Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3731/21.8T8BRG.G1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
REQUISITOS
DOMICÍLIO PROFISSIONAL
DOMICÍLIO
PRINCÍPIO DA COINCIDÊNCIA
PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITO DE PERSONALIDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
JOGADOR DE FUTEBOL
DIREITO À IMAGEM
DIREITO AO NOME
JOGO
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - O texto da petição inicial, lido no seu sentido literal, indica como facto ilícito imputado à R. a produção dos videojogos nos EUA, seguido da sua divulgação e comercialização mundial, nomeadamente em Portugal, onde o autor reside e exerce a profissão visada nesses videojogos, o que se apresenta como um elo de conexão suficientemente forte entre o objecto da causa e a ordem jurídica portuguesa que justifica a atribuição de competência em razão da nacionalidade aos tribunais nacionais para conhecer do presente litígio nos termos da alínea b) do artigo 62. ° do Código de Processo Civil numa acção de responsabilidade civil extracontratual de violação de direitos de personalidade com dimensão mundial, também verificada em Portugal, pelo uso da internet.

II - Tal interpretação do art.º 62.º do Código de Processo Civil não apresenta qualquer desconformidade com a constituição, ainda que se tenha revelado a preocupação de análise da jurisprudência comunitária em matérias similares de violação dos mesmos direitos de personalidade com recurso à internet.

Decisão Texto Integral:      

I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

Electronic Arts Inc., ré nos autos acima devidamente identificados, tendo sido notificada do acórdão de 13.07.2022 e com ele não se conformando, interpôs recurso de revista, nos termos dos art.º 629.º, n.º 2, alínea a) e 671.º, n.º 3, parte inicial (violação das regras de competência internacional), 631.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, todos do CPC.

Apresentou as seguintes alegações que terminam com as conclusões

a) O presente recurso de revista impugna o acórdão de 13.07.2022 do TRG, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Central Cível ... para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.

b) A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos:

– princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio da coincidência, princípio da causalidade, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes;

- art.º 2.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

– art.º 1.º, 9.º e 351.º do CC;

– art.º 5.º, n.º 1, 62.º, 71.º, n.º 2 e 608.º, n.º 2 do CPC;

– art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ.

c) A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e, entre muitos outros, acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5T8FAR.E1; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7YIPRT.G1.

d) Sucede que o acórdão em crise entendeu recorrer a factos não alegados na petição inicial, assumindo por via de presunção judicial que

(i) o autor reside em Portugal em decorrência da alegação de ter representado clubes portugueses,

(ii) que tem o seu centro de interesses em Portugal e

(iii) que foi no nosso país que sofreu os danos–danos que não estão concretizados na PI.

e) O acórdão revidendo suporta-se, desta forma, na existência não invocada de um centro de interesses do autor em Portugal e em a factos que não se referem à causa de pedir, contrariando frontalmente o regime legal aplicável, fixado no art.º 62.º do CPC.

f) A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, pela aposição não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA, não devendo ser considerados outros factos que não a integrem, como seja o exercício da atividade de futebolista pelo autor a dado momento em Portugal.

g) A decisão do TRG, apesar de reconhecer ser inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, incluindo o seu art.º 7.º, n.º 2, sustenta-se no conceito jurisprudencial de centro de interesses desenvolvido pelo TJUE a propósito dessa norma.

h) A ré tem sede nos EUA e por isso o regulamento n.º 1215/2012 não lhe é aplicável, dado que este só abrange casos em que a entidade demandada tem sede num Estado-Membro.

i)  A jurisprudência do TJUE apenas se debruça, como resulta do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia em interpretar o direito da União, sendo expressamente proibido ao TJUE interpretar direito nacional dos Estados-Membros.

j) Restrição que visa efetivar o princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros e dos seus órgãos jurisdicionais sobre o seu direito nacional, não tendo o TJUE apetência ou conhecimentos para se debruçar sobre o direito interno.

k) Não sendo aplicável o regulamento n.º 1215/2012, não podem valer igualmente os conceitos jurisprudenciais desenvolvidos pelo TJUE à luz desse regulamento, sendo por isso vedado aos tribunais portugueses aplicar o conceito de centro de interesses por tal redundar em aplicação contra legem, designadamente contra o regime legal aplicável e autossuficiente consagrado no art.º 62.º do CPC.

l) Acresce que a própria jurisprudência do TJUE se vem consolidando no sentido de defender que o conceito de “lugar onde ocorreu o dano” deve ser interpretado muito restritamente e dando relevância ao local de produção do dano inicial (parágrafo 21 do acórdão do TJUE de 19.09.1995, Processo n.º C-364/93; parágrafos 19 e 21 do acórdão do TJUE de 10.06.2004, Proc. n.º C-168/02; e parágrafos 34 e 35 do acórdão do TJUE de 16.06.2016, Proc. n.º C-12/15).

m) Em todo o caso, sendo inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, o CPC estabelece no art.º 62.º do CPC o regime interno que define quais os fatores de atribuição da competência internacional.

n) Este regime deve ser interpretado e aplicado de acordo com os critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico.

o) As fontes de direito português são as leis e diplomas equiparados (art.º 1.º do CC), em nada relevando a jurisprudência do TJUE sobre normas que não estão em causa, sob nenhuma forma, nestes autos.

p) A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber:

– alínea a): critério da coincidência;

– alínea b): critério da causalidade; e

– alínea c): critério da necessidade.

q) Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante:

(i) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos     da América;

(ii) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo n.º 1 e 2 da petição inicial) – ou seja, de acordo com a própria alegação do autor, não há qualquer atuação da ré em território nacional;

(iii) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA S... Sarl…” (artigo n.º 2 da petição inicial), o que evidencia que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa;

(iv) O ato ilícito que o autor imputa à ré consiste na utilização da sua imagem que ocorrerá aquando da produção dos jogos objeto dos presentes autos, sendo certo que em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré produz, em Portugal, os jogos FIFA;

(v) De igual modo, o autor não afirma, em momento algum, que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros e que estes assumem total responsabilidade por esses atos (artigos n.º 2 da petição inicial);

(vi) Ainda que assim não fosse – o que não se concede – o ato de venda dos jogos FIFA não é um ato ilícito ou, sequer, um ato gerador de danos para o autor;

(vii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, nem tampouco como ocorrendo em Portugal (tampouco sendo possível identificar o momento temporal da ocorrência dos danos hipoteticamente sofridos pelo autor).

r) Destes factos, verifica-se que:

– nenhum facto territorialmente localizado em Portugal foi alegado pelo autor;

– não se imputa à ré a prática de atos em Portugal;

– não há na petição inicial concretização de danos;

– não há alegação do momento e lugar do sofrimento desses danos;

– não há nenhum facto que preencha os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual;

– não se invoca qualquer dificuldade na demanda da ré no local da sua sede.

s) De acordo com o critério da coincidência, o tribunal português será internacionalmente competente se esta ação pudesse ser proposta no nosso país, segundo as regras de competência territorial do CPC.

t) Valendo, nesta ação de responsabilidade civil extracontratual, a regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu;

u) O autor não imputa qualquer ato praticado pela ré em Portugal e afirma que a ré não tem atividade na Europa. Mais alega que é uma entidade terceira que comercializa e assume a responsabilidade pela venda dos jogos FIFA.

v) A ré não pratica qualquer ato lícito ou ilícito, em Portugal, sendo que os autos imputados pelo autor à ré localizados no estrangeiro, designadamente a produção dos jogos FIFA com a aposição da imagem do autor.

w) O facto ilícito assacado à ré ocorre no estrangeiro, não relevando a difusão desse ato por terceiros – vide, em acórdão relativo à difusão de conteúdo na televisão nacional, o acórdão do TRP de 18.03.1999, Proc. n.º 9831155, no qual o se determinou que o tribunal territorialmente competente era o local do estudo de televisão e não o tribunal do local onde o autor alegou ter sofrido danos, designadamente no seu domicílio.

x) Os tribunais portugueses não são, desta forma, competentes ao abrigo da alínea a) do art.º 62.º.

y) Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) – critério da causalidade –, impunha-se ao autor alegar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.

z) No entanto, nem os factos alegados na petição inicial, nem os documentos juntos são, em tese, aptos a tal.

aa) Não há, em toda a petição inicial, um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal.

bb) Não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional, nem se indicando o momento em que tal se produziu.

cc) Sem a alegação do “quando” e “onde” desse dano, é impossível afirmar que o dano ocorreu em Portugal para efeitos de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, na medida em que, na decisão de competência, o Tribunal se deve ater aos factos alegados pelo autor.

dd) Não alegando o autor onde se encontrava quando sofreu danos, não compete ao Tribunal efetuar qualquer análise jurídica para apurar o local da verificação dos danos.

ee) O autor não alega que o putativo facto ilícito – produção dos jogos – ocorre em Portugal, não invoca qualquer dano que se tenha produzido em Portugal, nem alega nenhuma circunstância integradora dos restantes requisitos da responsabilidade civil localizada em Portugal.

ff) O único facto alegado pelo autor como ocorrendo em Portugal consiste na venda dos jogos em todo o mundo e, bem assim, vendas que atribuiu a entidade terceira que não a ré.

gg) A alegação que os jogos são comercializados em todo o mundo e, por isso, também em Portugal, logo os danos são localizados em Portugal, constitui utilização de presunção vedada nesta fase porque não há qualquer atividade de indagação probatória.

hh) Em caso algum se poderá ignorar, para efeitos da análise da competência, o que o próprio autor afirma na petição inicial sobre ser entidade terceira a responsável pelas vendas na Europa, incluindo por isso Portugal, designadamente a sociedade “…EA S... Sarl, pessoa colectiva registada no Registo de Pessoas Colectivas de ... com o número CH-660-2328005-8 e sede em 8 ..., 1204 ..., ...…” (artigo 2.º da petição inicial).

ii) Os atos de terceiro, relativos à divulgação da utilização não autorizada da imagem (como sejam a venda dos jogos FIFA fora dos territórios dos EUA, Canadá e Japão) integram factos constitutivos do direito que o autor pretende fazer valor contra a ré, quanto a qualquer requisito da responsabilidade civil, incluindo o dano.

jj) As vendas de jogos, em Portugal, por entidades que não a ré, não reúnem conexão relevante ou singular como território nacional, porque isso significaria tornar competente o tribunal de qualquer país do mundo onde os jogos FIFA fossem vendidos.

kk) Os factos determinadores da competência internacional devem assumir conexão relevante com Portugal – acórdão do TRL de 08.10.2020, proc. 3231/19.6T8CSC.L1-2.

ll) Não podem ser os factos que ocorrem em todo o mundo e, por esse motivo, também em Portugal a justificar a avocação de competência.

mm)  A impossibilidade de identificar a localização geográfica e a data dos alegados danos resulta da total ausência de alegação pelo autor sobre o respetivo local e data de materialização, omissão que deve ser decidida em seu desfavor!

nn) Ao tribunal a quibus está vedado lançar mão de presunções judiciais para apreciar a competência, designadamente assumir realidades sucessivas: que o autor tem um centro de interesses em Portugal, que o centro de interesses é o local onde os danos são sofridos e que os danos se materializaram em Portugal.

oo) A este respeito é igualmente proibido, à luz dos critérios de interpretação consagrados no direito português, utilizar conceitos jurisprudenciais do TJUE e sobre normas de regulamentos europeus inaplicáveis, nomeadamente o conceito de centro de interesses.

pp) Sendo a existência ou não dum centro de interesses numa determinada jurisdição uma conclusão jurídica que assenta em determinados factos, na petição inicial não é possível identificar quaisquer factos que permitam suportar a existência de um centro de interesses em território nacional.

qq) O conceito de centro de interesses não é um conceito normativo. Não tem qualquer fonte legal.

rr) O conceito de “centro de interesses” é uma figura trabalhada pela jurisprudência do TJUE e indevidamente aplicada pelo TRG pois não existe qualquer lacuna na lei portuguesa que requeira integração através daquela figura.

ss) Sem a alegação de factos que permitissem concluir que o seu centro de interesses se materializa em Portugal, o acórdão em crise aplica duas presunções de forma sobreposta e sobre a mesma realidade: o autor tem o seu centro de interesses em Portugal (1.º facto não alegado) e foi em Portugal onde sofreu danos (2.º facto não alegado).

tt) Estes pressupostos que determinaram o sentido da decisão do acórdão em crise não estão alicerçados em alegação da petição inicial e existem num plano exclusivamente presuntivo!

uu) É exclusivamente, com base nas presunções judiciais que o tribunal densifica o centro de interesses do autor em Portugal e a localização dos danos, o que é proibido pelo art.º 351.º do CC e pelo facto de não haver lugar a qualquer indagação probatória nesta fase.

vv)  A existência e análise de elementos de conexão para efeitos da apreciação da competência dos tribunais não é aferida por meio de prova testemunhal e muito menos por meio de presunções.

ww) No caso em apreço, não fora a utilização de presunções pelo TRG e os factos alegados na petição inicial não permitiriam concluir pela existência de elementos de conexão com Portugal.

xx)  Acresce que a aquisição dos jogos FIFA em qualquer parte do mundo, comercializados por atos de terceiro, não permite justificar a declaração de competência internacional, desconsiderando cegamente a circunstância de a ré não produzir o jogo neste país e aqui não praticar aqui qualquer ato.

yy)  A ser assim, o tribunal de qualquer local onde os jogos são vendidos seria internacionalmente competente, gerando um evidente conflito positivo de competência internacional, precisamente oque se visa evitar em homenagem ao princípio da soberania dos Estados e à maior eficácia/proximidade da realização de julgamento.

zz) Não é “importável” para a interpretação e aplicação do art.º 62.º, alínea b) do CPC o conceito jurisprudencial de centro de interesses, que não encontra qualquer correspondência na letra ou sentido da lei portuguesa.

aaa) São inaplicáveis quer as normas de direito da UE, quer a jurisprudência do TJUE que apenas interpreta e aplica norma de direito da União e lhe é vedado interpretar normas de direito nacional dos Estados-Membros.

bbb) À luz da lei portuguesa, o domicílio do autor em nada releva para efeitos de aplicação do art.º 62.º do CPC e, sendo assim, muito menos relevará o centro de interesses.

ccc) A utilização do conceito de centro de interesses atenta contra as regras de interpretação

ddd) do art.º 9.º do CC, já que o art.º 62.º estabelece, por si só, regulação suficiente sobre esta matéria, não havendo qualquer lacuna a entregar.

eee) A consideração de um centro de interesses representa, inclusivamente, derrogação do disposto no art.º 62.º, afastando-se o respetivo regime para se solucionar uma ação à luz de norma de direito da UE inaplicável.

fff) Neste âmbito, o legislador não quis consagrar o critério do domicílio ou centro de interesses e o acórdão em crise acaba por atentar contra esta opção do legislador.

ggg) Por fim, importa notar que o exercício da atividade profissional de futebolista, a dado momento em Portugal, não é um facto que integre a causa de pedir, por não respeitar a nenhum dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, designadamente, ao facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.

hhh)  O direito que o autor pretende fazer valer nestes autos não emerge do exercício da sua atividade profissional de futebolista, mas da invocação de violação do seu direito de imagem.

iii)  A causa de pedir, ainda que complexa, apenas compreende os factos aos cinco pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e não a factos que não visem comprovar tais pressupostos.

jjj)  O exercício pelo autor da atividade profissional de futebolista em Portugal, a determinada altura, não é um facto que preencha ou integre os pressupostos da responsabilidade civil da ré, designadamente, ação, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.

kkk) A adotar-se o entendimento do acórdão, qualquer facto em território nacional relativo ao autor equivaleria a facto que integra a causa de pedir, entendimento que obviamente contraria frontalmente o sentido normativo do princípio da causalidade.

lll) No caso concreto, os factos relevantes prendem-se com a inclusão não autorizada da imagem do autor nos jogos FIFA, atuação que, sob nenhum prisma, ocorre em território nacional, como se reconhece nestes autos (autor incluído).

mmm) De igual modo, o exercício da atividade profissional de futebolista em Portugal não equivale à alegação de residência em Portugal ou de quaisquer outros elementos que possam preencher o conceito jurisprudencial europeu de centro de interesses.

nnn) Ao afirmar que o autor tinha residência em Portugal, o Tribunal a quo substituiu-se àquele na alegação de factos.

ooo) Em face da (i) ausência de alegação, na petição inicial, de atos praticados pela ré em território nacional, (ii) inaplicabilidade do centro de interesses e sua irrelevância para aplicação do art.º 62.º do CPC, (iii) não alegação de danos em Portugal e (iv) irrelevância do exercício da atividade de futebolista, a dado momento, em Portugal, inexistem elementos de conexão à luz do princípio da causalidade.

ppp) São inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir (incluindo o local onde o autor terá exercido predominantemente a sua atividade profissional – facto que apenas é alegado em sede de recurso e que não integra a causa de pedir), sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ, por violação nos termos detalhados nas alegações de recurso – aqui dados por reproduzidos e para os quais se remete –, entre outros, dos seguintes princípios:

– princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas);

– princípio do processo equitativo; e

– princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei.

qqq) Esta questão relativa à inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ é suscitada para conhecimento expresso deste Tribunal, nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82.

rrr) Finalmente, os tribunais portugueses são igualmente incompetentes pela aplicação do princípio da necessidade consagrado no art.º 62.º, alínea c) do CPC.

sss) O autor não invocou que o direito que aqui peticiona não pudesse tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

ttt)  Não bastando, seguramente, ao autor ter nacionalidade ou domicílio português, para daí se reconhecer, em todos os seus futuros litígios, competência internacional aos nossos tribunais.

uuu) O direito que o autor pretende fazer valer é amplamente reconhecido pelas várias jurisdições do mundo, sendo que da sua alegação na petição inicial não resulta qualquer concretização acerca do que seja a dificuldade objetiva que possa gerar uma limitação no exercício dos seus direitos.

vvv) O autor chega a alegar factos na petição inicial que comprovam que os direitos que pretende exercer são reconhecidos na jurisdição norte-americana.

www) Daí que não se verifiquem nenhum dos fatores de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC, sendo os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes.

    Nestes termos requer a V. Exas., face a tudo o que foi supra alegado, se dignem conceder provimento ao recurso, revogando a decisão indicada e proferindo acórdão no sentido adrede pugnado.

  O autor apresentou contra-alegações de recurso requer que seja negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida que termina apresentando as seguintes conclusões:

a) Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido nos autos que julgou os Tribunais Portugueses, internacionalmente competentes e, consequência, determinou o prosseguimento dos ulteriores trâmites processuais.

b) Ora, salvo o devido respeito, não tem qualquer fundamento a pretensão da recorrente.

c) Na verdade, não há qualquer ligeireza de raciocínio por parte do Tribunal a quo, nem o Autor, aqui Recorrido, vislumbra qualquer vício na decisão proferida, muito antes pelo contrário.

d) Assim, é evidente que a douta decisão recorrida fez correcta e sapiente aplicação do direito, sem violação de quaisquer normas, designadamente, as constantes dos preceitos e princípios, apontados pela Apelante.

e) A decisão sufragada pelo Tribunal a quo no que respeita à declarada competência internacional dos Tribunais Portugueses não padece de qualquer falta de substrato justificativo – com efeito, a referida decisão invoca factos concretos do caso sub judice, e baseia-se em elementos Jurisprudenciais e Doutrinários inabaláveis.

f) Com efeito, o próprio dano/facto danoso resultante a exploração indevida da imagem do Autor mostra-se, também, consumado em Portugal e é no nosso País que se situa o seu centro de interesses.

g) E tal está, efectivamente, alegado na petição inicial e no articulado de resposta às excepções.

h) Isto porque, no que respeita ao caso concreto e ao uso indevido da imagem do Autor, os jogos da ré, com o conteúdo lesivo, são difundidos por esta, para serem utilizados e guardados em vários instrumentos tecnológicos, de diversas pessoas, a qualquer momento, em qualquer lugar. 

i) É o que sucede, por exemplo, com a colocação dos jogos em linha/ambiente digital, altamente potenciada com a expansão do uso da Internet e da qual a ré beneficia largamente para aumentar a divulgação e exploração comercial dos seus jogos e, bem assim, os avultados lucros daí advenientes.

j) Acresce que, conforme demonstrado nos autos, inclusive, através de diversa documentação junta com a petição inicial, os jogos da ré são comercializados em suporte físico em Portugal, nas mais variadas lojas, como por exemplo, nas lojas da especialidade, nas grandes superfícies, na Worten, na Fnac, na Mediamarket, entre tantas outras.

k) E imagine-se que, alguém escrevia um livro em sua casa denegrindo ou simplesmente fazendo uso não autorizado da imagem da personalidade “A” ou até que esse alguém pintava um quadro com uma imagem menos abonatória dessa mesma personalidade “A”.

l)  Apenas não poderia ser invocado qualquer dano pela personalidade “A” pela utilização ilícita da sua imagem, se tal livro e tal quadro não saíssem nunca da casa do seu autor.

m) O mesmo já não se pode afirmar se tal livro e/ou tal quadro fossem promovidos, divulgados e comercializados por todo o mundo, inclusive, no local de residência daquela personalidade “A”, nomeadamente, em estabelecimentos de toda a espécie.

n) É assim, manifesto que os danos ocorreriam em todos os locais onde essa comercialização e divulgação tivesse lugar.

o) Esta lógica é, pois, plenamente aplicável aos jogos da ré, pelo que estando os jogos disponíveis a nível mundial, o dano não é provocado só nos Estados Unidos.

p) Por isso, a tese sufragada no recurso interposto, apenas faria sentido, se os jogos, com a imagem do Autor, apenas fossem produzidos em solo norte-americano e não transpusessem as suas fronteiras, para ser comercializados pela ré por todo o mundo sob todas as formas disponíveis, ou seja, online e em suporte físico.

q) E, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.

r) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, sendo que a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua divulgação mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.

s) O Julgador não pode deixar de estar atento à evolução tecnológica e à expansão dos fenómenos dela resultantes, de forma a evitar decisões totalmente desfasadas da realidade em que vivemos actualmente.

t) O facto constitutivo essencial desta causa reporta-se à produção e divulgação dos jogos utilizando a imagem e o nome do Autor, sem sua autorização, mas – ao contrário do referido no recurso interposto – a sua divulgação não se localiza, exclusivamente, em solo norte-americano.

u) Conforme demonstrado, essa divulgação ocorre em todo o mundo e, também, em Portugal, pelo que há, obviamente, uma repercussão do facto danoso, também, em todo o território nacional.

v) E, parece-nos, é neste sentido que o Tribunal a quo, refere a propósito, os Acórdãos já proferidos por esse Colendo Supremo Tribunal de Justiça, nos processos Acórdãos do STJ de 24.05.2022 – processo 3853/20.2T8BRG.G1.S1, de 07.06.2022 – proc. 4157/20.6T8STB.E1.S1, de 07.06.2022 – proc. 24974/19.9T8LSB.L1.S1, de 23.06.2022 – proc. 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1.

w) Sendo que, mais recentemente, foram proferidos outros dois Acórdãos, também, por esse Supremo Tribunal de Justiça de 28.09.2022 – proc. 637/20.1T8PRT.P1.S1 e de 29-09-2022 – proc. 2160/20.5T8PNF.P1.S1.

x) Todos os supra mencionados Arestos concluíram, unanimemente, pela competência internacional dos Tribunais Portugueses, para julgar acção em tudo idêntica à presente.

y) Para além disso, a obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem.

z) O centro de interesses do Autor, cidadão português, é, também, em Portugal, pelo que estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.

aa)  E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil e sendo arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.

bb) Mais se diga ainda que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede no caso concreto.

cc)  Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação, pelo menos, do factor de conexão consagrado na alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

dd) Quanto à alegada interpretação inconstitucional das normas indicadas pela ré no seu recurso, a verdade é que a recorrente não suscita verdadeiramente uma questão de inconstitucionalidade, o que contesta é o critério seguido na decisão recorrida aquando da aplicação do direito aos factos provados, a valoração e subsunção jurídica de um certo quadro factual.

ee) É, pois, por demais evidente que as normas legais em causa não foram interpretadas e aplicadas com o sentido referido pela recorrente.

ff) Resultando à saciedade, face a todo o exposto que, andou bem, aliás, refira-se muito bem, a decisão Tribunal a quo!

gg) Todas as arguições de nulidade dos Acórdãos proferidos por esse Supremo Tribunal de Justiça em acções idênticas à presente foram indeferidas e o recurso para o Tribunal Constitucional interposto pela ré e a que esta alude nas alegações de recurso, não foi admitido.

    O autor que se identifica como AA, cidadão português, nascido a .../.../1989, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até 11 de Dezembro de 2030, com o Número de Identificação Fiscal ..., residente na Rua ..., ..., ..., intentou contra a recorrente Electronic Arts Inc., com sede em 209, Redwood Shores Parkway, Redwood City, California, Estados Unidos da América, acção de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a condenação desta a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei e o montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, por uso indevido e abusivo de sua imagem e do seu nome do nome e demais características “pessoalíssimas” do Autor, de forma individualizada, completamente isolada de outros jogadores, sem autorização e sem qualquer contrapartida nos jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT nas edições 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, e FIFA MOBILE, nas edições 2020 e 2021, todos propriedade da Ré, e vendidos em todo o mundo desde 18 de Setembro de 2014 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA 2015) até aos dias de hoje.

  Na contestação a ré deduziu a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para a presente acção por, em seu entender, se não verificar, face à relação material controvertida tal como configurada pelo autor na petição inicial, nenhum dos três factores que a lei elenca para a atribuição da competência internacional:

a) A ação poder ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);

c) O direito invocado não poder tornar-se efetivo, senão por meio de ação proposta em território português ou verificar-se, para o autor, dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).

      Em resposta, o autor pronunciou-se pela improcedência da referida excepção.

      No despacho saneador o Tribunal de 1.ª instância decidiu:

Por todo o exposto, julgo o tribunal internacionalmente incompetente e, consequência, absolvo a ré da instância.”

   Interposto pelo autor recurso de apelação, veio o Tribunal da Relação de Guimarães a julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, julgando improcedente a excepção de incompetência internacional do Juízo Central Cível ..., e determinando o prosseguimento do processo.

I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Nos termos conjugados do disposto nos art.º 629.º, n. º1, 631.º, n. º1, e 671.ºdo Código de Processo Civil o recurso é admissível.


 *

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Competência dos tribunais portugueses, em razão da nacionalidade, para conhecer da presente acção.

2. Interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ

                                                            


*

I.4 - Os factos

Os factos a ter em conta na presente decisão, como amplamente reafirmado quer pelas partes, quer pelas instâncias, reconduzem-se aos contornos da relação material controvertida tal como configurada pelo autor na petição inicial.


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II - Fundamentação

1. Competência internacional dos tribunais portugueses para a presente acção.

O acórdão recorrido no ponto 2.2.1. APLICABILIDADE DOS REGULAMENTOS EUROPEUS da sua fundamentação concluiu pela inaplicabilidade da legislação comunitária ao presente processo que está exclusivamente submetida à disciplina jurídica decorrente do art.º 62.º do Código de Processo Civil. Deste modo, não é útil, ou sequer juridicamente possível analisar as objecções a este propósito efectuadas nas alegações e conclusões de recurso face à convergente posição jurídica a este propósito assumida quer pelo acórdão recorrido, quer pela recorrente.

Na argumentação expendida pelo acórdão recorrido fez um circunstanciado relato da posição assumida pelo Tribunal da 1.ª instância e, suportado na posição diversa que tem vindo a ser adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça em acções em tudo idênticas a esta concluiu que os tribunais portugueses são competentes para conhecerem da presente acção, nos termos do artigo 62º, alínea b), do CPC, ficando prejudicada a apreciação das demais questões.

O Autor com a propositura da presente acção pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização, por violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem. Estamos em sede de responsabilidade civil extracontratual emergente de facto ilícito, a coberto da cláusula geral constante do artigo 483. °, n.° 1, do CC.

Na concretização do que entende ser uma violação ilícita dos seus direitos de personalidade alega o Autor que a Ré, que tem sede no Estado da Califórnia, dos Estados Unidos da América, utiliza, sem a sua autorização, o seu nome e a sua imagem, que inclui as suas características pessoais e profissionais, nos videojogos FIFA 2019 e FIFA MANAGER 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, os quais são produzidos pela Ré nos Estados Unidos e comercializados em todo o mundo pela ré e por empresas “subsidiárias” da Ré (destacando-se na Europa a EZ S... Sarl que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão), resultando dessa actuação a ofensa do direito ao nome e à imagem do Autor, em todo o mundo, incluindo em Portugal.

Os danos invocados pelo Autor são a exposição do seu nome e da sua imagem sem o recebimento de qualquer contrapartida, a influência negativa que a invenção de atributos físicos e técnicos daquele, nos referidos videojogos, poderá ter na sua vida profissional e pessoal, e os estados psicológicos de perturbação, desgosto, tristeza e revolta que o Autor sentiu ao constatar a utilização não consentida do seu nome e da sua imagem.

    Ao longo do corrente ano de 2022 foram proferidos sucessivos acórdãos pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre litígios, instaurados por diversos jogadores de futebol profissionais contra a aqui recorrida, com causas de pedir e pedidos muito próximos dos constantes destes autos de 24/05/2022, proferido no processo n.º 3853/20.2T8BRG.G1, de 07/06/2022, proferido no processo n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1; de 07/06/2022, proferido no processo n.º 4157/20.6T8STB.E1.S1; de 23/06/2022, proferido no processo n.º 3239/20. 9T8CBR-A.C1.S12; de 27/09/2022, proferido no processo n.º 637/20.1T8PRT.P1.S1; de 13/10/2022, proferido no processo n.º 1014/20.0T8PVZ.P1.S1; de 10/11/2022, proferido no processo n.º 1579/20.6T8PVZ.P1.S1 e no processo 17046/20.5T8LSB.L1.S1, todos eles se pronunciando pela competência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem das respectivas acções, considerando verificado o factor atributivo dessa competência segundo o critério da causalidade estabelecido na alínea b) do artigo 62.° do Código de Processo Civil. Nesses acórdãos foi referida a jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em matéria de competência internacional relativa à responsabilidade civil extracontratual por violação dos direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, no âmbito das normas comunitárias.

    Esta posição da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no tratamento destas situações, com ausência de posição discordante, não pode, nos termos do disposto no art.º 8.º, n.º 3 do código civil, deixar de ser tido em conta para garantir uma interpretação e aplicação uniformes do direito a pessoas que, nas mesmas circunstâncias, com a mesma nacionalidade, residência e profissão se arrogam atingidas nos seus direitos de personalidade pela mesma ré, com o mesmo modo de actuação.

A causa de pedir invocada pelo Autor é plurilocalizada, uma vez que tem contactos com diferentes ordenamentos jurídicos.

Analisando o texto da petição inicial verifica-se que, entre outras, ela contém as seguintes referências à violação pela ré dos seus direitos em Portugal, sendo certo que Portugal faz parte do mundo pelo que terá de se considerar incluído nas expressões “a nível global”, “em todo o mundo”, “público em geral”, e, similares.

O Autor é um jogador de futebol de nacionalidade portuguesa e reside em Portugal - como resulta da sua identificação e art.º 3.º da petição inicial.  Esteve ao serviço de clubes de futebol portugueses de 2013 a 2021, com excepção da época futebolística de 2015/2016, numa carreira de que dá nota desde 2010.

O autor alegou:

O Autor tem uma longa carreira como jogador de futebol profissional, sobejamente conhecido no meio do futebol, tendo exercido a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses, dedicando-se inteiramente à prática desportiva do futebol, com a qual sempre se sustentou a si e à sua família – art.º 4.º, 6.º, 7.º e 8.º da petição inicial.

(…) o Autor actuou em centenas de partidas oficiais como profissional e sempre se destacou na posição de ..., como é conhecido internacionalmente art.º 6.º da petição inicial.

O Autor tem uma extensa carreira de jogador, que dura até à actualidade, e os títulos obtidos nas equipas que representou em Portugal permitiram-lhe alcançar grande notoriedade e sólida reputação - art.º 9.º da petição inicial.

O Autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT nas edições 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, e FIFA MOBILE, nas edições 2020 e 2021, todos propriedade da Ré -- art.º 10.º da petição inicial.

O Autor nunca autorizou essa utilização - art.º 11.º da petição inicial.

(…) através dos jogos de vídeo identificados nesta petição e que se tornaram mundialmente conhecidos, de modo que a repercussão da imagem do Autor não se insere apenas ao âmbito nacional, mas é utilizada pela Ré a nível global. ” - art.º 15.º da petição inicial.

O Autor viu a sua imagem ser retratada e o seu nome divulgado, sem o seu consentimento, em milhões de jogos de vídeo (por exemplo o jogo FIFA 12 vendeu 5 milhões de unidades em apenas 30 dias por todo o mundo,”- art.º 19.º da petição inicial.

(…) a exploração indevida da imagem e do nome do jogador Autor é renovada a todos os anos por via do lançamento de novas versões dos jogos - art.º 23.º da petição inicial.

(…) Tais jogos, mesmo de anos anteriores, continuam a ser difundidos e vendidos, em Portugal e em todo o mundo, - art.º 25.º da petição inicial.

(…) os jogos da Ré são ainda recorrentemente utilizados para a realização de torneios a nível nacional e internacional, organizados pelas mais diversas entidades- art.º 28.º da petição inicial.

(…) Isso sucedeu em Portugal, por exemplo, em que a própria Liga Profissional de Futebol promoveu um torneio denominado “FIFA 20”, em que cada clube participante foi representado por um dos seus jogadores - art.º 29.º da petição inicial.

A Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia) – como resulta da sua identificação –. A produção dos jogos é efectuada nos Estados Unidos, e a ré quer que se faça uma análise redutora do acto ilícito que lhe é imputado circunscrevendo-o exclusivamente à produção dos jogos.

Todavia, do ponto de vista da petição inicial a produção dos identificados videojogos é não o acto ilícito, mas apenas uma parte dele, pois a divulgação não autorizada pelo autor dos jogos produzidos pela ré, em Portugal, em todo o mundo e usando a internet, a televisão e outros meios de comunicação social é igualmente ilícita e alarga a extensão dos alegados danos. O acto ilícito configurado na petição inicial é a produção daqueles materiais lúdicos com vista à divulgação, que concretizou, e, continua a concretizar, como alegado.

Assim é a petição inicial que nos indica que:

A ré é a segunda maior produtora e desenvolvedora de jogos para computadores, vídeo games (Wii, Xbox 360 e PS3), dispositivos móveis (iPhone, iPad e celulares) e Internet, têm seus produtos distribuídos em mais de 100 países ao redor do mundo. O EA ORIGIN, serviço de distribuição online de jogos da empresa, já conta com mais de 13 milhões de usuários registados. Em 2011, a empresa teve 27 jogos que venderam mais de um milhão de cópias, entre os quais The Sims™, Madden NFL, FIFASoccer, Need for Speed™, Battlefield™, Star Wars™: The Old Republic™ e Mass Effect” - art.º 13.º da petição inicial.

(…) Ré, realiza e patrocina diversos torneios organizados por canais de televisão e outros meios de comunicação social, que implicam a exposição da imagem do Autor ao público em geral- art.º 30.º e 31.º da petição inicial.

(…) Tirando partido do maior distanciamento social imposto, com a consequente limitação ao espectáculo desportivo real, encontrou a Ré, outras formas de chegar à generalidade do público- art.º 31º da petição inicial.

É através de iniciativas que visam substituir o espectáculo real por um “espectáculo virtual” de enorme exposição mediática, com intervenção de jogadores reais, que pretendem publicitar o seu produto, mas sempre alicerçado na exposição abusiva porque não autorizada da imagem do Autor e outros - art.º 33º da petição inicial.

            Alega ainda o autor, no que ao seu direito à imagem respeita, que:

O direito à imagem protege a representação física da pessoa, não apenas o semblante do indivíduo, mas partes distintas do seu corpo, a sua própria voz, características, enfim quaisquer sinais pessoais de natureza física pelos quais ela possa ser reconhecida, bem como a figura pública do indivíduo (os seus traços de personalidade e comportamento), perante os demais membros da comunidade- art.º 52º da petição inicial.

(…) a imagem do jogador de futebol, actualmente, é manifestamente um produto, do qual se valem tais profissionais para associarem as suas imagens a outros produtos, daí o imenso interesse na exploração de tais “bens imateriais” pertencentes ao património individual de cada atleta- art.º 55º da petição inicial.

(…) no caso de um jogador que integra um determinado clube, é ao clube que passam, em geral, a pertencer os direitos de imagem desse jogador, mas apenas os direitos de imagem colectiva e não da sua imagem individual- art.º 68º da petição inicial.

(…) Relativamente à imagem individual, esta permanece na esfera jurídica do praticante desportivo- art.º 69º da petição inicial.

Contrariamente ao entendido pela recorrente, o acórdão recorrido, não fez aplicação de qualquer norma de direito comunitário ao presente processo. Como vimos, expressamente recusou essa aplicação. Mas também não procedeu a ela indirectamente ao simplesmente importar, sem grande fundamentação a posição que estava a ser delineada pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre casos idênticos.

Como detalhadamente se analisou já no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido na revista n.º 2160/20.5TBPNF.P LS1, relatado pelo Sr. Conselheiro Tomé Gomes, sobre o invocado erro de interpretação e aplicação ao caso dos autos dos critérios de atribuição da competência internacional constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62.° e ainda com referência ao art.° 71.°, n.º 2, no tocante à indicada alínea a), do mesmo diploma, face a alegações idênticas às deste processo e apresentadas pela ali e aqui ré, com que inteiramente concordamos e dificilmente conseguiríamos tornar mais claro, que passamos a transcrever, sublinhando algumas passagens mais significativas:

(…) E em todos esses arestos do STJ foi trazida à colação a jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em matéria de competência internacional relativa à responsabilidade civil extracontratual por violação dos direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, no  âmbito das normas congéneres constantes das convenções e regulamentos europeus respeitantes à competência judiciária em matéria cível e comercial, mais precisamente: a Convenção de Bruxelas de 27/09/1968, o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, e o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2012, sucedâneos daquela.

A convocação dessa legislação europeia não visou a sua aplicação aos casos ajuizados nos referidos arestos, posto que estes não são por ela alcançados, mas simplesmente para servir de quadro de referência no sentido de proporcionar uma interpretação e aplicação do direito interno de forma sistemicamente coerente, evitando que as mesmas normas nacionais sejam entendidas de modo diverso consoante sejam aplicadas no âmbito do Direito da União Europeia ou fora dele, como se encontra bem explicitado no acórdão do STJ de 24/05/2022, proferido no processo n.º 3853/20.2T8BRG.G1, na seguinte passagem:

«Não só o conteúdo das normas internas sobre competência internacional não deve conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu.» (…) Quanto ao critério da coincidência, como já se deixou dito, estamos no âmbito de uma ação que tem por fim a efetivação da responsabilidade civil extracontratual emergente da alegada violação do direito de personalidade do A., nas vertentes do direito à sua imagem e nome, violação essa consubstanciada na imputação à R., sediada no Estado da Califórnia, nos EUA, da utilização dessa imagem e nome, sem consentimento nem autorização do A., mediante o desenvolvimento e fornecimento de videojogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, destinados a ser divulgados e comercializações em todo o mundo, incluindo Portugal, por empresas subsidiárias daquela R..

Neste quadro, a regra de competência territorial aplicável é a constante do n.° 2 do artigo 71. ° do CPC, segundo o qual: se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.

Segundo o ensinamento de ALBERTO DOS REIS, dado ainda no âmbito do Código de Processo Civil de 1939, a eleição deste critério justifica-se por ser no lugar onde o facto foi praticado que devem encontrar-se as melhores provas da ocorrência e dos danos por ele produzidos. Ou seja, a razão dessa escolha legislativa radica na proximidade do tribunal com o local onde deve ser produzida a prova dos factos integradores da causa de pedir de uma ação fundada em responsabilidade civil extracontratual.

Problemático será saber qual o alcance a dar ao facto ilícito em ordem a determinar a localização da sua ocorrência, em particular quando esta seja plurilocalizada. Daqui se adivinham as dificuldades, quer nos casos em que o facto ilícito se disperse ou distenda por diversos locais, quer quando o facto lesivo ocorra em local distanciado do local onde o dano acabou por se materializar.

Se não existem grandes dúvidas de que, nos casos de ocorrência plurilocalizada do facto lesivo, relevará, em princípio, qualquer dos locais em que ele ocorreu parcelarmente, já, quanto aos casos em que haja dissociação entre o lugar do facto causal e o lugar onde o dano foi produzido, as opiniões divergem. Nestes casos, há quem sustente que o lesado pode propor a ação respetiva em qualquer desses locais, à semelhança do que se permite quando a ação lesiva se disperse por vários sítios. Outros defendem que releva apenas o local onde ocorreu o comportamento do agente violador de direitos do lesado.

Mesmo nesta linha de orientação mais restritiva, poderá colocar-se a questão da amplitude a dar ao comportamento ilícito, enquanto facto danoso, como, por exemplo, saber se esse comportamento inclui o domínio do agente sobre o processo causal, mais precisamente sobre os meios através dele utilizados para a consecução do resultado danoso, domínio esse que até bem pode ser mais expressivo em sede de ilicitude. Tal problema assume especial relevo nos casos, como o presente, fundados em pretensa violação dos direitos de personalidade através de meios   audiovisuais com alcance superlativo, nomeadamente por via da Internet.

No respeitante ao critério da causalidade, a atribuição da competência internacional por via da alínea b) do art.° 62. ° do CPC com referência ao território nacional em que tiver ocorrido algum dos factos que integram a causa de pedir parece menos problemática, embora também neste domínio possam surgir algumas situações duvidosas. São, por exemplo, as situações que implicam a determinação do local da ocorrência do dano, como facto constitutivo da causa de pedir complexa em que se funda a responsabilidade extracontratual, também aqui com destaque para os casos, como o presente, de danos resultantes da violação dos direitos de personalidade através de meios audiovisuais de amplo alcance.

É neste espectro problemático que se mostra assaz pertinente a ponderação feita no acórdão do STJ de 24/05/2022, proferido no processo n.° 3853/20.2T8BRG.G1 e seguida nos outros recentes arestos deste mesmo Tribunal, à luz da evolução da jurisprudência do TJUE em matéria de competência internacional relativa à responsabilidade civil extracontratual por violação dos direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, no âmbito das normas congéneres constantes das convenções e regulamentos europeus respeitantes à competência judiciária em matéria cível e comercial, mais precisamente: a Convenção de Bruxelas de 27/09/1968 (art.º 5.°, n.° 3), do Regulamento (CE) n.° 44/2001, do Conselho, de 22/12/2000 (art.° 5.°, n.° 3) e do Regulamento (EU) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2012 (art.° 7.°, n.° 2).

Não é que esta legislação e correlativa jurisprudência europeia tenham aplicação ao caso dos autos, mas são aqui pertinentes pela sua influência na interpretação e aplicação coerente das normas do direito interno, conforme o já acima salientado, e ademais pelo cunho inovatório com que têm contribuído para o tratamento judicial de uma realidade emergente e renovada como é a violação dos direitos de personalidade através das plataformas audiovisuais.

(…)Deste modo, as questões inerentes à especificidade do evento danoso resultante da violação dos direitos de personalidade através de meios de divulgação global têm encontrado resposta normativa no sentido de uma configuração desse tipo de dano e da determinação da sua localização ajustadas aos novos meios tecnológicos através dos quais se propagam os efeitos lesivos potenciados pelos comportamentos ilícitos e veiculados em dimensões virtuais até se materializarem onde podem ser concretamente verificados e mais facilmente provados.

Assim, a opção preferencial pelo centro de interesses do lesado como local da materialização do dano resultante da violação dos direitos de personalidade através de meios de divulgação global, nomeadamente por meios audiovisuais, é a que se afigura mais consentânea com a viabilidade prática da prova desse dano, por parte do lesado, posto que é aí que este, em regra, disporá dos meios de prova tendentes a demonstrar os efeitos danosos na sua personalidade e para a sua condição de vida.

Daí decorre uma relevante conexão entre o centro de interesses do lesado e o órgão jurisdicional mais vocacionado para dirimir o litígio, como fator de atribuição de competência internacional, seja manifestamente em sede do critério da causalidade constante da alínea b) do artigo 62. ° do CPC, seja ainda, de certo modo, em sede do critério da coincidência estabelecido na alínea a) daquele artigo com referência ao n.° 2 do artigo 71.° do mesmo diploma. Uma tal conexão não ficará desmerecida pela eventual competência concorrente de jurisdições estrangeiras situadas em territórios por onde o facto ilícito se tenha dispersado ou distendido.

A este propósito, a dado passo do citado acórdão do STJ de 24/05/2022, com apoio na aludida jurisprudência do TJUE, foi observado o seguinte

«(...) Sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir' .

No entanto, nestas situações, deve exigir-se, de modo a evitar que a competência determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo das provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal, numa aplicação da teoria do fórum non conveniem ''.»

E ainda:

«(...) a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a maioria dos danos alegados não ocorreram nesse local, não sendo aí que se encontram as provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização.» São estes os parâmetros com que se irá proceder agora à aplicação ao caso dos autos dos critérios da coincidência e da causalidade acima enunciados.

(…)Porém, o Recorrente sustenta que o facto constitutivo essencial se reporta à produção e divulgação dos jogos, utilizando a imagem e nome do A. sem sua autorização e que tal divulgação e exploração comercial não se localizam, exclusivamente, em solo norte-americano, mas ocorrem em todo o mundo, incluindo Portugal, havendo assim uma repercussão do facto danoso em todo o território nacional, centro de interesses do A., pelo que estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da ação.

Por sua vez, a Recorrida contrapõe que o facto ilícito imputado à R., na petição inicial, não consiste na venda de jogos em Portugal, mas sim na produção dos mesmos com ocorrência, reconhecidamente, no estrangeiro, e, quanto à comercialização dos jogos, que a R. apenas se dedica aos mercados dos EUA, Canadá e Japão. Daí conclui que a R. não praticou qualquer ato lícito ou ilícito em Portugal.

Embora se afigure que a imputação feita pelo A. à R. na esfera estrita do facto ilícito, tendo-o como ocorrido, pelo menos em parte, em território português, possa ser equacionada em sede do fator da coincidência estabelecido na alínea a) do artigo 62.° com referência ao art.° 71.°, n.° 2, do CPC, a relevância autónoma deste fator acaba aqui por ser suplantada ou absorvida pelo fator da causalidade previsto na alínea b) daquele primeiro normativo, porquanto tal facto ilícito consubstancia um dos factos constitutivos integradores da causa de pedir complexa em que se funda a pretensão deduzida no quadro da responsabilidade civil extracontratual, estando, nessa medida, contemplada naquele fator de causalidade nos termos que a seguir serão apreciados.

Quanto ao critério da causalidade

(…) Do teor da petição inicial colhe-se que o A. imputa à R. a violação dos seus direitos de personalidade, nas vertentes do seu nome e imagem como jogador de futebol profissional. E que consubstancia essa violação no facto de a R., com sede no Estado da Califórnia, nos EUA, utilizar, sem o seu consentimento, essa imagem e nome, bem como as suas características pessoais e profissionais, de forma individualizada, na produção de videojogos denominados FIFA, (…) todos propriedade daquela R..

Alega também que a R., sendo empresa líder global em entretenimento digital interativo, assim procede, utilizando a imagem e o nome do A. no desenvolvimento e fornecimento desses jogos, conteúdos e serviços online (…). E que tais jogos são comercializados, em todo o mundo, incluindo em Portugal, por várias empresas subsidiárias da mesma R., com destaque, na Europa, para a EA S..., com sede na ..., que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.

Alega ainda o A. que dessa utilização resulta o dano que lhe é provocado pela exposição da sua imagem e nome e invenção de atributos físicos e técnicos em cada um dos jogos com influência na sua carreira profissional e na sua vida, bem como desgosto, perturbação e revolta, ao ver essa imagem e nome utilizados de forma ilícita e abusiva pela R..

Nesta base factual, o A. considera a R. responsável pela utilização, não consentida nem autorizada, do seu nome e imagem tanto na produção dos videojogos como pela subsequente divulgação e comercialização dos mesmos através das empresas suas subsidiárias, incluindo em Portugal.

Coloca-se assim o A. na perspetiva de que a violação dos direitos de personalidade através dos meios de alcance global, como é a Internet, não se circunscreve à mera produção dos suportes físicos ou digitais dos videojogos, mas completa-se com a exposição pública desses suportes através da respetiva divulgação e comercialização à escala mundial - no que aqui releva, no espaço português -, a que a própria R. teria dado azo ao proporcionar, com fins lucrativos, a sua circulação no mercado mundial.

Como já foi dito, em sede de aferição do pressuposto da competência, não cabe fazer qualquer apreciação sobre o mérito da causa nem tão pouco sobre a suficiência/ insuficiência do alegado. Apenas cabe atentar nos contornos factuais e jurídicos da pretensão deduzida na estrita medida do necessário para aferir o pressuposto da competência em causa.

Nessa conformidade, o factualismo retratado na petição inicial, sem envolvência de qualquer ilação presuntiva, e a perspetiva jurídica sobre aquele delineada pelo A., em vista do efeito-prático jurídico pretendido, configuram um facto ilícito de violação dos seus direitos de personalidade, nas vertentes dos direitos à sua imagem e nome, pretensamente ocorrido em Portugal, pelo menos na parte imputada à R., no sentido de que, por via dos comportamentos descritos, deu causa, ab initio, à subsequente divulgação e comercialização dos videojogos em Portugal.

Assim, a versão do A., no que nos é dado interpretá-la, é de que o facto ilícito em causa imputado à R. se iniciou com a produção dos videojogos nos EUA, mas só se completou com a sua divulgação e comercialização, nomeadamente em Portugal, considerando a mesma R. responsável por estas ao introduzir esses suportes digitais no mercado mundial.

É isto quanto basta para estarmos perante a alegação de um facto ilícito complexo suscetível de relevar juridicamente na parte tida como ocorrida em Portugal - a divulgação e comercialização dos videojogos - imputada à R., a título de "ilicitude causal", o que, em tal medida, se traduz num facto essencial integrador da causa de pedir que serve de base à pretensão deduzida, assim contemplado para efeitos de determinação da competência internacional do tribunal da causa ao abrigo da alínea b) do artigo 62.° do CPC.

Desconsiderar essa perspetiva de imputação do A., tendo a R. por juridicamente alheia à referida divulgação e comercialização, ou ajuizar sobre a insuficiência do alegado em abono de tal imputação, como sustenta a Recorrida, representaria uma intromissão inoportuna e indevida no mérito da causa.

No que se refere agora aos danos invocados, o A. reporta-os à alegada repercussão/prejuízo que as sobreditas divulgação e comercialização dos videojogos em Portugal tiveram tanto na sua carreira de jogador de futebol profissional como na sua pessoa.

Como já acima ficou dito, a especificidade do dano resultante da violação dos direitos de personalidade através de meios de divulgação global tem levado a uma configuração desse tipo de dano e determinação da sua localização ajustadas aos novos meios tecnológicos através dos quais se propagam os efeitos lesivos potenciados pelos comportamentos ilícitos e veiculados em dimensões virtuais até se materializarem onde podem ser concretamente verificados e mais facilmente provados.

Dado que tais efeitos danosos assim veiculados se difundem e dispersam pelo ciberespaço planetário, tendendo para a ubiquidade, sem uma projeçao circunscrita a determinado território, tem-se considerado como relevante atentar no centro de interesses do lesado como local da sua materialização, onde ele, em regra, disporá dos meios de prova destinados demonstrar o impacto desses efeitos danosos na sua personalidade e para a sua condição de vida.

(…) Daqui resulta, segundo o alegado, que o A., durante o referido período de divulgação e comercialização dos videojogos, exerceu a sua atividade de jogador de futebol profissional, continuamente, em Portugal (…), o que se traduz em ter o seu centro de interesses, de forma largamente predominante, no território nacional.

Assim sendo, a repercussão/prejuízo resultante da alegada violação dos direitos de personalidade do A., imputada à R., na carreira profissional daquele e na sua vida pessoal, terá ocorrido, segundo o alegado, fundamentalmente em Portugal, sendo a jurisdição portuguesa a melhor posicionada para a produção das provas quer sobre a divulgação e comercialização dos videojogos quer sobre os danos pretensamente daí decorrentes.

Também aqui, pelas razões acima expostas, não cabe ajuizar sobre a suficiente concretização do dano invocado nem sobre o seu mérito, bastando atentar no perfil com que vem traçado pelo A. e que denota os parâmetros de inteligibilidade mínimos para efeitos de aferição do pressuposto da competência internacional em apreço.

Nestas circunstâncias, verifica-se um elo de conexão suficientemente forte entre o objeto da causa e a ordem jurídica portuguesa que justifica a atribuição de competência em razão da nacionalidade aos tribunais nacionais para conhecer do presente litígio nos termos da alínea b) do artigo 62. ° do CPC e que não se afigura afetar os interesses legítimos da R. se for demandada em litígios similares perante jurisdições estrangeiras.

Termos em que se conclui pelo provimento da revista.

Perante esta solução, ao abrigo do artigo 608. °, n.º 2, aplicável ex vi dos artigos 663.°, n.º 2, e 679.° do CPC, tem-se por prejudicado o conhecimento da questão suscitada sobre a aplicação do critério da necessidade estabelecido na alínea c) do artigo 62.° do mesmo Código.

Pelas razões acabadas de expor por transcrição de acórdão cuja fundamentação e solução jurídica é completamente transponível para os presentes autos, atribui-se a competência em razão da nacionalidade aos tribunais nacionais para conhecer do presente litígio nos termos da alínea b) do artigo 62. ° do Código de Processo Civil, como havia decidido o acórdão recorrido.

2. Interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ

A recorrente considera que a manutenção da decisão recorrida importará interpretação e aplicação (manifestamente) inconstitucional das normas contidas nos art.º 62.º, alínea b) do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ, no sentido de permitir o recurso a presunções judiciais e critério do centro de interesses, para decidir sobre a competência internacional dos tribunais portugueses por manifesta violação de:

(i) princípio do estado de direito (e seus subprincípios da legalidade, da protecção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas),

(ii) princípio do processo equitativo

(iii) princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei.

 Como indicamos no ponto 1, até com transcrição dos artigos da petição inicial, a decisão sobre a competência dos tribunais portugueses em razão da nacionalidade para conhecerem da presente acção não se suporta em presunções judiciais, mas no texto da petição inicial, lido no seu sentido literal que a recorrente recusa fazer.

Está demonstrado um elo de conexão suficientemente forte entre o objecto da causa e a ordem jurídica portuguesa que justifica a atribuição de competência em razão da nacionalidade aos tribunais nacionais para conhecer do presente litígio nos termos da alínea b) do artigo 62. ° do Código de Processo Civil numa acção de responsabilidade civil extracontratual de violação de direitos de personalidade com dimensão mundial, também verificada em Portugal, pelo uso da internet.

Sendo certo que o sistema jurídico português apenas conhece como fonte de direito a lei, art.º 1.º do código civil, nem a jurisprudência, nem a doutrina ascendem àquele patamar, sendo naturalmente ponderáveis os seus contributos para a interpretação e aplicação da lei.

Não se vislumbra qualquer violação dos princípios constitucionais do estado de direito, do processo equitativo, da separação de poderes ou do dever de obediência à lei, da protecção da confiança dos cidadãos, da certeza e da segurança jurídicas.

A recorrente dispôs de três instâncias para discutir as suas pretensões, o processo seguiu os trâmites processuais previstos na lei assegurando a igualdade de armas a ambas as partes, o princípio da legalidade, do contraditório, não se verifica qualquer usurpação por parte do poder judicial das competências de qualquer um dos outros dois poderes de estado, a decisão mostra-se fundamentada com obediência à lei, embora em sentido diverso do pretendido pela recorrente.

Improcede, pois o alegado vício de interpretação da lei aplicada na solução do litígio em sentido desconforme com a constituição.

 Mas isso não significa qualquer juízo sobre o mérito da acção, impossível de avançar apenas face aos articulados e sem que as partes tenham tido oportunidade de provar os factos alegados.


  * * * *

III – Deliberação

Pelo exposto, nega-se a revista, e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


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Lisboa, 15 de Dezembro de 2022

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria Graça Trigo