Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P355
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRAFICANTE-CONSUMIDOR
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
FINS DAS PENAS
PENA
Nº do Documento: SJ200203070003555
Data do Acordão: 03/07/2002
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

- O «retalho» de meio grama diário de «heroína» (cujo «princípio activo»/«diacetilmorfina », no pressuposto - generoso - de um grau de pureza de 20%, não ultrapassaria 0,1g., quantidade que corresponde, segundo a Portaria n.º 94/96, de 26-03, a, tão só, uma dose média individual diária), durante pouco mais de dois meses, não reclama a (gravosa) penalidade abstractamente prevista pelo art. 21.º do DL 15/93.
II - Em tais circunstâncias, a ilicitude do facto, porque consideravelmente diminuída (tendo em conta - para além das pequenas quantidades envolvidas e da qualidade da droga implicada, que, de «heroína»/«princípio activo», após os «cortes» operados em cada passo do seu atribulado percurso, já teria, ao chegar ao consumidor, muito pouco - a singeleza dos meios utilizados no retalho de rua em geral) bastar-se-á com a penalidade (privilegiada) do art. 25.º, prevista para os casos, «porventura de gravidade ainda significativa», em que «a medida
justa da punição não tem resposta adequada dentro da moldura penal geral».
III - Aliás, o art. 25.º do DL 15/93 constitui «uma regra especial de medida judicial da pena, que envolve tão só a modificação do tipo em sede de pena, ou simplesmente uma regra de aplicação de pena».
IV - «Se a questão do limite ou da moldura da culpa está plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o estará a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo em todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, Direito Penal II, p.197).
Decisão Texto Integral:

Recurso 355/02
Comum colectivo 1/01.1 GB STB da Vara Mista de Setúbal
Recorrente: MP
Recorridos: B, A, C, D, G, E e F


OS FACTOS («Não se provou que, salvo A e B, os arguidos actuassem de forma concertada, antes de Dezembro de 2000, que alienassem mais do que as quantidades referidas, que se deslocassem ao Casal Ventoso mais vezes que as referidas acima, que C, A e B actuassem os três em conjunto e comprassem droga em sociedade, que vivessem na mesma casa, tivessem outros objectos apreendidos além dos descritos, que E, D, F e G tenham transportado os outros três mais vezes do que as referidas, que soubessem que eles iam buscar droga para alienar a terceiros, que fossem estes quatro a transportar a droga»)

Entre Dez00 e 14Fev01 (data em que foram detidos), os arguidos A, B e C dedicaram-se à aquisição de heroína em sacos, à sua divisão em doses individuais, vulgarmente conhecidas por "palhinhas", e posterior venda a quem para esse efeito os procurasse e pagasse o respectivo preço. Durante esse período, C e B consumiram heroína com dinheiro que obtiveram na dita actividade da sua venda, e A fê-lo ao menos em parte, não tendo nenhum deles exercido qualquer ocupação profissional e deslocaram-se pelo menos cinco vezes por semana, uma ou duas vezes por dia, ao Casal Ventoso, em Lisboa, onde adquiriram a heroína, trazendo-a de volta ao Pinhal Novo, onde, nas casas onde moravam, a dividiram em palhinhas, que, depois, venderam na Rua D. João de Castro, na mesma localidade, a quem os procurava para o efeito. C comprava 3 ou 4 quartas de cada vez e com cada quarta fazia cinco palhas. Vendia metade do que adquiria. A e B compravam quantidade não inferior à que C adquiria, e vendiam não menos do que vendia C, nos seguintes termos: a venda material era quase sempre efectuada por B, enquanto A ficava em regra próximo dela e, de comum acordo, vigiava quem se aproximava. Na concretização dessa actividade, os arguidos A, B (vendendo estupefaciente adquirido ora por C, ora por A e por ela própria) e C (vendendo estupefaciente por ele próprio adquirido) entregaram "palhinhas", contendo heroína, recebendo 1000 escudos por cada uma:

VendedorDia e horaComprador(es)
B 08.12.00, 16:40J, L, "M" e N
B 08.12.00, 17:10 O, c/ ...-...-BR;
B 08.12.00, 17:25 Desconhecido c/ velomotor;
B 12.12.00, 16:40Arguido G, c/ ...-...-IB
C01.02.01, 11:40Desconhecido
C01.02.01, 11:45Arguido G
C01.02.01, 13:20 Desconhecidos, c/ EJ-...-...
A e B01.02.01, 14:15 Desconhecido
C01.02.01, 14:18 Desconhecidos
C05.02.01, 10:50 Desconhecido
C05.02.01, 11:35 Desconhecidos, c/ EJ-...-...
C05.02.01, 11:40 Desconhecido
C05.02.01, 14:35 Desconhecidos
B05.02.01, 15:00Desconhecido, c/ velomotor
C05.02.01, 15:20P, c/ XJ-...-...
C05.02.01, 16:05Q, c/ ...-...-EL
C06.02.01, 10:48Arguido F, c/ ...-...-NS
B06.02.01, 12:21Desconhecido
B e A06.02.01, 12:24 R, «...»
B06.02.01, 12:31 Desconhecidos, c/ XM-...-...
B06.02.01, 12:34 Desconhecido, c/ velomotor
B06.02.01, 12:39S, c/ CT-...-...
B06.02.01, 12:45Desconhecido
C07.02.01, 12:44Arguido D, c/ QE-...-...
C07.02.01, 12:48Desconhecido
C07.02.01, 12:50T, c/ ...-...-EJ
B e A07.02.01, 13:15Arguido G, c/ o seu ...-...-IB
B e A07.02.01, 13:30U, conhecido pela alcunha de ...
B e A07.02.01, 13:33S c/ CT-...-...
C07.02.01, 13:40indivíduo de identidade não apurada c/ velocípede
C07.02.01, 13:45«V»
B e A07.02.01, 15:54Desconhecido
B e A07.02.01, 15:56R, «...»
B07.02.01, 16:00Desconhecido c/ ...-...-FT
B07.02.01, 16:45X
B07.02.01, 17:05Desconhecido
A12.02.01, 13:00Desconhecido c/ velomotor
C14.02.01, 10:38Arguido D, c/ QE-...-...;
C14.02.01, 10:41X

No mesmo dia 14, pelas 11:22, e como faziam ao menos cinco vezes por semana, os mesmos três arguidos deslocaram-se, no automóvel QE-...-..., conduzido pelo arguido D, desde a Rua D. João de Castro até ao Casal Ventoso, em Lisboa. Aí, os três primeiros arguidos adquiriram 5 pequenos sacos (dos quais C comprou 3 e A/B 2), contendo heroína em pó, vulgarmente designados por "quartas", com o peso liquido de, respectivamente, 0,275, 0,346, 0,301, 0,265 e 0,071 gramas, tendo o peso liquido total de 1,258 g (exame de fls. 288). O arguido D transportou os três primeiros arguidos no seu veículo, os quais traziam a heroína que tinham comprado, tendo recebido deles uma porção da heroína adquirida. Pelas 14:00, quando os quatro regressaram, no mesmo veículo à rua D. João de Castro, em Pinhal Novo, o arguido A tinha em seu poder duas das «quartas» e o arguido C três. Os três primeiros arguidos haviam-nas adquirido para em parte procederem à sua divisão em doses individuais e revendê-las a quem os procurasse para o efeito e lhes pagasse o respectivo preço. O arguido C tinha ainda em seu poder a quantia de 1260 escudos em dinheiro, proveniente da actividade de compra e venda de heroína. Na mesma ocasião, na casa onde C vivia, no Pinhal Novo, tinha ele 18 pequenos sacos de plástico que haviam contido heroína em pó que havia comprado e vendido, um canivete e um livro em cima do qual havia feito a divisão em doses individuais de heroína em pó e de cocaína que havia adquirido. A tinha consigo 3 saquinhos pequenos que haviam contido estupefaciente, 4 palhinhas e 1 canivete com resíduos. Durante o período em que os três primeiros arguidos se dedicaram à descrita actividade, o arguido E transportou-os uma vez no seu veículo automóvel, por si conduzido, ao Casal Ventoso em Lisboa. Aí, os três primeiros arguidos adquiriram heroína, após o que regressaram os quatro, transportando-os o E de volta ao Pinhal Novo, e trazendo aqueles o estupefaciente. Os três primeiros arguidos cederam depois a E uma porção da heroína adquirida. Dividiram os quatro entre si os custos da viagem (valor do combustível gasto). O mesmo aconteceu com o arguido D, que, dia 14 de Fevereiro os transportou no seu veículo automóvel de matrícula QE-...-... ao Casal Ventoso, em Lisboa, onde aqueles adquiriram heroína em pó. Depois, o mesmo arguido transportou os mesmos três primeiros arguidos de volta ao Pinhal Novo. Deram-lhe uma porção de heroína para seu consumo e dividiram os custos da viagem pelos quatro. Também o arguido F levou por duas vezes no seu veículo automóvel de matrícula ...-...-NS, por si conduzido, ao Casal Ventoso, em Lisboa, aqueles três primeiros, que adquiriram heroína em pó. F transportou-os de volta ao Pinhal Novo. Aqueles três trouxeram consigo a heroína e cederam uma porção de heroína em pó para consumo deste. O mesmo se passou, finalmente, com G, que, nos mesmos termos, lhes deu boleia no seu veículo, a Lisboa e regresso, duas vezes. Bem sabiam os arguidos C, B e A que não podiam ceder, transportar ou por qualquer forma ter consigo os referidos produtos estupefacientes. Actuaram livre, voluntária e conscientemente, apesar de saberem ser proibido o seu comportamento. Os arguidos eram todos consumidores de estupefacientes. C confessou os factos, mostra-se arrependido e com vontade de se recuperar e reinserir socialmente, efectuando os tratamentos de desintoxicação necessários e procurando trabalho. É barman, mas estava desempregado e vivia sozinho. Tem o 2.º ciclo. A efectuou no estabelecimento prisional o tratamento protocolar aludido a fls. 616. É reformado da GNR, entidade que lhe paga uma pensão, sobre a qual são logo efectuados descontos de montante e finalidade não apurados. Tem a 4.ª classe. B é vendedora ambulante, actividade que, todavia, não exerceu durante o período referido. Tem a 3ª classe. Vivia com A. Os dois e C trabalharam sazonal e esporadicamente (durante não mais de três semanas e antes dos factos) na vindima, para H e para I, auferindo 5.500$/dia. Nada consta do CRC da arguida (fls. 252). A já foi condenado, por falsificação de documentos, em prisão suspensa (fls. 271 e ss.). C foi condenado, por receptação, em multa (fls. 286).


2. a condenação

Com base nestes factos, a Vara Mista de Setúbal (Juízes ..., ... e ...), em 20Nov01, absolveu D (17ago74), G (1mar79), E (9jul76) e F (24mai72) e condenou, por tráfico menor, A (18jul58), na pena de dois anos e seis meses de prisão, B (30set66), na pena de dois anos e seis meses de prisão, e C (12.6.59), na pena de dois anos de prisão suspensa por cinco anos (mas sujeita, durante os três primeiros, a regime de prova):

Da parte dos quatro primeiros arguidos (D, G, E e F) os factos apurados não constituem qualquer crime. Com efeito, não se apurou qualquer co-autoria ou cumplicidade no tráfico imputado aos demais, sendo manifesto que os transportaram esporadicamente, havendo divisão dos custos da viagem, e oferecendo-lhes os outros produto para consumirem, em quantidade não apurada mas que não se antevê significativa; aliás, os três primeiros iam ao Casal Ventoso quase diariamente, sinal de que não adquiriam de cada vez quantidades apreciáveis. Tal conduta só poderia ser subsumida a um crime de consumo de estupefacientes (art. 40), ilícito esse recentemente despenalizado. Quanto aos demais arguidos (A, B e C) estes factos constituem um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. no art. 25/a do DL 15/93 de 22Jan com referência à tabela I-A e I-B anexa. Com efeito, estes arguidos negociaram - sobretudo venderam, em especial (A e B) através de B, mas sem prejuízo da sua actuação conjunta (aliás, viviam em união de facto) durante um pequeno período (pouco mais de dois meses), eram eles próprios consumidores, não auferiram daí proveitos que lhes acudissem a mais que ao seu consumo e manutenção (no caso de A, parcial). Foram apanhados com quantidades relativamente pequenas. As circunstâncias em que agiram diminuem, pois, consideravelmente a ilicitude do facto. Ponderar-se-á o grau de ilicitude do facto (não despiciendo), a gravidade das suas consequências (reveste gravidade o transporte e venda de estupefaciente para vender a terceiros, sabidos os efeitos funestos destas substâncias, que amiúde causam danos irreversíveis, quando não destruem literalmente a vida dos consumidores, além de provocarem, indirectamente, danos sociais consideráveis, nomeadamente através do acréscimo significativo dos crimes contra o património), o modo de execução (A e B actuavam conjuntamente, sendo esta em regra quem fazia as vendas), a intensidade do dolo (com o tipo directo), os fins do crime (obtinham produto para o seu consumo dessa forma; C e B nem tinham outros rendimentos em regra, não podendo contar-se como tal a actividade esporádica da vindima), o grau de violação dos deveres dos agentes (importante no caso de A, que é agente da GNR reformado) as condições pessoais dos arguidos e as suas situações económicas (descritas acima), a conduta anterior e posterior ao facto (nada consta do CRC de B; os outros têm antecedentes; só C confessou os factos descritos, contribuindo para a descoberta da verdade e mostrou arrependimento) e demais circunstâncias (são toxicodependentes, pretendem recuperar-se), enfim, as exigências de prevenção geral e especial (que têm algum relevo concreto). No caso de C, porém, dada a sua personalidade, condições de vida, conduta anterior e posterior (confessou e mostrou-se arrependido, além de pretender recuperar-se), o tribunal entende que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e suspende a sua execução por cinco anos, sujeito a regime de prova nos primeiros três anos (art.s 50/1 e 53 do CP).


3. O RECURSO

3.1. Inconformado, o MP ( Proc. ...) recorreu em 4Dez01 ao Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a condenação dos arguidos A, B e C, por tráfico comum de estupefacientes, nas penas, respectivamente, de 5,5 anos de prisão, 5,5 anos de prisão e 4,5 anos de prisão e os arguidos D, G, E e F, por tráfico menor, em 1,5 anos de prisão suspensa por dois anos:

Tendo ficado provado que os arguidos D, G, E e F transportaram os outros três arguidos nos seus automóveis até ao Casal Ventoso para que estes últimos aí adquirissem heroína, recebendo em troca dinheiro para parte das despesas e uma pequena dose de heroína, tais factos provados integram a prática pelos arguidos de um crime de tráfico de menor gravidade do art. 25°, al. a), do DL n° 15/93. Para a verificação deste crime não se exige que se provasse que os quatro aludidos arguidos soubessem que a droga adquirida pelos outros três se destinasse a ser vendida. O crime em causa é um crime de perigo abstracto que se consuma com a criação de perigo de dano para o bem jurídico protegido (a saúde pública), o que ocorreu no caso dos autos. Com efeito, com o descrito comportamento, os aludidos arguidos proporcionaram aos outros o acesso à droga, facto que sabiam ilícito, sendo certo que os primeiros pensavam que o produto adquirido era para consumo daqueles que adquiriam a droga. Face aos factos provados, os arguidos D, G, E e F cometeram o crime de tráfico de menor gravidade referido, considerando o circunstancialismo da acção e o número de vezes que se deslocaram com os outros para estes adquirirem droga. Mas mesmo que, por mera hipótese, não se considerasse que a conduta de tais arguidos integrava a prática do crime de trafico de menor gravidade, sempre a mesma teria de ser subsumida ao crime do art. 29.1 do DL 15/93, visto terem facilitado o uso ilícito de droga aos outros arguidos.
No que respeita aos arguidos A, B e C, ficou provado que estes, durante cerca de dois meses, venderam diariamente heroína a mais de 10 consumidores, deslocando-se 5 vezes por semana (1 ou 2 vezes por dia) ao Casal Ventoso para adquirirem a droga, adquirindo de cada vez 3/4 quartas daquele produto. Cometeram, por isso, um crime de tráfico do art. 21.1 do DL n° 15/93. Com efeito, entende-se que a ilicitude dos factos não se mostra consideravelmente diminuída, atento o lapso de tempo em que os arguidos se dedicaram exclusivamente a essa actividade e face ao tipo de droga comercializada diariamente (heroína). Não afastam a existência do crime de tráfico o facto de se ter provado que os arguidos não retiraram elevados proventos da actividade praticada e o de pretenderem fazer face ao seu consumo de droga. Na apreciação do contexto global em que os factos foram praticados, as circunstâncias referidas não permitem diminuir consideravelmente a ilicitude, atento o tipo de droga comercializada, sua disseminação por inúmeros consumidores e tempo durante o qual se prolongou o tráfico que não pode ser considerado como um pequeno tráfico. No caso dos arguidos A, B e C serem condenados pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes do art.. 21.1, face às circunstâncias em que os factos ocorreram e o facto do arguido C ter confessado os factos e demonstrado arrependimento, o que não sucedeu com os outros dois, entendem-se como adequadas a aplicação das seguintes penas: 5 anos e 6 meses de prisão para os arguidos A e B e 4 anos e 6 meses de prisão para o arguido C. No caso dos arguidos D, G, E e F serem condenados pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, face ao circunstancialismo em que a sua acção foi praticada (transporte dos outros arguidos para droga) e tendo presente o seu bom comportamento anterior, entende-se adequada a pena de prisão de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa pelo período de 2 anos. Caso se entenda terem os arguidos D, G, E e F praticado apenas um crime do art. 29°, entende-se como adequada a aplicação de pena de multa, atendendo aos mesmos factos e critérios para escolha da pena. Para a eventualidade de se considerar que os arguidos A, B e C apenas praticaram um crime de tráfico de menor gravidade, entende-se como adequada a aplicação da pena de 3 anos e 6 meses (aos dois primeiros) e de 3 anos (ao arguido C, face ao tipo de droga em causa, número de vendas efectuadas e lapso de tempo que desenvolveram o tráfico.

3.2. Na sua resposta de 21Dez01, o arguido G (Adv. ..., defensor oficioso.) pugnou pela manutenção do acórdão que o absolvera, pois que «não ficou provado que G soubesse que os três primeiros arguidos iam buscar droga para alienar a terceiros; que fosse G a transportar a droga, mas sim que cada arguido transportava a sua droga, sendo que produto transportado por G se destinava ao seu consumo; que, relativamente a G, este tivesse transportado os três primeiros arguidos, mas sim que lhes deu boleia».

3.3. Por seu turno, os arguidos B e C (Adv. ..., defensora oficiosa.), na sua resposta de 28Dez01, também se pronunciaram pelo improvimento do recurso «quanto à qualificação jurídica dos factos, a interpretação e aplicação das normas e a medida da pena»:

Os arguidos B e C foram condenados pela prática de um crime de menor gravidade, nas penas, respectivamente, de 2 anos e 6 meses de prisão e 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, com sujeição durante os primeiros 3 anos a regime de prova. O MP, por entender que a ilicitude não se encontra consideravelmente diminuída, o lapso de tempo em que os arguidos se dedicaram à actividade de tráfico e o tipo de droga comercializada, considerou deverem os arguidos condenados na prática de um crime de tráfico de estupefacientes, nas penas de 5 anos e 6 meses de prisão e de 4 anos e 6 meses, respectivamente, ou, caso se entenda que estes praticaram um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, as penas de 3 anos e 6 meses de prisão e de 3 anos de prisão, atendendo ao tipo de droga em causa, o número de vendas efectuadas, o lapso de tempo desenvolvido no tráfico. A tese assumida pelo Ministério Público claramente desvaloriza o modo e circunstâncias da acção, o tempo, a situação pessoal dos arguidos e suas situações económicas, a conduta anterior e posterior à prática dos factos, os fins da actividade criminosa, os fins de prevenção geral e especial. Quer B quer C vendiam heroína com a única finalidade de tão-só obter dinheiro que permitisse a manutenção do seu consumo, sendo traficadas pequenas quantidades (apenas as suficientes para sustentar os seus vícios), respeitando o tráfico a um curto período de tempo (cerca de dois meses), pretendendo recuperar-se. A B não foi apreendida qualquer quantidade de droga. É primária. A C foi apreendida uma pequena quantidade de dinheiro e droga. Confessou e mostrou arrependimento. Ora, e conforme decidido no acórdão recorrido, a ilicitude encontra-se consideravelmente diminuída porquanto os arguidos negociaram - sobretudo venderam - durante um pequeno período de tempo, eram eles próprios consumidores, não auferiam proveitos que acudissem a mais do que ao seu consumo e manutenção, foi o arguido C apanhado com uma quantidade relativamente pequena.


4. TRÁFICO COMUM OU TRÁFICO MENOR?

4.1. O MP recorrente impetra a qualificação (como «tráfico comum») do «tráfico de rua» em cujo «flagrante» os arguidos B, A e C foram surpreendidos entre 8Dez00 e 14Fev01. Pois que essa «actividade» se protraiu por mais de dois meses e implicou a aquisição, o consumo e a revenda de cerca de 1 g/dia de «heroína» por parte do arguido C e de outro tanto por parte do «casal» B/A.

4.2. Com efeito, se «cinco vezes por semana, uma ou duas vezes por dia», corresponde a 7,5 vezes por semana e se, de cada vez, este arguido, por um lado, e aqueles, por outro, adquiriam «3 ou 4 quartas», isso quer dizer que, por semana, cada «grupo» manipulava cerca de 26 quartas, ou seja, à volta de 6,5 gramas de «heroína» (menos de 1 g, pois, por dia). E, se metade se destinava a auto-consumo, o produto revendido - na rua - em doses individuais de 1.000$ representava, tão só, 10 palhinhas diárias de cerca de 0,05 g cada.

4.3. Será, porém, que o «retalho» de meio grama diário de «heroína» (cujo «princípio activo»/«diacetilmorfina», no pressuposto - generoso - de um grau de pureza de 20%, não ultrapassaria 0,1 g, quantidade que corresponde, segundo a Portaria 94/96 de 26Mar, a, tão só, uma dose média individual diária) reclama a (gravosa) penalidade abstractamente prevista pelo art. 21.º do dec. lei 15/93 (4 a 12 anos de prisão!)? Ou será que, pelo contrário, a ilicitude do facto («O crime de tráfico de menor gravidade fundamenta-se na diminuição considerável da ilicitude do facto revelada pela valoração em conjunto de diversos factores, alguns deles exemplificativamente indicados na norma: meios utilizados, modalidade e circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações» (STJ 24Nov99, recurso 937/99-3, Conselheiros Martins Ramires, Lourenço Martins, Leonardo Dias e Armando Leandro). ), porque consideravelmente diminuída (tendo em conta - para além das pequenas quantidades envolvidas e da qualidade da droga implicada, que, de «heroína»/«princípio activo», após os «cortes» operados em cada passo do seu atribulado percurso, já teria, ao chegar ao consumidor, muito pouco - a singeleza dos meios utilizados no retalho de rua em geral e neste em particular), se bastará - como entendeu o tribunal recorrido - com a penalidade (privilegiada) do art. 25.º, prevista para os casos, «porventura de gravidade ainda significativa» ( «O art. 25.º do DL 15/93 tem na sua base o reconhecimento de que a intensidade das circunstâncias pertinentes à ilicitude do facto não encontra na moldura penal normal (do art. 21.1), pela sua gravidade diminuta, acolhimento justo, equitativo, proporcional» (STJ 12Jul00, recurso 266/00-3, Conselheiros Virgílio Oliveira, Flores Ribeiro, Mariano Pereira e Brito Câmara)), em que «a medida justa da punição não tem resposta adequada dentro da moldura penal geral» (STJ 15-12-1999, recurso 912/99-3)?

4.4. A resposta do STJ, tendo em conta a sua jurisprudência mais recente, terá de ser negativa:

Embora a heroína seja a mais perniciosa das chamadas drogas clássicas, a detenção de 1,46 g dessa substância por um arguido que actuava sozinho, por sua conta e risco, comprando pequenas doses, de que consumia metade e vendia a restante, a outros toxico-dependentes, de tal sorte que, em 5 meses, vendeu cerca de 17,3 gramas do referido produto (tanto quanto consumiu, no mesmo período), e a quem, também, só foram encontradas uma tesoura, uma navalha e vários plásticos - que usava para dividir e embalar a droga em doses individuais -, não pode deixar de se qualificar como crime de tráfico de menor gravidade.
20-10-1999, Proc. n.º 918/99 - 3.ª Secção
Leonardo Dias, Virgílio Oliveira, Mariano Pereira, Armando Leandro

Tendo-se apenas provado que o arguido detinha 0,61 g de heroína, a ele pertencentes, o crime pelo mesmo cometido é tão só o previsto pelo art. 25.º do DL 15/93 de 22-01.
17-11-1999 Proc. n.º 1007/99 - 3.ª Secção
Brito Câmara, Martins Ramires, Armando Leandro, Leonardo Dias

Estando provado que a actividade do arguido, embora tenha perdurado durante cerca de seis meses e com certa habitualidade, diz respeito a quantidades muito diminutas, já que ele adquiria duas ou três "quartas" de heroína e cocaína duas a três vezes por semana - que correspondem a uma média semanal de 1,5 g das referidas substâncias -, das quais consumia parte, cerca de um terço, e vendia a terceiros a restante, tais factos permitem que funcione o regime privilegiado do art. 25.º, al. a), do DL 15/93.
24-11-1999 Proc. n.º 1029/99 - 3.ª Secção
Martins Ramires, Armando Leandro, Virgílio Oliveira, Mariano Pereira

Para se aquilatar do preenchimento do tipo legal do art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, haverá de se proceder a uma "valorização global do facto", não devendo o intérprete deixar de sopesar todas e cada uma das circunstâncias a que alude aquele artigo, podendo juntar-lhe outras.
07-12-1999 Proc. n.º 1005/99 - 3.ª Secção
Lourenço Martins, Virgílio Oliveira, Leonardo Dias Armando Leandro

Perante a moldura penal abstracta imposta pelo art. 25.º do DL 15/93, não deve entender-se o "tráfico de menor gravidade" como tráfico de gravidade necessariamente diminuta. IV - A tipificação do art. 25.º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar. A significação dos factos provados - o arguido detinha dezanove embalagens de heroína com o peso (líquido) global de 0,607 g, que destinava à venda a terceiros, com fins lucrativos; vendeu substâncias estupefacientes a consumidores de determinada cidade onde era conhecido por aqueles como vendedor de tais produtos; era consumidor de heroína e encontrava-se em tratamento num CAT; vivia sozinho numa casa sem quaisquer condições de higiene - considerados na sua globalidade complexiva, interpretados à luz do espírito do sistema legal, que o princípio da proporcionalidade inspira, permite concluir que estamos perante uma actividade de pequeno tráfico, de ilicitude consideravelmente menos grave do que aquela que é pressuposto do tipo do art. 21.º do DL 15/93 e, deste modo, o crime praticado é o do art. 25.º daquele diploma.
15-12-1999 Proc. n.º 912/99 - 3.ª Secção
Armando Leandro, Leonardo Dias, Virgílio Oliveira, Mariano Pereira

Resultando dos autos que a arguida, condenada em autoria singular, detinha heroína para venda no dia 18-02-1998, que a quantidade de heroína detida pela arguida e destinada à venda foi de 0,620 g e que, para além do referido, não foi apreendido à arguida qualquer outro produto estupefaciente, nem qualquer bem ou artigo habitualmente relacionado com a actividade própria dos traficantes de droga; tudo aponta para que essa conduta integre um crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25 do DL 15/93 de 22-01.
09-12-1999 Proc. n.º 939/99 - 5.ª Secção
Guimarães Dias, Oliveira Guimarães, Dinis Alves, Costa Pereira

Nada no preceituado no art. 25, do DL n.º 15/93, de 22/01, inculca que o factor "quantidade", referido como exemplo padrão na consideração da sensível diminuição da ilicitude susceptível de privilegiar o crime de tráfico, se revista de valor decisivo e preponderante, ou por si só determinante, para a formulação de tal juízo. Por outras palavras, todos os sobreditos elementos padrão têm de ser articulados entre si e ponderados numa visão global, informada e preenchida pelos meios utilizados e pelas modalidades ou circunstâncias da acção.
23-03-2000 Proc. n.º 54/2000 - 5.ª Secção
Oliveira Guimarães, Costa Pereira, Abranches Martins

Integra a prática de um crime p. e p. no art. 25.º do DL n.º 15/93, de 22/01, a conduta de quem, a troco de heroína e de cocaína, de que era consumidor, sendo conhecedor das características e propriedades de tais produtos e da proibição legal da sua conduta, desde o início de 1996 e até Novembro do mesmo ano, permite aos seus co-arguidos guardar produto estupefaciente num seu estabelecimento comercial, para posterior venda por aqueles.
30-03-2000 Proc. n.º 1175/99 - 5.ª Secção
Guimarães Dias, Oliveira Guimarães, Dinis Alves, Costa Pereira

Preenche-se este tipo legal quando a organização e a logística do arguido é apenas a adequada à subsistência das suas doses de consumo e da namorada, a perigosidade em termos de dispersão das substâncias nem sequer abrangem a identificação de outros consumidores que ele abastece, embora a qualidade da droga - heroína - seja a mais negativa. Todas estas situações se enquadram num ponto intermédio entre tráfico e tráfico/consumo, concebido para alargar a paleta das hipóteses colocadas à disposição do julgador para vivências plurifacetadas.
10-05-2000, Proc. N.º 50/00-3.ª Secção
BMJ 497-144
Lourenço Martins, Leal-Henriques, Pires Salpico (vencido)

Perante a quantidade diminuta da heroína detida (0,34 g), sendo reduzidos ao mínimo os meios utilizados e destinando-se as verbas obtidas aos fins atrás referidos, a ilicitude do facto surge consideravelmente diminuída, integrando-se a respectiva conduta na previsão do art. 25.º do DL 15/93, de 22-01.
17-05-2000 Proc. n.º 260/2000 - 3.ª Secção
Flores Ribeiro, Brito Câmara, Lourenço Martins, Pires Salpico

Tem sido entendido pelo STJ que, no domínio do tráfico de menor gravidade, não releva apenas, e nem sequer preponderantemente, a quantidade de droga transaccionada, tudo dependendo da apreciação e consideração conjunta das circunstâncias, factores e parâmetros mencionados no art. 25.º do dec. lei 15/93. Para efeitos de se determinar se o tráfico é apenas de menor gravidade, tem interesse, designadamente, o período de tempo da actividade, o número de pessoas adquirentes da droga, a repetição de vendas ou cedências, os montantes envolvidos no negócio do tráfico e a natureza dos produtos. No conceito diferencial entre os art.s 25.º e 21.º do dec. lei 15/93, relevarão particularmente os conceitos padrão do art. 25.º, os meios utilizados, uma incipiente organização de tráfico, uma perigosidade medianamente significativa em termos de difusão das substâncias, posto que a qualidade da droga seja das mais perigosas do mercado. Está incurso na previsão do art. 25.º do dec. lei 15/93, o «traficante» de pequeno porte, que lida com certo á vontade com a venda de uma das drogas mais perigosas, heroína, assegurando o ele final da cadeia de tráfico.
31-05-2000, Proc. 186/2000 - 3.ª Secção
BMJ 497-167
Lourenço Martins, Leal-Henriques, Pires Salpico (vencido)

A quantidade de 0,078 g de heroína é diminuta. A sua detenção pelo arguido, apresentando-se tal actuação, face aos factos provados, como isolada, integra a prática do crime do art. 25.º, al. a), do DL 15/93.
28-06-2000 Proc. n.º 113/2000 - 3.ª Secção
Pires Salpico, Leal-Henriques, Armando Leandro, Virgílio Oliveira

É de subsumir na previsão do crime de tráfico de menor gravidade a conduta em que se prove que os meios utilizados são os habituais nestas situações (uma deslocação ao Casal Ventoso), em que as drogas adquiridas (cocaína e heroína) são de quantidades pouco relevantes e destinadas a serem repartidas por duas pessoas, e em que a actuação dos arguidos se confina a uma parceria ocasional e rudimentar.
15-06-2000 Proc. n.º 172/2000 - 5.ª Secção
Dinis Alves, Abranches Martins, Hugo Lopes, Costa Pereira

Já não há lugar para se erigir como factor decisivo de qualificação (ao contrário do que acontecia na vigência do DL 430/83, de 13-12, cujo art. 24.º precisamente se epigrafava de "tráfico de quantidades diminutas") o da maior ou menor quantidade de droga: este factor será um entre os mais a considerar. O que importa, isso sim, é apurar, na falada análise, se de todo o conjunto da actividade do arguido emergem itens inculcadores de reiteração, habitualidade, intensidade, disseminação alargada ou sintomaticamente expressiva, ligações mais ou menos marcadas ao mundo dos estupefacientes ou ao seu mercado, carácter dos actos praticados e sua dimensão. Só deste apuramento pode partir-se para, com razoável segurança, se extremarem, entre si, o grande tráfico, o médio tráfico e o pequeno tráfico e, através dessa diferenciação, alcançar-se suporte para se afirmar se se trata ou não de um caso de ilicitude consideravelmente diminuída.
12-10-2000, Proc. n.º 170/2000 - 5.ª Secção
Oliveira Guimarães, Dinis Alves, Guimarães Dias, Costa Pereira

A quantidade e a qualidade da droga, continuando a ser factores importantes, não assumem actualmente, por si sós, o papel único e absoluto de ditarem a qualificação (ao contrário do que acontecia na vigência do art. 24.º do DL 430/83, de 13-12): aquela impõe a visão global das acções, só desta podendo dimanar a conclusão de que o tráfico de que se trate merece e justifica ser apodado como de menor gravidade. E também não é legítimo secundarizar considerações de justiça relativa nessa operação de qualificação, pois que, sem elas, não se torna possível e muito menos será seguro extremar, entre si, as situações de grande tráfico, de médio tráfico, de pequeno tráfico ou de tráfico ocasional ou acidental, em sede de, ajustadamente, se compatibilizarem a extensão e os efeitos das condutas com a medida das sanções que devam aplicar-se-lhes e com a dimensão da culpa dos respectivos agentes. Se a acção do arguido se desenvolveu por um período de tempo reduzido, não foi apoiada por grandes meios; se radicou visivelmente (ainda que não exclusivamente) em necessidades de consumo, se originou por modo patente na degradação do seu percurso de vida (de que lhe não cabe inteira responsabilidade), não mostra ligação a grandes ou a significativos circuitos ou meandros de tráfico, não revela ligações profundas com aquele meio e se apresenta-se artesanal nos moldes e pouco expressivo nas consequências, há que concluir que a mesma tem acolhimento na previsão do art. 25.º do DL 15/93.
19-10-2000, Proc. n.º 2803/2000 - 5.ª Secção
Oliveira Guimarães, Dinis Alves, Guimarães Dias, Carmona da Mota

No regime emergente do DL n.° 430/83 de 13 de Dezembro e no vigente DL n.º 15/93 de 22 de Janeiro, pressupõe-se uma certa tipologia de traficantes: os grandes traficantes (art.s 21.º e 22.º do último diploma citado), os médios e pequenos traficantes (art. 25.º do mesmo diploma), e os traficantes consumidores (art. 26.°). À natureza da punição (embora o legislador não tivesse aderido à conhecida distinção entre drogas duras e leves), também não é alheia a perigosidade da droga traficada: verifica-se alguma graduação, consoante a sua posição nas Tabelas I a III ou na Tabela IV anexas ao citado decreto-lei. Por outro lado, embora a lei não inclua a intenção lucrativa na definição do tipo legal, o certo é que ela não pode ser indiferente. Releva ainda para o enquadramento legal das condutas sob apreciação, o conhecimento da personalidade do arguido, do seu habitat - se era um dealer de apartamento ou de rua, se era um simples intermediário - e, em particular, se não era consumidor de droga, se era consumidor ocasional ou era já um consumidor habitual ou mesmo um toxicodependente. Tendo em conta que: - o arguido à data em que foi detido (23.01.98) era consumidor habitual de heroína, e por vezes, de cocaína, que injectava, consumindo em média cinco a sete doses diárias; - ia abastecer-se ao Casal Ventoso duas vezes por mês, onde comprava o produto a indivíduos que não foi possível identificar, para depois o consumir, e nos últimos seis meses antes da sua detenção, também dividia parte do produto adquirido da segunda deslocação mensal a Lisboa, em palhinhas, que vendia esporadicamente em número não superior a cinco ou seis, a consumidores que para o efeito o procurassem, ao preço de 1000 escudos cada; na busca ao local da sua residência foram encontradas 3,089 gramas de heroína e 0,236 gramas de cocaína, adquiridas nesse dia no Casal Ventoso, num total de 10 quarteiras de heroína e 1 quarteira de cocaína, tudo pelo preço de 27500 escudos (...); o conceito em branco de ilicitude consideravelmente diminuída inserido no art. 25.º, do DL 15/93, mostra-se, neste caso, preenchido.
30-11-2000 Proc. n.º 2849/2000 - 5.ª Secção
Pereira Madeira, Simas Santos, Costa Pereira, Abranches Martins

O facto de se mostrar provado que o arguido "cedeu heroína, várias vezes e a diversas pessoas toxicodependentes, mediante contrapartida monetária" não exclui a aplicação do art. 25.º do DL 15/93. Sendo essas condutas típicas do crime de tráfico, é evidente que o tipo privilegiado do art. 25.º não deixa de prever um crime de tráfico de estupefacientes, só que de menor gravidade que o crime principal. Resultando dos factos provados que o arguido, consumidor da heroína, actuava sozinho, ia buscar a heroína - 15 a 20 "quartas" por semana, pelas quais pagava cerca de 50000 escudos - ao Casal Ventoso, normalmente de bicicleta, fazendo de cada "quarta" cerca de 5 ou 6 doses individuais, que vendia por 1.000$00 cada, actividade que se prolongou por cerca de sete meses, tendo sido surpreendido, no momento da sua detenção, na posse de 23 embalagens com 1,231 g daquele produto, tendo cedido 0,110 g, em duas embalagens, à sua co-arguida (num total que não atinge 2 g), sendo a dependência de tal produto que o impelia para esse "comércio", no intuito dominante de a alimentar, apesar da qualidade da substância em causa, que, pela dependência que provoca no consumidor, é das drogas mais prejudiciais do mercado, revela aquela actuação uma ilicitude consideravelmente diminuída, integrando-se na disposição do mencionado art. 25.º.
14-02-2001 Proc. n.º 4210/00 - 3.ª Secção
Lourenço Martins, Leal-Henriques, Armando Leandro, Pires Salpico (vencido)

O art. 25.º do DL 15/93 de 22/01, ao criar relativamente ao tipo nuclear (art. 21.º) um tipo criminal privilegiado, fê-lo na perspectiva de uma "ilicitude consideravelmente diminuída", e não, como viria a fazê-lo o artigo seguinte, para satisfação, a nível do tipo, de exigências de afeiçoamento da pena - ante circunstâncias anteriores ou contemporâneas do crime acentuadamente atenuativas da culpa de certo tipo de agente (o toxicodependente) ou da (menor) necessidade da pena (desse mesmo agente típico) - à medida da culpa (art. 40.2 do CP) e, mesmo que à custa de alguma desprotecção do correspondente bem jurídico, a essa outra finalidade das penas que é a reintegração do agente na sociedade" (art. 40.1).
15-02-2001 Proc. n.º 106/01 - 5.ª Secção
Carmona da Mota, Pereira Madeira, Simas Santos, Abranches Martins

Embora o arguido tenha sido detido na posse de 21,572 g de heroína (em 78 embalagens) e 2,505 g de cocaína (em 14 embalagens), provando-se que tais produtos não lhe pertenciam, que não seria o arguido a disseminá-lo (ainda que soubesse que se destinavam a ser distribuídos por terceiros), que a sua vantagem neste "negócio" se cifrava em 15.000$00, e não decorrendo da matéria de facto provada que tal comportamento correspondesse a uma actuação que viesse a ser desenvolvida de forma continuada no tempo, significa isso, que a ilicitude do respectivo comportamento pode ter-se como "consideravelmente diminuída", e como tal, subsumível no âmbito do art. 25.º do DL 15/93, de 22/01.
15-03-2001 Proc. n.º 242/01 - 5.ª Secção
Guimarães Dias, Pereira Madeira, Carmona da Mota, Simas Santos

Haverá que aferir se no caso a "imagem global do facto" que se consegue extrair da matéria considerada como provada encontra na moldura penal do art. 21.º do DL 15/93 urna resposta justa ou proporcional, ou se, pelo contrário, circunstâncias existem, designadamente por referência aos elementos normativos do art. 25.º, susceptíveis de revelarem uma intensidade da ilicitude muito menor à pressuposta por aquela norma, e como tal, a justificar uma punição que logicamente lhe fique aquém.
01-03-2001 Proc. n.º 122/01 - 5.ª Secção
Guimarães Dias, Carmona da Mota, Pereira Madeira, Simas Santos

Apesar de o arguido ter efectivamente praticado alguns dos actos descritos no art. 21.º, do DL 15/93, de 22-01 - proporcionando ao co-arguido (qual chauffeur particular) o transporte ao local em que este ia adquirir a droga, de três em três dias e, no regresso, o transporte do mesmo e da droga adquirida (cerca de 5 g de heroína) -, de não ganhar com tal actividade, de cada vez, mais do que um "fumo" dessa substância e que, por outro lado, ao prestar aquele auxílio ao seu co-arguido, não pretender senão "conseguir substâncias para o seu uso pessoal", não é a sua conduta subsumível ao art. 26.º, n.º 1, do mesmo diploma (traficante-consumidor), porquanto a quantidade de droga que transportou/deteve no seu carro, em cada viagem de regresso, era bem superior à "necessária para o consumo médio individual durante um período de cinco dias", tanto mais que o arguido, ao longo dos nove meses por que se prolongou tal actividade o arguido recebeu do seu co-arguido, em pagamento da sua ajuda, cerca de 90 doses de heroína (cerca de 4,5 g). Todavia, porque a ilicitude do seu facto se mostra consideravelmente diminuída em razão da "modalidade e circunstâncias da acção" - pois que praticamente se limitou, sendo toxicodependente, a levar o co-arguido, de três em três dias, em troca de um "fumo" de heroína por viagem, ao encontro do fornecedor - valerá ao arguido o disposto no art. 25.º, do referido diploma legal (tráfico de menor gravidade).
10-05-2001 Proc. n.º 472/01 - 5.ª Secção
Carmona da Mota, Pereira Madeira, Simas Santos

A actuação do arguido patenteia uma organização e logística incipientes, numa actividade isolada, posto que a heroína - de que o arguido foi surpreendido na posse de 1,208 g - seja uma das drogas mais prejudiciais. Não havendo indicação do período anterior a que se reportasse a actividade de tráfico, a ilicitude, consideravelmente diminuta, no tipo legal do art. 25.º do dec. lei 15/93. Apreciada a conduta na globalidade, revela-se um pequeno traficante, também dependente de droga, na qual sobreleva esta dependência e a subsequente actividade que proporcione o alimento da mesma.
10-10-2001 Proc. N.º 2446/01 - 3.ª Secção
Lourenço Martins, Armando Leandro, Pires Salpico (vencido)


5. TRÁFICO MENOR

5.1. Poderá, pois, concluir-se - quanto à actividade dos arguidos B, A e C entre 8Dez00 e 14Fev01 - «que estamos perante uma actividade de pequeno tráfico, de ilicitude consideravelmente menos grave do que aquela que é pressuposto do tipo do art. 21.º do DL 15/93 e que, deste modo, o crime praticado é o do art. 25.º daquele diploma».

5.2. Aliás, e em bom rigor, «o art. 25.º do DL 15/93 não constitui um tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes autónomo relativamente ao art. 21.º do mesmo diploma, na medida em que o preceito em questão não adita qualquer elemento complementar, descritivo ou meramente normativo, que exprima por si só um menor conteúdo do ilícito - cfr. Eduardo Lobo, Droga - Comentários e Decisões de Tribunais de 1.ª Instância, 1993, GPCCD, p. 222 -, constituindo antes uma forma de atenuação especial - cfr. Miguel Pedrosa Machado, na mesma obra, ps. 178 e 179. Note-se ainda que expressão legal se aproxima da do n.º 1 do art. 72.º do CP («circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto»). Em consequência, estaremos apenas perante uma regra especial de medida judicial da pena, que envolve tão só a modificação do tipo em sede de pena, ou simplesmente uma regra de aplicação de pena - Jescheck, Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 4.ª ed., Comares, ps. 242/245» (Notas relativas ao Projecto de Lei de perdão genérico, CEJ, Docentes da Jurisdição Penal, 3Mai99, ed. policopiada)

5.3. «Crê-se que o preceito na sua redacção anterior não permitia a maleabilidade eventualmente desejada pelo legislador. Daí a sua revisão, em termos que permitem ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo do tráfico menor, que, apesar de tudo, não pode ser aligeirado de modo a esquecer-se o papel essencial que os dealers de rua representam na cadeia do grande tráfico. Haverá assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou se use indevidamente uma atenuante especial» (Lourenço Martins, Droga e Direito, Aequitas, Editorial Notícias, anotação ao art. 25.º da Lei 15/93)

5.4. Enfim, «importa analisar a forma como a jurisprudência tem interpretado os crimes mais frequentes, ou seja, os dos arts. 21.º, 25.º e 26.º. Embora timidamente enunciado, teve o legislador o propósito de não meter no mesmo saco todos os traficantes, distinguindo entre os casos graves (art. 21.°), os muito graves (art. 24.°), os pouco graves (art. 25.º) e os de gravidade reduzida (art. 26.°), redução essa motivada no fundo pela condição de toxicodependente do agente. Pois bem: a jurisprudência esvaziou quase completamente os arts. 25.º e 26.°, remetendo para o art. 21.° a generalidade das situações. Para tanto, faz uma interpretação contra legem do art. 25.º. Com efeito, estabelece este artigo que se aplica às situações em que a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das drogas. A interpretação que parece mais consentânea com o texto (e com a epígrafe do artigo) é a de que o legislador quis incluir aqui todos os casos de menor gravidade, indicando exemplificativamente circunstâncias que poderão constituir essa situação. Assim, será correcto considerar-se preenchido este crime sempre que se constate a verificação de uma ou mais circunstâncias que diminuam consideravelmente a ilicitude, como poderá ser, por exemplo, uma quantidade reduzida de droga, ou esta ser uma droga leve, ou quando a difusão é restrita, etc. O crime do art. 25.º é para o pequeno tráfico, para o pequeno retalhista de rua» (Eduardo Maia Costa, Direito penal da droga, RMP 74-103, ps. 114 e ss.).


6. AS PENAS CORRESPONDENTES ao crime de tráfico menor

6.1. No quadro de uma pena abstracta de 1 a 5 anos de prisão (art. 25.a do dec. lei 15/93), o tribunal recorrido condenou cada um dos arguidos B e A na pena de dois anos e seis meses de prisão e o arguido C na pena de dois anos de prisão suspensa por cinco anos (mas sujeita, durante os três primeiros, a regime de prova). O MP contrapõe, no seu recurso, as penas, respectivamente, de três anos e seis meses de prisão, de três anos e seis meses de prisão e de três anos de prisão.

6.2. Não terá tido, porém, em conta, a adicção de todos os arguidos ao consumo (inalado) de heroína e que, por isso mesmo, o tráfico a que se «dedicavam» (que se limitava - recorde-se - a metade da droga que adquiriam) se destinava fundamentalmente a alimentar o seu próprio consumo. A esse respeito, são significativos, o «estado de saúde» em que os arguidos se encontravam no dia seguinte ao da sua detenção: «A deu entrada neste EP a 15Fev01. Alegando ser toxicodependente de opiáceos via inalatória há +/- 2 anos e como se queixava de sinais e sintomas de privação, submeteu-se ao tratamento protocolado para estas situações. Actualmente (7Nov01) apenas sabemos recorrer a somníferos» (atestado de fls. 616); «Observada em 15Fev01, pesava 50 kg e afirmou ser consumidora regular de heroína por via inalatória. B apresentava-se em síndroma de abstinência. Foi orientada para a equipa do Projecto de Combate à Toxicodependência. Presentemente (09Out01) tem em curso terapêutica e pesa 63 kg» (atestado de fls. 617).

6.3. Ora, seria exactamente esta sua dependência em relação à «heroína» - e a falta de outros rendimentos (no caso dos arguidos B e C) - que, de algum modo, os concitava/forçava à revenda lucrativa de parte das drogas adquiridas: comprando o dobro do que careciam, a venda do excedente permitia-lhes manter em aberto, dia a dia, o ciclo da dependência (aquisição - consumo - revenda - aquisição - consumo - revenda).

6.4. Assim sendo, mesmo que as exigências de prevenção geral («Só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido à suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação de delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 55)) convocassem no caso - o que não é líquido - uma pena algo mais gravosa que a que a 1.ª instância lhes ministrou, a culpa (seriamente comprometida afectada apela sua «dependência») opor-se-ia - pois que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (art. 40.2 do CP) - a esse (excessivo) gravame («Em caso algum pode haver pena sem culpa ou a medida da pena ultrapassar a medida da culpa» (princípio da culpa), «princípio que não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização» (Figueiredo Dias, ob. cit., § 56).).

6.5. Além de que a «reintegração do agente na sociedade» - objectivo que a pena não poderá deixar de prosseguir (art. 40.1) - não é compaginável, em caso que tais, com encarceramentos demasiado demorados.

6.6. De qualquer modo, «se a questão do limite ou da moldura da culpa está plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o estará a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, Direito Penal, II, p. 197).


7. A SUSPENSÃO DA PENA do arguido C

7.1. Foi a finalidade das penas de «reintegração do agente na sociedade» que justificou - e, como se verá, continuará a justificar - a substituição por pena suspensa da pena de prisão aplicada ao arguido C. Com efeito, «é hoje ingrato, incómodo e sobretudo ineficaz aplicar penas de prisão a grande parte dos arguidos que circulam nos tribunais no âmbito da criminalidade relacionada com o consumo (...) de estupefacientes: ingrato, porque, normalmente, as razões de tutela de uma situação de perigo que estão na origem da punição do tráfico não se verificam; incómodo, porque grande parte dos arguidos julgados são pessoa doentes, que, mais do que uma pena, que afinal é aquilo que ‘levam’ do tribunal, precisam de apoio pessoal, familiar e clínico; ineficaz, porque não se resolvem nos tribunais e nas prisões grande parte das situações pessoais que levaram alguém a consumir e a traficar pequenas quantidades de estupefacientes» (José Mouraz Lopes, Juiz de Direito, Público, 20Mai99).

7.2. Aliás, «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena (...) de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação ( Ante uma «pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos», há-de o tribunal ficar adstrito a suspender a pena se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ao crime, à sua conduta posterior e às circunstâncias deste, concluir que «a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (art. 50.1 do CP).), a pena (...) de substituição se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 497).

7.3. E, ademais, «são finalidades de prevenção especial de socialização que justificam todo o movimento de luta contra a pena de prisão» (§ 500), donde que «o tribunal só deva negar a aplicação de uma pena de substituição quando a execução a prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas» (idem).

7.4. No caso, as especiais condições pessoais do arguido C (toxicodependente, que, para além de confessar, repeso, toda a sua actividade, se manifestou particularmente interessado em «se recuperar e reinserir socialmente, procurando trabalho e efectuando os tratamentos de desintoxicação necessários») sugerem vivamente - com vista a facilitar a reintegração social do condenado (que, aliás, se limitava, à data, a um pequeno «tráfico» de mera sobrevivência) - a sua submissão a uma suspensão acompanhada de regime de prova assente num adequado plano de readaptação social, executado com vigilância e apoio, durante os primeiros tempos da suspensão, dos serviços de reinserção social» (art. 53.1 e 2 do CP)

7.5. Decerto que é preciso decerto não descaracterizar «o papel da prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição», a funcionar aqui «sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico» e «como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização» (F. Dias, ob. cit., § 501). Daí que a pena de substituição, mesmo que «aconselhada à luz de exigências de socialização», não seja de aplicar «se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não fossem postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias» (idem).

7.6. Mas, no caso, já assim não será ( Com efeito, seria, a propósito, demasiado redutor discorrer contra a suspensão, como fez o acórdão recorrido, que «que não se apuraram elementos que permitam concluir pela suficiência da ameaça da pena para realização das finalidades da punição e, bem pelo contrário, as pertinentes exigências de prevenção impõem a sua efectividade, sob pena de ficarem desprotegidos os bens jurídicos tutelados pela norma violada».). Por um lado, porque o arguido já sofreu cerca de nove meses de prisão preventiva, circunstância que, no conjunto dos factores dissuasórios da recidiva, adicionou, à «censura do facto» e à «ameaça da prisão», uma vivida - e não simplesmente prenunciada - experiência prisional. E, por outro, porque a «suspensão» se fará acompanhar - como logo a 1.ª instância teve o cuidado de determinar - do acompanhamento de um regime de prova assente num adequado plano de readaptação social, executado com vigilância e apoio ( «A atitude da sociedade, do Estado e da jurisprudência face ao fenómeno antropológico universal da droga, nomeadamente quanto ao modo de encarar e de lidar com o consumo e toxicodependência, carece de alteração radical. Alguém tem dúvidas de que o paradigma ‘droga - dentro’ está esgotado? Se este é um dado certo e inatacável para o cidadão comum, para nós juristas não deverá passar de um preconceito ultrapassado. De outra forma estaremos a contribuir para que as prisões se encham de consumidores punidos com penas de traficantes» (J. Moreira das Neves, juiz de direito, Boletim da ASJP, Jan00). «Uma condição essencial para abordar seriamente o problema da droga é cada vez mais a descrença definitiva na repressão penal como instrumento de dissuasão da toxicodependência. A instrumentalização do direito penal não é hoje em dia senão um álibi para renunciar a encarar a radical complexidade do problema» (Vital Moreira, Público, 4Mai99). «É fácil prender, punir e encarcerar um toxicodependente antes de o soltar para continuar a consumir, como é vontade da lei que está em vigor. É muito mais difícil tratá-lo. É esse o novo desafio com que somos confrontados» (Vitalino Canas, DN, 8Jul00)), durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.

7.7. Daí, enfim, que (de acordo, até, com filosofia que iluminou a Lei 30/2000 de 29Nov) «Durante décadas e décadas, construiu-se um discurso moral, e tantas vezes demagógico, em torno do consumo das drogas que fez coincidir representações diabolizadas, por vezes assentes num imaginário crepuscular e fantástico, que associavam crime, pobreza, pecado, profanação, medo e morte (...). A toxicodependência (...) abriu as portas (...) a multidões de assustados, foi e é arma de arremesso quando ruge a confusão política em torno da insegurança e da criminalidade. De certa forma, podemos dizer que este discurso, que resultou de uma concreção de valores e princípios louváveis caldeados numa massa acrítica e ignara, propiciadora do nascimento de profetas, alquimistas e vadios sem escrúpulos, plasmou um determinismo traduzido no corolário toxicodependente igual a criminoso, que se repercutiu, durante décadas, em todas as áreas da vida colectiva, desde o sistema judiciário - polícias e tribunais - até às políticas de saúde, mas sobretudo modelando as mentalidades por forma a recepcionarem com juízo de desvalor o toxicodependente, para logo o remeterem para o mundo dos excluídos e, no quadro ideológico, para o território dos interditos. Foi em nome de tudo isto que as prisões ficaram encharcadas de toxicodependentes, os tribunais a abarrotar de julgamentos e as polícias a braços com centenas de milhares de inquéritos. Foi em nome destes medos do escuro e do saber que durante décadas o país temeu, tremeu e trepidou de angústia. Foi em nome de tudo isto que morreram milhares de toxicodependentes, sem saberem nem ouvirem um médico, sem um único olhar sobre a abertura de luz por onde poderiam sair dos seus pesadelos. A lei que entrou em vigor na passada semana é possivelmente uma das importantes reformas que este governo realizou (...) O que o governo nos propõe ao legislar no sentido em que o fez não é apenas mais um conjunto de medidas conjunturais, mas um novo olhar. Um olhar de ruptura com a ideologia dominante que nos permite observar em cada toxicodependente mais um paciente a necessitar de cuidados de saúde, em vez de um indivíduo a solicitar o cacete e as algemas do polícia. O que a nova lei nos propõe, do ponto de vista simbólico, é a remição dos nossos pecados, depois de atirarmos tantas pedras aos desígnios daquilo que durante décadas se identificou com o mal. E embora não colha a prebenda de ser considerada um bem, a toxicodependência deixa de ser uma categoria das estatísticas policiais, para poder entrar nas categorias clínicas onde se labuta e combate pela reconstrução de gente destruída em gente razoavelmente saudável. O que a lei nos abre, a todos nós, é também o reexame das nossas consciências ao que não fizemos, ao que não quisemos saber, aos nossos mais profundos egoísmos, aos nossos tabus, aos nossos preconceitos. Mais do que a descriminalização, mesmo que fosse a despenalização total, o que este dispositivo legal restaura, ou procura recuperar, é qualquer coisa de tão profundo e ao mesmo tempo tão eludido pela ebulição dos consumismos e dos individualismos que quase parece um chavão ou um acto romântico decepado e que se traduz numa cultura humanista em que a alteridade ganha a sua verdadeira dimensão. É certo que não é uma norma que pode mudar a vida. Que não vai ser precisamente esta norma que vai modificar a voracidade das culturas do egoísmo, que ao mesmo tempo se multiplicam. Mas é uma fenda na muralha» (Francisco Moita Flores, DN, 9Jul01) seja de manter a aposta que - «num certo risco calculado» ( «Esta dialéctica do possível/impossível, que a democracia só ganha pela sistemática expansão do primeiro, encontra-se infelizmente fragilizada no interior do próprio sistema democrático pelos seus porta vozes. A estafada questão da segurança é uma delas, perigosamente resvalando para o desejo impossível da sua extinção e, por isso, abrindo uma porta onde o sistema não deveria criar entrada alguma. É que gerar o sentimento de impotência face ao Outro leva irrevogavelmente ao poder de apagar o Outro, como nos ensina impiedosamente a História» (Carlos Amaral Dias, Expresso/Revista, 3Fev01)) - a 1.ª instância fez na suspensão da pena aplicada ao arguido C, subordinada todavia - pois que o arguido, entregue a si próprio, poderia (mercê da sua já radicada adicção e de um seu anterior, e pouco auspicioso, crime de «receptação») vir a soçobrar diante de novas solicitações ( «A recuperação não é fácil. A recuperação convoca-os inteiros e não se faz sem eles próprios, sem que se impliquem, sem que peçam ajuda, sem que vão caminhando, à medida que são capazes. O método é a auto-ajuda: confrontar-se consigo próprio, num seio de um grupo presente, amigo e atento. Cada dia consolida a certeza de que da droga sai-se, mas não se sai sozinho. Esta é a realidade séria e dura que conhecem todos os que trabalham verdadeiramente com toxicodependentes» (Helena Fontoura, Público, Dez00)) - ao cumprimento, sob os auspícios do Instituto de Reinserção Social, do regime de prova que melhor facilitar a reintegração do condenado na sociedade (art. 53.º do CP).

7.8. Em suma, «o tribunal só devia negar a aplicação de uma pena de substituição se a execução a prisão se revelasse, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 497.). O que, como se viu, não é o caso.


8. TRÁFICO/CONSUMO

8.1. Os arguidos D, G, E e F, que se abasteciam junto dos arguidos B, A e C e, em várias ocasiões, os conduziram nos seus carros entre Pinhal Novo (local de encontro) e Lisboa/Casal Ventoso (local onde estes, por seu turno, se abasteciam em «grosso») e, logo a seguir, entre Lisboa (depois do abastecimento) e Pinhal Novo (lugar onde os transportados procediam habitualmente às suas revendas de «retalho»), não só, dolosamente, «fizeram transitar» («fora dos casos previstos no art. 40.º») Pois que a droga assim feita transitar não se destinava, na sua quase totalidade, ao seu próprio consumo., entre Lisboa e Pinhal Novo, «substâncias ou preparações compreendidas na tabela I» como, dolosamente, prestaram auxílio material à prática por outrem de factos dolosos constitutivos de «compra» e «transporte» dessas mesmas substâncias e preparações.

8.2. Praticaram assim eles próprios, como autores (art. 26.º do CP) ou cúmplices (art. 27.º), «alguns dos factos referidos no artigo 21.º do dec. lei 15/93». Só que, ao praticá-los, «tiveram por finalidade exclusiva conseguir substâncias para uso pessoal». Com efeito, por cada viagem Pinhal Novo - Lisboa - Pinhal Novo, cada um deles obtinha em troca - e só por isso se dispuseram a fazê-las - uma pequena porção (o equivalente, antes do habitual «corte», a uma ou duas palhinhas) E daí que de cada um desses «pagamentos» jamais tivesse resultado, para qualquer deles, a «detenção de substâncias em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias» (art. 26.3 do dec. lei 15/93). da heroína comprada pelos beneficiários directos da viagem.

8.3. Incorreu, pois, cada um dos arguidos D, G, E e F na autoria de (pelo menos) um crime de «tráfico/consumo» p. - e p. com prisão até três anos ou multa - pelo art. 26.1 do dec. lei 15/93.


9. SÍNTESE

ArguidoIdadeLugar habitual na cadeia do tráficoAquisição p/ consumoTráfico/
consumo
Meio utilizadoMoeda de trocaConduta em julgamento
D25consumidor7 e 14Fev011 vez (14Fev01)O seu
automóvel
«Uma porção de heroína»Confissão*
G20consumidor12Dez00
1 e 7Fev01
2 vezesO seu
automóvel
«Uma porção de heroína» de cada vez -------
E23consumidor------1 vezO seu
automóvel
«Uma porção de heroína»Confissão*
F27consumidor6Fev012 vezesO seu
automóvel
«Uma porção de heroína» de cada vezConfissão*
«
Narraram como e em que circunstâncias foram adquirir estupefaciente ao Casal
Ventoso e levaram nos seus veículos aqueles arguidos C, A e B»


10. as PENAS

10.1. Aplicáveis ao crime, em alternativa, pena privativa de liberdade («prisão até 3 anos») e pena não privativa da liberdade («multa de 10 a 360 dias» - art. 47.1 do CP), há-de o tribunal de dar «preferência à segunda», pois que esta «realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (art. 70.º): protecção do bem jurídico e reintegração do agente na sociedade (art. 40.1).

10.2. A diária da multa - correspondendo a uma quantia entre 1 e 498,8 euros - será fixada, em função dos (escassos) elementos disponíveis acerca da situação económica e financeira dos condenados e dos seus encargos pessoais (art. 47.1), em 6 (seis euros).

10.3. A pena, a fixar entre um limite mínimo (traçado pelas concretas exigências de protecção do bem jurídico coberto pelo preceito incriminador - a saúde pública) e um limite máximo (definido pela «medida da culpa»), será concretizada por essa outra finalidade da pena que é a reintegração social de cada um dos agentes.

10.4. As primeiras exigências serão tanto maiores quanto o número de vezes em que cada um dos agentes «traficou» para consumir (duas vezes os arguidos G e F e uma vez os arguidos D e E). O grau de culpa de cada um deles, por seu turno, será tanto menor - no pressuposto de um grau de toxicodependência semelhante - quanto a respectiva idade (menor a do arguido G e maiores, sucessivamente, as dos arguidos E, D e F). A ressocialização dos arguidos D, E e F (que «confessaram») «Cuidou em suas culpas (...) e quer acabar de as confessar para descargo da sua consciência e bom despacho da sua causa?» (Luísa Costa Gomes, Clamor, Cotovia, 1994), em confronto com a do arguido G (que não «confessou»), afigura-se mais fácil (em razão desse «movimento subjectivo de verdade que existe no acto de confessar» «Confessando-se, há uma verdade que acontece, independentemente da ‘verdade’ dos actos confessados, uma verdade performativa (Austin), uma verdade que se faz; e a verdade que nos importa, numa importância em termos da vida que vivemos, não é a verdade da adequação entre as palavras e as coisas, mas a verdade que fazemos no momento de dizer e pelo facto de dizermos» (Eduardo Prado Coelho, «Derrida na TV», PÚBLICO/Leituras, 4Mai96). e desse «desatar de um nó» que «instala a serenidade» «Confessar é desatar um nó. Qualquer coisa que sabemos não estar certa e que nos encolhe a alma. Confessa-se o mal, confessa-se o erro, o engano. Os aztecas tinham direito a confessar, por uma vez na vida, os pecados. Lavavam-se desta forma para que Tlazolteotl, deusa que inspirava os desejos mais perversos, os pudesse aceitar e perdoar. A confissão associada ao pecado implica o perdão. Será neste ponto que a serenidade se instala» (Camila Coelho, DNa, 2Dez00)
).

10.5. Tudo ponderado, fixam-se as multas em 70 dias (arguido E), 80 dias (arguido D), 90 dias (arguido G) e 100 dias (arguido F), ou seja, tendo em conta a diária acima determinada, em 420 (arguido E), 480 (arguido D), 540 (arguido G) e 600 (arguido F).


11. DECISÃO

Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em audiência,

a) confirma a sentença condenatória de 20Nov01 - assim negando, nessa parte, provimento ao recurso do MP - dos arguidos A, B e C;
b) revoga a sentença absolutória de 20Nov01 - assim concedendo, nessa parte, provimento recurso do MP - dos arguidos D, G, E e F;
c) condena os arguidos E, D, G e F - como autores, cada um deles, de um crime de tráfico/consumo p. p. art. 26.º do dec. lei 15/93 - nas penas, respectivamente, de 70 (setenta) dias de multa, 80 (oitenta) dias de multa, 90 (noventa) dias de multa e 100 (cem) dias de multa, todas à taxa diária de 6 (seis) euros;
d) condena os arguidos E, D, G e F nas custas do processo (1.ª instância), com, por cada um, 2 UCs de taxa de justiça, 0,5 UC de procuradoria e restituição ao tribunal dos honorários entretanto adiantados ao respectivo defensor oficioso;
e) e condena o arguido G nas custas do recurso (pois que se lhe opôs infundadamente), com 2 UCs de taxa de justiça, 0,5 UC de procuradoria e - estes a adiantar pelo tribunal - os honorários devidos à(s) sua(s) defensora(s) oficiosa(s),


Supremo Tribunal de Justiça, 07 de Março de 2002

Carmona da Mota,
Pereira Madeira,
Simas Santos,
Abranches Martins.