendamento por morte do respectivo arrendatário, tendo em conta a situação de, encontrando-se a aqui Ré, mulher do falecido, separada de facto deste e a residir noutro local, não se lhe poder transmitir o arrendamento em causa.

Como é pacífico, o regime jurídico aplicável à solução do presente pleito é o que consta do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, em vigor à data do óbito do arrendatário EE (22.05.2006).

Segundo o nº 1 do artigo 85º do RAU, “O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;”.

Tudo se resume, pois, a saber se, aquando da morte do arrendatário EE, o casal, constituído por este e pela DD, aqui Ré e ora recorrente, se encontrava ou não em situação de separação de facto.

A 1ª instância, de forma completamente despropositada, desviou o cerne da questão, acabando por considerar estar-se perante o impedimento da resolução constante da alínea a) do nº 2 do artigo 64º do RAU, dispositivo legal que estabelece que “não tem aplicação o disposto na alínea i) do número anterior em caso de força maior ou de doença”, sendo que, segundo a citada alínea i), “o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia”.

A separação de facto traduz-se numa ruptura do casamento.
Assim não sucederá – como refere o saudoso Conselheiro Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 7ª edição, Revista e Actualizada, página 581) – quando consistir num afastamento ditado por motivos profissionais, académicos, de férias, de tratamento de doença, etc..

Nesta alínea, e como bem se refere no acórdão recorrido, a lei não distingue entre separação de facto querida e não querida. Assim, para a caducidade do arrendamento e consequente procedência da acção, é irrelevante que a separação de facto não tivesse sido resultante de conduta voluntária do cônjuge sobrevivo e antes da vontade exclusiva (acto de força) do cônjuge arrendatário e, entretanto, falecido (local citado, em rodapé, com alusão ao acórdão da Relação de Évora de 29.02.1996, BMJ 454º-817).

2. Dito isto, e concordando-se inteiramente com a decisão tomada no acórdão recorrido e respectivos fundamentos, limitamo-nos a remeter para a proficiente fundamentação dele constante, ao abrigo do disposto no artigo 713º, nº 5, aqui aplicável por força do artigo 726º, ambos do Código de Processo Civil.

Decorre, assim, do exposto que não colhem as conclusões da recorrente, tendentes ao provimento do recurso.

IV – Conforme o acórdão recorrido, podem, pois, extrair-se as seguintes conclusões:
1ª – O óbito do arrendatário determina a caducidade do contrato de arrendamento para habitação.
2ª – Tal caducidade, porém, não se verifica se ao arrendatário sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto, o que pressupõe que entre o arrendatário e o seu cônjuge exista ou aparente existir a comunhão de vida típica da relação conjugal, que se manifesta na comunhão de cama, mesa e habitação e na vontade de ambos de a manter.
3ª – Inexistindo essa comunhão, e independentemente da causa da separação dos cônjuges e da sua imputabilidade a um deles (por exemplo, o arrendatário), o arrendamento não se comunica nem se transmite ao cônjuge sobrevivo deste, caducando com o óbito.
4ª – A causa da separação de facto do casal e a sua imputabilidade a qualquer dos cônjuges não são oponíveis ao senhorio.

V – Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 7 de Outubro de 2010

Moreira Camilo (Relator)
Urbano Dias
Paulo Sá