Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P1232
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
PROCEDIMENTO
Nº do Documento: SJ200704120012325
Data do Acordão: 04/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
1 – Quando é invocado o direito de escusa por um estabelecimento bancário, a autoridade judiciária:
— aceita como legítima a escusa e aí o respondente deve silenciar sobre os factos sigilosos de que tiver conhecimento, sob pena de incorrer no crime de violação de segredo (art. 195.º do C. Penal); ou
— entende que a escusa é ilegítima e então ordena, após as necessárias averiguações, que o respondente deponha sobre o que lhe é perguntado (art. 135.º, n.ºs 2 e 5), sob pena de cometer o crime de recusa de depoimento se o não fizer (art. 360.º, n.º 2, do C. Penal); ou
— suscita ao tribunal competente que ordene a prestação de depoimento, se tiver que se quebrado o segredo profissional (art. 135.º, n.ºs 2 e 5 do CPP).
2 – Neste último caso coloca-se a questão do rompimento do segredo, da exclusiva competência de um tribunal superior ou do plenário do STJ (se o incidente se tiver suscitado perante este tribunal), quando a autoridade judiciária, aceitando que a escusa de depor é legítima, pretende, contudo, que, dado o interesse da investigação, se quebre o segredo profissional obrigando-se o escusante a depor, dado prevalecer o dever de colaboração com a realização da justiça, com vista ao cumprimento do dever de punir.*

* Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:

O senhor Juiz do Tribunal Judicial de São João da Pesqueira (proc. n° 1607/05.5JAPRT), suscitou junto da Relação do Porto, o incidente de dispensa do sigilo bancário, em favor do “M... B...”, determinando-se-lhe que forneça o extracto bancário da conta n.° ..., relativo ao período compreendido entre os dias 1 e 31 de Outubro de 2005 e informação sobre o seu titular.
Este Tribunal Superior, por acórdão de Porto de 29.11.2006 (proc. n.º 6673/06-4), decidiu:
— considerar ilegítima a recusa da agência em causa do “M... B...” em fornecer os elementos referenciados; e
— determinar, consequentemente, o envio do processo para a 1.ª Instância, para que o Sr. Juiz da Comarca, em face desta declarada ilegitimidade, ordene — referindo as normas legais aplicáveis — o fornecimento dos elementos informativos em falta e, mantendo-se essa recusa, extraia dela as consequências penais e processuais acima assinaladas.
Inconformado com esta decisão, o Ministério Público, junto da Relação do Porto, dela recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo na sua motivação:
1.ª – O dever de segredo bancário está definido no art. 78.° n.°s 1 e 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92 de 31 de Dezembro;
2.ª – Por sua vez, o art. 79.° do mesmo diploma estabelece as excepções a esse regime, estipulando, que os factos e elementos das relações do cliente com a instituição, só podem ser revelados, entre outras situações, nos termos da lei penal e de processo penal (alínea d)); e, quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo (alínea e));
3.ª – O segredo profissional, no qual se inclui o segredo bancário, é objecto de tutela penal no art. 195.° (violação de segredo) e no art. 196.° (aproveitamento indevido do segredo) do Código Penal;
4.ª – Para além de várias disposições legais avulsas que expressamente o declaram, o dever de segredo cede nos termos do disposto nos art.ºs 135.°, l81.° e 182.° do Código de Processo Penal.
5.ª – Da conjugação do disposto nos artigos 135.° n.° 1 e 182.° n.° 1 e 2, do CPP resulta que: os membros de instituições de crédito para além de outras pessoas sujeitas a segredo profissional apresentam à autoridade judiciaria, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado (n.º 1); se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 135. ° n° 2 e 3 e 136.º, n.º 2 (n.° 2);
6.ª – Tendo sido invocada, por escrito, pela instituição bancária, o direito de escusa com base no sigilo profissional, compete ao tribunal em que o incidente é suscitado – no caso o da 1.ª instância – nos termos do n.° 2 do art. 135.° do CPP, apreciar da legitimidade da escusa e determinar, caso considere essa recusa ilegítima, que seja prestada a informação;
7.ª – Se considerar a escusa legítima e pretender que, dado o interesse da investigação, se quebre o segredo profissional obrigando-se o escusante a depor, terá de submeter a questão à apreciação do tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente é suscitado, único competente para, nos termos do n.º 3 do art. 135.° do CPP proceder à ponderação dos interesses em presença e decidir da quebra do segredo;
8.ª – No caso dos autos, investigando-se um crime de extorsão na forma tentada, crime não contemplado na legislação avulsa que regula os casos em que o dever de segredo cede, a quebra do mesmo só pode alcançar-se mediante o cumprimento do disposto no art. 135.° n.° 2 e 3 do CPP;
9.ª – Tendo o M... B... fundamentado a sua escusa no segredo bancário, que legalmente lhe está imposto, nos termos do art° 78° e 79° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL n.° 298/92 de 31 de Dezembro, fundamentação que o senhor Juiz de Instrução Criminal não questionou, antes deu como assente ao julgar a recusa legítima e, em consequência, tendo-se julgado incompetente, e bem, para decidir da quebra do sigilo, remetendo os autos a este Tribunal da Relação, para efeitos do disposto no n.° 3 do art. 135.° do CPP,
10.ª – Este tribunal da Relação, já não podia pronunciar-se sobre a legitimidade ou ilegitimidade da recusa, competindo-lhe apenas, acatar a decisão da 1.ª instância que julgou legítima a recusa e ponderando os interesses em jogo – o da administração da justiça e o interesse protegido pelo sigilo bancário – decidir da quebra ou não do sigilo bancário.
11.ª – Ao assim decidir conheceu, por um lado, de questão de que não podia tomar conhecimento, violando ainda o caso julgado formal; por outro, deixou de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, o que constitui a nulidade referida no art. 379.º, n.° 1 al. c) do CPP;
12.ª – Para além da nulidade prevista no art. 379.º n.° 1 al. e) do CPP e da nulidade decorrente da violação do caso julgado formal (art. 672.° do CPC), afigura-se-nos que ao proferir o douto acórdão recorrido, violou ainda este tribunal as regras da competência, tendo cometido a nulidade a que se refere o art. 119.º al. e), o que torna o acto inválido nos termos do art. 122.° n.° 2 ambos do CPP.
13.ª – Na verdade, é da competência do tribunal da 1.ª instância apreciar da legitimidade da escusa, o que aconteceu em despacho que se consolidou, sendo da competência deste Tribunal da Relação apenas a decisão do incidente de quebra do segredo, de acordo com o disposto, respectivamente, no n.° 2 e no n.° 3 do art. 135.° do CPP.
14.ª – Ora, ao decidir-se sobre matéria que é da competência do tribunal da 1.ª instância e ao determinar que este tribunal de 1.ª instância decida sobre matéria para a qual não tem competência, violadas foram também as regras de competência dos tribunais judiciais, o que integra a apontada nulidade.
15.° – O douto acórdão recorrido violou os art. 78.° e 79.° do DL n.° 298/92 de 31/12, os art. 119.° n.° 1 al. e), 135.°, n.° 2 e 3, 182.° n.° 1 e 2 e 379.° n.° 1 al. c) do CPP e o art. 672.° do CPC.
Pelo exposto, deve o douto acórdão ser declarado nulo e substituído por outro que, respeitando a decisão proferida pela 1.ª instância que julgou legítima a recusa, pondere os interesses em jogo – o da administração da justiça e o interesse protegido pelo sigilo bancário – decidindo da quebra ou não do sigilo bancário.
Distribuídos os autos em 28.3.2007, teve vista o Ministério Público que se pronunciou no mesmo sentido.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.
2.
E conhecendo.
Deve reter-se que, como o Banco em causa se tivesse recusado a fornecer os extracto bancário de uma determinada conta, num período que lhe fora indicado, informação relevante para a descoberta da verdade, entendeu-se na 1.ª Instância que, face ao n.º 3 do art. 135.º do CPP, a decisão sobre a correspondente quebra de sigilo bancário não era da competência do juiz de instrução, mas da Relação, e foi suscitado o correspondente incidente junto da Relação do Porto, para ponderação do interesse prevalente e superação do respectivo conflito de interesses.
Mas, a Relação, como se viu, decidiu que a recusa do “M... B...” era ilegítima, pelo que devia ser determinado pelo Juiz da Comarca o fornecimento daqueles elementos informativos e, a manter-se a recusa, daí extrair as devidas consequências.
Mas, salvo o devido respeito, a razão não está com a decisão recorrida.
Com efeito, quando seja invocado o direito de escusa, a autoridade judiciária poderá tomar uma das seguintes atitudes:
— ou aceita como legítima a escusa e aí o respondente deve silenciar sobre os factos sigilosos de que tiver conhecimento, sob pena de se sujeitar às penas correspondentes ao crime de violação de segredo do artigo 195.º do Código Penal;
— ou entende que a escusa é ilegítima e então ordena, após as necessárias averiguações, que o respondente deponha sobre o que lhe é perguntado (art. 135.º, n.ºs 2 e 5), cometendo o crime de recusa de depoimento se o não fizer (art. 360.º, n.º 2, do C. Penal).
— ou suscita ao tribunal competente que ordene a prestação de depoimento, se tiver que se quebrado o segredo profissional (art. 135.º, n.ºs 2 e 5).
Então é convocado o n.º 3 do preceito, que se debruça sobre uma segunda fase do incidente de prestação de depoimento em casos de segredo profissional e que surge num momento posterior, ou seja, quando a autoridade judiciária, aceitando que a escusa de depor é legítima, pretende, contudo, que, dado o interesse da investigação, se quebre o segredo profissional obrigando-se o escusante a depor.
A decisão sobre o rompimento do segredo é da exclusiva competência de um tribunal superior ou do plenário do STJ se o incidente se tiver suscitado perante este tribunal.
Esta questão não é nova, tendo já sido apreciada por este Supremo Tribunal de Justiça que, como lembra o Ministério Público na Relação, decidiu (AcSTJ de 6.2.2003, proc. n.º 159/03, em que foi 1.º adjunto o aqui relator) neste mesmo sentido. Nesta mesma direcção apontam Simas Santos e Leal-Henriques (Código de Processo Penal Anotado, I volume, 2.ª edição, págs. 742) citados naquele aresto.
Também neste sentido se pronunciou um outro acórdão deste Tribunal (AcSTJ de 28.6.2006, proc. n.º 2178/06-3), com o seguinte sumário:
«1 — O dever de sigilo bancário é uma manifestação da tutela do direito ao bom nome e reputação e reserva da vida privada, reconhecido pelo art. 26.º, n.º 1, da CRP, e visa proteger as relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes, tidas como indispensáveis ao normal desenvolvimento do modelo económico adoptado.
2 — Como qualquer direito constitucionalmente consagrado, só pode ser restringido para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, conforme o disposto no art. 18.º, n.º 2, também da Lei Fundamental.
3 — O dever de sigilo por parte de entidade bancária e seus funcionários só pode ser postergado, para além dos casos em que o próprio cliente consente na sua dispensa, quando um tribunal superior — tribunal da Relação ou STJ — decida pela sua quebra, verificada que seja a indispensabilidade da medida para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos axiologicamente mais valiosos e, em contraponto, o direito ao bom nome e à liberdade e segurança por parte dos ofendidos e o correspondente dever de colaboração com a realização da justiça, com vista ao cumprimento do dever de punir.»
Ora, como consta dos autos, o escusante (M... B...), assentando em que os elementos solicitados, nos termos dos art.ºs 78.º e 79.º do diploma que regulamenta o regime geral das instituições de crédito, se encontram no âmbito do segredo bancário, não sendo susceptíveis de serem revelados sem autorização do cliente, negou-se a prestar as informações bancárias que lhe foram solicitadas relativamente a tal conta.
O Senhor Juiz teve explicitamente por legítima a recusa e socorreu-se do incidente perante o tribunal superior. E face à invocação de tal sigilo e o reconhecimento forçoso de que a recusa tinha cobertura legal impunha-se, como se viu, a imediata abertura do incidente perante o tribunal competente — no caso a Relação.
E, sendo assim, não tem fundamento legal o caminho seguido pelo acórdão recorrido ao não conhecer de tal incidente e considerar como ilegítima a recusa, havida por legítima pelo Juiz que suscitou o incidente, numa posição que esvazia de conteúdo a prescrição do n.º 3 do art. 135.º do CPP («3. O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento»).
3.
Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, para que, no tribunal a quo, outro seja proferido a conhecer do incidente suscitado, nos termos do n.º 3 do art. 135.º do CPP.
Sem tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Abril de 2007

Simas Santos (relator)
Santos Carvalho
Costa Mortágua