Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3316/11.7TBSTB-A.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
QUESTÃO NOVA
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / RECONVENÇÃO.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, Volume III, 3.ª Edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 139;
- Antunes Varela, CJ, Ano 1986, Tomo III, p. 13 ; RLJ, Ano 114.º, p. 75;
- Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 1992, p. 140 e 175;
- Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, p. 345, 385, 415, 752 e ss.;
- Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, p. 43 e 44 ; Recursos, 1980, p. 27;
- Jorge Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, p. 55;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 305, 306 e 318 ; Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, p. 63 e 64;
- Menezes Cordeiro, Do abuso de direito, estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Castanheira Neves, Volume II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez. 2008, p. 169 e 170 ; Da Boa Fé no Direito Civil, 1984, p. 742 e ss. ; O Direito, Ano 126.º, p. 701;
- Miguel Teixeira de Sousa, Objecto da Sentença e Caso Julgado Material, BMJ, n.º 325, p. 171 a 179 ; Estudos Sobre O Novo Processo Civil, p. 395;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, notas ao artigo 280.º;
- Vaz Serra, Abuso de Direito, BMJ n.º 85, p. 253 ; BMJ, n.º 74, p. 45.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º E 581.º.
LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS (LOFTJ), LEI Nº 3/99, DE 13.01: - ARTIGO 24.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06-02-1982, 16-05-1972, 13-03-1973, 05-02-1974, 29-10-1974, 07-01-75 E 25-11-1975, IN BMJ N.ºS 364, P. 719; 217º, P. 103; 225.º, P. 202; 234.º, P. 267; 240.º, P. 223; 243.º, P. 194; 251.º, P. 122 E 408.º, P. 521;
- DE 21-10-1993, IN CJSTJ, ANO I, TOMO III, P. 84;
- DE 12-01-1995, IN CJSTJ, ANO III, TOMO I, P. 19;
- DE 05-02-1998, IN BMJ, N.º 474, P. 434;
- DE 28-06-2007, PROCESSO N.º 07B1964, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-12-2007, PROCESSO N.º 07ª3739, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-02-2008, PROCESSO N.º 3934/07, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-03-2008, PROCESSO N.º 08B402, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 23-11-2011, PROCESSO N.º 644/08.2TBVFR.P1.S1;
- DE 20-06-2012, PROCESSO N.º 241/07.0TLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-01-2013, PROCESSO N.º 816/09.2TBAGD.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-02-2018, PROCESSO N.º 3747/13.8T2SNT.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. A autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionada no artigo 581º do Código de Processo Civil.

II. Os recursos destinam-se a reapreciar e, eventualmente, a alterar/modificar decisões proferidas sobre questões anteriormente decididas e não a decidir questões novas ou a criar decisões sobre matéria nova, não sendo, por isso, lícito às partes invocarem, nos mesmos, questões que não tenham suscitado perante o tribunal recorrido, a menos que se esteja perante questões de conhecimento oficioso.

III. Quem subscreve uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em conformidade com o que tiver sido ajustado no âmbito da sua emissão, pelo que, mantendo-se válida a relação fundamental que determinou tal subscrição e completado, de acordo com ela, o preenchimento da livrança, do simples facto do respetivo portador ter desencadeado os meios legais para obter a cobrança do crédito titulado na livrança não se pode inferir, sem mais, que ele atuou com abuso de direito, nomeadamente por violação da tutela da confiança – venire contra factum proprium – ou por qualquer outro fundamento susceptível de integrar a figura do abuso de direito prevista no art. 334º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I – Relatório


1. AA e BB deduziram oposição à execução para pagamento da quantia de € 34.169,30 euros que o Banco CC, S.A. instaurou contra os mesmos com base em livrança.

Alegaram, para tanto e em síntese, que, em 13.11.2009 a Farmácia DD, terceira relativamente à presente execução, representada pelo primeiro executado AA, celebrou com a sociedade EE, Lda. o " contrato promessa de compra e venda - com opção de locação financeira", que tinha por objeto o fornecimento, pela referida sociedade EE, à Farmácia DD de uma central telefónica designada por "Central de Comunicações FF - IP Profissional", mediante compra e venda ou locação financeira do equipamento.

A Farmácia DD entregou à EE, que recebeu a título de sinal e princípio de pagamento do preço acordado (€ 28861,23 com IVA incluído á taxa de 20%), o montante de € 2.546,48.

Todavia, o contrato prometido não chegou a concretizar-se nem o equipamento chegou a ser entregue, uma vez que a Farmácia DD, nos termos da comunicação por telecópia de 14.01.2010, resolveu o contrato promessa por ter perdido o interesse na realização do negócio prometido, pelo que o título dado à execução foi abusivamente preenchido pela exequente.

Concluíram pedindo a extinção da execução.


2. Notificada, a exequente contestou.


3. Posteriormente, veio o executado dar conta aos presentes autos que corria termos, contra a sociedade EE e a aqui exequente, uma ação declarativa de condenação proposta pelos executados, que tinha por objeto o contrato de crédito sub judice, bem como o contrato celebrado com a referida EE, na sequência do que o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:


“O executado veio requerer a extinção da execução alegando que …corre termos causa que o autor intentou também contra a ora exequente e que tem por base os mesmos factos, sendo que a exequente não contestou tal acção, considerando que estão confessados os factos aí alegados.

A exequente opôs-se a tal extinção, dizendo que a contestação da co-ré aproveita à ora exequente…

Pede a improcedência do pedido do opoente ou que se suspenda a presente acção até que esteja decidida a acima referida.

Vejamos.


Assim, julgo improcedente o pedido de extinção da execução…


*


Da análise da certidão da acção 3744/11.8TBSTB….verifica-se que o ora opoente é aí A., sendo ré EE….e também a ora requerida/exequente, pelo que a decisão que aí for proferida fará caso julgado também quanto a esta. Por outro lado, nessa acção estão em causa os factos que são alegados pelo opoente como fundamento da oposição.

O artº 279º do C.P.Civil permite a suspensão da instância quando a decisão de uma causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta.

Tendo em conta o acima exposto, é manifesto que a decisão a proferir no processo acima identificado irá influir na decisão a proferir neste processo, pelo que, ao abrigo do mencionado preceito, suspendo a presente instância até que seja proferida decisão definitiva nos autos acima identificados.

…”

(sublinhados nossos)

Junta aos presentes autos a sentença, confirmada no que ora importa, por acórdão proferido no processo referenciado, e entendendo que os factos a considerar provados o permitem e a matéria de direito se mostra já suficientemente discutida, foi proferida a seguinte decisão: “julgar improcedente a oposição à execução e, em consequência, determinar o prosseguimento da execução.”


4. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os executados para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão proferido em 22.02.2018, julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida ainda que com base em fundamentos diferentes.


5. Mais uma vez inconformados, vieram os executados interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:


« A. A letra/livrança dos autos em rigor não é uma era uma livrança em branco, mas sim ou incompleta uma vez que dos contratos celebrados resulta claramente para o intérprete de normal diligência que os subscritores jamais tiveram a intenção de subscrever a livrança dos autos em nome próprio, pelo que jamais quiseram ou tiveram a intenção de contrair a obrigação cambiária emergente do título dado em execução.

B. O preenchimento do contrato de empréstimo não encontra espelho no contrato que lhe serve de fundamento, pelo que o preenchimento da livrança dos autos é NULO, conforme resulta dos autos e da decisão com a autoridade de caso julgado que fundamenta como pressuposto indiscutível o próprio Acórdão recorrido.

C. O contrato de empréstimo que serve como fundamento exclusivo para o preenchimento da livrança não continha expressamente nenhuma clausula "cross default", todavia o comportamento da CC impõe aos executados tacitamente o cumprimento de tal cláusula ao exigir de imediato a prestação dos devedores no contrato de empréstimo, com fundamento na verificação do incumprimento de uma outra obrigação do devedor noutro contrato in causu no contrato promessa de compra e venda com opção de locação financeira.

D. Os executados podiam, como o fizeram, fundadamente confiar que resolvido o contrato promessa de compra e venda com opção de locação financeira, a CC, disso bem sabendo porque a tanto estava obrigada, não ia pagar o preço da compra e venda e accionar os subscritores da livrança como representantes da promitente compradora.

E. É inadmissível e contrária à boa-fé a conduta assumida pelo exequente, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada pelo facto do contrato promessa de compra e venda com opção de locação financeira ter sido resolvido e comunicado à Financeira.

F O acórdão recorrido viola as normas legais e princípios jurídicos supra indicados que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e da mesma forma a jurisprudência citada».


Termos em que requerem seja o presente recurso julgado procedente e, em consequência, seja revogado o Acórdão recorrido».


6. A exequente, respondeu, terminando as suas contra alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«i) O recurso deve ser considerado inadmissível por falta de especificação do fundamento da recorribilidade e alegações deficientes, completamente impercetíveis.

ii) Não deve ser admitido o recurso excecional de revista ao abrigo do artigo 672.°, n° l al. a), por não se verificarem convenientemente invocadas e fundamentadas as razões pelas quais a apreciação das questões colocadas, face à sua relevância jurídica, é claramente necessária para a melhor aplicação do direito.

iii) Sendo invocados novos factos, não invocados em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação de …, nem em sede de oposição à execução, não deverá o presente recurso ser admitido quanto a esses factos novos.

iv) Ao mencionado acresce que pretendem os Recorridos a apreciação de matéria de facto, exclusiva das instâncias e, portanto, não enquadrável no âmbito do presente recurso.

v) Pelo que também por este fundamento, deverá ser considerado inadmissível a interposição do presente recurso.

vi) A apreciação da validade do contrato de crédito, com os fundamentos alegados pelos Recorrentes, como negócio subjacente à obrigação cartular, não poderá ser objecto de apreciação na medida em que o mesmo já foi julgado válido por sentença transitada em julgado no processo n.° 3744/121.8TBSTB, formando-se caso julgado.

vii) Improcede o alegado pelos Recorrentes relativamente à incompletude e consequente nulidade da livrança em questão nos presentes autos, por inexistência de intenção de contrair a obrigação cambiária.

viii) De facto, não tendo sido, até ao momento, invocado qualquer vício da vontade que afectasse a validade e eficácia da livrança, carece de sentido ou justificação alguma a invocação da nulidade da mesma por falta de vontade ou intenção de assumir a obrigação cambiária.

ix) Como resulta da matéria de facto assente pelo venerando Tribunal da Relação de …, o exequente preencheu a livrança dada à execução em virtude do não pagamento das prestações a que os Executado, ora Recorrentes, se encontravam obrigados.

x) Esse preenchimento em nada se deveu à existência, expressa ou tácita, de uma cláusula cross default.

xi) Se a mencionada cláusula existisse, ainda que tacitamente, como alegado pelos Recorrentes, a mesma nunca poderia ter sido accionada por força da alegada resolução do contrato de compra e venda da central telefónica, já que esse contrato não obrigava os Recorridos, que não eram parte do mesmo.

xii) Sempre se dirá que o contrato de compra e venda foi considerado válido e uma compra e venda definitiva, conforme acórdão acima indicado, pelo que ainda assim não procede as alegações dos Recorrentes, porquanto também quanto a esta matéria se formou caso julgado».


7. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Questão Prévia da admissibilidade do recurso de revista.



*



2.1. Sustenta a exequente a inadmissibilidade do recurso de revista interposto pelos executados/opoentes por falta de especificação do fundamento da recorribilidade e alegações deficientes, completamente imperceptíveis.

Mais argumenta que não deve ser admitido o recurso excecional de revista ao abrigo do artigo 672.°, n° l al. a), por não se verificar estarem convenientemente invocadas e fundamentadas as razões pelas quais a apreciação das questões colocadas, face à sua relevância jurídica, é claramente necessária para a melhor aplicação do direito.


*



Ora, lendo o requerimento de interposição de recurso, diremos, desde logo, resultar claro que o mesmo foi interposto nos termos do art. 671º, nº 1 do C. P. Civil, pois, tal como afirmam os recorrentes, apesar do acórdão recorrido ter confirmado por unanimidade a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, fê-lo com base em fundamentação essencialmente diversa, o que tanto basta para afastar a dupla conformidade das duas decisões.    

Assim, tendo em conta que o valor da presente causa e da sucumbência dos executados/opoentes é de € 34.169,30 e, por isso, superior à alçada do Tribunal da Relação[1], não se verifica qualquer factor condicionante da admissibilidade do recurso de revista ao abrigo do disposto no art. 671º, nº 1 do CPC.



***



III. Delimitação do objecto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[2].


Assim, a esta luz, as únicas questões a decidir consistem em saber se:


1ª- da sentença  proferida, em 21.11.2013, na ação declarativa de condenação nº 3744/11.8TBSTB e confirmada pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de …, em 20.10.2016, decorrem efeitos de caso julgado relativamente aos presentes autos de oposição à execução.


2ª- a conduta da exequente  configura abuso de direito.



***



IV. Fundamentação


4.1. Fundamentação de facto


As instâncias deram como provados os seguintes factos:


1. O Exequente deu à execução o escrito da execução, consistente em impresso normalizado de livrança, preenchido, além do mais, nos seguintes termos:

Data 2009/11/24

Vencimento 2011/03/10

Importância 33.833,44€

Do Contrato 80...52

2. Os Opoentes apuseram a sua assinatura na parte frontal do referido documento, no local assinalado com a menção "Assinatura(s) do(s) Subscritor(es)".

3. Os Opoentes apuseram ainda a sua assinatura no documento de que foi junta cópia com o requerimento executivo, como doc. 1 cujo teor se dá por reproduzido, datado de 23.11.2009, do qual constam, na frente do mesmo, além do mais, as seguintes menções:

"CC ( ... ); Proposta nº 34...60;

Identificação do(s) consumidor(es):

Nome dos Consumidores: AA e BB

Condições de Financiamento:

Bem financiado: Central telefónica; Fornecedora: EE; PVP: 28.861,83 Crédito concedido: 28.861,83; Taxa Anual Nominal (%): 0,00 %; Prestação: € 801,72; N° Prestações Mensais: 36; Valor Total Prestações €: 28.861,83; ( ... ) NIB Conta D.0. a Debitar ( ... ); Banco ( ... )

( ... )

8 - Garantias

Para garantia de toda e qualquer dívida emergente do empréstimo concedido, compreendendo capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões e demais encargos o(s) Consumidor(es) e, caso existam, o(s) Avalista(s) autoriza(m) expressamente a CC a preencher qualquer livrança por si subscrita e não integralmente preenchida, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos seus valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Consumidor(es) perante a CC".

4. Os Opoentes/Executados deixaram de liquidar as prestações referidas em 3 dos factos assentes e foram interpelados pelo Exequente para o pagamento.

5. Em virtude do não pagamento, o Exequente preencheu a livrança dada à execução entregue pelos Opoentes/Executados ao primeiro.

6. Em 20 de Outubro de 2016 foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de …, transitado em julgado, nos autos nº 3744/11.8TBSTB, o qual com excepção da condenação dos autores como litigantes de má fé, confirmou a sentença proferida em 21-11-2013, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.



***



4.2. Fundamentação de direito



4.2.1. Conforme já se deixou dito a primeira das questões objecto do presente recurso consiste em saber se da sentença proferida na ação nº da sentença proferida, em 21.11.2013, na ação declarativa de condenação nº 3744/11.8TBSTB e confirmada pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 20.10.2016 , decorrem efeitos de caso julgado relativamente aos presentes autos de oposição à execução.


No sentido afirmativo pronunciou-se a decisão recorrida, considerando, essencialmente, que tendo a livrança exequenda, como negócio causal, o contrato de crédito com o nº 80…52 celebrado entre os executados/opoentes e o exequente Banco CC e tendo a sobredita sentença apreciado todos os factos alegados pelos opoentes como fundamento da presente oposição à execução e decidido definitivamente sobre a validade e eficácia do referido contrato bem como da subscrição da livrança dada à execução, a mesma tornou-se obrigatória dentro e fora do processo, formando caso julgado material nos termos do art. 619º, nº1 e 621º, ambos do C.P. Civil. 


Diversamente, sustentam os recorrentes que o preenchimento do contrato de empréstimo não encontra espelho no contrato que lhe serve de fundamento, pelo que o preenchimento da livrança dos autos é nulo, conforme resulta dos autos e da decisão com a autoridade de caso julgado que fundamenta como pressuposto indiscutível o próprio Acórdão recorrido.


*


Trata-se, pois, de questão que tem a ver com o conteúdo e alcance do caso julgado material, na sua vertente positiva, ou seja, com a eficácia da autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida na referida ação 3744/11.8TBSTB, no que respeita à sua extensão a ações posteriores, pelo que importa analisá-la à luz do art. 619º, nº 1 do C.P. Civil.

Dispõe este artigo que «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º ».

Segundo a noção dada por Manuel de Andrade[3], o caso julgado material «consiste em a definição dada à relação jurídica controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».

A força obrigatória reconhecida ao caso julgado material, ainda segundo o mesmo autor[4], assenta na necessidade de garantir o prestígio dos tribunais, que ficaria seriamente comprometido « se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente».

Impõe-se por razões de «certeza ou segurança jurídica», pois, sem a força do caso julgado, cairíamos « numa situação de instabilidade jurídica ( instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa - fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas».

E tem por finalidade, no dizer do mesmo Professor[5], obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas), a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados.

Dito de outro modo e nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa[6], «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente».

De realçar não ser unânime o entendimento de que, quanto à autoridade de caso julgado, tem que verificar-se a tríplice identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir estabelecida no art. 581º do CPC.

 Com efeito, enquanto para alguns doutrinadores, designadamente para Alberto dos Reis[7], a autoridade de caso julgado requer a verificação da tríplice identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, outros há que defendem que a autoridade de caso julgado pode funcionar independentemente da verificação desta tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.

Nesta última linha e quanto à identidade objectiva, escreve Castro Mendes[8] que «(…)  se não é preciso entre os dois processos identidade de objecto (pois justamente se pressupõe que a questão que foi num thema decidendum seja no outro  questão de outra índole, máxime fundamental, é preciso que a questão se renove no segundo processo em termos idênticos».

Do mesmo modo, considera Lebre de Freitas que «(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida».

Também sustenta Miguel Teixeira de Sousa[9], que «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».

Assim, nesta linha de entendimento, na qual que se posiciona a maioria da jurisprudência, escreveu-se no Acórdão do STJ, de 15.01.2013 (processo nº 816/09.2TBAGD.C1.S1)[10], que «o alcance e autoridade do caso julgado não se pode limitar aos estreitos contornos definidos  nos arts. 580 e 581º do CPC, para a exceção do caso julgado, antes se devendo tornar extensivos  a situações em que, não obstante a ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento e razão de ser daquela figura jurídica estejam notoriamente  presentes».

E afirmou-se, no recente acórdão do STJ, de 22.02.2018 (revista nº 3747/13.8T2SNT.L1.S1) [11], que « a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» e abrange, « para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado».



*



Vejamos, então, neste contexto jurídico e perante a factualidade dada como assente no ponto 4.1, se a autoridade de caso julgado formado pela decisão definitiva proferida na ação declarativa de condenação nº 3744/11.8TBSTB, se estende ao presente processo de oposição à execução.

Trata-se de uma ação que os ora executados/opoentes, AA, BB e a Farmácia DD intentaram contra EE-Companhia de Comunicações, Ldª e Banco CC, S.A. pedindo a condenação:

 a) da ré EE a reconhecer a resolução do contrato promessa celebrado com a autora Farmácia DD, desde a data da comunicação levada a cabo por esta, bem como a devolver o montante pago a título de sinal em dobro, acrescido de juros moratórios desde tal data até integral pagamento, à taxa supletiva comercial;

b) do réu CC a reconhecer a resolução do contrato de crédito celebrado com os autores AA e BB com data da comunicação que lhe foi dirigida para o efeito, bem como a entregar a estes a livrança anexa a tal contrato.

c) de ambos os réus a pagar aos autores indemnização cuja quantificação se remete para liquidação de sentença, acrescida dos juros à taxa legal desde a data da propositura da acção até integral pagamento.

Alegaram, no essencial, que, em 13.11.2009, a autora, Farmácia DD celebrou com a ré EE um “contrato promessa – com opção de locação financeira”, que tinha por objeto o fornecimento pela ré EE de uma central telefónica, tendo sido entregue pela autora, Farmácia DD, o montante de € 2.546,48, a título de sinal e princípio de pagamento do preço acordado de € 28.861,23, com IVA incluído; que a autora, Farmácia DD, resolveu o referido contrato, em 14.01.2010, por ter perdido o interesse na concretização do negócio, em virtude do financiamento contratado entre as rés não corresponder à vontade da autora Farmácia DD, sendo que as rés pretendiam que a central telefónica fosse adquirida pela cabeça-de-casal, titular da Farmácia DD; que a autora, Farmácia DD, não recebeu o equipamento, por não lhe ter sido entregue pela ré EE.

Mais alegaram que a autora Farmácia DD optou por adquirir o equipamento no regime de locação financeira mobiliária, pelo que os autores, AA e BB, subscreveram com o réu CC um contrato de locação financeira, a pedido da ré EE e, paralelamente, subscreveram uma livrança em branco anexa ao mesmo contrato.

Alegaram ainda que a compra e venda não se concretizou, pelo que o preço devido pela adquisição não é devido, visto que não ocorreu a entrega do bem e, na mesma data de 14.10.2010, informaram o Réu CC da resolução do contrato celebrado com a ré EE, recaindo, por isso,  sobre esta última ré a obrigação de restituir à autora, Farmácia DD, o sinal em dobro e, sobre o réu CC, a obrigação de indemnizar os autores, por ter feito registar um incidente de crédito no Banco de Portugal, relacionado com o dito crédito, que levou à inscrição dos autores como clientes de risco, causando-lhe, com isso, prejuízos ainda não totalmente determinados.     


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Sucede que nesta ação nº 3744/11.8TBSTB, foi, em 21.11.2013, proferida sentença, confirmada, nesta parte, por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de … em 20.10.2016 e transitado em julgado, e que, no que respeita ao pedido supra referido na alínea a), considerou, face aos factos  dados como provados, que « não tendo a A. Farmácia DD, no prazo de 30 dias a contar da celebração do contrato ( 13-11-2009), celebrado contrato de locação financeira referente à central telefónica, o contrato em causa configura uma compra e venda  da central telefónica, o qual tem o seu termo inicial a 13-12-2009 (…)» e que « nessa  data, por força do disposto nos arts. 874 e 879, a) do Código Civil  e por erro efeito da celebração do contrato em que operou a transmissão  da propriedade da central telefónica para a A. Farmácia DD, independentemente  da sua efectiva entrega, por se tratar de um negócio jurídico quoad effectum  (…)»

Mais considerou não resultar «dos factos assentes qualquer incumprimento da R. EE da obrigação de entrega da central telefónica (cfr. art. 879º, b) do Código Civil) , ou de qualquer outra que legitime a resolução do contrato de compra e venda pela A. Farmácia DD efectuada a 14.01.2010, mas antes mora do credor, a A. Farmácia DD, nos termos  dos arts. 813º e segs do Código Civil», pelo que «  inexistindo incumprimento da R. EE e resultando do contrato de compra e venda para a A. Farmácia DD a obrigação de pagamento do respectivo preço (v. art. 879º, c) do Código Civil), inexiste igualmente qualquer direito da A. Farmácia DD (ou dos demais AA) à restituição da quantia entregue a título de sinal em dobro ou em singelo, nos termos dos citados arts. 442º, nº2 e 801º, nº 2 do Código Civil, pelo que a açã terá que ser julgada improcedente nesta parte».

Por outro lado e no que concerne ao pedido supra referido na alínea b), considerou esta mesma sentença, face aos factos dados como provados nos pontos 4 [ Com data de 23-11-2009, os AA. AA e BB subscreveram  com a R. CC o documento de fls. 295 e segs, relativo ao financiamento de uma central telefónica pela R. EE, no montante de € 28.861,83], 5 [ E subscreveram ainda uma livrança em branco para garantia desse financiamento],7 [Por força do documento referido em 4., a R. EE recebeu em 24-11-2009 do R. CC uma transferência  para pagamento da central telefónica mencionada em 1. ]  e 8 [ E emitiu o correspondente documento de venda constante de fls. 73 em nome da A. Farmácia DD, conforme acordado  com o A. AA ], tratar-se de « um contrato de mútuo bancário, nos termos do qual  o R. CC emprestou aos AA AA e BB a quantia de € 28.861,83 que os AA se obrigaram  a restituir nas condições aí estipuladas, cfr. arts. 1142º, 1143º e 1145º do Código Civil, não obstante o R. CC ter efectuado uma transferência da quantia mutuada para a R. EE, e não para os AA, mas tal teve lugar ao abrigo do estabelecido na cláusula 4ª, nº4 do contrato de crédito, uma vez que o financiamento se destinou à aquisição da central telefónica».  

Mais considerou que, improcedendo o primeiro pedido, « igualmente improcedente terá que ser julgado o pedido de resolução do contrato de crédito, na medida em que os AA não invocam sequer qualquer fundamento autónomo para a mesma, sustentando-a apenas na resolução do contrato de compra e venda», pelo que « não se vislumbrando qualquer outro fundamento  que pudesse determinar a resolução do contrato de crédito, não resta senão absolver o R. CC deste pedido, inexistindo também e, consequentemente, fundamento para ordenar a devolução da livrança anexa ao contrato, na medida em que, face ao estabelecido na cláusula 8º do contrato de crédito, a mesma estará na posse legítima do R. CC».

E com base em tudo isto, decidiu a sobredita sentença, de forma definitiva, julgar improcedente a ação nº 3744/11.8TBSTB e, consequentemente, absolver os réus do pedido.


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Perante este quadro, não podemos deixar de sufragar o entendimento seguido no acórdão recorrido.

Com efeito, basta ter em conta a factualidade alegada nos artigos 1º a 40º da petição inicial para facilmente se constar que os executados/opoentes invocam como fundamento da presente  oposição à execução os mesmos factos que constituem a causa de pedir na ação nº 3744/11.8TBSTB.

Sendo assim e tendo a sentença nela proferida e transitada em julgado apreciado e decidido, de forma definitiva, no sentido da validade e eficácia do negócio causal da obrigação cartular (ou seja, do contrato de crédito com o nº 80…52, subscrito pelos executados) e da livrança dada à execução (subscrita em branco pelos ora executados para garantia deste financiamento), não reconhecendo, por isso, aos ora executados o direito à resolução deste contrato nem à restituição desta livrança, anexa a tal contrato, dúvidas não restam que tal decisão absolutória traduz-se em decisão de questão fundamental que constitui precedente lógico indiscutível da presente oposição à execução, pelo que, à luz das considerações teóricas acima expostas, não podemos deixar de se considerar o seu efeito de autoridade de caso julgado material relativamente ao presentes autos.

Nem a isso obsta a circunstância de a presente oposição ter como parte apenas o exequente Banco CC, S.A., pois, conforme já se deixou dito, a autoridade de caso julgado não exige a total identidade de sujeitos.

Condição essencial é que o objecto de uma anterior ação se inscreva como pressuposto indiscutível, no objecto da uma posterior ação.

E porque é precisamente isto que acontece, no que concerne aos fundamentos invocados na presente oposição, forçoso é concluir que a autoridade de caso julgado da referida sentença absolutória impõe o seu acatamento, obstando a que a relação jurídica alí discutida (ou seja, a validade e eficácia do contrato de crédito  com o nº 80…52 e da subscrição da livrança dada à execução), venha a ser apreciada, de novo, na presente oposição à execução.

É certo que, não obstante terem alegado expressamente no artigo 16º do requerimento inicial que « parlelamente a tal contrato  subscreveram uma livrança em branco anexa ao contrato, executada nestes autos», os executados vêm agora defender, em sede de alegações de recurso de revista, que a livrança dada à execução a livrança dada à execução, em rigor, não era uma livrança em branco, mas sim incompleta uma vez que dos contratos celebrados resulta claramente para o intérprete de normal diligência que os subscritores jamais tiveram a intenção de subscrever a livrança dos autos em nome próprio, pelo que jamais quiseram ou tiveram a intenção de contrair a obrigação cambiária emergente do título dado em execução.

E, por outro lado, que, não obstante o contrato de empréstimo que serve como fundamento exclusivo para o preenchimento da livrança não conter expressamente nenhuma clausula "cross default", o comportamento da CC impõe, tacitamente, aos executados o cumprimento de tal cláusula ao exigir de imediato a prestação dos devedores no contrato de empréstimo, com fundamento na verificação do incumprimento de uma outra obrigação do devedor noutro contrato, in causu no contrato promessa de compra e venda com opção de locação financeira.

Tratam-se, porém, de questões novas, que não foram alegadas no requerimento inicial nem suscitadas no recurso de apelação, e que, por isso, não podem ser objecto de apreciação por parte deste Tribunal de revista, por força do disposto nos arts. 5º, 608º, nº 2, 627º, 684º, nº 2 e 3, todos do C.P. Civil, posto que como é sabido e constitui entendimento unânime, quer na jurisprudência, quer na doutrina, os recursos destinam-se a reapreciar e, eventualmente, a alterar/modificar decisões proferidas sobre questões anteriormente decididas e não a decidir questões novas ou a criar decisões sobre matéria nova, não sendo, por isso, lícito às partes invocarem, nos mesmos, questões que não tenham suscitado perante o tribunal recorrido[12].

De resto, sempre se dirá estarmos, na presente situação, perante matéria nova que, a admitir-se traduzir-se-ia numa alteração da causa de pedir não consentida pelo art. 265º, nº1 do C. P. Civil.  


Daí improcederem as conclusões vertidas nas alíneas alíneas A) a D) das alegações de recurso. 


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4.2.2. No que respeita à questão do abuso de direito, sustentam os recorrentes ser inadmissível e contrária à boa-fé a conduta assumida pelo banco exequente, pois ao preencher a livrança e ao dá-la à execução, após lhe ter sido comunicada a resolução do contrato promessa de compra e venda com opção de locação financeira, traiu a confiança gerada nos executados de que não seriam acionados enquanto subscritores da livrança em causa.

Cremos, porém, não lhe assistir qualquer razão.

Senão, vejamos.

Segundo o disposto no artigo 334º do C. Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

Perante o preceituado neste artigo e na esteira dos ensinamentos de Manuel de Andrade[13], Vaz Serra[14] e Antunes Varela[15], poder-se-á dizer, em síntese, que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé[16], pelos bons costumes[17] ou fim social ou económico desse direito.

Para Menezes Cordeiro[18], a base ontológica do abuso de direito é a disfuncionalidade intra-subjectiva, ou seja, o exercício do direito que contraria o sistema: o abuso de direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integram.

No dizer do Acórdão do STJ, de 07.02.2008 (revista nº 3934/07)[19], o instituto do abuso de direito representa  o controlo institucional da ordem jurídica no que tange ao exercício dos direitos subjetivos privados e surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Entre os comportamentos abusivos, Menezes Cordeiro[20], aponta o “venire contra factum proprium”, que traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.

A proibição do " venire contra factum proprium" corresponde à parte do artigo 334° que considera ilegítimo o exercício de um direito "quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé"[21].

A boa fé, no dizer de Jorge Coutinho de Abreu[22], significa que, no exercício dos seus direitos e deveres, nomeadamente em cumprimento dos seus compromissos contratuais, as pessoas devem assumir um comportamento honesto, correto e leal, tudo por forma a não defraudar a legítima confiança ou as expectativas de outrem.

Trata-se de uma aplicação do princípio da confiança, que, na expressão de Baptista Machado[23], é um princípio ético-jurídico fundamental. «Poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; e assegurar expectativas é uma das funções primárias do direito», pelo que, «nos casos em que é aplicável a proibição do venire, “a «responsabilidade pela confiança” funciona em regra em termos preventivos, paralisando o exercício de um direito ou tornando ineficaz aquela conduta declarativa que, se não fosse contraditória com a conduta anterior do mesmo agente, produziria determinados efeitos jurídicos».

Para este autor, o ponto de partida do venireé «uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira» [24].

Também Menezes Cordeiro[25], situa a justificação do "venire" no princípio da confiança como concretização da fórmula vaga da boa fé, referindo que «a confiança permite um critério de decisão: um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas».

«O investimento da confiança, por fim, pode ser explicitado com a necessidade de, em consequência ao factum proprium a que aderiu, o confiante ter desenvolvido uma actividade tal que o regresso à situação anterior, não estando vedado de modo específico, seja impossível em termos de justiça».

E. segundo ele[26], os pressupostos da proteção da confiança através do venire passam por:

« 1° -  uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2° - uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na  estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3° - um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma conduta na base ao factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4° - Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível».

A jurisprudência, como é exemplo, entre muitos outros, os Acórdão do S.T.J. de 05.02.1998 [27] e de 28.06.2007 ( revista nº 07B1964)[28], aceita serem basicamente estes os pressupostos do venire.

Ora, analisando, neste pano de fundo, a situação acima descrita pelos recorrentes, não se vê que a mesma indicie que o banco exequente  tenha, de algum modo,  violado os princípios da boa fé e da confiança  que os recorrentes nele depositaram.

Com efeito, decidida que ficou, de forma definitiva, a validade e eficácia do contrato de crédito com o nº 80…52 e da livrança dada à execução, subscrita em branco pelos ora executados  para garantia deste financiamento e  tendo a sentença absolutória proferida na ação nº 3744/11.8TBSTB, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de …, transitado em julgado, negado aos  ora executados o direito à resolução deste contrato e à restituição desta livrança, anexa a tal contrato, e assente que a autoridade de caso julgado material formado por esta decisão se estende à presente oposição à execução aos presentes autos de oposição à execução, não se vê que o banco exequente tenha, de algum modo, violado os princípios da boa fé e da confiança que os recorrentes nele depositaram, não se podendo inferir do simples facto do mesmo ter desencadeado os meios legais para obter a cobrança do crédito  titulado na livrança que ele atuou com abuso de direito, nomeadamente por violação da tutela da confiança – venire contra factum proprium – ou por qualquer outro fundamento susceptível de integrar a figura do abuso de direito prevista no art. 334º do C. Civil.

É que, tal como resulta do disposto nos artigos 75º e 10º da Lei Uniforme das Letras e Livranças (LULL), aplicável às livranças por força do disposto no art. 77º do mesmo diploma, a lei admite e reconhece a figura da livrança incompleta ou em branco, a qual pode ser validamente completada em conformidade com o que tiver sido ajustado no âmbito da sua emissão, mediante acordo expresso ou tácito, designado por pacto de preenchimento, mormente no quadro da relação fundamental que determinou tal criação.

Uma vez completado o preenchimento da livrança e colocada esta em circulação, a mesma passa a produzir todos os efeitos próprios da livrança.


Improcedem, pois, todas as demais conclusões dos recorrentes bem como o recurso por eles interposto, não merecendo qualquer censura acórdão recorrido que, por isso, será de manter.



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V – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se inteiramente o acórdão recorrido.

As custas do recurso são a cargo dos executados/opoentes, aqui recorrentes.


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Supremo Tribunal de Justiça, 18 de setembro de 2018

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

José Manuel Bernardo Domingos

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[1] Que é de € 30.000,00, nos termos do art. 24º, nº1 da Lei nº 3/99, de 13.01, na redação do art. 5º do DL nº 303/2007, de 24.08.
[2] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[3] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, 305, 
[4] In, “ Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 306.
[5] Neste sentido, vide, Manuel de Andrade, in, Noções Elementares, Coimbra Editora, 1979, 318.
[6] In, “Objecto da Sentença  e Caso Julgado Material”, publicado no BMJ, nº 325, págs. 171ª 179.
[7] In, “ Código de Processo Civil, Anotado, Vol. III, 3ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 139.
[8] In,  “ Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, Edições Ática, págs. 43 e 44.
[9] In  obra e local citados.
[10] No mesmo sentido, cfr. Acórdãos do STJ, de 13.12.2007 (processo nº 07ª3739); 06.03.2008 (processo nº 08B402)  e de 23.11.2011 ( processo nº 644/08.2TBVFR.P1.S1), todos publicados in www dgsi.pt/stj.
[11] No sentido exposto, vide, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 20/06/2012 (processo 241/07.0TLSB.L1.S1), acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[12] Cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 06.2.82, 16.5.72, 13.3.73, 5.2.74, 29.10.74, 7.1.75 e 25.11.75, publicados, respectivamente, no BMJ n.ºs 364, pág. 719;  217º, pag.103;  225º, pág.202; 234º, pág.-267; 240º, pág. 223; 243º, pág. 194; 251º, pág 122 e 408º, pág.521. Cfr. ainda Castro Mendes, in “Recursos”, 1980, pág 27; Armindo Ribeiro Mendes, in , “Recursos em Processo Civil”, 1992, págs. 140 e 175 e  Miguel  Teixeira de Sousa,  in, “Estudos Sobre O Novo Processo Civil”, pág. 395. 
[13] In, “Teoria Geral das Obrigações”, 3ª ed., págs. 63 e 64.
[14] In, “ Abuso de Direito”, BMJ nº 85, pág. 253.
[15] In, RLJ, ano 114º, pág 75.
[16] Agir de boa fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, e ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar. Neste sentido, vide, Antunes Varela, in, CJ, ano 1986, tomo III, pág. 13; Almeida Costa , in, obra citada, págs. 846 e Vaz Serra, in, BMJ, n.º74, pág. 45.
[17] Entendidos estes como um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações de imoralidade ou indecoro social – Vide, Almeida Costa, in, obra citada, pág. 66 e Pires de Lima e Antunes Varela, in, “Código Civil Anotado”, Vol. I, notas ao artigo 280º.
[18] In, “ Do abuso de direito: estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem  ao Prof. Doutor Castanheira Neves”, Vol. II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez 2008, pág. 169 e 170.
[19] In, www.dgsi.pt.
[20] In, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 1984, pág. 742 e segs.
[21] Baptista Machado, in, “Obra Dispersa”, vol. I, pág. 385.
[22] In, “ Do Abuso de Direito”, pág. 55.
[23] Cfr. o estudo Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”, in “Obra Dispersa”, vol. I, pág. 345 e ss.
[24] In “Obra Dispersa”, vol. I, pág. 415 e ss.
[25] In, obra citada, pág. 752 e segs.
[26] In, parecer publicado na revista “O Direito”, ano 126º, pág. 701.
[27] In, BMJ, n.º 474, págs. 434
[28] In www. dgsi.pt.