Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S823
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BRAVO SERRA
Descritores: ACÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
FASE CONTENCIOSA
FIXAÇÃO DA INCAPACIDADE
JUNTA MÉDICA
PROVA PERICIAL
Nº do Documento: SJ20070522008234
Data do Acordão: 05/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - A decisão a proferir no culminar do processo emergente de acidente de trabalho em que na fase conciliatória houve apenas discordância quanto ao grau de incapacidade atribuído pelo perito médico, é aquela a que se reporta o n.º 1 do art. 140.º do CPT.
II - Para a prolação desta decisão pode o juiz servir-se, inter alia, da prova obtida por meios periciais.
III - Na decisão de facto, o juiz pode afastar-se do que resultou da perícia, dada a livre apreciação desse meio de prova, o que não quer significar prova arbitrária, mas sim uma prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom senso, com inteira liberdade, sem estar adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais.
IV - Embora não haja um concreto comando de que resulte directamente a imposição da fundamentação daquele afastamento, o princípio da necessidade da fundamentação da apurada matéria de facto (art. 653.º, n.º 2 do CPC) aponta para a necessidade de justificação da discordância com o resultado da perícia (ou das perícias), mormente tendo em atenção as situações em que, processualmente, tenha havido uma perícia singular e uma perícia colegial, esta requerida por uma das partes.
V - É possível circunscrever a matéria sobre a qual haverá de ser proferida pronúncia pelos peritos, mas não se podem coarctar os elementos de conhecimento específicos daqueles para responderem à matéria definida, por forma a que a sua pronúncia não se possa afastar de um juízo de observação efectuado por um anterior perito.
Decisão Texto Integral:
I


1. Na sequência de um acidente sofrido em 13 de Fevereiro de 2004 por AA, participado ao 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa por BB Seguros, S.A., que, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 064/00677556/000, assumiu a responsabilidade pelo pagamento dos montantes devidos por CC, Ldª, em virtude de acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores, entre estes se encontrando aquele sinistrado, foi realizada tentativa de conciliação, tendo, em tal diligência, sido, pelo Magistrado do Ministério Público, proposto acordo segundo o qual a seguradora pagaria ao sinistrado, desde 5 de Outubro de 2005, uma pensão anual de € 1.081,92, obrigatoriamente remível, e isso em face da circunstância de, daquele acidente, ter resultado para o dito sinistrado uma IPP de 15%, conforme exame realizado por perito médico do Tribunal.

A seguradora, porém, conquanto reconhecendo o acidente como um acidente de trabalho e o nexo causal entre esse acidente e as lesões sofridas pelo sinistrado, não deu o seu acordo ao grau de incapacidade que foi concluído pelo perito médico, vindo a requerer o exame do sinistrado por uma junta médica, formulando os seguintes «quesitos»: –

Relativamente ao acidente de trabalho, ocorrido no dia 06/12/05, quais as sequelas (anátomo-funcionais) que o sinistrado apresenta resultantes das lesões sofridas?
Face à Tabela nacional de Incapacidades, qual o grau de desvalorização que lhe corresponde?

A Juíza do indicado Juízo, em 10 de Janeiro de 2006, proferiu o despacho seguinte: –

“(…)
Formulação de quesitos a que os senhores peritos devem responder – art. 139º, 6, do CPT :
Considerando a jurisprudência superior que ultimamente se tem pronunciado sobre a questão da posterior alteração pela junta médica da qualificação das lesões fixadas no exame médico singular e já aceites pelas partes na tentativa de conciliação, restringe-se e delimita-se a matéria a responder pelos senhores peritos às seguintes questões:
1º – Tendo por referência as lesões já fixadas e aceites pelas partes no exame singular, o/a sinistrado/a encontra-se afectado de IP?
2º – Em caso afirmativo em que grau, segundo a TNI?
(…)”

Realizada a junta médica, a mencionada Juíza, ponderando o seu anterior despacho e que aquela junta alterou a qualificação das lesões, determinou, por despacho de 6 de Março de 2006, a realização de nova junta, a fim de se esclarecer qual o grau de IPP que seria atribuído com base nas lesões fixadas no exame singular.

Realizada a nova junta, foi, no respectivo auto, mencionado que se confirmava a desvalorização, atribuída na anterior, de 5,92%.


2. Por decisão de 24 de Abril de 2006, foi declarado que o sinistrado padecia de uma IPP de 15% a partir de 4 de Outubro de 2005 (e isso porque foi entendido que, tendo as partes aceite, na tentativa de conciliação, as lesões e sequelas do acidente, e somente tendo a seguradora discordado do grau de incapacidade atribuído, não era lícito à junta médica alterar o tipo de lesão, razão pela qual deveria prevalecer o resultado do exame singular) e condenada a seguradora a pagar ao sinistrado um capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.081,92 a partir de 5 daqueles mês e ano.

Do assim decidido apelou a seguradora para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 29 de Novembro de 2006, negou provimento à apelação.


3. Continuando inconformada, pediu a seguradora revista, concluindo do seguinte jeito a sua alegação: –

1. O douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa violou as disposições legais constantes dos artigos 112, n.º 1, 138º, n.º 2 e 140º do CPT;
2. O douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa podia valorar, para menos, o resultado [grau de incapacidade] do exame médico singular, tendo por base o Auto de Exame por Junta Médica;
3. A Junta Médica não se encontra limitada pela classificação das lesões efectuadas pelo perito médico do Tribunal, podendo efectuar uma diferente qualificação e enquadramento das lesões observadas no sinistrado face à TNI;
4. Esse enquadramento faz parte da operação de análise da desvalorização a atribuir ao sinistrado, sobre a qual não existe acordo;
5. Perante a unanimidade da Junta Médica, poderia e deveria ter sido fixada a incapacidade do sinistrado em 5,92%;
6. Ou, em caso de dúvida, solicitar-se a realização de exames complementares ou de pareceres técnicos para melhor formar a sua convicção;
7. Não poderá entender-se o acordo alcançado na fase conciliatória quanto ao nexo de causalidade entre o acidente a as lesões como ‘limite da condenação’.

O sinistrado, que se encontra representado nos autos por mandatário forense, não respondeu à alegação.

A Ex.ma Representante do Ministério Público neste Supremo Tribunal exarou douto «parecer» no sentido de ser concedida a revista, «parecer» esse que, notificado às partes, sobre o mesmo não efectuaram qualquer pronúncia.

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

II


1. Como se torna claro, a questão a decidir circunscreve-se a saber se, tendo as partes, na tentativa de conciliação, acordado quanto à natureza das lesões concluída pelo exame médico singular, não havendo acordo quanto ao grau de incapacidade permanente parcial delas decorrente, poderá, ou não, o juiz, na decisão a que alude o artº 140º, nº 1, do Código de Processo de Trabalho, atender a um diferente grau de incapacidade concluído por junta médica realizada posteriormente a requerimento de uma das partes, e isso devido ao facto de tal junta ter alterado a natureza das lesões.

O acórdão agora impugnado, após ter discreteado sobre os poderes do juiz quanto à prova pericial, veio dizer sobre a questão em apreço: –

“(…)
Há, todavia, que ter em conta outra realidade:
Dispõe o artº 112º, nº 1, do C.P.T, que [ ]se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída’.
Esta exigência legal visa circunscrever o litígio na fase contenciosa às questões de facto em relação às quais não tenha havido acordo. Estas questões consideram-se definitivamente assentes para serem apreciadas mais tarde na decisão final – cfr. Leite Ferreira, ob.cit., 452.
Estabelece-se, assim, uma espécie de verdade formal sobre todos os elementos de facto acerca dos quais tenha havido acordo. A aquisição decorrente da tentativa de conciliação tem o mesmo valor de facto não impugnado na contestação – Ac. da Rel. de Lisboa de 4/3/87, Col. Jur., 1987, II, 187.
Nos presentes autos, e na tentativa de conciliação realizada, a seguradora aceitou expressamente ‘o nexo causal entre esse acidente e as lesões consideradas pelo perito médico do Tribunal no seu exame’ (o sublinhado é nosso). Ou seja, aceitou, in totum, a descrição das lesões efectuada pelo perito do tribunal no auto de fls. 50-51, onde se refere que:
‘(…) uma vez que já foi operado três vezes à pseudoartrose no escafóide cárpico à direita, e não se obteve a consolidação, esta lesão vai evoluir para a artrose no punho’.
Estabelecida tal verdade formal, tornou-se irrelevante a consideração das lesões levada a cabo pelos Srs. peritos que integraram a junta médica e, consequentemente, a respectiva subsunção à TNI, aí efectuada. E, assim sendo, outro caminho não restava à Sr.ª Juíza do que aquele que seguiu: tomar em consideração a incapacidade proposta pelo Sr. Perito singular, que correctamente integrou as lesões no Cap. I, 7.2.3.3, b), da TNI, sendo de aceitar a correspondente justificação para a sua aplicação por analogia.
E os Srs. Peritos que integraram a junta médica consideraram outro tipo completamente diferente de lesões, apesar de a Sra. Juíza, para além de ter sido bem clara no quesito que formulou (Tendo por referência as lesões já fixadas e aceites pelas partes no exame singular, o sinistrado encontra-se afectado de IP?) igualmente teve a preocupação de mandar reunir de novo a junta com a finalidade de ‘esclarecer qual o grau de IPP que atribuiriam com base nas lesões fixadas no exame singular’.
Tem sido esta a orientação seguida por este Tribunal da Relação, dando-se, como exemplo, os acórdãos de 12/5/2004, apelação nº 2.705/04, e de 23/2/2005, apelação 10279/2004-4, disponível em www.dgsi.pt.
E, como se refere no Ac., também desta Relação de Lisboa, de 14/12/2004 (apelação 8.689/04-4, relatado pelo Exmº Desembargador Sarmento Botelho), admitida por acordo, na tentativa de conciliação, a existência de tais lesões, como consequência do acidente, estava vedado aos Exmºs Peritos que intervieram no exame por junta médica averiguar da sua existência ou não, como fizeram.
É que, face à posição do representante da responsável-seguradora, no auto de tentativa de conciliação, já não havia que averiguar, nem podiam ser averiguadas, através de requerimento para junta médica, as sequelas incapacitantes resultantes do acidente, dado que, face ao disposto no nº 1 do artº 112º e no nº 2 do artº 138º, ambos do C.P.T., só quando, e apenas, houver discordância quanto à questão da incapacidade, é que esta pode ser resolvida através daquele simples requerimento, tendo em vista o determinado na al. b) do nº 1 do artº 117º do mesmo Código, sem necessidade de abertura da fase contenciosa do processo especial de acidente de trabalho, através da petição inicial a que alude a al. a) do nº 1 da mesma disposição processual. Os Srs. peritos que integraram a junta médica, ao averiguarem da existência, ou não das lesões, invadiram o campo do nexo causal entre tais lesões e o acidente, que já não era da sua esfera de competência, por já vir decidida da tentativa de conciliação.
Para que seja possível a abertura desta fase contenciosa através de simples requerimento para exame por junta médica, já as questões da existência e caracterização do acidente, bem como do nexo causal entre as lesões e o acidente têm de estar admitidas por acordo das partes.
Foi o que aconteceu no caso dos autos – cfr. a tentativa de conciliação de fls. 86-87, em que apenas ficou por solucionar o grau de incapacidade para o trabalho do sinistrado, pois as lesões e as sequelas, consequência do acidente, constantes do auto de exame médico realizado na fase conciliatória do processo, já tinham sido admitidas, em sede de tentativa de conciliação, pelo representante da seguradora, de acordo com o exposto.
(…)”


2. Está adquirida a seguinte matéria de facto, com relevo para a questão sub iudicio: –

– a) Em 13 de Fevereiro de 2004, quando trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização de CC, Ldª, auferindo, nessa data, a retribuição anual global de € 10.304, sofreu AA um acidente (pontos 1 e 2 da factualidade tida por assente pelo acórdão recorrido);

– b) A Grauhavia transferido a sua responsabilidade infortunística para a Ré” (sic, ponto 3 dos factos aceites pela Relação);

– c) Tendo o sinistrado, na fase conciliatória, sido submetido a exame médico, o perito atribuí-lhe a incapacidade permanente parcial de 15%, desde 4 de Outubro de 2005 (porventura por lapso, o acórdão recorrido reporta-se a “desde 8/1/2004”, sendo que, porém, remete para fls. 50, 51 do presente processo – o auto de exame médico –, nas quais se encontra exarado, como coeficiente global de incapacidade, “I.P.P. de 0,15 desde 04-10-2005”), referindo nesse mesmo auto que “Uma vez que já foi operado [reportava-se ao sinistrado] três vezes à pseudoartrose no escafóide cárpico à direita, e não se obteve a consolidação, esta lesão vai evoluir para a artrose no punho. Por analogia considero a I.P.P. de 0,15 do artigo 7.2.3.3.b da T.N.I., que num indivíduo jovem em que as mobilidades ainda estão conservadas, contempla melhor a realidade próxima do quadro clínico, na sua globalidade”;

– d) Na tentativa de conciliação realizada, cujo auto consta de fls. 55, a representante da seguradora disse “não estar de acordo com a avaliação da incapacidade feita pelo perito médico do Tribunal”, sendo que, nesse mesmo auto, consta que por aquela representante foi “dito que reconhece o acidente dos autos como de trabalho, o nexo causal entre esse acidente e as lesões consideradas pelo perito médico do tribunal no seu exame”;

– e) Realizado exame por junta médica, os peritos que a integraram foram de parecer, por unanimidade, que o sinistrado apresentava “cicatriz dolorosa com limitação articular dos movimentos do punho dtº” e, em resposta aos quesitos constantes do despacho de 10 de Janeiro de 2006, prolatado pela Juíza do 2º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, referiram “1 – 5,92%, sim” e “2 – 5,92%”, fazendo corresponder as lesões às rubricas da Tabela Nacional de Incapacidades correspondentes ao Capítulo I, 7.2.2.2.c), e Capítulo II, 1.5.a), e considerando haver um coeficiente global de incapacidade “de 5,92% desde a data da alta” – cfr. auto a fls. 86 e 87;

– f) No auto de realização da segunda junta médica, determinada pelo despacho de 6 de Março de 2006, referiu-se que “consideram, após revisão dos exames e toda a anterior [?] presente nos autos e atentos ao exame objectivo efectuado à data da junta anterior (folhas 86 e 87) confirmam a desvalorização atribuída, de 5,92%” (cfr. auto a fls. 100 e 101).


3. Como resulta do precedente relato, no exame médico singular foi entendido que as lesões sujeitas a observação, por analogia, seriam enquadráveis no Capítulo I, 7.2.3.3. b), da Tabela Nacional de Incapacidades, pelo que o grau de incapacidade permanente do sinistrado era de fixar em 15%, tendo, na tentativa de conciliação, as partes acordado no reconhecimento de que o acidente em causa se tratou de um acidente de trabalho e na existência do nexo causal entre o acidente e as lesões observadas.

O desacordo entre as partes residiu, tão só, na conclusão a que chegou o perito que realizou aquele exame no que tange ao grau de incapacidade decorrente das lesões, o que motivou a seguradora a solicitar a efectivação de exame por junta médica.

Nesta – e na que posteriormente foi determinada pela Juíza do 2º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa –, foi concluído que o grau de incapacidade do sinistrado era de 5, 92%, para tanto tendo a junta entendido que as lesões se enquadravam no Capítulo I, 7.2.2.2. a) e Capítulo II, 1. 5. a), da indicada Tabela.


4. Como resulta do vigente Código de Processo do Trabalho – cfr. artigos 99º e seguintes daquele corpo de leis – nos processos especiais emergentes de acidente de trabalho e de doença profissional, após a realização de exame médico, seguir-se-á uma tentativa de conciliação, na qual o Ministério Público promove o acordo, de harmonia com direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo, designadamente o resultado do exame médico e as circunstâncias que possam influir na capacidade geral de ganho do sinistrado (artº 109º).

Se vier a ser realizado o acordo, é imediatamente submetido ao juiz, que o homologa por simples despacho exarado no próprio autos e seus duplicados, se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais (nº 1 do artº 114º).

Se, se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída (artº 112º, nº 1).

Por outro lado, comanda o artº 117º, nº 1, alínea b), que a fase contenciosa tem por base requerimento, a que se refere o n.º 2 do artigo 138.º [segundo o qual, se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 119.º], do interessado que se não conformar com o resultado do exame médico realizado na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho, devendo esse requerimento ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos (nº 2 desse artº 117º).

Das disposições legais acima indicadas ressalta que, se não for possível alcançar um acordo global na fase conciliatória – ainda que a discordância se resuma à questão atinente ao grau de incapacidade – não poderá ser proferida a decisão homologatória a que se reporta o nº 1 do artº 114º.

Se é certo que aquela decisão homologatória não pode ser perspectivada como meramente tabelar, por isso que o juiz só a proferirá se verificar a conformidade do acordo com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais, menos não é que o seu pressuposto, claramente, reclama a existência de uma manifestação de vontade das partes quanto à globalidade dos termos do acordo promovido pelo Ministério Público.

Nesta parametrização legal, o que se extrai da mesma é que, caso vislumbre o juiz a ocorrência de uma desconformidade do acordo alcançado, quer em face dos elementos que decorrem dos autos, quer perante os normativos legais, convencionais ou regulamentares, sobre ele impende o dever de não proceder à homologação desse acordo. Já, pelo contrário, se o juiz porventura lobrigar que de tais elementos ou normativos poderia resultar um acordo que, contudo, não veio a efectivar-se, nenhuma norma ou princípio vertidos no Código de Processo do Trabalho ou do corpo de leis adjectiva que, nos termos daquele, se aplica subsidiariamente, aponta minimamente para o dever de levar a efeito, desde logo naquela fase processual, seja uma homologação – o que, obviamente, seria contraditório nos seus termos, já que não havia nenhum acordo sobre o qual ela houvesse de incidir –, seja a prolação de uma decisão «de mérito» sobre a matéria, justamente porque ocorreu então um contencioso entre as partes advindo da falta de acordo.

Na verdade, num caso como o em presença, é indubitável que uma das partes – a seguradora – se não conformou com o resultado do exame médico singular realizado ex vi do artº 105º do Código de Processo do Trabalho, ou seja, o exame médico ocorrido na fase conciliatória, conquanto unicamente no particular do grau de incapacidade nele concluído, tendo elaborado requerimento peticionando a realização de junta médica. Ora, num tal contexto, torna-se evidente que se abriu a fase contenciosa do processo com vista à fixação da incapacidade para o trabalho – cfr. a já citada alínea b) do nº 1 do artº 117º e artigos 138º e seguintes, todos daquele corpo de leis –, motivo pelo qual não poderia, na situação sub specie, como se depara claro, cobrar aplicação o disposto na segunda parte do nº 2 daquele artº 138º.

A decisão a proferir é, pois, aquela a que se reporta no nº 1 do artº 140º do dito Código, que foi, aliás, a impugnada perante a Relação.


5. Para a prolação dessa decisão, poderá, naturalmente, o juiz servir-se, inter alia, da prova obtida por meios periciais.

Para se usarem as palavras de Vaz Serra [Provas (Direito Probatório Material), 1962, 18 e 116] objecto “imediato das provas são pelo menos em regra, os factos (materiais, actos ou negócios jurídicos) de que resultam efeitos jurídicos, e cuja prova, portanto, é necessária para a demonstração do direito que se faz valer”, sendo os meios de prova “tudo aquilo que pode esclarecer acerca do objecto da prova”.

De entre estes, no que agora releva, conta-se a prova pericial, cujo valor, como se sabe, é apreciado livremente – cfr. artº 389º do Código Civil - e que se destina a fornecer ao tribunal uma especial informação de facto tendo em conta os específicos conhecimentos técnicos ou científicos do perito que se não alcançam pelas regras gerais da experiência (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 261 e segs. e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, 322 e segs.).

E, dada a livre apreciação desse meio de prova – o que não quer significar prova arbitrária, como anotam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, 2ª edição, Volume I, 316), citando, depois, o Acórdão deste Supremo de 30 de Dezembro de 1977 publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 271, págs. 181 e segs), mas sim uma prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom senso, com inteira liberdade, sem estar adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais –, isso consequencia que o juiz pode, na decisão de facto, afastar-se do que resultou da perícia. E, muito embora não haja um concreto comando de que directamente resulte a imposição de fundamentação do afastamento, sem dúvida que o princípio da necessidade da fundamentação da apurada matéria de facto – cfr. artº 653º, nº 2, do Código de Processo Civil – não deixa de apontar para a dação de justificação da discordância com o resultado da perícia (ou das perícias), mormente tendo em atenção as situações em que, processualmente (hoje, em moldes diversos, rege o Código de Processo Civil – cfr. artigos 568º e seguintes), tenha havido uma perícia singular e uma perícia colegial, esta requerida por uma das partes.


6. É evidente que, na decisão a proferir nos termos do artº 140º do Código de Processo de Trabalho, o juiz não pode deixar de atender a outros elementos, designadamente com valor probatório, existentes nos autos. E, de entre estes, é figurável que atente naquilo que considere adquirido por acordo.

Simplesmente, se a realização da prova pericial visa a demonstração de uma dada realidade de facto – in casu pretendeu-se, por intermédio do exame singular e do exame colegial, a demonstração de qual tinha sido o grau de incapacidade do sinistrado – torna-se patente que era lícito ao juiz vir a proferir uma decisão sobre aquela realidade que fosse diversa da conclusão que se extraía do primeiro ou de segundo daqueles exames, precisamente dada a liberdade de apreciação que lhe está cometida.

Só que, não foi com base na liberdade de juízo apreciativo do magistrado judicial sobre aquele meio de prova que o acórdão agora em sindicância repousou para alcançar a decisão de negar provimento à apelação. Fê-lo, como se viu, porque entendeu que não era lícito à junta médica alterar a natureza das lesões tal como fora definida pelo perito médico singular.

Não se pode anuir a um tal juízo.

De facto, independentemente do acerto ou não acerto do juízo sobre a natureza das lesões do sinistrado levado a efeito pela junta médica, o que é certo é que a mesma se veio a pronunciar sobre o grau da IPP, mesmo depois dos esclarecimentos pedidos pela Juíza.

Ora, se se tem por líquido que é possível circunscrever a matéria sobre a qual haverá de ser proferida pronúncia dos peritos, também se tem por líquido que se não podem coarctar os elementos de conhecimento específicos daqueles para responderem à matéria definida, por forma a que a sua pronúncia não se possa afastar de um juízo de observação efectuado por um anterior perito.

É que, no limite, uma tal postura implicaria, num juízo formulado ex ante, que a pronúncia decorrente da primitiva observação pericial era aquele a que deveria ser conferido maior relevo probatório.

É claro que não foi neste específico sentido que o aresto em crise se arrimou, mas sim em que a natureza das lesões era algo que estava adquirido por acordo.

Todavia, o que se não deve olvidar é que veio a ser efectuada, pela junta médica, uma pronúncia sobre o grau de incapacidade do sinistrado.

Se, para tanto, porventura houve erro na percepção científica que conduziu a subsumir a natureza da lesão ao Capítulo I, Aparelho locomotor, 7, Punho, 2.2.2., Flexão (flexão palmar), a), Movimento entre 45º e 90º, e ao Capítulo II, Dismorfias, 1, Cicatrizes, 1.5, Cicatrizes distróficas, a), Cicatrizes atróficas ou apergaminhadas, independentemente da parte do corpo onde se localizem e se forem dolorosas ou facilmente ulceráveis, da Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo Decreto-Lei nº 341/93, de 30 de Setembro (e, de todo o modo, não se escamoteie que a junta médica referiu ter tido em consideração os exames anteriores e o que demais constava dos autos), torna-se indiscutível que essa hipotética eventualidade poderia ser tida em conta pelo juiz na apreciação desse meio de prova, para, se assim o entendesse, lhe conferir menor relevo do que àquele que, na sua óptica, resultou da primeira perícia. Mas tudo isto, não com esteio na consideração de que não era permitido alterar a percepção especializada da primeira perícia, porque aceite pelas partes, mas sim com base na sua livre convicção sobre o meio de prova pericial.

Entende-se, aliás, que é aqui cabida a citação da jurisprudência que se extrai dos Acórdãos deste Supremo de 14 de Dezembro de 2005 (Revista 3642/05) e de 27 de Abril de 2006 (Revista 377/06), conquanto não contemplando situações de contornos exactamente semelhantes ao caso em espécie.

Não procede, desta sorte, o fundamento que foi carreado para dever subsistir o grau de incapacidade concluído no exame médico singular, isto é, unicamente na consideração de que a natureza das lesões estava adquirida por acordo e que não se tornava lícito à junta médica alterá-la.

Isso não significa, porém, que se não possa, eventualmente, ser levado a idêntica conclusão. Ponto é que ela se retire da apreciação – ínsita na liberdade do julgador, como se viu – dos meios de prova, nomeadamente periciais, o que, por constituir matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, por elas deve ser prosseguido.

III


Em face do que se deixa exposto, concede-se a revista, revogando o acórdão recorrido, determinando-se que a Relação, se possível pelos mesmos Juízes, se pronuncie, também tendo em conta o juízo pericial da junta médica, o grau de incapacidade permanente do sinistrado, com as consequências daí advenientes.

Sem custas.

Lisboa, 22-05-2007

Bravo Serra (Relator)
Mário Pereira
Maria Laura Leonardo