Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3064
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: FACTOS
BASE INSTRUTÓRIA
PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO PROCESSUAL
Nº do Documento: SJ200710180030647
Data do Acordão: 10/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADA A DECISÃO PARA AMPLIAÇÃO MAT. FACTO
Sumário :
Se o réu, ao contestar, entende e factualiza por completo a alegação de um facto que o autor fez por forma inadequada, por simples remissão para uma disposição da lei, impõe-se que se leve à base instrutória o facto alegado pelo autor com a enunciação verbal da factualização do réu.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


AA instaurou, em 16 de Junho de 2004, no Tribunal Judicial de Lisboa, contra BB acção ordinária, que recebeu o nº3740/04, da 15ª Vara Cível, 3ª secção, pedindo que, na procedência da acção, se declarasse « a autora titular do direito às prestações por morte do falecido CC nos termos das alíneas e), f) e g) do art.3º da Lei nº7/2001, de 11 de Maio ».
Alegou, em suma:
solteira, viveu os últimos 17 anos que antecederam a morte de CC, também solteiro, pensionista do CNP, ocorrida em 11 de Fevereiro de 2004, como se de marido e mulher se tratassem, em comunhão de cama, mesa e habitação;
aufere mensalmente, do trabalho, 440,67 euros;
tem do falecido companheiro uma filha, DD, de 11 anos de idade;
« além do seu salário, não tem outros recursos para a sua sobrevivência e da sua filha, nem familiares que lhe possam prestar alimentos nos termos dos arts.2009º e 2020º do CCivil ».
Contestou o réu ( fls.18 ), sobretudo pela alegação do desconhecimento dos factos que são pessoais e dos quais não deve ter conhecimento.
E acrescentou que « a autora deveria ter alegado todos os factos integradores do direito que se arroga, nomeadamente que não tem irmãos, pais e filhos em condições de lhe prestar alimentos, nos termos do DR 1/94, de 18/1 e ex vi art.2020º e 2009º do CCivil ».
A fls.25 foi elaborado o despacho saneador, com alinhamento dos factos assentes e fixação da base instrutória.
Efectuado o julgamento, com respostas nos termos do despacho de fls.54, foi proferida a sentença de fls.58 a 64 que julg|ou| a acção improcedente e, em consequência, absolv|eu| a ré do pedido.
Inconformada, a autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, todavia, por acórdão de fls.124 a 140, julg\ou| improcedente a apelação, confirm\ou| a sentença recorrida.
De novo inconformada, pede a autora revista para este Supremo Tribunal.
E, alegando a fls.155, CONCLUI:
1ª - O Tribunal de 1ª Instância julgou a presente acção improcedente, pelo pretenso facto da A. não ter alegado (e consequentemente não ter provado) que as pessoas ou entidades a quem legalmente poderia ser exigida a prestação de alimentos, não existem "in casu" ou não se encontram em condições de prestar tais alimentos.
2ª - Por sua vez, o Tribunal da Relação, rejeitando toda a argumentação da então apelante, veio confirmar a sentença recorrida e julgar improcedente a apelação intentada.
3ª - Mas acontece que a A. alegou no art.10° da sua p.i., o seguinte factualismo:
" A A., além do seu salário, não tem outros recursos para a sua sobrevivência e de sua filha, nem familiares que lhe possam prestar alimentos, nos termos dos arts.2009° e 2020° do CCivil ".
4ª - Ora, o art.2009° do CCivil enumera e caracteriza quais as pessoas das relações familiares do alimentando que estão legalmente obrigadas à prestação de alimentos, acontecendo que o art.2020° do mesmo Código estabelece que o alimentando, no caso de uma "União de Facto", tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, " se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do art.2009º ".
5ª - Verifica-se assim - e ao contrário do que o douto acórdão recorrido entende - que a A. alegou, no art.10° da sua petição inicial, factualismo adequado e bastante com vista a provar que os pretendidos alimentos não podiam ser prestados nem pelos parentes ( ex-cônjuge, descendentes, ascendentes, irmãos e, eventualmente, padrasto ou madrasta) obrigados a tal, nem tão pouco pela herança do falecido.
6ª - Na verdade, a A. ao referir que não tem outros recursos para sobreviver, nem familiares que lhe possam prestar alimentos, "nos termos dos arts.2009° e 2020° do CCivil", o que está a afirmar, numa remissão sucinta às referidas normas legais, é que não tem ex-cônjuge, descendentes, ascendentes, irmãos, padrasto ou madrasta obrigados a tal, nem tão pouco herança do falecido que suporte prestação de alimentos
7ª - Por outro lado, a prova a incidir sobre os factos que integram os mencionados dispositivos legais nada tem de especial ou de anormal, na medida em que se reporte e busque as situações próprias da vida real, ou seja, a chamada "certeza histórico-empírica ".
8ª - Consequentemente julgamos poder concluir que a A. alegou oportuna e capazmente tudo aquilo que era necessário alegar com vista ao escopo da demanda e à prova dos seus fundamentos de facto.
9ª - E assim, o acórdão recorrido, ao julgar como julgou e ao decidir como decidiu - não reconhecendo que a A. alegou factos que deviam ir à base instrutória - violou, por errada interpretação e aplicação, além do mais, o disposto no art°511°, nº1, do CPCivil e, por omissão, o princípio substantivo constante do art°341° do CCivil.
10ª - Por outro lado e ao contrário do que o acórdão recorrido sustenta, o Meritíssimo Juiz do Tribunal de 1ª Instância, ao elaborar o quesito 4° da base instrutória, deixou de fora do âmbito de tal quesito o que de mais importante foi alegado pela A. no art.10° da petição inicial.
11ª - Ou seja, o Meritíssimo Juiz de 1ª Instância não incluiu no teor do referido quesito 4° o circunstancialismo fáctico constante dos arts.2009° e 2020°, ambos do CCivil, frustando desta maneira o objectivo principal do alegado no art.10° da petição inicial.
12ª - Pelo que o acórdão recorrido - ao não assinalar esta omissão do Tribunal de 1ª Instância - violou mais uma vez o disposto no art.511°, nº1, do CPCivil.
13ª - Independentemente do exposto - e sem transigir –o certo é que a A. alegou no art.10° da sua p.i. que não tinha outros recursos nem familiares que lhe pudessem prestar alimentos "nos termos dos arts.2009° e 2020° do CCivil".
14ª - Desta feita, e dado o factualismo provado de a A. ter vivido em "União de Facto", durante 17 anos, com o falecido beneficiário, parece-nos de concluir que se verifica aqui uma imbricação do social com o jurídico, que justifica avonde a aplicação "in casu" dos poderes de ampliação da matéria de facto, que são competência e privilégio do Supremo Tribunal de Justiça.
15ª - De resto, parece-nos ser este o entendimento normal da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, conforme se alcança, além do mais, dos acórdãos do referido Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Maio de 1986 (Vide Rev. Leg. Jur. Ano 125, pág.297) e de 9 de Abril de 1997 (in Ac. S.T.J. 4a, proc. 154/96 in S.A. STJ, 10°,117).
16ª - Em conformidade do exposto, parece-nos evidente que os elementos fornecidos pelos autos em questão impõem uma decisão diversa da proferida pelo acórdão recorrido.
17ª - Ou seja, uma decisão que determine a ampliação da matéria de facto, de forma a que possa vir a ser considerado todo o factualismo que abarque a matéria de facto alegada pela A. no art.10° da petição inicial, incluindo obviamente aquela que é feita por remissão aos arts.2009° e 2020° do CCivil.
18ª - Não seguindo este entendimento e decidindo como decidiu, o acórdão recorrido violou, por omissão, o princípio substancial consignado no art.341° do CCivil e ainda, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos arts.511°, nº1 e 515°, ambos do CPCivil.
19ª - Deverá, pois, ser dado provimento ao presente recurso, concedendo-se a suplicada revista e ordenando-se que o Tribunal da Relação proceda à ampliação da matéria de facto de modo a abarcar tudo aquilo que foi alegado pela A. no seu art.10° da sua petição inicial.
Contra – alegando a fls.188, o réu pugna pela manutenção do decidido.
Estão corridos os vistos legais.
Há, antes de tudo o mais, uma circunstância contra a qual não pode deixar de reflectir-se.
É que para uma pessoa como a autora, que procura uma pensão de sobrevivência porque, no seu dizer, aufere mensalmente a quantia de 440,67 euros e além do seu salário não tem recursos para a sua sobrevivência e da sua filha | de 11 anos de idade |, decorreram já mais de 3 | três! | anos sem que o seu pedido fosse satisfeito ou denegado em definitivo.
E a verdade é que ao menos o tempo, o desgaste do tempo, poderia ter sido evitado.
Poderia ter sido evitado se ela, autora, conhecendo a jurisprudência dos nossos tribunais, tivesse feito de forma adequada, ou seja, de forma inteiramente factualizada, a alegação dos “factos” com os quais pretende ver ampliada a respectiva matéria.
Poderia ter sido evitada se o tribunal de 1ª instância, no entendimento que veio a seguir na sentença ( naturalmente se acaso já era o seu nesse momento ), tivesse usado dos poderes que lhe conferem a al. b ) do nº1 e o nº3 do art.508º do CPCivil, convidando a autora ao aperfeiçoamento do seu articulado de forma a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada. Ou, se acaso tal lhe não ocorresse, ao enfrentar o despacho saneador, nos termos do art.510º, nº1, al. b ) decidisse imediatamente do mérito da acção para cuja improcedência, afinal, o julgamento tendo como fundo a base instrutória elaborada nada adiantava|ou|.
Poderia ter sido evitada se acaso a autora, perante essa mesma selecção da matéria de facto, dela tivesse reclamado imediatamente acusando a falta dos factos que – agora! - pretende ver incluídos e apurados.
Podia ter sido evitada se acaso no início da audiência de julgamento, oficiosamente ou por iniciativa das partes, essa mesma questão tivesse sido colocada, fosse qual fosse a posição assumida então e as consequências práticas dela extraídas.
Todo este tempo, com um pouco mais de atenção, poderia ter sido poupado. Ao menos o tempo e desgaste do tempo!
Adiante.
E agora?
Agora o STJ está confrontado, antes de mais, com a definição do regime jurídico à sombra do qual alguém, na situação da autora, terá direito às prestações por morte daquele que, sendo beneficiário da segurança social, foi seu companheiro em vida.
Porque, se como pensou e continua a pensar o Relator deste processo – nos exactos termos em que o explicitou em artigo publicado na Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 3, nº5, 2005, pág.111 – ao pretendente dos benefícios sociais por morte de beneficiário ( solteiro ) da segurança social basta apenas fazer a alegação e prova de que com esse beneficiário viveu, em situação de união de facto, por mais de dois anos, então os factos recolhidos na selecção efectuada no despacho saneador e na base instrutória são os necessários e suficientes para resolver a questão, e resolvê-la no sentido da procedência da acção dadas as respostas obtidas em julgamento, com a autora a provar que viveu ininterruptamente durante dezassete anos com CC, mantendo entre si o relacionamento de marido e mulher.
Se como pensaram as instâncias, maxime o acórdão recorrido, e parece pensar a própria recorrente ao pugnar não pela procedência imediata da acção mas pela « ampliação da matéria de facto de forma a que possa vir a ser considerado todo o factualismo que abarque a matéria de facto alegada pela A. no art.10º da petição inicial, incluindo obviamente aquela que é feita por remissão aos arts.2009º e 2020º do CCivil », o direito que a autora pretende ver reconhecido não depende só da pura e simples afirmação da sua situação como de união de facto, mas também da prova dos mais requisitos pretensamente exigidos pelos arts.2009º e 2020º do CCivil, então sim, haverá que considerar da necessidade e, antes disso, da possibilidade de ampliar a matéria de facto em ordem a recolher os factos sem os quais não é possível aplicar o direito.
Se for este o caso, e houver esta necessidade e esta possibilidade, então este STJ ordenará – nos termos do disposto no art.729º, nº3 do CPCivil – o regresso dos autos ao tribunal recorrido para ampliação da base instrutória em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito. E neste caso – art.730º, nº1 – depois de definir o direito aplicável, manda julgar novamente a causa, em harmonia com a decisão de direito, pelos mesmos juizes que intervieram no primeiro julgamento, sempre que possível.
Ora é este o caso.
Pese embora a opinião acima expressa pelo Relator ( neste aspecto vencido ) o que este colectivo pensa maioritariamente é, na formulação utilizada pelos aqui vencedores no acórdão de 21 de Setembro de 2006, no proc. nº06B2352, in www.dgsi.pt/jstj, que « para que o sobrevivo da união de facto possa pedir a pensão de sobrevivência | e o mesmo se diga para as mais prestações sociais, designadamente o subsídio por morte | da segurança social tem de alegar e demonstrar:
que o falecido, à data da morte, não era casado ou, sendo-o, estivesse separado judicialmente de pessoas e bens;
que o requerente da pensão tenha vivido maritalmente com o falecido, há mais de dois anos, à data da morte;
que essa convivência marital tenha sido em condições análogas às dos cônjuges;
que não tenha o requerente meios de subsistência e não os possa obter do seu cônjuge, ou ex-cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes ou irmãos.
É o regime jurídico que se assume aqui: da conjugação do disposto no art.8º, nº1 do Dec.lei nº322/90, de 18 de Outubro e do art.3º do Decreto-regulamentar nº1/94, de 18 de Janeiro com o disposto no art.2020º do CCivil para o qual remetem, aquele que no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens não puder obter alimentos nos termos das alíneas a) e d ) do art.2009º, tem direito a obter a pensão de sobrevivência e as mais prestações sociais, designadamente o subsídio por morte. Como tem o direito de pedir alimentos à herança do falecido.
Este é o regime jurídico aplicável.
E, consequentemente, para que possa ser aplicado é preciso saber se a autora - é preciso que a autora prove porque isso mesmo é facto constitutivo do seu direito – podia ( ou melhor, não podia ) obter esses alimentos nos termos das alíneas a ) a d ) do art.2009º do CCivil.
É preciso apurar se a autora – leiamos o nº1 do art.2009º, nas suas alíneas a) a d) - não tinha cônjuge ou ex-cônjuge, descendentes, ascendentes ou irmãos que lhe possam prestar alimentos.
Ora a autora, no art.10º da sua petição inicial, diz isso mesmo.
Di-lo de uma forma irregular ou imprecisa porque o diz por uma referência directa à lei e não pela enunciação factual dos seus elementos. Diz apenas que « não tem familiares que lhe possam prestar alimentos nos termos do art.2009º e 2020º » quando devia ter dito o que quis dizer enunciando-o - não tem cônjuge ou ex-cônjuge, descendentes, ascendentes ou irmãos que lhe possam prestar alimentos pois são esses os familiares que o art.2009º elenca.
Mas não podemos nem devemos desaproveitar essa alegação quando ela é perfeitamente entendida pelo réu quando afirma, na sua contestação, que « a autora deveria ter alegado todos os factos integradores do direito que se arroga, nomeadamente que não tem irmãos, pais e filhos em condições de lhe prestar alimentos » ( aceitando implicitamente a alegada condição de solteira da autora – que já agora se estimula a juntar aos autos a sua certidão de nascimento ).
De algum modo é o réu a factualizar uma alegação fáctica feita de um modo tecnicamente inadequado por referência ao direito.
É o réu a facilitar e permitir ( e por isso a impor ) ao tribunal, ao abrigo de um princípio de aquisição processual, a tradução factual da alegação feita pela autora no art.10º da sua petição inicial.
Ampliando a matéria fáctica da base instrutória com um ponto 5 com a seguinte redacção:
a autora, além do seu salário, não tem outros recursos para a sua sobrevivência e da sua filha, nem cônjuge ou ex-cônjuge, descendentes, ascendentes ou irmãos que lhe possam prestar alimentos?
E assim se responderá à interrogação – E agora? – e se reagirá, dentro do possível e dentro dos princípios que regem o processo civil, designadamente o já falado de aquisição processual, o de cooperação, o dispositivo e o de economia, ao tempo e ao desgaste do tempo.
~~

D E C I S Ã O
Na procedência do recurso,
revoga-se a decisão recorrida e determina-se a baixa dos autos ao tribunal recorrido para ampliação da matéria de facto nos termos referidos e posterior julgamento, se possível pelos juizes que intervieram no primeiro, de acordo com o direito acima definido como aplicável.
Sem custas o recurso por delas estar isento o réu.

Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Outubro de 2007

Pires da Rosa (Relator)

Custódio Montes
Mota Miranda