Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3005
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: SJ20071009030051
Data do Acordão: 10/09/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
Da presunção estabelecida no art. 7º do Código de Registo Predial não beneficia apenas o titular inscrito no registo mas também o adquirente da coisa, desde que do registo conste que o transmitente é o último titular inscrito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório
AA, em seu nome próprio e em representação da herança aberta por óbito de BB, intentou, no Tribunal Judicial da Covilhã, acção ordinária contra CC e mulher DD, EE e mulher FF, e GG e marido HH, pedindo o reconhecimento do respectivo direito de propriedade sobre os prédios descritos sob os nºs. 29447 e 36891, respectivamente a fls. 50 v. e 129, dos Livros Bs. 78 e 97, da Conservatória do Registo Predial da Covilhã, sendo declarada nula, e sem nenhum efeito, a escritura de compra e venda outorgada a 25/X/1996, no Cartório Notarial da Guarda, e em consequência ser ordenado o cancelamento registral da inscrição feita a favor dos R.R. quanto à descrição nº 29447 e, bem assim, declarada a existência de duplicação da descrição predial da ficha nº 00000, da freguesia de Aldeia do Carvalho, ordenando-se o seu cancelamento, com todas as suas respectivas inscrições; e, finalmente, que os R.R. fossem condenados a absterem-se da prática de quaisquer actos que pudessem perturbar a posse.
Os EE e GG contestaram, pugnando pela improcedência do peticionado pela A. e, em sede reconvencional, pediram que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre os mesmos prédios (“Quinta do Carvoeiro e do Andorão”), com a consequente condenação da A. a abster-se de praticar actos que perturbem as suas posses e, ainda, no reconhecimento por parte desta do seu direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito sob o art. 545º correspondente à casa de habitação que integra a aludida descrição predial nº 36891, e, ainda, que, após a revisão das matrizes, tais referidas unidades registrais foram unificadas e passaram a integrar o art. matricial nº 1116.
Replicou a A., contrariando a pretensão dos RR. e aproveitou a oportunidade para ampliar o pedido no sentido de ser declarada nula e de nenhum efeito a escritura de justificação notarial e os efeitos que se lhe seguiram, bem como a escritura de 25 de Outubro de 1996 por o mandante ter intervindo em representação dos vendedores sem poderes para tanto.
Após a elaboração do saneador, selecção de factos e instrução, foi proferida sentença que decretou a nulidade da escritura de justificação notarial de posse, lavrada a 22 de Outubro de 1997, que proclamou os RR. proprietários, por via do instituto da usucapião, do prédio correspondente ao aludido art. 1116º e, em consequência, foi ordenado o cancelamento dos respectivos registos, declarou a existência da descrição predial da ficha nº 00774 da freguesia da Aldeia do Carvalho, com as descrições sob os nºs 29447 e 36891, e condenou os RR. a reconhecerem tal duplicação, ordenou o cancelamento registral da referida descrição nº 00774, bem como de todas as inscrições registrais actualmente sobre elas incidentes (tudo isto respeitante ao pedido principal) e declarou que o prédio urbano referido integrava efectivamente a descrição predial nº 36891, e, bem assim, reconheceu a unificação sob o art. 1116º (na parte relativa ao pedido reconvencional).
Os RR. não se conformaram com o julgado na parte relativa ao pedido por eles formulado de condenação da A. no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a Quinta da Carvoeira e do Andorão e consequente abstenção da A. a praticar actos de perturbação de posse, uso e fruição em relação ao referido prédio e, por isso mesmo, apelaram para o Tribunal da Relação de Coimbra. Sem êxito, porém, na medida em que o julgado foi integralmente confirmado.
Ainda irresignados, os RR. pedem, ora, revista, a coberto das seguintes conclusões:
a) O acórdão recorrido e a sentença de primeira instância, na parte recorrida, fazem uma errada qualificação jurídica dos factos e laboram em erro, porque, por efeito do preceituado nos artigos 874º e 1316º do C. Civil, os recorrentes adquiriram a propriedade que lhes foi transferida por efeito da celebração do contrato de compra e venda celebrado a 25/10/1996.
b) A transferência do direito de propriedade consagrado no art. 874º do C. Civil é uma das formas de aquisição do direito de propriedade tal como se encontra consagrado no art. 1316º do C. Civil, pelo que o contrato de compra e venda determina o reconhecimento do direito de propriedade dos recorrentes.
c) Os recorrentes não reivindicaram a propriedade mas o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os imóveis adquiridos através da escritura de compra e venda celebrada a 25/10/1996, pelo que o tribunal não poderia deixar de reconhecer o seu direito.
d) O direito de propriedade adquire-se por efeito do contrato de compra e venda nos termos dos artigos 1311 º, 874º e 879º todos do C. Civil, pelo que uma correcta interpretação do direito impunha o reconhecimento do direito de propriedade dos recorrentes independentemente do registo desse direito na Conservatória do Registo Predial.
e) Para o reconhecimento do direito sobre imóvel é irrelevante o registo da aquisição do bem porque o registo não é constitutivo de direito, é meramente declarativo.
f) Mesmo que assim não se entendesse, o registo predial é irrelevante quando é notório que quem se arroga no direito de proprietário adquiriu o imóvel ao proprietário, ou melhor, quando seja inequívoco que o bem foi comprado ao último titular registado e que não houve quebra do trato sucessivo.
g) Os recorrentes, por efeito do contrato de compra e venda celebrado a 25/10/1996, são os legítimos proprietários da Quinta da Carvoeira e do Andorão constituída pelos prédios rústicos descritos na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob os números 29.447 a folhas 50 e vº do livro B-78 e 36.891 a folhas 129 do livro B – 97 e podem pedir o reconhecimento judicial do seu direito independentemente de registarem os imóveis em seu nome.
h) Por efeito do reconhecimento do direito de propriedade dos recorrentes deveria a recorrida ser condenada a abster-se de praticar actos que perturbem a posse, o uso e fruição da Quinta da Carvoeira e Andorão pelos recorrentes.
i) Mesmo que assim não se entendesse quanto à necessidade do registo da aquisição dos bens, o pedido teria de ser parcialmente procedente porque o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob os números 29.447 a folhas 50 e vº do livro B-78, encontra-se registado em nome dos recorrentes – cfr. ponto 18 dos factos dados como provados.
j) Quanto a este prédio, pelo menos, deveria a recorrida ser condenada a abster-se de praticar actos que perturbem a posse, o uso e fruição do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob os números 29.447 a folhas 50 e vº do livro 8-78, pelos recorrentes.
k) Termos em que deve ser revogado o acórdão e a sentença de primeira instância, na parte recorrida, dando-se provimento ao pedido reconvencional, condenando-se a recorrida a reconhecer o direito de propriedade dos recorrentes sobre a Quinta da Carvoeira e do Andorão e prédios que a constituem, bem como a abster-se de praticar actos que perturbem o seu uso e fruição.
Respondeu a recorrida em defesa do aresto impugnado.

IIAs instâncias deram como provados os seguintes factos:
1. A A. casou civilmente com BB, em segundas núpcias deste, em 14 de Maio de 1984, na Conservatória do Registo Civil da Covilhã.
2. BB fora anteriormente casado com II, de cujo casamento nasceram os RR. CC, EE e GG.
3. O BB veio a falecer em 26.12.2002.
4. BB, marido da A., tinha um negócio, por conta própria, concretamente a representação de queijos, e, como tal, tinha facilidade de deslocação para o interior, designadamente para a zona da Covilhã.
5. A Quinta da Carvoeira foi registada pela Ap. 9 de 130598 em nome dos RR. e, segundo o que aí consta, tê-la-iam adquirido por usucapião, inscrição G-1.
6. Por escritura lavrada no Cartório Notarial da Covilhã em 24.05.1971, AAC vendeu a Quinta da Carvoeira, constituída por prédio rústico, a que correspondiam diversos artigos matriciais rústicos, e casa de habitação a que corresponde o art. 545º da matriz predial urbana, a JFC, irmão da A. e seguidamente, a aquisição por compra foi registada na Conservatória competente em nome dos compradores JFC e mulher pela Ap. n° 20 de 1 de Setembro de 1972.
7. Os promitentes-vendedores JFC e mulher MC, em 25.10.1988, passaram procuração junta a fIs. 43 a 47 dos autos.
8. Com efeito, em 1996, foi feito o levantamento geográfico e cadastral na zona e por essa razão, aos antigos artigos rústicos vieram a ser atribuídos novos números.
9. Os antigos artigos rústicos referidos na escritura a que se referem os docs. 10 e 11 de fIs. 48 a 51 foram substituídos por um único artigo - o 1.116.
10. Por escritura pública realizada em 25 de Outubro de 1996 no Cartório Notarial da Guarda os ora RR. adquiriram os seguintes prédios rústicos:
a) Prédio rústico que consta duma terra calva com pinhal, sito na Carvoeira, freguesia de Aldeia do Carvalho, concelho da Covilhã, inscrito na respectiva matriz sob o art. 890°, com valor patrimonial de 744$00, descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o número vinte e nove mil quatrocentos e quarenta e sete a folhas cinquenta e verso do livro B -setenta e oito.
b) Prédio rústico com uma casa de habitação, sito na Carvoeira, freguesia de Aldeia do Carvalho, concelho da Covilhã, inscrito na matriz rústica sob os arts. 892°, 894°, 895°, 897°, 899°, 900°, um terço indiviso do art. 1762°, quatro cento e vinte e cinco avos indivisos do art. 901 °, quatro cento e vinte e cinco avos indivisos do art. 902°, descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o número trinta e seis mil oitocentos e noventa e um, a folha cento e vinte e nove do livro B -Noventa e sete.
11. Os imóveis comprados correspondem à denominada Quinta da Carvoeira e Andorão, sita na Carvoeira, freguesia de Aldeia do Carvalho, concelho da Covilhã.
12. Intervieram como compradores os aqui RR., representados por terceiro, e como vendedor JFC, representado pelo marido da A., pai daqueles.
13. Aquisição cujo registo em nome dos RR. foi requerido pela Ap. 2/051196.
14. Não tendo os RR. conseguido remover as dúvidas que deram origem ao registo provisório por dúvidas, seis meses depois o mesmo caducou.
15. Tal ocorreu no início de Maio de 1997.
16. Os RR. não conseguiram ultrapassar os entraves surgidos com o registo da propriedade da Quinta da Carvoeira, descrita sob o n° 36.891 a seu favor, pouco tempo depois lançaram mão do instituto da usucapião, para tanto recorrendo à escritura de justificação, que foi outorgada a 22.10.1997, onde os filhos do falecido marido da A., através de procurador, declararam ser donos e legítimos possuidores, com natureza de bem próprio, com exclusão de outrem, de um prédio rústico, sito na Quinta da Carvoeíra, inscrito na matriz sob o artigo 1116, não descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã, que veio à sua posse no ano de 1976, por compra verbal feita a EC e, que desde então, o possuem, sem interrupção, exercendo sobre ele posse pública pacífica, contínua, de boa fé, com exclusão dos demais, à vista de toda a gente e sem discussão nem oposição de ninguém.
17. Verifica-se pela confrontação entre a escritura, conhecimentos de sisa e a escritura de compra e venda, que os artigos matriciais aí mencionados coincidem.
18. Quanto o primeiro prédio descrito sob o nº 29.447 fls. 50 vº B-78, por não se terem levantado dúvidas aquando da apresentação para registo a favor dos RR. este foi efectuado.
19. Este prédio também faz parte integrante da Quinta da Carvoeira e era igualmente do JFC e mulher MC.
20. Em 24 de Outubro de 1988, quatro anos depois da outorga desse contrato de promessa de compra e venda, a A. e o seu marido outorgaram um contrato de promessa de compra e venda da Quinta da Carvoeira e Andorão.
21. Em 21 de Setembro de 1993 foi outorgado um contrato de promessa de compra e venda acordando-se no preço de 8.000.000$00, tendo os RR. entregue a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 1.000.000$00.
22. A A. é natural da freguesia de Orjais, onde nasceu há setenta e um anos e por volta dos catorze anos foi viver para a freguesia de Aldeia do Carvalho, mais exactamente na Quinta da Carvoeira.
23. Por volta do ano de 1946, o pai da A., LC, passou a ser quinteiro do EC e posteriormente do AAC, passando nessa qualidade a tomar conta das terras da dita quinta, onde veio a morrer a 09.03.1987.
24. Quando o referido LC passou a tomar conta da Quinta da Carvoeira, foi viver com a mulher, que também aí veio a falecer em 09.09.1984 e, com filhos, incluindo a A., para a casa aí existente.
25. A A., antes da morte dos pais e mesmo depois do seu casamento com BB, viveu sempre na Quinta da Carvoeira, não obstante a A. ter casa com seu marido na Praceta de ..., n° 0 -r/c Esqº, Oeiras, onde se deslocava com frequência, manteve com o marido, a residência, igualmente, na Quinta da Carvoeira, sendo que quando o marido ficou debilitado, no ano de 2000, como a saúde já não permitia deslocações frequentes, a A. e o marido, fixaram-se ambos em Oeiras.
26. Os RR. nunca viveram na freguesia de Aldeia do Carvalho, nem no concelho da Covilhã, pelo que nunca tiveram contacto directo e permanente com o prédio denominado Quinta da Carvoeira.
27. Os RR. passaram a deslocar-se esporadicamente à Aldeia do Carvalho somente após o casamento do pai com a A., o qual ocorreu em 14 de Maio de 1984.
28. Nenhum vizinho da Quinta da Carvoeira reconhece os RR. como donos e proprietários desta.
29. Os vizinhos e demais habitantes da Aldeia do Carvalho nunca viram os RR. a cuidar daquela propriedade seja por si directamente ou por interposta pessoa.
30. Os RR. nunca ali semearam, nunca plantaram, nunca cuidaram das árvores de fruto, designadamente videiras, macieiras, pereiras, pessegueiros, cerejeiras.
31. Nem nunca os RR. ali deram quaisquer ordens, por si ou por interposta pessoa, a operários que frequentemente eram contratados para ali executarem as tarefas inerentes às sementeiras, tratamento e poda das árvores de fruto e colheitas nesta propriedade.
32. Os RR. alguma vez retiraram da quinta as utilidades que a propriedade desta poderia proporcionar, pelo simples facto de que estas pertenceram ao EC, posteriormente ao seu filho AAC, mais tarde ao JFC, irmão da A., que ao longo do tempo se sucederam na Quinta da Carvoeira.
33. Datado de 24.12.84, a A. e seu marido, por escrito, prometeram comprar a Quinta da Carvoeira, incluindo alfaias e máquinas agrícolas, a JFC e mulher MC, que a prometeram vender, pelo preço de 3.000.000$00, entretanto pago, na totalidade, tendo, então, sido pago a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 632.300$00.
34. O prédio vendido pelo AAC ao JFC e mulher encontra-se descrito sob o nº 36.891 a fls. 129 do Livro 8-97, trata-se de prédio rústico, a que correspondem diversos artigos, e com casa de habitação, sito na Carvoeira, freguesia de Aldeia do Carvalho, apesar de duas descrições prediais distintas: ficha nº 00774 de Aldeia do Carvalho e 36.891 fls. 129 do Livro 8-97: tratar-se-á do mesmo prédio, da mesma realidade física, dizendo respeito à Quinta da Carvoeira.
35. A A. viveu na Quinta da Carvoeira a partir dos 14 anos, estando, por isso, a ela ligada sentimentalmente.
36. Com a celebração do contrato promessa de compra e venda houve tradição do prédio em causa, dos promitentes vendedores para os promitentes-compradores.
37. A partir da data da celebração do contrato promessa, em 1984, a A. e o marido passaram a comportar-se como verdadeiros proprietários da Quinta, onde se inclui a casa.
38. Passaram a administrar directamente a quinta, contratando pessoal para as sementeiras, a poda das árvores e da vinha, a colheita das uvas e dos restantes frutos.
39. Celebraram seguros de acidentes de trabalho do pessoal que trabalhava na Quinta.
40. Os vizinhos têm a Quinta como sendo propriedade da A. e do falecido marido.
41. O casal JFC e mulher encontram-se emigrados em França e várias vezes insistiu com o seu marido para que fosse celebrada a escritura, ao que este sempre foi dizendo que oportunamente se trataria do assunto.
42. Os negócios de queijo estavam praticamente parados, a opção do pai dos RR. passava pela construção, em particular no concelho de Oeiras.
43. A A. e o marido, quando se deslocavam de Oeiras à Covilhã, ficavam na Quinta da Carvoeira.
44. A escritura realizou-se a 25.10.1996, tendo-se declarado como valor da compra e venda a quantia de 870.000$00.
45. A 14.03.2003 a A. veio à Covilhã e encontrou a fechadura da porta principal mudada e durante essa sua estadia, pois que utilizava a porta da cozinha, o EE disse-lhe que não tinha autorização para estar numa quinta privada, tendo, mais tarde, sido mudada a fechadura da porta da cozinha.
IIIQuid iuris?
Delimitado o objecto do presente recurso pelas respectivas conclusões, ut arts. 684º, nº 3 e 691º, do CPC, temos que os recorrentes trouxeram à nossa consideração a questão de saber se, face à factualidade dada como provada pelas instâncias, é lícito concluir pela procedência do pedido reconvencional no segmento relativo ao reconhecimento do reclamado direito de propriedade sobre a denominada Quinta da Carvoeira e Andorão, constituída pelos prédios rústicos descritos na CRP da Covilhã sob os nºs 29.447 e 36.891, com a consequência da A.-reconvinda ser condenada a abster-se da prática de actos que perturbem a sua posse, uso ou fruição.

A estas questões deram as instâncias respostas negativas.

Na 1ª instância, a justificação dada para o não reconhecimento destas pretensões dos reconvintes foi simplesmente esta: os RR. não alegaram os factos constitutivos da aquisição originária..
Já a Relação de Coimbra adiantou o seguinte na ânsia de sustentar a posição da 1ª instância:
“….
E, contrariamente ao que os apelantes defendem, o direito de propriedade não se adquire por mero efeito do contrato, já que apenas se transmite (art. 874º do Cod. Civil).
Por isso mesmo é que também não podemos aceitar … que «o reconhecimento do direito do imóvel … é um efeito automático do contrato de compra e venda»; e, assim, não é de aceitar também por mero efeito do contrato de compra e venda celebrado a 25/X/96, possam os mesmos ser tidos como legítimos proprietários.

Ora bem: de que lado está a razão?

Em 1º lugar, cumpre dizer que os recorrentes, ao contrário do que decidiram as instâncias, não reivindicaram coisa alguma: limitaram-se, antes, a pedir o reconhecimento do direito de propriedade sobre a denominada Quinta da Carvoeira e do Aldorão.
Não há que confundir as coisas: estamos perante a reivindicação quando o A., arrogando-se dono da coisa, pede que a mesma lhe seja restituída por detenção intitulada (sem título, sem justificação legítima) por parte do R.. E se, na verdade, a detenção deste é ilegítima, ou seja, carecida de título justificativo bastante, provada a qualidade de proprietário, a restituição não pode ser recusada: isto mesmo resulta com toda a clareza do disposto no art. 1311º do CC (a reivindicação sai frustrada caso de o A. não consiga fazer a prova de que é o proprietário ou, caso consiga, o R. faça vingar matéria de excepção, concretamente qualquer situação que juridicamente legitime a ocupação).
Estes são os dois traços típicos da revindicação – afirmação da qualidade de proprietário (a provar pelo A. se invoca uma qualquer forma de aquisição originária) e detenção ilícita por banda do R. (porque não conseguiu este fazer a prova de que detinha a coisa legitimamente). A eles se junta não raras vezes um outro, qual seja o relativo à indemnização por via da ocupação ilícita por parte do R..
Mas se o A. não pretende a restituição da coisa e apenas pretende que seja declarado dono da mesma, já não estamos perante qualquer reivindicação, antes perante uma simples pretensão de declaração de um direito de propriedade. Claro que esta pretensão há-de estar devidamente fundamentada, ou seja, há ter subjacente um interesse em agir, traduzido num qualquer facto que consubstancie um conflito de interesses sobre a coisa objecto da lide. Queremos com isto dizer que não é, não pode ser, por mero capricho que um qualquer dono pode vir a pleito pretender a declaração judicial da alegada propriedade sobre a coisa; para que o possa fazer, terá de invocar um conflito de interesse, nomeadamente, alegar que o seu direito está a ser posto em crise por parte daqueles contra os quais propôs a acção.

Esclarecido este ponto, entremos na análise do art. 879º do CC.
Pretendem os recorrentes, ou pelo menos, parece ser essa uma parte substancial da tese aqui trazida, que o simples facto de terem provado a compra da dita Quinta da Carvoeira e do Andorão é de per se suficiente para serem proclamados donos da mesma.
Com o devido respeito, esta tese não pode ser sufragada.
Para melhor compreendermos a resposta a dar a este problema, importa trazer à colação duas breves, mas importantes, noções: dizem elas respeito à diferença existente entre a chamada aquisição originária e a aquisição derivada.
Na 1ª o direito adquirido não depende da existência ou da extensão de um direito anterior – assim, por exemplo, a ocupação de móveis ou a usucapião; na 2ª o direito adquirido funda-se na existência de um direito na titularidade de outra pessoa – v.g. venda, doação, etc. (vide, por exemplo, Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 246).
Ciente disto mesmo, no que à compra e venda diz respeito, o legislador limitou-se a dizer no artigo em apreciação que este negócio tem como efeito essencial (além de outros) a transmissão do direito de propriedade da coisa ou da titularidade do direito (al. a).

Pires de Lima e Antunes Varela não deixam de sublinhar as diferenças (e naturais consequências) entre as duas formas de aquisição referidas.
Assim:
“…, se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito.
Mas se a aquisição é derivada, não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito (nemo plus iuris ad alium transfere potest, quam ipse habet). É preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris), o que torna, em muitos casos, difícil de conseguir. Probatio diabolica lhe chamam alguns autores” (in Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição pág. 115).

Precisamente porque a prova da aquisição originária é diabólica, é que o legislador se lembrou de estabelecer uma presunção de titularidade do direito de propriedade a favor da pessoa em nome do qual a aquisição da coisa está inscrita no registo predial (cfr. art. 7º do CRP). Perante uma inscrição desta natureza, a situação passa a ser a seguinte: invocado o direito de propriedade por parte do titular inscrito, cabe ao oponente à pretensão ilidir a presunção legal na mira de obstar à declaração do direito reclamado.
Isto posto, é altura de nos debruçarmos sobre o “nosso caso”.
E dizer, desde logo, à luz do que ficou dito, que a razão está do lado dos recorrentes no que diz respeito ao prédio descrito na Conservatória de Registo Predial da Covilhã sob o nº 29.447 pois a sua aquisição está registada a seu favor (cfr. ponto nº 18 dos factos provados).
Em relação a este prédio, não tendo a A.-reconvinda alegado e provado factos que eventualmente pudessem ilidir a presunção do art. 7º do CRP, teremos de concluir pela justeza da pretensão dos RR..
E em relação ao outro, ao descrito sob o nº 36891?
A situação é aqui (um pouco) diferente.
É facto assente que os RR. compraram a JFC o dito prédio por escritura lavrada no passado dia 25 de Outubro de 1996 no Cartório Notarial da Guarda (cfr. ponto nº 10 dos factos provados).
É também verdade que no registo predial a aquisição deste último prédio está feita a favor do vendedor JFC por o ter adquirido por compra de 24 de Maio de 1971 a AAC como resulta de fls. 57 devidamente certificada.
Sendo certo que este facto não consta do elenco dos factos dados como provados pelas instâncias, não é menos verdade que o mesmo deveria ter sido por elas considerado em sede de decisão. Com efeito, não tendo sido posta em crise a autenticidade do documento informador, o nº 3 do art. 659º do CPC impunha o seu conhecimento e a ilação de todas as consequências.
Não tendo as instâncias considerado, como deviam, o teor deste documento, não está o STJ impedido de o considerar e tirar do mesmo todas as consequências jurídicas.
E a conclusão a tirar é tão-somente esta: os RR. adquiriram o prédio em causa da pessoa que tinha o registo a seu favor, facto este que permite presumir que eles próprios são os seus actuais e verdadeiros donos.
A presunção do art. 7º do CRP vale aqui também em favor dos recorrentes, o que significa que competia à A.-reconvinda ilidir a mesma.
Não o tendo feito, como não fez, outra conclusão não se pode tirar que não seja a de está feita a prova da propriedade dos RR. sobre este prédio.
Antunes Varela, com toda a propriedade, faz notar esta mesma realidade:
“A ideia de que, na aquisição derivada, não basta para provar a existência do direito do reivindicante a alegação do negócio de aquisição (da compra e venda, da doação, da permuta, etc.) nem o registo deste negócio porque pode faltar o direito do transmitente, é perfeitamente justificada.
Mas já não é assim quando o transmitente seja o último titular (do direito) inscrito no registo – facto que, naturalmente, necessita de ser provado.
Quando assim suceda, mesmo que o último inscrito no registo não seja apoiado na cadeia ininterrupta de transmissão desde a descrição e a primeira inscrição do imóvel no registo (por falta ou por não aplicação do princípio do trato sucessivo), a prova do direito do adquirente beneficia já da presunção da existência do direito do transmitente, que resulta do registo.
Seria um absurdo exigir, mesmo nesse caso, a prova da cadeia ininterrupta do imóvel até se mostrar um título de aquisição originária” (in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 120º, pág. 121).
Temos, pois, apenas por estas e não pelas razões avançadas pelos recorrentes (ou seja, pelo puro efeito da compra e venda) motivos de discórdia com as argumentações das instâncias.
Nenhuma razão havia para não reconhecer os RR.-reconvintes como proprietários dos aludidos prédios.
Reconhecido, pelos motivos expostos, o direito de propriedade dos RR.-recorrentes sobre os prédios em causa, é evidente que a eles pertence de pleno e em exclusividade o gozo dos mesmos (direitos de uso, fruição e disposição), ut art. 1305º do CC.
A R., como pessoa que procurou pôr em crise este direito de propriedade dos RR., não pode deixar de ser condenada a não praticar qualquer acto que, de alguma forma, menorize, a plenitude do mesmo.
Id est, também em relação a este concreto ponto peticionado pelos RR. – condenação da A.-reconvida a não praticar actos de perturbação do seu direito de propriedade – não podemos deixar de lhes reconhecer razão.

Em conclusão:
Pelo que ficou dito, reconhece-se que os recorrentes são os legítimos proprietários da Quinta da Carvoeira e do Andorão e condena-se a recorrida a abster de praticar actos que perturbem a posse, o uso e fruição da mesma por parte daqueles.
IV Decisão
Concede-se, pois, a revista e condena-se a recorrida no pagamento das respectivas custas.

Lisboa, aos 09 de Outubro de 2007

Urbano Dias (relator)
Paulo Sá
Mário Cruz