Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5652/9.3TBBRG.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
REQUERIMENTO EXECUTIVO
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
DOCUMENTO COMPLEMENTAR
EXEQUIBILIDADE
CAUSA DE PEDIR
FORÇA EXECUTIVA
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
REJEIÇÃO OFICIOSA DA EXECUÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO EXECUTIVA
Doutrina: - Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 11ª ed., pág. 28.
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, págs. 74, 75, 80/81; ainda na RLJ, ano 121º, págs. 147/148.
- Fernando de Gravato Morais, em Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, 2007.
- Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2ª ed., pág. 91 e 108.
- Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, págs. 26 e 67/68.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 45.º, N.º1, 46.º, N.º 1 AL. C), 820.º.
CIRE: - ARTIGO 91.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 15/06/2000, NA CJ DE 2000, TOMO 2, PÁG. 108;
-DE 16/12/2004, PROCESSO Nº 04B3901, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 06/02/2007, NA CJ DE 2007, TOMO 1, PÁG. 69;
-DE 19/02/2009, PROCESSO N.º 07B4427, WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - Da mesma forma que a causa de pedir pode ser simples ou complexa, também o título executivo o poderá ser.
II - O título executivo é complexo quando corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos asseguraram eficácia a todo o complexo documental como título executivo.
III - Se um complexo documental particular, de aparente exequibilidade extrínseca e intrínseca, é recognitivo de uma obrigação pecuniária, exigível e líquida, preenche o título executivo extrajudicial tipificado na al. c) do art. 46.º do CPC.
IV - O disposto nos arts. 15.º, n.ºs 1 e 2, do NRAU, 50.º, 810.º, n.º 1, al. e), e 860.º, n.º 3, do CPC, são bons exemplos, entre outros, da expressa imposição pelo legislador de título executivos complexos.
V - Não constituindo os documentos oferecidos pelo exequente com o requerimento título executivo suficiente por se mostrar necessária a junção de um outro em sua necessária complementaridade, tal omissão não é motivo para rejeitar a execução, antes para convidar o exequente a apresentá-lo de forma a complementar o complexo título executivo necessário. Só depois, caso tal convite não seja observado ou o documento não satisfaça a finalidade a que se destinava, caberá ao tribunal, ainda ao abrigo do art. 820.º, rejeitá-la.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I— RELATÓRIO

. AA, Lda., com sede em Adaúfe, Braga, instaurou contra BB e CC, residentes em Campanhã, Porto, a presente execução comum para pagamento de quantia certa, alegando, em síntese, que celebrou com (11) – Construções e Obras Públicas, SA, por documento datado de 08/05/2008, o contrato de fornecimento (venda de coisa determinada com fixação do preço por unidade) que juntou com o requerimento executivo (fls. 22 a 24), nos termos do qual os executados se declararam fiadores e principais pagadores daquela sociedade, tendo renunciado ao benefício de excussão prévia.
Por sentença já transitada (fls. 28 e segs.), foi declarada a insolvência da (11) – Construções e Obras Públicas, SA, pelo que tornaram-se vencidas as obrigações da insolvente resultantes do referido contrato de fornecimento.
A exequente reclamou no processo de insolvência a verificação do seu crédito o qual foi aí reconhecido, e apesar de ter sido aprovado um plano de insolvência a exequente não perdeu o direito de demandar os executados.
Considerando que o título executivo constituído pelo complexo documental que apresentou está dotado de força executiva, concluiu requerendo a citação dos executados para pagarem a quantia em dívida (no montante de 45.289,93€, considerando os juros de mora entretanto vencidos), ou para os demais termos legalmente estabelecidos.
Os executados foram citados e deduziram oposição que foi apensa, tendo-se seguido a contestação da exequente (1) .
Procedeu-se à penhora de bens dos executados e, depois, disso, a Vara Mista de Braga, onde a acção foi instaurada, declarou-se territorialmente incompetente e remeteu os autos aos Juízos de Execução do Porto.
No 1º Juízo de Execução do Porto foi proferido despacho (fls. 144) que considerou não poder o documento exequendo constituir título executivo, nos termos do art. 46º, nº 1 do CPC (maxime da respectiva alínea c), rejeitou a execução e ordenou o levantamento das penhoras (2) .
Inconformada com este despacho, dele apelou a exequente no que obteve parcial procedência pois que, por unanimidade, o Tribunal da Relação do Porto, revogando a decisão recorrida, determinou que o Tribunal recorrido ordenasse a notificação da exequente para juntar aos autos, em prazo a fixar, um documento em falta (uma certidão de sentença de verificação e graduação de créditos), sob a advertência de, não o fazendo, a execução ser rejeitada.

Foi a vez dos executados expressarem o seu inconformismo. Recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça e nas alegações que apresentaram formulam as seguintes conclusões:
1-Pretende o Exequente que o contrato de fornecimento dispõe de força executiva contra os aqui Embargantes, visto o mesmo conter as assinaturas dos aqui Embargantes como fiadores.
2- Pretende que a declaração de dívida, juntamente com o cálculo do vencimento de todas as obrigações da "(11) , S.A.", reclamação do crédito pela Exequente e reconhecimento do mesmo, formam um todo com força executiva.
3- Donde os mesmos Embargantes seriam não apenas co-responsáveis, mas directamente Executáveis e Executados.
Não é assim
4- Efectua a Exequente uma confusão grosseira entre pessoa colectiva e as pessoas físicas que ocupam os órgãos de administração da mesma, bem como uma não menos grosseira entre contrato de fornecimento e declaração de dívida decorrente do mesmo, e ainda entre as noções de causa de pedir e título executivo.

5- Independentemente dos Recorridos terem assinado tal contrato na qualidade de fiadores da "(11) , S.A.", de per si, não se extrai o reconhecimento de qualquer dívida.
6- Do mesmo também não se extrai o reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável, por simples cálculo aritmético, de acordo com as cláusulas dele constantes.
7- Também, da declaração de reconhecimento de dívida com acordo de pagamento outorgada em 30/IV/2008, não se extrai que os Recorrentes a tenham assinado, seja como fiadores, seja por qualquer outra fórmula, como garantes do pagamento do devedor principal.
8- Não constitui, por isso, nenhum dos documentos dados à execução, títulos executivos, por não preencherem qualquer das hipóteses normativos estatuídas no art°46, n° l CPC ;
9- Em sede de Reclamação de Créditos no Processo de Insolvência do Devedor Principal, o crédito reclamado pela Recorrida foi graduado como crédito comum, pagável em 60 ( sessenta) prestações com início em Abril de 2011.
10- O Plano de insolvência também aprovado pelo Recorrido, que aceitou receber do devedor principal naquelas condições de pagamento.
11- Circunstancialismo que traduz Novação Objectiva da Dívida, nos termos de art° 857 CC: a substituição de uma dívida por outra.
12- O recorrido quer receber a quantia exequenda junto dos recorrentes de imediato, mas aceita receber do devedor principal em sessenta prestações, mensais com três anos de carência, contando do trânsito em julgado da homologação da insolvência, o que e termos práticos corresponde a oito anos.
13- Não é lícito exigir dos fiadores, obrigados meramente subsidiários o pagamento de uma dívida em condições mais favoráveis (para o credor), do que as exigidas ao devedor principal.
14- Caindo na previsão normativa do Abuso de Direito, nos termos de 334° CC, que torna inoperante o crédito, que por via desta acção a Recorrida pretende exercer.
15- O que se dá à execução são documentos únicos e não conjuntos de documentos, aos quais a Exequente pretende atribuir em conjunto força executiva como se tal conjunto formasse um único título executivo.
16- Por todas estas razões, deverá o Douto Acórdão ora recorrido ser revisto e proferida Decisão que julgue a oposição deduzida procedente.
A exequente contra-alegou sustentando a confirmação do acórdão recorrido.
Cumpre conhecer e decidir.
O objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, salvo as questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 684º, nºs 3 e 685º-A, nº 1, do Código de Processo Civil – por diante CPC.
É apenas uma a questão suscitada que importa apreciar e decidir: saber se os documentos dados à execução pela exequente, ora recorrida, constituem título executivo.
II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

São do seguinte teor os documentos dados à execução:
1 - No contrato de fornecimento junto a fls. 22-24, celebrado entre a exequente (1ª outorgante), a sociedade (11) – Construções e Obras Públicas, SA (2ª outorgante) e os aqui executados (3ºs outorgantes), e por todos assinado, consta, designadamente, que:
a1) Por proposta da 2ª, a 1ª outorgante obriga-se a fornecer-lhe calçada à fiada para a obra de «Requalificação do Largo do Município e Ruas Convergentes em Amares».
a2) A venda é feita por unidade de calçada.
a3) O preço é fixado à razão de 0,08€ (a que acresce IVA) por cada unidade de calçada, incluindo-se nesse preço o transporte e descarga da calçada no local da obra [cfr. nºs 1 a 3 da cláusula 1ª].
b1) A 1ª emitirá uma factura por cada carga de calçada, remetendo-a à 2ª.
b2) Cada factura terá como data do seu vencimento o mesmo dia do 3º mês subsequente ao do fornecimento.
b3) A falta de pagamento de qualquer factura na data do respectivo vencimento implica a automática contagem de juros de mora, (…), contados à taxa ora estipulada de 15% (…), desde a data da mora até efectivo e integral pagamento [cfr. nºs 1 a 3 da cláusula 2ª].
c) Ficam por fiadores e principais pagadores da 2ª outorgante os 3ºs outorgantes (administradores da 2ª), obrigando-se solidariamente com a sua afiançada ao cumprimento das obrigações emergentes do presente contrato por esta assumidas e renunciando expressamente ao benefício de excussão prévia, ou seja, a que se esgote o património da afiançada para que os seus possam ser responsabilizados pelo cumprimento dessas obrigações [cfr. cláusula 4ª].
2 – A certidão judicial constante de fls. 28 a 51, extraída do proc. de insolvência nº 606/08.0TYVNG, instaurado a 30/09/2008, no âmbito do qual foi declarada a insolvência da (11) – Construções e Obras Públicas, SA (cuja sentença transitou em julgado a 13/11/2008), é constituída pelos seguintes documentos:
a) Por requerimento de reclamação de verificação de créditos que a aqui exequente apresentou ao administrador da insolvência no âmbito daquele processo, na qual pediu, designadamente, o reconhecimento do seu crédito sobre aquela sociedade (insolvente) no valor de 38.916,16€, correspondente às facturas indicadas no nº 13 de tal requerimento, referentes a fornecimentos efectuados ao abrigo do contrato referido em 1 deste ponto III, acrescido de 1.045,10€ de juros de mora então vencidos, à taxa convencionada de 15% [fls. 29 a 34].
b) Por uma «declaração de reconhecimento de dívida, com acordo de pagamento», outorgada entre a aqui exequente e a dita sociedade declarada insolvente, relativa a um crédito de 40.845,50€, de que foi paga uma parte (20.000,00€), mas que nada tem a ver com o que está em causa nos presentes autos (corresponde a um outro crédito que aquela reclamou no aludido processo de insolvência sob os nºs 3 a 11 do requerimento mencionado na alínea anterior) [fls. 35-36].
c) Por uma lista de facturas e respectivos montantes, quatro letras de câmbio e duas notas de débito referentes ao «outro» crédito referido na alínea anterior, que nada tem que ver com o destes autos [fls. 37 a 43].
d) Por cópia do contrato de fornecimento indicado em 1 [fls. 44 a 49].
e) Por uma lista que indica os números, os montantes e as datas de emissão e de vencimento de 56 facturas, emitidas entre 15/05/2008 e 07/07/2008, que totalizam o valor global de 38.916,16€ [fls. 50].
f) Por cópia de uma missiva enviada pelo administrador nomeado no referido processo de insolvência à sociedade aqui exequente, informando-a que «o crédito reclamado (…), no montante global de 64.716,39€, (…), foi reconhecido e integra por isso a relação de créditos reconhecidos, que foi objecto de plano de insolvência aprovado em 01/04/2009» (consignando-se que naquele montante está compreendido o crédito de 38.916,16€ e o adicional de juros de mora de 1.045,10€, em causa nos presentes autos) [fls. 51].

DE DIREITO

Os recorrentes pretendem, pois, que se decida se os documentos dados à execução constituem, ou não, título executivo.
Porém, antes de se entrar propriamente na análise dessa questão importa clarificar o âmbito do recurso tal como vem sustentado.
O contido no corpo alegatório recursivo e conclusões evidenciam que os recorrentes suscitam e trazem à colação questões tão diversas como a da precisão e validade da fiança, os efeitos na obrigação afiançada da insolvência da sociedade (11) – Construções e Obras Públicas, SA e da aprovação do respectivo plano, novação objectiva da dívida e, decorrente delas, o abuso de direito (cfr. conclusões n.° 4, 5, 9, 10, 11, 12, 13 e 14).
São, estas, questões que reproduzem alguma da argumentação por eles expendida nos autos de oposição à execução que desencadearam (3)., campo próprio para as partes esgrimirem as suas razões nessa discussão, e onde devem ser dirimidas.
A sua chamada neste momento denota dificuldade dos recorrentes na definição do iter e espaço processuais, bem assim do âmbito do recurso, significativamente denunciada na titulação que se atribuem de “embargantes” e no pedido final de procedência da “oposição deduzida”.
Ora, o objecto do recurso está ainda confinado aos autos executivos principais, procurando definir-se se a exequente se apresentou com título bastante e adequado à instauração e prosseguimento da acção, ou se, ao invés, deve ser liminarmente rejeitada a sua pretensão.
Isto porque, o Tribunal da 1ª instância determinou que o requerimento executivo foi instruído sem título executivo, nos termos do art. 46º, nº 1, al. c) do CPC, e por essa falta o rejeitou liminarmente.
Não foi, todavia, esse o entendimento perfilhado no Acórdão agora em crise. Aceitando não constituírem os documentos dados à execução título executivo suficiente, considerou, contudo, não ser motivo para a rejeitar antes devendo ter sido convidada a exequente a juntar aos autos certidão da sentença em falta de modo a completar o complexo título executivo necessário ao prosseguimento da mesma.
Reduz-se, assim, a questão aqui em causa à apreciação, tão só, de saber se os documentos com que a exequente instruiu o seu requerimento executivo estão, ou não, dotados de força executória, designadamente nos termos da alínea c) do artigo 46° do CPC.

Precisado o âmbito do recurso, que argumentos aduzem os recorrentes em censura e defesa da sua tese?
Em bom rigor deve dizer-se que muito pouco. Na verdade, em nenhum passo aventam motivação desconstrutora de alguma questão concreta abordada no Acórdão da Relação, antes se quedam por nua oposição.
Insistem no estereótipo de que o título executivo é apenas o contrato de fornecimento, de onde não se extrai o reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, e que os demais documentos dados à execução não constituem títulos executivos, por não preencherem qualquer das hipóteses normativas estatuídas no art. 46º, n° l do CPC, pois que são documentos únicos sem força executiva e não um conjunto que forme um único título executivo.
Estamos, então, perante a admissibilidade ou existência jurídica de títulos executivos complexos a par dos títulos simples.
A questão, tal como a recorrida exalta, foi proficientemente tratada no acórdão impugnado.
Pode aí ler-se a dado passo:
Conforme a obrigação exequenda seja simples ou complexa (esta ocorre, em regra, nas relações jurídicas com mais de duas partes, embora também possa ter lugar nas obrigações bilaterais), também o(s) título(s) executivo(s) pode(m) ser simples ou complexo(s). Estaremos perante título(s) executivo(s) simples quando a obrigação esteja incorporada num só documento ou num conjunto de documentos de idêntica natureza, como acontece quando são dadas à execução várias letras de câmbio, livranças ou cheques, em que cada um deles incorpora uma das prestações exequendas e todos eles juntos titulam a globalidade do crédito reclamado pelo exequente. Mas já estaremos perante título(s) executivo(s) complexo(s) quando a obrigação exequenda exija vários documentos para a sua verificação/demonstração, documentos esses que, podendo ser de natureza diversa, se complementam entre si e nos seus conteúdos e levam à demonstração do crédito/obrigação exequendo. Exemplos de títulos executivos complexos dá-nos a apelante nas conclusões 7ª a 10ª das suas alegações, sendo que no segundo caso - execução para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o inquilino, após a cessação do contrato de arrendamento, não cumpre a obrigação de restituir o imóvel - a complexidade do título decorre até da própria lei, mais precisamente do disposto no art. 15º nºs 1 e 2 do NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano) [os Acs. desta Relação de 02/02/2010, supra citado, e da Relação de Lisboa de 06/04/2010, proc. 19815/09.8T2SNT.L1-1, disponível in www.dgsi.pt/jtrl, apreciaram casos de títulos executivos complexos que sustentaram execuções para entrega de coisa imóvel que havia estado arrendada e em que, apesar da cessação do contrato de arrendamento, o locatário não a restituiu no final do contrato].”.
Sufraga-se inteiramente a fundamentação transcrita, que tem perfeito cabimento no caso em apreciação, e, como tal, não pode merecer a nossa censura. Por isso, procurando evitar iterar não discorreremos sobre ela para apenas frisar alguns pontos.
Toda a execução tem por base um título, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objectivos e subjectivos (art. 45º, nº 1 do CPC).
As partes não podem constituir títulos executivos, além dos legalmente previstos. Já é discutível se podem privar de força executiva um documento legalmente qualificado como título executivo, mas ao caso não importa (4).
Determina, por seu turno, o art. 46º quais os títulos executivos que podem servir de base à execução e, entre eles, menciona na sua alínea c) os “assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
Todos estão de acordo que os invocados pela exequente só podem subsumir-se à previsão desta alínea.
Estes títulos executivos negociais particulares têm a sua exequibilidade condicionada à verificação de dois pressupostos, um de natureza formal e outro de natureza substantiva, a saber: estarem assinados pelo devedor e referirem-se a obrigações pecuniárias líquidas ou liquidáveis através de simples cálculo aritmético.
Mas título executivo não se confunde com a causa de pedir na acção executiva, pois esta é um facto e o título executivo é o documento ou a obrigação documentada. Como ensina Antunes Varela “o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista, quer não” (5)
Ou, ainda, no dizer sugestivo do Acórdão deste Supremo de 19/02/2009, Proc. n.º 07B4427, no ITIJ, o título executivo é “o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou o direito que está dentro. Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro mas o que está dentro dele”.
Ora, como é sabido a causa de pedir pode ser simples ou complexa. Conforme a obrigação exequenda seja simples ou complexa, também o título executivo o poderá ser.
Revertendo estas considerações de ordem geral ao caso concreto, constata-se, atenta a espécie de título executivo que a exequente/recorrida deu à execução, e de acordo com o que vem por provado, que ela estruturou a causa de pedir do seguinte modo:
- celebrou com a sociedade “(11) – Construções e Obras Públicas, SA” um contrato de fornecimento (ou de compra e venda) de calçada à fiada (para uma determinada obra), ao preço de 0,08€ por cada unidade de calçada (doc. fls. 22 a 24);
- nesse contrato intervieram como fiadores os aqui executados que se obrigaram solidariamente com a afiançada ao cumprimento das obrigações emergentes daquele e renunciaram ao benefício da excussão prévia (doc. fls. 22 a 24);
- forneceu à referida sociedade calçada à fiada no valor de 38.916,16€, conforme as 56 facturas que lhe enviou, emitidas entre 14/06/2008 e 06/08/2008 (doc. fls. 28 a 52);
- a dita sociedade não lhe pagou a dívida e foi declarada insolvente em processo que indica (doc. fls. 28 a 52);
- o seu crédito foi reconhecido pelo administrador da insolvência e tido em conta no plano de insolvência ali aprovado, tornando-se, assim, certo, líquido e exigível (doc. fls. 28 a 52).
É notório que estes dois documentos juntos de fls. 22 a 24 e 28 a 52, suporte da causa de pedir complexa, se articulam e complementam numa relação lógica. Complementaridade tão flagrante quanto se percebe que cada um deles só por si não tem força executiva e a sua ausência faz indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos aparentam assegurar eficácia a todo complexo documental como título executivo.
E dizemos aparentam porque, conforme bem se entendeu no Acórdão impugnado, a simples declaração do administrador da insolvência, informando que reconheceu o crédito, não integra nenhum dos documentos exigidos pelas diversas alíneas do nº 1 do art. 46º, e nenhuma norma, particularmente do CIRE, lhe confere força executiva.
Diferente seria, como ali se afirma, “se a exequente (…) em vez do documento/declaração constante de fls. 51, tivesse junto aos autos (com os demais que constam de fls. 22 a 34 – os restantes são irrelevantes) a referida sentença de verificação e graduação de créditos. Esta, em conjugação com os demais documentos que juntou, titulariam então aquela obrigação e obedeceriam às exigências formais do art. 46º. “.
Sem dúvida, pois, que todos aqueles documentos integrados com esta sentença corporizam um complexo documental recognitivo de uma obrigação pecuniária, exigível e líquida, preenchendo o título executivo extrajudicial tipificado na alínea c) do art. 46.° do CPC.
É simples concluir que a sentença de graduação de créditos em falta (6) completará o documento do contrato de fornecimento (doc. fls. 22 a 24). À demonstração da constituição das obrigações previstas no título constitutivo do contrato de fornecimento, incluindo a fidejussória, e à exigibilidade do crédito exequendo face à declaração de insolvência da sociedade devedora (art. 91º do CIRE), juntar-se-á a prova de que esse crédito se tornou certo e líquido.
Estão, assim, reunidos os pressupostos de obediência às exigências formais do art. 46º.
O que vem de ser dito é já bastante para se poder concluir pela improcedência do recurso, já que, sendo certo ainda não se ter formado por inteiro o título executivo no qual a exequente, ora recorrida, fez assentar a execução que dirigiu contra os recorrentes, é seguro que o constituirá se juntar o documento em falta e a que será convidada a fazer.
Apenas se acrescentará que esta solução tem paralelo no disposto na al. e), do nº 1, do art. 810º do CPC (7) , em que se aceita que a apresentação do título seja completada através da enunciação sucinta, no próprio texto do requerimento executivo, dos “factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo”, do mesmo modo que aqui acontece com a complementarização a ser feita, não por exposição no requerimento executivo dos elementos relevantes da obrigação subjacente ao título, mas pela adução de um outro documento.

Do mesmo modo, o art. 50º do CPC, quanto à exequibilidade dos documentos exarados ou autenticados por notário, reclama um documento complementar “que rigorosamente completa” (8) a escritura pública para que esta tenha exequibilidade (cfr. Acs do STJ de 15/06/2000, na CJ de 2000, tomo 2, pág. 108, de 16/12/2004, Proc. nº 04B3901, no ITIJ, e de 06/02/2007, desta Secção, relatado pelo ora 2º Adjunto, na CJ de 2007, tomo 1, pág. 69).
Curiosamente, em comentário a este artigo Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto (9) inserem no seu âmbito precisamente os contratos de fornecimento de materiais, normalmente periódico, como exigindo igual prova complementar das efectivas entregas de material.
Ainda o legislador no art.860º, nº 3, do CPC, relativo à penhora de títulos de crédito, impõe como título executivo um título complexo, uma vez que não satisfazendo o terceiro-devedor a prestação na data do vencimento, pode o exequente ou o adquirente compeli-lo a fazê-lo, servindo como título executivo: 1) a declaração de reconhecimento do devedor; 2) a notificação efectuada; 3) a falta da declaração.
Igualmente impressivo o que se verifica com o art. 15º nºs 1 e 2 do NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano), mencionado no acórdão impugnado, em que à excepção da previsão da al. b) do nº 1, o título executivo terá sempre de ser complexo. Quase sempre o contrato de arrendamento (não no caso da al. f)) tem de ser complementado por um outro comprovativo.
E em tantos outros casos hodiernos, se vem dando conta na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores a exigência de títulos executivos complexos, como, por exemplo, nas execuções por dívidas de condomínio (duas actas: uma em que se fixou a quota-parte das contribuições, outra em que se apresentam os valores devidos pelo condómino), nas execuções com origem em incumprimento nos contratos de concessão de crédito associados a contratos de compra e venda de bens de consumo, em expansão e de prática corrente nas grandes superfícies (10) , em que se estabelece uma relação tripartida entre o vendedor, o comprador e a entidade financiadora (11) , nas advenientes de contratos de abertura de crédito previstos no art. 362º do Código Comercial em que o banco exequente terá de provar não só o contrato como a prestação tradutora da disponibilização do crédito, e nas execuções hipotecárias sobre bens de terceiro, como aponta a exequente, nas quais ao credor hipotecário que pretenda accionar a hipoteca não lhe bastará juntar o contrato de constituição da hipoteca, pois terá de juntar também o contrato de mútuo em que o executado, dador da hipoteca, não interveio.
Como se vê, a exigência e a aceitação de títulos executivos complexos é hoje uma realidade inquestionável.
Concluindo, os documentos oferecidos à execução pela exequente constituem título executivo complexo ou composto, e não documentos únicos como advogam os recorrentes em manifesta confusão com a cumulação de execuções (cfr. art. 53º do CPC).
Todavia, pelas razões expressas no Acórdão impugnado acima sufragadas, não constituem título executivo suficiente por se mostrar necessária a junção de certidão da sentença que verificou e graduou o crédito exequendo no processo de insolvência. Tal omissão, porém, não é motivo para rejeitar a execução, antes para convidar a exequente a apresentá-lo de forma a completar o complexo título executivo necessário. Só depois, caso tal convite não seja observado ou o documento não satisfaça a finalidade a que se destinava, caberá ao Tribunal, ainda ao abrigo do art. 820º, rejeitá-la.
Nesta conformidade, não há motivo para alterar o julgado
Resta sumariar em observância do nº 7 do art. 713º do CPC:
I - Da mesma forma que a causa de pedir pode ser simples ou complexa, também o título executivo o poderá ser;
II - O título executivo é complexo quando corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos asseguraram eficácia a todo complexo documental como título executivo;
III – Se um complexo documental particular, de aparente exequibilidade extrínseca e intrínseca, é recognitivo de uma obrigação pecuniária, exigível e líquida, preenche o título executivo extrajudicial tipificado na alínea c) do art. 46.° do CPC.
IV - O disposto nos arts. 15º, nºs 1 e 2, do NRAU, 50º, 810º, nº 1, al. e), e 860º, nº 3, do CPC são bons exemplos, entre outros, da expressa imposição pelo legislador de títulos executivos complexos;
V - Não constituindo os documentos oferecidos pelo exequente com o requerimento executivo título executivo suficiente por se mostrar necessária a junção de um outro em sua necessária complementaridade, tal omissão não é motivo para rejeitar a execução, antes para convidar o exequente a apresentá-lo de forma a completar o complexo título executivo necessário. Só depois, caso tal convite não seja observado ou o documento não satisfaça a finalidade a que se destinava, caberá ao Tribunal, ainda ao abrigo do art. 820º, rejeitá-la.

III-DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas do recurso de revista a cargo dos recorrentes.

Lisboa, 05 de Maio de 2011
Gregório Silva Jesus (Relator)
Martins de Sousa
Sebastião Póvoas

________________
(1) Esta oposição à execução está parada por ter sido proferido despacho, a fls. 77 desses autos, mandando aguardar pelo trânsito em julgado da decisão proferida no processo principal, na mesma data, (a fls. 144) que adiante se mencionará.
(2) Despacho que está na origem da paragem do apenso de oposição.
(3) E se encontram parados aguardando pela resolução deste recurso como no relatório supra demos notícia.
(4) A este propósito vejam-se Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 11ª ed., pág. 28; Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2ª ed., pág. 91; Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, págs. 26 e 67/68; Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, pág 75.
(5) Manual de Processo Civil, 1984, pág 74; ainda na RLJ, ano 121º, págs. 147/148.
(6) Que só por si tem força executiva por integrar a previsão da al. a) do nº 1 do art. 46º.
(7) Sucessora da al. b), do nº 3, do mesmo artigo, anterior à reforma introduzida pelo Dec. Lei nº 226/08 de 20/11.
(8) Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, págs. 80/81.
(9) In ob. cit., pág. 108.
(10) E pelos indicadores económicos com efeitos dramáticos em muitas famílias.
(11)Veja-se Fernando de Gravato Morais, em Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, 2007.