Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A2256
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOPES PINTO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSPORTE MARÍTIMO
CONHECIMENTO DE EMBARQUE
RESPONSABILIDADE CIVIL
EXONERAÇÃO
Nº do Documento: SJ200307080022561
Data do Acordão: 07/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1010/02
Data: 01/16/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A. "A - Metalomecânica, S.A.", propôs contra "B" e "C - Transportes, Lda.", acção, com fundamento em incumprimento parcial de contrato de transporte marítimo (queda ao mar e perda de uma das cisternas embarcadas, sem conhecimento nem consentimento prévio da autora, no convés de navio propriedade da 1ª, violando a 2ª, agente de navegação da 1ª ré, o dever de o obter e ainda o de prevenção de perigo), a fim de a 1ª, e subsidiariamente a 2ª, ser condenada a lhe pagar 477.600 francos franceses (valor da cisterna perdida), acrescida de juros de mora, e a indemnizá-la em quantia a liquidar em execução de sentença (custos de comunicações e deslocações; dano causado à imagem comercial; custos de advogados; custos da remoção da cisterna, caso lhe venham a ser imputados).
Contestando, as rés excepcionaram a incompetência internacional do tribunal e quer as em razão da matéria e do território, a ilegitimidade da autora, a fortuna do mar, a caducidade do direito de acção e a limitação da responsabilidade, e impugnaram.
Após réplica, improcederam por despacho as excepções de incompetência, excepto a territorial, e, prosseguindo a acção até final, improcedeu por sentença que a Relação confirmou.

De novo irresignada, pediu revista a autora, concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -
- essencial a esta acção saber se o transporte no convés foi consentido pela autora e com essa prova estava onerada a 1ª ré, a qual não a logrou satisfazer;
- a circunstância de não ter sido provada a matéria dos quesitos 1, 2 e 4 não significa a prova do contrário;
- a autora provou o incumprimento parcial do contrato de transporte e beneficia da presunção de culpa da ré, a qual não foi ilidida;
- não pode assim a 1ª ré beneficiar de causa de exoneração de responsabilidade do armador pelo que é irrelevante a resposta ao quesito 12 (a infra al. h));
- a cláusula "carga carregada no convés ao risco da mercadoria" deve considerar-se excluída porque, sendo cláusula contratual geral, a 1ª ré não provou que foi objecto de negociação prévia entre as partes nem que a comunicou à autora, o mesmo devendo suceder a todas as cláusulas do verso do conhecimento de embarque;
- violado o disposto nos artºs. 9º-1 a 3 do dec-lei 352/86; artºs. 9º, 799º-1, 346º e 376º-1 CC; artºs. 1º, 5º, 6º e 8º a) do dec-lei 446/85, com as alterações introduzidas pelos decs-lei 220/95 e 249/99.
Contraalegando, pugnam as rés pela confirmação da sentença.
Colhidos os vistos.

Matéria de facto que as instâncias consideraram provada:
a)- a autora é uma sociedade comercial que exerce a actividade de indústria metalomecânica, produzindo e comercializando, entre outras peças, depósitos ou cisternas de armazenagem ou de gases do petróleo liquefeitos (GPL);
b)- a 1ª ré é uma sociedade comercial holandesa que exerce a actividade do transporte mercadorias por mar;
c)- a 2ª ré é uma sociedade comercial que exerce a actividade de agente de navegação;
d)- em Junho de 1994, no âmbito da sua actividade, a autora vendeu à "D", pelo preço de Frf 955.200 (novecentos e cinquenta e cinco mil e duzentos francos franceses), 2 cisternas propano de 200 m³, com peso bruto do 53.000 kg cada, e demais dimensões e características constantes da factura 950.181, de 95.02.15 (doc. a fls. 19);
e)- nos termos deste contrato, competia à autora providenciar o transporte marítimo das duas cisternas até Casablanca, que, para o efeito, por fax de 94.12.29, contactou a 2ª ré, solicitando-lhe cotação para o correspondente transporte;
f)- em 95.02.06, a autora aceitou a proposta da 2ª ré (faxes juntos a fls. 22 e 23);
g)- em 95.03.03, as duas cisternas foram embarcadas em Leixões, no navio "E", um navio de carga geral, adaptado ao transporte de contentores e preparado para o transporte de carga no convés, tendo sido carregadas no seu convés, onde foram devidamente peadas e amarradas com cabos de aço;
h)- em 95.03.03, tendo o navio largado do porto de Leixões, por volta das 21h e 45m, quando estava com o rumo de cerca de 270 graus, vieram duas voltas de mar violentíssimas, fazendo o navio adornar cerca de 35 graus, o que originou que as peias do estibordo se partissem com a consequente queda da cisterna à água;
i)- assim, nesse mesmo dia, logo depois do navio ter saldo do porto de Leixões uma das cisternas caiu ao mar, indo posteriormente encalhar na praia de Paramos-Espinho de onde foi já removida;
j)- em consequência da queda ao mar, a cisterna ficou totalmente inutilizável e insusceptível de recuperação ou reparação;
k)- no dia seguinte, de manhã, a 2ª ré deu conhecimento à autora, por telefone, do que sucedera à referida cisterna;
l)- a 2ª ré emitiu e assinou o conhecimento de embarque ou de carga (Bill of Lading), junto a fls. 24 a 24 verso, de onde consta, para além do mais:
- 2 cisternas com capacidade 150 m³ Peso Bruto em quilos 84.000
- Frete Pago
- Embarque Porto Português para: Porto Casa (Marrocos)
- Mercadoria "on Deck" sob responsabilidade do cliente;
m)- este conhecimento de embarque, designadamente na parte em que dele consta a "carga carregada no convés ao risco da mercadoria", foi preenchido pela 2ª ré;
n)- o conhecimento de embarque foi emitido pela 2ª ré no dia do respectivo embarque, dia 95.03.03 (6ª feira), e nesse dia enviado à autora pelo correio, que o recebeu por essa via em 95.03.06, 1º dia útil após o embarque;
o)- quando a autora recebeu o conhecimento de embarque, em 95.03.06, aceitou-o tal como emitido, sem qualquer reclamação ou protesto;
p)- a autora pagou o frete acordado com a 2ª ré na sua totalidade, isto é, abrangendo o transporte das duas cisternas;
q)- a cisterna restante chegou ao seu destino em 97.03.07, data em que deveriam ter chegado ambas;
r)- em virtude da perda da cisterna, a "D" pagou à autora a quantia de Frf. 477.600, ou seja o valor correspondente a uma só cisterna, sendo Frf. 382.600 do preço da cisterna e Frf. 95.000 o preço do respectivo frete;
s)- a autora teve um prejuízo de Frf. 477.600, sendo Frf. 382.600 correspondentes ao preço da cisterna e Frf. 95.000 correspondentes ao frete marítimo negociado com a "D";
t)- em consequência da perda da cisterna, a autora viu-se obrigada a longa e morosa correspondência e contactos pessoais e telefónicos com a sua cliente, de forma a explicar o facto de ser alheia ao sucedido, no intuito de preservar a relação comercial e de minimizar os prejuízos na sua imagem comercial;
u)- após o sucedido a imagem comercial da autora ficou negativamente afectada perante a "D" ("D"), que deixou de lhes efectuar qualquer compra.

Decidindo:
1.- Ponto fulcral, segundo a recorrente, apurar se as 2 cisternas foram transportadas no convés com o seu consentimento.
A este propósito, os factos contrariam a tese da recorrente que nega tê-lo prestado e, porque o tribunal não deu como provada a matéria dos quesitos 1 e 2, tem como não satisfeito o ónus da prova que, ao abrigo do artº. 799º-1 CC, sobre a 2ª ré impendia.
O conhecimento de embarque refere expressamente esse consentimento da autora (al. l)).
Quando a autora o recebeu, dois dias daquele em que, de manhã, fora informada (al. k)) pela 2ª ré do que sucedera a uma das cisternas (queda ao mar e sua perda), aquela, apesar disto, não reclamou nem protestou, aceitou-o tal como fora emitido por esta ré (conhecimento emitido no dia do embarque e recebido pela autora no 1º dia útil seguinte).
Foi a autora quem providenciou pelo transporte marítimo e o negociou com a 2ª ré (al. e)), esta quem emitiu o indispensável conhecimento de embarque, enviando-o à autora, e do qual fica a constar o resultado do acordo obtido entre carregador e transportador, neste caso entre a autora e a ré.
As cisternas foram embarcadas em Leixões, no navio "E", navio de carga geral, adaptado ao transporte de contentores e preparado para o transporte de carga no convés, tendo sido carregadas no seu convés, onde foram devidamente peadas e amarradas com cabos de aço (al. g)).
Competia à autora alegar e provar que o conhecimento de embarque não retratava o que fora contratado. Aceitando-o tal como fora emitido - e isso torna-se mais patente quando se sabe que adoptou esse comportamento em momento em que já fora informada por essa mesma ré do sucedido, apenas de si se poderá queixar.
No sentido de lograr provar que não tivera conhecimento prévio de que as cisternas seriam carregadas e transportadas no convés nem o consentira, alegou matéria de facto que não conseguiu demonstrar (respostas negativas aos quesitos 1 e 2 e restritiva ao quesito 4).
Concluíram as instâncias, como inferência, que a autora prestou consentimento em tal transporte.
Esta conclusão - conclusão de facto - é insindicável pelo STJ e o processo lógico do raciocínio que aquela conduziu não padece de qualquer hiato nem de vício que o afecte.
Ficou assim assente que a autora assumiu o risco associado ao transporte de carga no convés do navio.
Procede, pois, a causa de exoneração legal da responsabilidade do transportador (dec-lei 352/86, de 21.10 - 9º, 1 e 3) sendo relevante o caso (al. h)) de fortuna de mar (Convenção de Bruxelas de 1924 - artº. 4º-2 c) e d)).

2.- Uma das funções do conhecimento de embarque é patentear, provando-as se não forem valida e eficazmente refutadas, as condições do contrato.
A cláusula aposta resulta de uma negociação prévia entre os contraentes (que a autora podia livremente influenciar) não só não conseguiu demonstrar o que se propôs como viu ainda o tribunal concluir, em sede de matéria de facto, precisamente pelo contrário.
O conhecimento de embarque não tinha de, para que aquela fosse válida e eficaz, ser assinado pela autora.
Inaplicável, contrariamente ao por si pretendido, o dec-lei 446/85, de 25.10, na red. do dec-lei 249/99, de 07.07 (cfr. artº. 1º-1 a 3).

Termos em que se nega a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 8 de Julho de 2003
Lopes Pinto
Pinto Monteiro
Reis Figueira