Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
971/08.9TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
FORMA DO CONTRATO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
RENOVAÇÃO AUTOMATICA
OPOSIÇÃO
LEI APLICÁVEL
PRAZO
COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 05/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P.96
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - ARRENDAMENTO URBANO
Doutrina: - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 13ª reimpressão, 2002, 237 a 241.
- Isidro de Matos, Arrendamento e Aluguer, 294; Sá Carneiro, RT, Ano 89º, 318 e 319.
- Joaquim de Sousa Ribeiro, O Novo Regime do Arrendamento Urbano: contributos para uma análise, Cadernos de Direito Privado, nº 14, Abril/Junho, 2006, 7.
- Pais de Sousa, Extinção do Arrendamento Urbano, 1980, 22 e 24.
- Pereira Coelho, Direito Civil, I, Arrendamento, 1976, 33.
- Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª edição, revista e actualizada, 2001, 257 e 258.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1ª edição, 1968, 355, 375 e 402.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4ª edição, revista e actualizada, 1997, 624, 625 e 699.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC) - DE 1966: - ARTIGOS 1029.º, Nº 1, A) E B), 1086.º, Nº 1, 1095.º, 1112.º A 1118.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1055.º, NºS 1, B) E 2, 1067.º, Nº 1, 1079.º, 1096.º, NºS 1E 2 E 1097.º, 1101.º, C), E 1110.º, Nº 1,
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 288.º, Nº 1, E), 493.º, Nº.S 1 E 2, 494.º E 662.º.
DL Nº 321-B/90, DE 15 DE OUTUBRO (RAU): - ARTIGOS 5.º, 6.º, 107.º.
NOVO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (NRAU), APROVADO PELA LEI Nº 6/2006, DE 27 DE FEVEREIRO: - ARTIGOS 26.º, Nº 4, A), 57.º, 58.º, 59.º, NºS 1 E 3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 15-10-1980, BMJ Nº 300, 376.
Sumário : I - Destinando-se o arrendamento, submetido à formalidade da escritura pública, à instalação de um armazém de papel, enquanto actividade que se acha, directa e objectivamente, relacionada com o exercício do comércio, onde já se encontra, há mais de trinta anos, não tendo em vista satisfazer uma actividade transitória do locatário, limitada no tempo, não deve ser qualificado como uma modalidade de arrendamento predial urbano para outros fins lícitos, mas antes como um arrendamento para o exercício do comércio.
II - A primazia do NRAU, na definição dos critérios de delimitação intertemporal, só é manifesta quanto aos preceitos imperativos, que são de aplicação imediata, mas não quanto às normas supletivas, que apenas se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do NRAU quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da sua celebração, como reflexo da subordinação do “estatuto do contrato” em relação ao “estatuto legal”.
III - A alteração substancial mais relevante introduzida pelo NRAU consistiu na eliminação do monopólio da oposição à renovação, por parte do inquilino, em qualquer modalidade de arrendamento, e seja qual for o respectivo tipo de duração, passando, também, o locador a gozar do direito de se opor à renovação ou de denunciar, não, fundadamente, o contrato, embora com observância do prazo de pré-aviso, com antecedência legal.
IV - Todos os contratos para fins não habitacionais – arrendamento para comércio, indústria e outros fins – sem qualquer excepção, constituídos antes da data do início de vigência do NRAU, são susceptíveis de vir a ser regulados por este diploma legal, caindo no domínio da lei nova os efeitos futuros das respectivas relações jurídicas que vierem a produzir-se já no âmbito temporal da mesma.
V - Não tendo o autor observado com a antecedência legal o prazo de comunicação da oposição à renovação, sem que o réu tenha impugnado o incumprimento do pré-aviso legal da citação, deve esta considerar-se reportada, não à data da renovação mais próxima da citação, mas antes à data da renovação contratual subsequente.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA(1):



AA e BB propuseram a presente acção declarativa, em processo comum, sob a forma ordinária, contra CC, todos, suficientemente, identificados, pedindo que, na sua procedência, o réu seja condenado a restituir aos autores, imediatamente, livre de pessoas e coisas, o rés-do-chão do imóvel infradiscriminado, em função do reconhecimento judicial da cessação da relação de arrendamento que, relativamente a esse imóvel, vigorou entre as partes, até 31 de Maio de 2008, e ainda a pagar aos autores uma indemnização, correspondente ao dobro do valor da última renda mensal, praticada no âmbito daquele arrendamento, ou seja, €160,00 mensais, desde 31 de Maio de 2008 até à entrega efectiva do imóvel.

Com vista a sustentar o bem fundado da sua pretensão, os autores alegam que são, actual e respectivamente, usufrutuário e dono e legítimo proprietário do aludido prédio urbano que, por escritura pública outorgada em 20 de Julho de 1978, foi dado de arrendamento ao réu, pelos, então, donos do imóvel, para instalação de um armazém de papel.

Este contrato manteve-se em vigor, até 31 de Maio de 2008, porquanto os autores, por carta registada com aviso de recepção, endereçada ao réu, em 1 de Fevereiro de 2008, formalizaram perante este a sua oposição à renovação do contrato, que se operaria em 1 de Junho de 2008, reclamando a devolução do arrendado, livre de pessoas e coisas, até 31 de Maio de 2008.

Sucede, porém, que o réu recusa a entrega voluntária do locado e que os autores reiteraram a este a intimação para o devolver, alertando-o para o facto de que a recusa da sua restituição implicava a obrigação de indemnização, a que alude o artigo 1045°, nº 2, do Código Civil, equivalente ao dobro da última renda praticada, renda essa que correspondia a €80.00 mensais, daí decorrendo a obrigação do réu em indemnizar os autores, à razão de €160,00 mensais, até à entrega efectiva do imóvel.

Na contestação, o réu alega, no essencial, que o arrendamento não é passível de oposição à renovação, por parte do senhorio.

Na réplica, os autores concluem como na petição inicial.

Conhecendo sob a forma de saneador-sentença, o Tribunal de 1ª instância julgou a acção improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu o réu dos pedidos contra si formulados pelos autores.

Do saneador-sentença, os autores interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedente a respectiva apelação, condenando o réu nos pedidos formulados.

Do acórdão da Relação do Porto, o réu interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

1ª – O arrendamento sub judice foi celebrado em Julho de 1978, ou seja muito antes da previsão legal do art°. 5o n°2 e) do RAU.

2ª - À data da sua celebração, tal contrato era necessariamente qualificado como vinculístico, por falta de previsão legal no C. Civil que o excluísse de tal regime.

3ª - Como tal foi objecto de 29 renovações automáticas.

4ª - Até 2008, data em que os autores manifestaram o exercício do direito de o "denunciar".

5ª - Fazendo-o no domínio do NRAU, diploma que tendo revogado o RAU, é de aplicação às relações contratuais constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor (27/06/06).

6ª - Inexistem quer na parte geral da locação civil do C. Civil, quer na Secção VII (Arrendamento de prédios urbanos) quaisquer normativos que permitam a livre denúncia pelo senhorio de "arrendamentos de espaços não habitáveis, para armazenagem", como ocorria na vigência do RAU.

7ª - Pelo que o arrendamento sub judice rege-se pelo disposto nos artigos 27° e 28° do NRAU (Lei 6/2006 de 27/02) que remete para o art°. 26° n° 4 c) - excluindo a possibilidade de denúncia pelo senhorio prevista no art°. 1101° c) do C. Civil.

- Fez pois o douto acórdão recorrido errada determinação da norma aplicável, o que constitui fundamento da presente revista.

Nas suas contra-alegações, os autores entendem que deve ser negada a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 3 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC)(2) , mas reproduz:

1 - Os autores são, actual e respectivamente, usufrutuário e dono e legitimo proprietário de um prédio urbano, sito na Rua do Almada, nºs ... e ..., na freguesia de C..., na cidade do Porto, inscrito na respectiva matriz predial urbana, sob o artigo ..., e descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial do Porto, sob o n° ..., do Livro B-... .

2 - Tal prédio, que se encontra em regime de propriedade total, é constituído por casa de quatro pavimentos e fachada poente - sendo integrado por um rés-do-chão, correspondente a uma divisão com utilização independente, com entrada pelo n° ... daquele imóvel.

3 - Por escritura pública, outorgada em 20 de Julho de 1978, no 7º Cartório Notarial do Porto, esse rés-do-chão foi dado de arrendamento ao réu, pelos, então, donos e legítimos proprietários do imóvel em causa, para instalação de um armazém de papel, pela renda anual de 60.000$00, a pagar em duodécimos de 5 000$00.

4 - O arrendamento foi feito, pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais períodos, com início a 1 de Julho de 1978.

5 - Os aqui autores, por carta registada com aviso de recepção, que endereçaram ao réu, em 1 de Fevereiro de 2008, comunicaram a sua oposição à renovação do contrato, que se operaria em 1 de Junho de 2008, reclamando do réu, desde logo e, consequentemente, a devolução do locado, até 31 de Maio de 2008, livre de pessoas e coisas.

6 - O réu recusou-se a entregar, voluntariamente, o arrendado.

7 – Os autores, através da carta registada com aviso de recepção, que endereçaram ao réu, em 10 de Julho de 2008, reiteraram a este a intimação para devolver o locado, alertando aquele para o facto de que a recusa na restituição do imóvel implicava a obrigação de indemnização, a que alude o nº 2 do artigo 1045°, do Código Civil, correspondente ao dobro da última renda praticada.

8 - Renda essa que correspondia a €80.00 mensais.

9 - Pese embora tal reiterada intimação, o réu recusa-se a entregar o imóvel aos autores.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A única questão a decidir, na presente revista, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 685º-A, nºs 1 e 2, 713º, nº 2 e 726º, todos do CPC, consiste em saber se o senhorio se pode opor à renovação do contrato de arrendamento que vincula as partes, denunciando-o, livremente.

DA OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO DO CONTRATO PELO SENHORIO

Efectuando uma síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, importa reter que, com início a 1 de Julho de 1978, o réu tomou de arrendamento, mediante escritura pública, o rés-do-chão de um prédio, para instalação de um armazém de papel, pelo prazo de um ano, prorrogável, por iguais períodos, pela renda anual de 60.000$00, a pagar em duodécimos de 5 000$00, tendo o contrato celebrado sido renovado, sucessivamente, durante trinta anos.

Entretanto, os autores que são, actual e respectivamente, usufrutuário e dono do prédio, por carta registada com aviso de recepção, endereçada ao réu, a 1 de Fevereiro de 2008, comunicaram-lhe a sua oposição à renovação do contrato, que se operaria em 1 de Junho seguinte, reclamando deste, desde logo, a devolução do locado, até 31 de Maio de 2008, o que o réu se recusou a efectuar, apesar da reiterada a intimação, por parte dos autores.

Chamado a pronunciar-se sobre o mérito da presente relação arrendatícia, em acção de despejo com fundamento na mudança de ramo e abandono do locado, por mais de um ano, foi decidido, no quadro normativo decorrente do DL nº 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), qualificar a mesma como um contrato de locação civil.

À data da celebração do contrato de arrendamento, cujo objecto imediato era a instalação de um armazém de papel, que teve início a 1 de Julho de 1978, vigorava o regime da locação constante do Código Civil de 1966, que qualificava o arrendamento predial urbano, consoante o fim a que se destinava, como arrendamento para a habitação, para comércio ou indústria, para o exercício de profissão liberal e para qualquer outro fim lícito, distinto dos três primeiros acabados de referir, de acordo com o preceituado pelo respectivo artigo 1086º, nº 1.

Sendo manifesto que é de excluir, liminarmente, a qualificação do contrato como de arrendamento para a habitação ou para o exercício de profissão liberal, resta definir a situação fáctica em presença, em função dos dois restantes tipos contratuais, isto é, o do arrendamento para comércio ou indústria ou para qualquer outro fim lícito, diferente dos já aludidos, à luz do quadro normativo vigente à data da génese do contrato, como se virá a fazer.

Há arrendamento para comércio, como se dizia no artigo 1112º, do CC, quando o locatário toma o prédio de arrendamento “para fins directamente relacionados com uma actividade comercial ou industrial”, ou seja, com uma actividade de mediação nas trocas, de compra de bens naturais ou de produtos para revenda(3) que, não tendo de ser única ou exclusiva, deve estar conexionada com a realização continuada e profissional de actos de comércio objectivos(4) .

Aliás, o arrendamento não deixa de ser comercial se no prédio não se exerce qualquer actividade comercial, bastando que o prédio esteja arrendado para fins, directamente, relacionados com essa actividade, não se exigindo que nele se proceda à venda directa ao público, porquanto o imóvel pode funcionar como simples armazém de retém, arrecadação ou depósito de mercadorias(5) .

Por seu turno, o arrendamento urbano pode ter ainda como fim outra aplicação lícita do prédio, ou seja, outra finalidade diferente da habitação ou do exercício do comércio, indústria ou profissão liberal, sendo certo que, só por exclusão de partes, é possível delimitar o âmbito desta última modalidade de arrendamento predial urbano.

Dentro desta última categoria, isto é, do arrendamento urbano para aplicação lícita do prédio, não habitacional, deve salientar-se, no que ao caso em análise interessa considerar, atendendo às suas eventuais semelhanças, o arrendamento de uma casa para armazenar, durante algum tempo, umas mercadorias, sendo sempre forçoso que esse fim lícito, mas de natureza transitória, conste do respectivo contrato(6) .

Revertendo ao caso em apreço, destinando-se o arrendamento do rés-do-chão do prédio, para instalação de um armazém de papel, enquanto actividade que se encontra, directa e objectivamente, relacionada com o exercício do comércio, e que foi celebrado, mediante escritura pública, mas que não se destinou a satisfazer uma actividade transitória do locatário, limitada no tempo, até porque se prolongou, consecutivamente, durante trinta anos, por força das sucessivas renovações contratuais, não deve ser qualificado como uma modalidade de arrendamento predial urbano, para outros fins lícitos, diferentes dos enunciados, mas antes como um arrendamento para o exercício do comércio.

Efectivamente, na ocasião temporal em que o contrato foi celebrado, o arrendamento predial urbano para outros fins lícitos não se encontrava sujeito à formalidade da escritura pública, ao contrário do que acontecia com o arrendamento para o exercício do comércio, por força do disposto pelo artigo 1029º, nº 1, a) e b), do CC, que só foi revogado pela Lei nº 6/06, de 27 de Fevereiro.

Tratando-se de um arrendamento urbano para o exercício do comércio, aplicavam-se-lhe, desde logo, na data da sua constituição, as disposições gerais do arrendamento urbano e rústico não rural, constantes dos artigos 1083º a 1106º, e as disposições gerais da locação que as não contrariem, incluídas nos artigos 1022º a 1063º, com as especialidades respeitantes aos arrendamentos para comércio ou indústria, a que aludiam os artigos 1112º a 1118º, todos do Código Civil de 1966.

A este tempo, por força do princípio da renovação obrigatória do contrato, no final do prazo, ou da relocação tácita, consagrado pelo artigo 1095º, do CC, nos arrendamentos de prédios urbanos, o senhorio não gozava do direito de denúncia, considerando-se o contrato renovado, por períodos sucessivos, caso não fosse denunciado pelo arrendatário, no tempo e pela forma convencionados ou designados na lei, em conformidade com o disposto pelo artigo 1055º, com as excepções constantes do artigo 1096º, também, do CC, mas que não interessam à hipótese decidenda.

Na transição para o RAU, o contrato celebrado, enquanto acto constitutivo, é um facto que se produziu, inteiramente, no âmbito temporal de vigência da versão originária do Código Civil de 1966, razão pela qual as condições da sua validade, formal e substancial, devem ser regidas pela lei, então, em vigor, o que, aliás, aquele diploma respeita, na sua plenitude, ao estatuir, no seu artigo 6º, que o mesmo “…não é aplicável aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor”.

Deste modo, o contrato analisado continua a reger-se pelo regime vinculístico, estabelecido pelo artigo 1095º, do CC de 1966, cujo princípio se manteve com o estatuído pelo artigo 5º, nºs 1 e 2, do RAU, que impõe, por via de regra, o regime da sua prorrogação forçada, no final de cada prazo de vigência, com excepção da situação da sua denúncia pelo arrendatário.

Finalmente, com a entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, as modalidades do arrendamento urbano, quanto ao fim a que se destina, de acordo com o preceituado pelo artigo 1067º, nº 1, passam a ser apenas duas, ou seja, o arrendamento para habitação – artigos 1092º a 1107º, do CC – e o arrendamento para fins não habitacionais – artigos 1108º a 1113º, todos do CC -, sendo certo, porém, que, nesta segunda categoria, definida apenas pela negativa, se concentram as três categorias, anteriormente, especificadas – arrendamento para comércio ou indústria, para o exercício de profissão liberal e para outros fins não habitacionais -, muito embora a recomposição destas modalidades não contenda com qualquer mudança de opções de natureza material-valorativas.

O critério geral de delimitação do âmbito temporal da aplicação desta lei, está fixado no artigo 59º, nº 1, do NRAU, que estipula que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, acrescentando o respectivo nº 3, que “as normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável”.

Em relação ao contrato, como acto constitutivo, não obstante o silêncio do diploma, as condições da sua validade formal e substancial devem continuar a ser regidas pela lei, então, em vigor, como já de disse, em face da antecedente transição do Código Civil de 1966 para o RAU.

Porém, quanto aos efeitos do contrato, isto é, quanto ao contrato como relação, as normas transitórias, expressamente, ressalvadas pelo artigo 59º, nº 1, podem ser de carácter formal, determinantes da continuação da vigência da lei antiga para as relações já constituídas, como é o caso do artigo 26º, nº 4, a), que dispõe no sentido de que “os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades: continua a aplicar-se o artigo 107º do RAU(7)", ou da não aplicabilidade da lei nova, como acontece com o artigo 26º, nº 4, c), que estipula que “não se aplica a alínea c) do artigo 1101º do Código Civil”, ou de carácter material, instituindo uma regulação própria para essas relações, não coincidente com a lei antiga nem com a lei nova, como é o caso dos artigos 57º [transmissão por morte no arrendamento para a habitação] e 58º [transmissão por morte no arrendamento para fins não habitacionais], todos do NRAU.

Porém, mesmo quando os critérios de delimitação intertemporal apontam para a primazia do NRAU, só quanto aos preceitos imperativos essa aplicação está, de imediato, garantida, mas não já quanto às normas supletivas, que apenas se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é esta a norma aplicável, em conformidade com o preceituado pelo artigo 59º, nº 3, do mesmo diploma legal.

É que o «estatuto do contrato», ou melhor, o estatuto da autonomia privada, segundo o qual o contrato estaria submetido, em princípio, à lei vigente no momento da sua conclusão, incorporando as respectivas normas supletivas que as partes desprezaram, que seria competente para o reger, até à extinção da relação contratual, sempre foi um estatuto subordinado em relação ao «estatuto legal», razão pela qual a lei nova, assumindo uma política de dirigismo contratual, visando proteger interesses colectivos, com repercussões na economia, como acontece com a situação dos arrendamentos que perduram há mais de trinta anos, restringe o domínio da autonomia contratual e é, em regra, de aplicação imediata(8) .

A nova disciplina legal corresponde, no fundamental, a uma regulação do mercado de arrendamento mais adequada às necessidades e concepções actuais, onde os arrendatários não habitacionais e, particularmente, os comerciais, surgem, excessivamente, penalizados, no que concerne à tutela do seu interesse na continuidade da relação locatícia., com ampla possibilidade de denúncia livre, por parte do senhorio.

É clara, portanto, como pano de fundo interpretativo do NRAU, a preferência do legislador pelo novo regime, no qual deposita a ilimitada crença voluntarista no ressurgimento de um mercado de arrendamento, forte e concorrencial, que faça regressar ao sector uma parte considerável dos edifícios, actualmente, desocupados ou degradados, com a correspectividade de rendas justas, mas, também, como se deseja, não especulativas.

Do ponto de vista substancial, a alteração mais relevante introduzida pelo NRAU consistiu na eliminação do monopólio da oposição à renovação, por parte do inquilino, que se traduzia para o senhorio no regime da prorrogação forçada do vínculo contratual, como resultava da herança deixada pelos artigos 1095º, da versão originária do Código Civil, e 68º, nºs 1 e 2, do RAU.

Qualquer que seja a modalidade de arrendamento – habitacional ou para fins não habitacionais – e o respectivo tipo de duração – com prazo certo ou com prazo indeterminado -, o locador passa, também, a gozar do direito de se opor à renovação ou de denunciar o contrato(9).

Assim sendo, verifica-se uma tendencial uniformização da disciplina legal, cessando a diferença, dentro do sistema normativo do arrendamento, entre os contratos sujeitos ao regime vinculístico e aqueles que, pela delimitação negativa do artigo 5º, nº 2, do RAU, a ele estavam subtraídos.

O NRAU apenas autonomiza o arrendamento para habitação não permanente e para fins especiais transitórios, nomeadamente, para o efeito da sua não renovação automática, em conformidade com o preceituado pelo artigo 1096º, nº 1, do CC.

A admissibilidade de denúncia livre pelo senhorio constitui o denominador comum à totalidade dos contratos de arrendamento, conforme resulta do disposto pelos artigos 1096º, nº 2 e 1097º, pois, também, nos contratos de duração indeterminada, o senhorio goza da faculdade da denúncia não fundamentada, contemplada pelo artigo 1101º, c), todos do CC, com a única ressalva da observância do prazo de pré-aviso de cinco anos.

Como assim, estão sujeitos ao NRAU, não apenas as relações locatícias que vierem a ser constituídas após o seu início de vigência, mas, igualmente, aquelas que, criadas antes dessa data, perdurarem para depois, com respeito pelos efeitos já produzidos no direito anterior, mas caindo no domínio da lei nova os efeitos futuros que vierem a produzir-se já no quadro temporal da mesma.

Ao contrário do que sucede, no âmbito dos arrendamentos habitacionais, em que há contratos que não sofrem quaisquer alterações e outros em que só o montante da renda é alterado, todos os contratos para fins não habitacionais - arrendamento para comércio, indústria e outros fins – sem qualquer excepção, são susceptíveis de vir a ser regulados pelo NRAU.

Podendo o arrendamento urbano cessar, nomeadamente, por denúncia ou oposição à renovação, tratando-se de um arrendamento para fins não habitacionais, aplica-se, na falta de estipulação em contrário, o disposto quanto ao arrendamento para habitação, pelo que, tendo o contrato o prazo de um ano, a respectiva denúncia deveria ter sido comunicada ao outro contraente, com uma antecedência não inferior a um ano do termo da renovação, de acordo com as disposições combinadas dos artigos 1067º, nº 1, 1079º, 1110º, nº 1, 1096º, nº 2 e 1097º, todos do CC.

Porém, os autores não observaram o prazo de comunicação da oposição à renovação do contrato, com a aludida antecedência não inferior a um ano do respectivo termo, mas antes e, tão-só, o prazo de quatro meses, de acordo com o regime da locação civil, a que se reporta o artigo 1055º, nºs 1, b) e 2, também do CC, mas que é inaplicável, face a todo o exposto, ao caso dos autos, cujo contrato se qualificou como de arrendamento para o exercício do comércio.

Tendo a citação do réu para os termos da acção sido efectuada com uma antecedência muito inferior à legal, que era de um ano, como se disse, a acção deveria improceder, obrigando os autores a propor uma nova acção, no termo do prazo seguinte, com a antecedência necessária para conceder ao arrendatário o pré-aviso legal, na hipótese de o réu ter alegado, em sua defesa, essa inobservância do prazo(10) .

De facto, o aludido prazo de um ano constituiria uma condição objectiva de admissibilidade da acção, uma excepção dilatória que obstaria ao conhecimento do mérito da causa, com a consequência natural da absolvição do réu da instância, nos termos do disposto pelos artigos 288º, nº 1, e), 493º, nºs 1 e 2, e 494º, corpo, todos do CPC.

Porém, o desrespeito desse prazo nunca poderia conduzir à improcedência da acção, ressalvada a aludida hipótese de o réu ter alegado em sua defesa a respectiva inobservância, determinando, tão-só, que se aguarde pelo termo do prazo da renovação para que seja decretada a restituição do prédio(11) .

Porém, não tendo o réu impugnado este incumprimento do prazo de antecedência da citação em relação à datada renovação do contrato, considerando que a sua natureza nada tem a ver com a essência do pedido, por analogia com o que acontece nas acções em que o credor pede o pagamento de uma prestação em certo dia e se demonstra que o vencimento ocorre em data posterior, em que o réu deve ser condenado a satisfazer a prestação, na data exacta, em vez de ter lugar a solução de absolvição, com base no preceituado pelo artigo 662º, do CPC, também, agora a citação se deve considerar reportada, não à data da renovação mais próxima da citação, ou seja, 1 de Junho de 2008, mas antes à data da renovação subsequente, isto é, 1 de Junho de 2009.

Assim sendo, considerar-se-á, para todos os efeitos, designadamente, no que concerne ao pagamento da indemnização peticionada, a cessação do contrato de arrendamento reportada a 31 de Maio de 2009.

Não colhem, portanto, no essencial, as conclusões constantes das alegações da revista do réu.

CONCLUSÕES:

I - Destinando-se o arrendamento, submetido à formalidade da escritura pública, à instalação de um armazém de papel, enquanto actividade que se acha, directa e objectivamente, relacionada com o exercício do comércio, onde já se encontra, há mais de trinta anos, não tendo em vista satisfazer uma actividade transitória do locatário, limitada no tempo, não deve ser qualificado como uma modalidade de arrendamento predial urbano para outros fins lícitos, mas antes como um arrendamento para o exercício do comércio.

II – A primazia do NRAU, na definição dos critérios de delimitação intertemporal, só é manifesta quanto aos preceitos imperativos, que são de aplicação imediata, mas não quanto às normas supletivas, que apenas se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do NRAU quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da sua celebração, como reflexo da subordinação do «estatuto do contrato» em relação ao «estatuto legal».

III - A alteração substancial mais relevante introduzida pelo NRAU consistiu na eliminação do monopólio da oposição à renovação, por parte do inquilino, em qualquer modalidade de arrendamento, e seja qual for o respectivo tipo de duração, passando, também, o locador a gozar do direito de se opor à renovação ou de denunciar, não, fundadamente, o contrato, embora com observância do prazo de pré-aviso, com antecedência legal.

IV - Todos os contratos para fins não habitacionais - arrendamento para comércio, indústria e outros fins – sem qualquer excepção, constituídos antes da data do início de vigência do NRAU, são susceptíveis de vir a ser regulados por este diploma legal, caindo no domínio da lei nova os efeitos futuros das respectivas relações jurídicas que vierem a produzir-se já no âmbito temporal da mesma.

V – Não tendo o autor observado com a antecedência legal o prazo de comunicação da oposição à renovação, sem que o réu tenha impugnado o incumprimento do pré-aviso legal da citação, deve esta considerar-se reportada, não à data da renovação mais próxima da citação, mas antes à data da renovação contratual subsequente.


DECISÃO(12) :

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando, embora com fundamentação diversa, o acórdão recorrido.

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Custas da revista, a cargo do réu.

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Notifique.

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Supremo Tribunal de Justiça

Lisboa, 27 de Maio de 2010,


Helder Roque (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
_____________________________
(1) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Sebastião Póvoas; 2º Adjunto: Conselheiro Moreira Alves.
(2) Esta acção foi instaurada, a 21 de Outubro de 2008, regendo-se, inteiramente, na sua tramitação processual, pelas normas do Código de Processo Civil que resultaram das alterações introduzidas pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, que entraram em vigor, no dia 1 de Janeiro de 2008, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1, do referido diploma legal.
(3) Pereira Coelho, Direito Civil, I, Arrendamento, 1976, 33.
(4) Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª edição, revista e actualizada, 2001, 257 e 258.
(5) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4ª edição, revista e actualizada, 1997, 699; e Código Civil Anotado, II, 1ª edição, 1968, 402; Pais de Sousa, Extinção do Arrendamento Urbano, 1980, 22; Isidro de Matos, Arrendamento e Aluguer, 294; Sá Carneiro, RT, Ano 89º, 318 e 319.
(6) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1ª edição, 1968, 355; Pais de Sousa, Extinção do Arrendamento Urbano, 1980, 24.
(7) Que consagrava limitações ao direito de denúncia do senhorio, em caso de necessidade da habitação ou de ampliação do prédio.
(8) Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 13ª reimpressão, 2002, 237 a 241.
(9) Joaquim de Sousa Ribeiro, O Novo Regime do Arrendamento Urbano: contributos para uma análise, Cadernos de Direito Privado, nº 14, Abril/Junho, 2006, 7.
(10) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4ª edição, revista e actualizada, 1997, 624 e 625.
(11) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4ª edição, revista e actualizada, 1997, 624 e 625; e Código Civil Anotado, II, 1ª edição, 1968, 375; STJ, de 15-10-1980, BMJ nº 300, 376.
(12) Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Sebastião Póvoas; 2º Adjunto: Conselheiro Moreira Alves.