Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
118/03.8TBPST.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: URBANO DIAS
Descritores: CONTRATO DE CESSÃO DE EXPLORAÇÃO COMERCIAL
FALTA DE ESCRITURA PÚBLICA
CONSEQUÊNCIAS
CONVERSÃO DO NEGÓCIO
Apenso:
Data do Acordão: 06/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Doutrina: - António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, páginas 885 e 886.
- Baptista Machado Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 223.
- Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, páginas 70 e 71.
- Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral da Relação Jurídica, páginas 486 e 487.
- Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, página 600.
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, página 434.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, páginas 759 e seguintes.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, páginas 268 e 269.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, N.º 2, 220.º E 293.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 274º .
CÓDIGO NOTARIAL: - ARTIGO 89º, ALÍNEA K).
REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (RAU), COM A ALTERAÇÃO DO DL Nº 64-A/2000, DE 22 DE ABRIL: - ARTIGO 110º N.º 3.
Sumário : I – A alteração introduzida no artigo 110º do R.A.U. pelo Decreto-Lei nº 64-A/2000, de 22 de Abril, traduzida no acrescento de um nº 3, através da qual a validade formal do contrato de cessão da exploração comercial passou a estar apenas dependente da sua redução a escrito (deixando, portanto, de ser exigida a outorga de escritura pública) vale apenas para os contratos firmados a partir da entrada em vigor daquele diploma legal, não tendo eficácia retroactiva, precisamente porque não se trata de uma lei interpretativa. Isso mesmo resulta da 1ª parte do nº 2 do artigo 12º do Código Civil.
II – A declaração de nulidade de um contrato de cessão de exploração comercial, por falta de escritura pública (forma exigida à data da feitura do contrato), não permite, sem mais, a sua conversão num contrato-promessa de cessão de exploração comercial. É que para que se possa verificar a conversão, não basta que o negócio nulo ou anulado contenha os requisitos essenciais, de substancia e de forma, do negócio que vai substituir, tornando-se, ainda, necessário que se harmonize com a vontade hipotética ou conjectural das partes. O mesmo é dizer que a conversão só se realiza quando seja de admitir que as partes teriam querido o negócio sucedâneo, caso se tivessem apercebido da deficiência do negócio principal e não o pudessem realizar com observância dos requisitos infringidos.
III – Caso nada disto resulte da factualidade dada como provada (até porque nada foi alegado nesse sentido) soçobra qualquer pretensão de ver convertido aquele negócio de cessão de exploração comercial num simples contrato-promessa de cessão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I.
Relatório
Clube Naval de Porto Santo Manso demandou AA - M..., F... e P... Lª, na mira de obter a sua condenação na entrega do locado (estabelecimento de bar e restaurante, sito no P... de A... de Porto Santo), livre e devoluto, e no pagamento de todas as rendas, vencidas e vincendas, com juros de mora à taxa legal, atenta a cessação do contrato de cessão de exploração, com ela celebrado, por resolução.

A R. contestou e, concomitantemente, pediu, em reconvenção, condenação da A. no pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a liquidar a final.

Replicou a A., pugnando não só pela improcedência deste pedido, como pela consagração do, por si, peticionado.

Em sede de saneador, na sequência da nulidade do contrato, decretada por falta de forma, foi a R. condenada a entregar o dito estabelecimento, completamente livre e devoluto de pessoas e bens, e, ainda, a pagar à A., a título de indemnização pela utilização do locado, a quantia correspondente ao valor da renda que seria devida se o mesmo fosse válido, desde o início do contrato até à entrega, com desconto dos meses já pagos, e a A. absolvida do pedido reconvencional.

Sem êxito, apelou a R. para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Continuando inconformada, a R. pede, ora, revista do acórdão da Relação de Lisboa, vertendo as seguintes conclusões:
O acórdão da Relação julgou improcedente o recurso interposto do saneador-sentença e julgou que a conversão do negócio nulo por inobservância da forma legal não pode servir para, num primeiro momento, à data da conclusão do contrato, o converter em contrato-promessa de cessão ou locação de estabelecimento, assim escapando à nulidade por inobservância de forma legal e, num segundo momento, considerar válido o referido contrato definitivo, porque celebrado pela forma escrita e assim beneficiar da alteração legislativa entretanto operada.
– O acórdão recorrido julgou ainda improcedente o recurso quanto à questão da reconvenção da Recorrente, por considerar que as pretendidas indemnizações, por danos não patrimoniais e por danos patrimoniais, estão assentes no incumprimento contratual do A., que tinha a obrigação de obter a licença para o estabelecimento, e não o tendo feito, só se concebem se assentes num contrato válido.
– O saneador-sentença de 1ª instância decidiu considerar nulo, por falta de forma, o contrato de cessão de exploração celebrado entre A. e R., decisão que se veio a confirmar no Tribunal da Relação de Lisboa.
– À data, aposta no contrato como sendo a da sua assinatura, era exigida a forma de escritura pública para celebração do contrato de cessão de exploração.
– Entretanto, produziu-se uma alteração legislativa, com a publicação do Decreto-Lei nº 64-A/2000, de 22 de Abril, tendo passado a ser apenas exigida a forma escrita. Ora, o contrato em causa obedecia à forma escrita.
– O regime de aplicação da lei no tempo previsto no artigo 12º, do Código Civil, tem como objectivo proteger as partes contra alterações legislativas que não poderiam prever ao tempo da celebração dos contratos.
Assim, não faria sentido que, celebrando-se hoje um contrato para a validade do qual apenas é exigida a forma escrita, ele venha amanhã a ser considerado nulo por falta de forma por força da entrada em vigor de uma lei que exija uma forma mais solene.
– No caso concreto o que se passa é o inverso, o contrato celebrado com deficiência de forma passa à luz da lei nova a ser válido. É opinião da Recorrente que, nestes casos, o contrato se convalida, o que levará a ter que considerar que o contrato em causa nos autos é válido e não poderá ser considerado nulo.
– Segundo a posição do Prof. Baptista Machado: “Acontece, que a LN vem exigir certos requisitos de validade cuja exigência era duvidosa no domínio da LA e ao mesmo tempo declara expressamente válidos os actos anteriores que não respeitam tais condições. Neste caso os actos praticados sem observância dos requisitos fixados pela LN passam a ser válidos.
– Se tal não se verifica, se não há esta declaração expressa, deve aplicar-se a LN se for mais favorável aos interesses do particular sem prejuízo do interesse de uma contraparte ou de terceiros. Se o legislador não der expressão no texto legal ao alcance confirmativo do mesmo intérprete deve orientar-se pelo disposto no nº 2, primeira parte deste artigo”.
– Um contrato-promessa pode produzir efeitos ou pode servir para permitir a execução correspondente ao contrato prometido ou actos que lhe sejam preparatórios.
– A possibilidade de se celebrarem contratos-promessa com tradição da coisa é claramente admitida pela lei – artigo 442°, nº 2, do Código Civil. Trata-se de um acto de antecipação dos efeitos próprios do contrato.
– Se se entender que não é possível convalidar um negócio jurídico nulo, então sempre se poderia converter um contrato de cessão de exploração nulo por falta de forma num contrato-promessa de locação. São negócios distintos mas que se subsumem aos actos praticados por Recorrente e Recorrido.
– O efeito prático do negócio sucedâneo seria, para a Recorrente, a tradição imediata do estabelecimento ou do espaço para que a Recorrente pudesse desde logo adaptar o mesmo à exploração ou utilização e poder iniciar a sua exploração na data de início de produção de efeitos
– Para o Recorrido, tal efeito prático do negócio sucedâneo seria cumprir a obrigação assumida de obter o necessário licenciamento municipal – para o qual seria necessário criar as condições mínimas para abrir um estabelecimento comercial de restaurante e bar – e começar a receber de imediato uma prestação pecuniária pela ocupação do espaço, que se pode qualificar como cumprimento antecipado ou até como forma de compensar o Recorrido pela imobilização do direito ao espaço onde se instalou o estabelecimento da Recorrente.
– Com a referida tradição do espaço ou do locado e com antecipação de cumprimento, não fica, no entanto, impedida a conversão do negócio em contrato-promessa de cessão de exploração ou então de locação comercial nem se defrauda o instituto respectivo.
– O negócio nulo tem a mesma substância do negócio em que se pretende convertê-lo:
Exploração comercial de um estabelecimento de restaurante e bar, mediante uma contrapartida.
– Durante anos que se vem executando um contrato entre as partes e a simples violação de uma formalidade, por mais importante que ela seja, vem a pôr em causa contratos de trabalho, contratos de fornecimentos de serviços e de bens.
– A vontade da Recorrente nunca seria a de colocar em causa tais contratos e a vontade do Recorrido era a de receber contrapartidas, já que sempre recebeu e reclamou os pagamentos.
– As partes continuaram com vontade em contratar e manifestaram-no.
– A reconvenção deduzida pela R. não deveria ter sido considerada improcedente, porque, ainda que se considere que o contrato é nulo, o facto de ele ter produzido efeitos não pode ser matéria estranha ao julgador.
– Não pode considerar-se que a relação jurídica entre as partes produziu alguns efeitos (pois se é condenada a R. a indemnizar por ter utilizado o espaço) e entender que a R. deve pagar ao A. as quantias a título de renda pelos meses que explorou o estabelecimento e depois considerar improcedente a reconvenção deduzida como se a relação jurídica entre A. e R. não tivesse tido consequências factuais bilaterais, ainda que ao abrigo de um contrato nulo, as quais terão por certo tratamento jurídico.
– Se o Recorrido tem direito a ser indemnizado pela utilização do espaço, também a Recorrente tem direito a ser indemnizada, nos termos oportunamente alegados em reconvenção, já que não deixou de ver a sua imagem abalada com a falta de licenciamento do local, conforme se tinha comprometido o A.
– A utilização do local que a R. tinha a legítima expectativa de vir a ter, com a redução de horário que sofreu por consequência directa da omissão do A. acabou por ser inferior, reflectindo-se negativamente nas receitas que esperava auferir.
– O uso efectivo do local não pode ter correspondência com o das prestações convencionadas, porque estas pressupunham um uso diverso, com um horário maior que aquele que a Recorrente viu ser-lhe imposto, por falta de licenciamento.
– O valor locativo era inferior ao que havia sido acordado, sem que a Recorrente tenha contribuído para tanto, com culpa exclusiva do Recorrido, do que se deveria ter produzido prova.
– Ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido violou as disposições dos artigos 12° e 293° do Código Civil.
– Em virtude do que ficou exposto deve ser revogado o acórdão recorrido e ser proferida decisão que:
a) Considere válido o contrato, tudo com as legais consequências; ou
b) Ordene a baixa do processo à 1ª instância e a sua continuação até final para produção de prova; ou
c) Considere o contrato nulo, sub judice convertido em contrato promessa de cessão de espaço para instalação e exploração de estabelecimento comercial, ou de locação para o mesmo fim, tudo com as legais consequências.

A parte contrária não respondeu.

II.
As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1 – Por documento escrito assinado pelas Partes, em 27 de Janeiro de 2000, e intitulado “Contrato de Concessão de Exploração”, o A. declarou conceder à R. a exploração do estabelecimento de restaurante e bar, sua pertença, localizado no prédio urbano em que se situa a sua sede, no P... de A... de Porto Santo, construído em parcela de terreno do domínio público cujo uso privativo lhe foi atribuído, por trinta anos, pela Resolução nº 1251/95, de 7 de Novembro de 1995.
2 – No mesmo documento consta que o A. pretende ter em funcionamento o mesmo estabelecimento de restaurante e bar a fim de prestar serviços correspondentes a essas actividades aos seus sócios e utilizadores da marina e conceder à R. a sua exploração de modo a que seja ela a ocupar-se dessa actividade.
3 – Ficou estipulado que a R. explorará o estabelecimento de restaurante e bar instalado no local, por um prazo de 8 anos, a contar de 1 de Janeiro de 2001.
4 – Nos termos constantes do referido documento, acordaram ainda as Partes que o preço da concessão é de 200.000$00 mensais, a que acresce I.V.A., à taxa em vigor em Porto Santo, pagáveis até ao dia 30 de cada mês, por cheque à ordem do primeiro outorgante (A.), de que este passará a respectiva quitação.
5 – Acordaram ainda as Partes que, a partir de 1 de Janeiro de 2005, o preço da concessão será o valor correspondente a 300.000$00 mensais, a que acresce I.V.A., à taxa em vigor em Porto Santo.
6 – Também submeteram ao referido acordo a condição de que, a partir de Janeiro de 2005, o valor da renda está sujeito a actualização anual, de acordo com os coeficientes de actualização de rendas fixadas anualmente para os arrendamentos para comércio e indústria.
7 – Ajustaram também que a R. pode ceder a terceiro a sua posição contratual no decurso da vigência do contrato, devendo informar o A., por carta registada com aviso de recepção, identificando o cessionário. Mais acordaram que a cessão considerar-se-á autorizada pelo primeiro outorgante (o A.), se este não se lhe opuser, por carta registada com aviso de recepção, que seja recebida pela segunda outorgante (a R.), no prazo de 30 dias sobre a informação que lhe tiver feito.
8 – A. e R. iniciaram a execução do acordo constante do documento identificado em 1, com a R. a explorar o aludido estabelecimento restaurante e bar e a pagar a contraprestação ajustada, e o A. a recebê-la.

III.
Quid iuris?
Da leitura das conclusões, com que a Recorrente fechou a sua minuta, retira-se a ideia de que pugna pela manutenção da validade do negócio celebrado com a Recorrida ou, caso assim não seja entendido, pela sua conversão num contrato-promessa de locação de estabelecimento comercial. Ao mesmo tempo, defende que, mau grado o contrato outorgado ter sido declarado nulo, a reconvenção deve proceder e, por fim, a baixa do processo à 1ª instância para continuação, até final, com produção de prova.

Algo confusa, portanto, esta arrumação de pretensões, cujo conhecimento nos surge, de certa forma, interligado.
Analisemo-las, portanto.
É por demais evidente que as Partes outorgaram, no passado dia 27 de Janeiro de 2000, um contrato de cessão de exploração comercial (rectius: de locação comercial), tendo por objecto o estabelecimento de bar e restaurante, sito em P... de A..., Porto Santo, mediante simples escrito particular.
À época, a escritura notarial consubstanciava formalidade ad substantiam para que tal tipo de negócio fosse considerado como válido na ordem jurídica: o postulado no artigo 89º, alínea k), do Código Notarial, então vigente, assim o exigia.
Como assim, a inobservância daquela forma legal tinha como consequência a nulidade do negócio, atento o preceituado no artigo 220º do Código Civil.
Insiste, porém, a Recorrente na ideia de manter a validade do negócio, à custa de uma deturpada visão da realidade das cousas.
Vejamos.
Por força do Decreto-Lei nº 64-A/2000, de 22 de Abril, o artigo 110º do R.A.U. passou a conter um nº 3 no qual se estipulava que “a cessão de exploração do estabelecimento comercial deve constar de documento escrito, sob pena de nulidade”. Passou, portanto, a não ser exigida escritura pública para a validação deste negócio, contentando-se a Lei apenas e só com a redução do mesmo a escrito.
Esta alteração legislativa, ao contrário do que se possa pensar, não teve carácter interpretativo, antes surge com uma lei nova, sem eficácia retroactiva, nos precisos termos do nº 2 do artigo 12º, do Código Civil. Nesta conformidade, as condições de validade do negócio em causa são regulados pela lei em vigor à data da sua celebração.
É essa, seguramente, a lição que se colhe de Baptista Machado:
“Quando, pois, a constituição da SJ se processa através de um acto ou negócio jurídico (…), a regra de conflitos em causa não significa que a LN não se aplica às condições de validade do acto ou negócio jurídico que deu vida a uma SJ antes da sua entrada em vigor. Donde se conclui que é em face da LA que devem ser decididas as questões de saber se uma SJ concreta se constitui ou não, se ela se constituiu regularmente ou padece de quaisquer vícios na sua formação – isto é, todas as questões relativas à validade ou invalidade dos respectivos actos constitutivos” (Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, páginas 70 e 71).
E, ainda:
Desenvolvendo o princípio da não retroactividade nos termos da teoria do facto passado, o art. 12º, nº 2, distingue dois tipos de leis ou normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (1ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que tais situações deram origem (2ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (melhor: Ss Jj) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data IV” (“início de vigência ou entrada em vigor”) (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 223).
Afastada, portanto, a previsão contemplada pela Recorrente: aqui não estamos perante um caso em que um dos requisitos de validade do negócio era objecto de dúvida, caso em que, então sim, a nova lei se apresentaria com roupagem interpretativa, com as necessárias implicações de retroactividade.
Aqui o que se passou foi simplesmente uma opção do legislador pela forma a observar neste (a par do trespasse) tipo de negócio, a partir de 1 de Maio de 2000 (artigo 3º do diploma em causa): daí a aplicação da LA ao caso sub iudice, como evidenciado.
Podemos, pois, com toda a certeza e com toda convicção, assegurar que o julgado pelas instâncias, no que tange à validade do negócio outorgado pelas Partes, está perfeitamente certo.
Estamos, definitivamente, em presença de um negócio nulo, por falta de forma. Ora, nolens, volens, um negócio nulo jamais pode ser considerado como válido.
Não faz, assim, qualquer sentido a pretensão da Recorrente de continuar a ver o negócio como válido, pretextando, sem qualquer fundamento jurídico válido a apoiá-la, que “o regime da aplicação da lei no tempo previsto no artigo 12º do Código Civil tem como objectivo proteger as pessoas contra alterações legislativas que não poderiam prever ao tempo da celebração dos contratos”.
Mais: precisamente, tendo em devida conta, as naturais expectativas das Partes outorgantes, é que se justifica, de todo, o regime legal consagrado no nosso Ordenamento.

Passemos, agora, à problemática do pedido reconvencional.
Prevendo a hipótese de absolvição, a R., aqui Recorrente, deduziu pedido reconvencional com o fito de obter condenação da A., aqui Recorrida, no pagamento de indemnização pelos danos “morais e materiais a que o seu incumprimento deu causa, em montante a fixar em liquidação de sentença”.
Ultrapassado a questão de saber se esta pretensão se encaixa na previsão do artigo 274º, do Código de Processo Civil, decisão que transitou em julgado, admitindo, apenas por mera hipótese de raciocínio, que as instâncias não decidiram em conformidade ao negar à Reconvinte o direito à indemnização pretendida, com o argumento de que um contrato nulo nunca pode sustentar uma tal pretensão indemnizatória (o que, para que não haja dúvidas, nos parece absolutamente certo), a verdade é que a este respeito nada ficou provado, como resulta da leitura dos factos elencados.
Razão de sobra para a Recorrente não lograr vencimento, neste ponto concreto.

Apesar do salientado, que, no fundo, confirma, na íntegra, as posições das instâncias, insiste a Recorrente na possibilidade de conversão do negócio celebrado num contrato-promessa de “cessão de espaço para instalação e exploração de estabelecimento comercial ou de locação para o mesmo fim”.
A Relação interpretou esta pretensão da Recorrente como sendo uma forma de ultrapassar a impossibilidade legal, imposta pela lei em vigor, no momento da feitura do negócio.
Daí que tenha observado, com toda a pertinência, que “o artigo 293º, do Código Civil, permite que um negócio jurídico nulo se converta em outro de tipo e conteúdo diferentes, mas não consente que esse negócio se convalide quando a lei posterior à sua celebração dispense os requisitos formais cuja falta determinou a nulidade”.
A admitir-se esta possibilidade estaria encontrada a forma (enviesada) de contornar a Lei, o que, como é sabido, o Direito não permite.
Em clara fraude à lei, permitir-se-ia às Partes a legitimação de uma situação que, aos olhos do legislador, se afigurava, na substância, como nula.
Não pode ser!
Daí a pertinente nota lançada por Pires de Lima e Antunes Varela:
“Para que se possa verificar a conversão, não basta que o negócio nulo ou anulado contenha os requisitos essenciais de substância e de forma do negócio que vai substituí-lo. É ainda necessário, de acordo com a parte final do artigo 293º, que a conversão se harmonize com a vontade hipotética ou conjectural das partes”.
E acrescentam:
“Não se confunde a figura da conversão com o caso de negócio com vontade alternativa. Neste caso, as partes, prevendo a hipótese de ser nulo o negócio que querem celebrar, convencionaram que então valerá outro.
Este segundo negócio, apoia-se na vontade real das partes, enquanto na conversão o segundo negócio faz apelo à simples vontade conjectural ou hipotética” (Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, página 269).
A conversão, tal como está prevista no artigo 293º, do Código Civil, pressupõe uma vontade hipotética das partes, aferida de acordo com os ditames da boa fé e os demais elementos atendíveis, por referência às circunstâncias temporais e circunstanciais da celebração do contrato (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, páginas 885 e 886, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral da Relação Jurídica, páginas 486 e 487, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, páginas 759 e seguintes, Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, páginas 268 e 269, Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, página 600, e Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, página 434).
Este último A., consagrado Mestre coimbrão, com a clareza que o distingue e que transforma as cousas difíceis em fáceis, deixou mesmo dito que “a conversão só se realiza quando, …, seja de admitir que as partes teriam querido o negócio sucedâneo caso se tivessem apercebido da deficiência do negócio principal e não o pudessem ter realizado com a observância do requisito infringido. Esta vontade hipotética será a alma do negócio sucedâneo, mas construído sobre a base do negócio principal (…), tendo em vista a sua natureza típica e particularidades concretas”.
Tudo isto a exigir alegação e comprovação.
Ora, a este respeito, nada ficou provado, o que, automaticamente, afasta (se as outras razões não fossem pertinentes, e são, como vimos) qualquer possibilidade de satisfação da pretensão da Recorrente.
Além de tudo o referido, o certo é que tal pretensão, nos moldes em que aparece formulada, se nos apresenta de todo incompreensível, atenta a consabida natureza instrumental do contrato-promessa.

Perante tudo o que acabou de ser dito, uma última pergunta: para que anular a decisão recorrida?
A resposta está (implicitamente) dada: a previsão do nº 3 do artigo 729º, do Código de Processo Civil, é aqui totalmente inaplicável.
Pelo contrário, está tudo decidido, e bem decidido.
Justifica-se, assim, a plena confirmação do acórdão recorrido.

IV.
Decisão:
Nega-se a revista e coloca-se o pagamento das custas a cargo da Recorrente.

§§§

Supremo Tribunal de Justiça.
Lisboa, aos 17 de Junho de 2010,
Urbano Dias (Relator)
Paulo Sá
Mário Cruz